O imobilismo, o absorver forças e esperanças, o conhecimento silencioso de sua própria profundidade, absolutamente não são artifícios. Isso é estrutural. Isso é automático. Isso é consequência de uma natureza animal e, ao mesmo tempo, imobilizada pela couraça. O povo age, o povo não filosofa sobre como age. Faz um mínimo necessário a sua sobrevivência. O povo é, por toda parte e sempre, a origem de todo o conservantismo. O líder conservador pode confiar em seus homens mais do que o líder que visa edificar um futuro melhor. O czar, o imperador, estão mais perto dos verdadeiros pensamentos do povo do que o profeta; mais perto do seu imobilismo. Os profetas só refletem os sonhos e esperanças silenciosos do povo. Está claro por que é o profeta e não o imperador que é morto.
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
O conservadorismo das massas
segunda-feira, 26 de outubro de 2020
A hipocrisia institucional e o petismo
Os 13 anos em que o PT esteve à frente do
governo federal foram marcados pela conciliação de classes e por uma variante
do “reformismo sem reformas”. A concretização de alguns programas sociais e
algumas pautas progressivas não podem esconder o fato de que os governos
petistas não realizaram nenhuma mudança estrutural no país. O próprio Lula
reconhece que “deveria ter feito mais”, por exemplo, na questão da
regulamentação da grande mídia, onde não fez absolutamente nada; além de “ter
dado lucro recorde aos bancos”, o que ele nunca fez questão de esconder – ao
contrário, sempre bateu no peito, orgulhoso, para anunciar aos quatro cantos.
O
fato da frente popular petista ter sido uma contendora das lutas sociais,
levando parte do descontentamento popular para o leito morto da
institucionalidade burguesa, a não-realização de nenhuma mudança estrutural no
Estado e na sociedade brasileira, e a disseminação de inúmeras ilusões
eleitorais e pequeno-burguesas, não o torna pior do que o governo Bolsonaro,
pois este é a expressão nefasta do movimento neofascista internacional, motivo pelo qual apresenta sem papas na
língua pautas extremamente reacionárias e abertamente entreguistas. Mesmo
garantindo os interesses estruturais e essenciais da burguesia brasileira,
dentre os quais cabe destacar a manutenção da institucionalidade, o PT sofreu o
golpe da direita, que não o perdoou e tampouco reconheceu os inestimáveis
serviços prestados a ela.
Este
blog assim analisou os motivos subjacentes ao golpe do impeachment em 2016: “a
política do PT de programas sociais gera uma disputa com a burguesia
imperialista e nacional pelos recursos do Estado. Em épocas de expansão
econômica é possível aumentar a trilionária ‘bolsa banqueiro, empresário e do
agronegócio’, ao mesmo tempo que se garante a esmola do bolsa família, do
ProUni, do Pronatec, etc. Porém, em épocas de crise internacional, através de
‘reformas’, exigem a totalidade desses recursos para contrabalançar a queda
tendencial da taxa de lucros. Os governos do PT tentaram investir num
desenvolvimentismo a partir das estatais, em particular, da Petrobrás.
Adquiriram refinarias para produzir combustível e, assim, garantir uma relativa
estabilidade de preços. Isso bastou para
a elite nacional e a sua mídia comercial taxarem o PT de ‘comunista’. Por essas
razões, a Petrobrás foi grampeada pelo imperialismo, segundo denúncias de
Edward Snowden; e não casualmente foi um dos principais alvos do golpe do
impeachment de 2016”[i].
Porém,
ainda que, apesar do golpe de 2016, seja bastante claro para quem tiver olhos
pra ver e ouvidos pra ouvir que o petismo cumpriu o triste papel de
sustentáculo da ordem burguesa brasileira (fato reconhecido até mesmo pelo guru
econômico da ditadura militar, Delfim Netto), se fosse honesto e realmente
tivesse uma estratégia de reformas estruturais mínimas, o petismo poderia ter
modificado a atuação sindical, por exemplo, se somado às mobilizações de 2013
para tensionar a elite do país à que concedesse tais mudanças mínimas e,
sobretudo, poderia ter trabalhado por uma nova forma de funcionamento
institucional; mas nem isso o petismo foi capaz de fazer: dançou conforme a
música até mesmo nos mínimos detalhes.
***
A
esquerda de velho tipo, na qual se inclui principalmente o PT, não destina
nenhum espaço no seu programa ao combate à hipocrisia. Vendem a ideia de que
basta “mudar o regime de propriedade” ou, pior ainda, “ser eleito” para que a
mudança comece a se processar tendo em mãos apenas um programa político formal.
A hipocrisia moral, social, institucional se dá nos pequenos detalhes que
sustentam decisivamente os grandes alicerces do sistema. Ela possui uma lógica
própria que leva ao total divórcio entre a vontade do eleitor e as pressões
decisivas e fatais exercidas sobre o eleito, que deve trabalhar inexoravelmente
de acordo com essa “lógica própria” – às vezes consciente, outras tantas vezes
inconscientemente. Tal hipocrisia não pode ser combatida pelos métodos
convencionais da “esquerda” que, ao fim e ao cabo, acabam por reproduzi-los.
Pela lógica do seu funcionamento, tal hipocrisia pode formar maiorias
silenciosas inconscientes, mas, também, de forma consciente através do
utilitarismo e do imediatismo.
Então,
podemos concluir que o PT, além de não realizar nenhuma mudança estrutural no
país porque não rompeu com a institucionalidade burguesa, sequer foi capaz de arranhar
a sua hipocrisia. Assim sendo, reproduziu e ainda reproduz as suas relações
simbólicas de hierarquia e poder, seja à frente do Estado, seja à frente dos
sindicatos. Caiu vítima da hipocrisia institucional da qual foi um dos
alicerces e baluartes. O PT não apenas não viu e não vê problema nesta
hipocrisia institucional – mesmo depois do golpe –, que é escondida e
disfarçada por mil “legislações” (geralmente cobradas apenas contra os pobres),
protocolos, formalismos paralisadores que tem por finalidade frear a luta dos
trabalhadores, mistificar e glorificar a hierarquia de poder da elite nacional,
como se tornou beneficiário e promotor “popular” dessa hipocrisia.
***
É
consenso entre a “esquerda” de que as relações capitalistas de produção –
dentre as quais se encontram a hipocrisia da institucionalidade burguesa –
desumanizam o ser humano, fazendo-o regredir à animalidade mais bestial. Por
isso os grandes teóricos do pensamento socialista – em especial os marxistas –
sempre alertaram que um dos principais objetivos do socialismo e do comunismo
era humanizar as relações sociais e elevar todos os seres humanos da condição
de animal. Frequentemente o surgimento do comunismo foi condicionado a uma nova
conduta humana, com valor transcendental e histórico-universal. No entanto,
para atingir objetivos tão grandiosos é necessário, de fato, humanizar o ser
humano, combatendo, dentre outros males, a hipocrisia moral, social e institucional;
ou seja: de um discurso completamente diferente da prática.
Assim,
“humanizar o ser humano” requer também a superação dos métodos políticos e
sindicais da velha esquerda, que são levianos, nervosamente oportunistas,
eleitoreiros, sindicais e... hipócritas!
Em grande parte das vezes sequer escuta o
outro. Está preocupado – ou, melhor, obcecado – em “fazer passar a sua
política”, custe o que custar. Ouvir o outro requer, forçosamente, entrar no
seu universo para apreendê-lo honestamente; exige, portanto, empatia. O movimentismo doentio e a
necessidade de crescer e “agradar” a opinião pública a qualquer preço levam ao
fechamento dos ouvidos dos militantes, que tendem a reproduzir ordens de cima e
a se fechar à perspectiva dos que estão embaixo.
Sabemos
o quanto é difícil exercer a empatia e ouvir sinceramente o outro, mas este é
um exercício imperioso para uma nova esquerda revolucionária. Desenvolver um
trabalho de base que leve a escuta como um método muito sério de militância –
sobretudo para se chegar a um denominador comum e, se possível, a consensos – é
parte fundamental de uma nova prática política. Aí vai uma tentativa de
sintetizar tudo isso em uma “palavra de ordem” para uma nova esquerda: saber
ouvir e saber criticar, evitando o “demagogismo” basista (espontaneísta); pois
saber ouvir não é compactuar com atrasos e posturas equivocadas dos
trabalhadores de base, mas saber
criticá-las sem impô-las e, principalmente, através do exemplo de uma nova
prática, conseguir motivar e embalar as multidões, respeitando seus anseios e
dialogando com eles.
***
Se,
por um lado, um conselho popular ou de fábrica, um soviete ou mesmo um sindicato só podem ter uma política classista e
socialista se tiverem à sua frente um partido revolucionário, que traduza e
expresse organizada e concretamente essa consciência de classe; por outro, se
não debatermos as questões ligadas à psicologia de massas, a hipocrisia
moral/institucional e às responsabilidades sociais que cabem a todo trabalhador
e a toda trabalhadora, não teremos socialismo ou comunismo e continuaremos nos
voltando para trás, para buscar supostas respostas, já caducas e que apenas
aprofundarão o caos e a falta de perspectiva.
Por
isso é importante não ficar esperando a “mudança de propriedade”, o socialismo
ou o comunismo para “mudar o ser humano”, já que para atingi-los é condição
fundamental começar a trabalhar desde já na nossa auto transformação (da mesma
forma que não esperamos a sociedade socialista para começar a lutar contra o
machismo, o racismo e a homofobia). As principais sugestões nesse sentido são:
·
Estudar e disseminar as lições da psicologia
de massas do fascismo e do capitalismo, visando criar uma nova prática
(procurar chegar a consensos de boas propostas classistas e evitar a dicotomização);
· Humanizar espaços e debates: aprender ouvir e
divergir honestamente entre trabalhadores, além de impulsionar onde for
possível momentos artísticos de integração que desenvolvam a sensibilidade;
·
Cuidar e combater as dicotomias eternas/cristãs,
jogando todo e qualquer mal para “fora de nós” e o reconhecendo apenas no
outro. Se autocriticar e rever nossas posições permanentemente[ii];
·
Combater as auto ilusões e buscar ser o mais
realista possível, sem abrir mão das nossas bandeiras históricas (tratadas
pelos oportunistas incuráveis como “impossíveis” ou “utopias”). Lembrar a
essência do leninismo[iii] – isto é, o seu
realismo. Pra isso é importante ter noção do nosso tamanho e das nossas forças,
além de nos reinventarmos, estudarmos e repensarmo-nos permanentemente.
·
Avaliar e estar atento a todo o tipo de
reprodução da hipocrisia moral, institucional e social, sem o quê, é
praticamente impossível a criação de novas formas de organizações e relações
sociais, mais justas, vivas e
humanas.
NOTAS
__________________
[ii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/autocritica.html
[iii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/a-essencia-do-leninismo.html
domingo, 25 de outubro de 2020
O debate da hipocrisia
sábado, 24 de outubro de 2020
A importância das divergências na formação de seres humanos: livre associação entre divergências políticas, crescimento pessoal, amor e incompletude
*Por Rafaela Lima
Dentre tantas divergências dentro da esquerda pela
interpretação acerca dos saberes teórico-práticos que circundam temas sociais,
culturais, morais, este texto nos convida a pensar a intersecção dos saberes
com as mais diferentes áreas do conhecimento humano, suas pontes e a
importância das divergências. Pensar que crescimento individual/intelectual, política
e vida, sim, estão juntas e não separadas, na medida em que lutamos por um
lugar em que possamos nos desenvolver física, psicológica, mental, sexual,
espiritual (mente), etc.; e que dentro dessa luta já podemos praticar o cuidado
nas relações com x outrx, aguçar o ouvir, e tentar desenvolver relações mais
saudáveis pautadas na clareza, no aprendizado coletivo e na contínua
autoavaliação/autocrítica (individual-coletiva); assim, aproximando e não
afastando as pessoas que tanto precisamos para dialogar, aprender, ensinar,
construir. Ou seja, desconstruir e construir num mesmo processo: desconstruindo
enquanto construímos e construindo enquanto desconstruímos, começando, nesse
texto, pelo micro – o individual – e expandindo para as possíveis mudanças nas
relações humanas (onde há, também, a reprodução da desigualdade de gênero, por
exemplo, como será abordado mais à frente).
Fazendo o fluir dialético em questões para além do
que geralmente chamamos, por convenção ou senso comum, de política, que se
prende as mesmas formas arcaicas de pensar, de discursar, de debater, de fazer
a luta. É um convite bem especial pra pensarmos o ”fazer no fazer”, não fazendo
a separação comum entre crescimento individual e coletivo, mas o compreendendo
dialeticamente. Levantando assim questionamentos importantes pra mudança, não
se limitando apenas na esquerda, mesmo que esse seja seu foco, mas expandindo e
contraindo para nossos círculos socias, de amigxs, de família, de vida.
Se trata de poder divergir e ser ouvido, de poder
apresentar o contraponto sem ser rotulado dos mais “cabrunhosos” termos,
insultos, até coisas mais graves como o cerceamento da liberdade de expressão,
a expulsão de grupos, o fim da possibilidade de fala em público, etc. Nenhum
conhecimento é menos importante que o outro, cada ser monta seu repertório – é
uma ferramenta, quem lê é quem tira dali as contribuições pro próprio pensar/desenvolvimento
intelectual e coletivo, tanto concordando como discordando; ambas reflexões são
válidas e necessárias. A prática assombrosa que aterroriza quem ama aprender é
a de ver tocarem fora contribuições válidas, que nos fazem pensar e refletir
por simplesmente não enxergarem ligação direta daquele assunto com os temas
fundamentais à questão do socialismo; ou por extremismo no pensamento/dicotomização:
“se não está comigo é meu inimigo” – com pressuposto de que tudo que não é
igual, não tem importância ou deve ser objeto de ódio; acha-se perda de tempo
ou desimportante, quando na verdade esses diálogos em que se tem o contraponto,
seja lá de qual ideologia for, servem para pensarmos em cima, trabalhando
assim, também, na prática, o senso crítico a partir da polêmica. O conhecimento
cativa a autonomia.
“Se o conhecimento pode criar problemas, não é
através da ignorância que podemos solucioná-los”. (Isaac Asimov)
O militante socialista, hoje, no Brasil, é, também,
um professor, tendo em vista, o baixo nível de conhecimento dentro da classe
proletária; ou, pelo menos, poderia ser (é uma questão de necessidade). Não sê-lo
em cargo social propriamente dito, mas em relação à partilha e à troca que há
ou poderia haver de conhecimentos, nas relações horizontais. Ninguém sabe tudo
e em algum aspecto cada um de nós é ignorante, pois somo incompletos,
imperfeitos. Ora aluno, ora professores, ora, ora (!) os dois juntos. Um
desafio dentro dessas relações de ensino-aprendizagem na troca entre
militantes/seres é, sem dúvida, o ego. Do que adianta buscar saber e aprendê-lo
se esse conhecimento não é propagado para elevar o nível coletivo de
consciência? Morre em si... De que adianta, se, o detentor desse saber se negar
a construção e formação em conjunto com as pessoas que ainda não tiveram
contato com esse mesmo conhecimento? Enquanto isso os “eus” entram em conflito
para se desenvolverem em meio ao que Zygmunt Bauman chamou de modernidade
líquida – tempos em que a relativização tomou conta, e a ausência e excesso
dentro do ser e o vazio, se expressam como depressão, ansiedade, transtornos
psicológicos, etc., que influenciam na autoestima, confiança dos jovens cada
vez mais, nas formas de ver a vida e certamente impacta na questão política;
jovens esses que poderiam se somar à mudança. Sem o conhecimento, trabalhar uma
questão básica que é a consciência de classe – que também é parte do
conhecimento e estritamente necessária para uma futura e possível revolução – é
contribuir com a prolongação da submissão. Como? Pela omissão, em prol do
conhecimento como alimento do próprio ego, e não para a luta contra a dominação
existente na sociedade. A necessidade de auto afirmação aparecendo dentro das
relações humanas. É sobre o nós, o eu e o outro. Entende?
Pensar o socialismo é questão também de pensar as
bases que edificam nossas relações. É pensar psicologia; é cuidar da forma
dentro da forma. As discordâncias e divergências nas questões teórico-práticas
do socialismo são motivos de rupturas nos campos político-pessoal criando rixas
pessoais a partir de traumas negativos e das experiências subjetivas das
partes. E é algo que dificulta e/ou impossibilita a mudança, enrijece a
estrutura já estabelecida e nos perpetua na condição de reprodutores do sistema
econômico, inclusive a nível individual (mas sempre bom lembrar que pode mudar).
Este “precisar vestir uma armadura” para entrar no “campo político” nos
desumaniza constantemente e impede relações mais saudáveis – as quais almejamos
ter no socialismo –, mas também não nos iludamos: a revolução não é nenhuma
santa milagreira ou deusa e há a necessidade de desconstruir e construir ao
mesmo tempo nesse processo, ainda longe de ser revolucionário, em que nos
encontramos.
Wilhelm Reich (1897-1957), cientista natural, contribui:
“O
problema é o tipo de esforço de organização necessário para fazer com que os
membros da população trabalhadora se voltem para eles mesmos, no sentido de
libertá-los dos inúmeros acontecimentos negativos, repugnantes e desastrosos no
mundo da política, dos negócios desonestos, da educação neurótica, da medicina
covarde; como ajudá-los a aprender a se governarem sem cair nas garras de novos
ditadores, novos políticos horríveis, novos excêntricos ou ideólogos. Esses são
os problemas e há muitos mais. Então o problema não é o que poderia e deveria
ser feito; comparando, isto seria fácil. O verdadeiro problema é como começar a
agir. (Éter, deus e diabo; capítulo:
O reino do diabo; Pág. 143).
> Pela base;
Tratar das questões que envolvem desigualdade de
gênero dentro das relações humanas na “esquerda” (ou dentro do próprio processo
do fazer revolucionário – tal como defendeu a militante e líder revolucionária Alexandra
Kollontai [1872-1952] no livro “A nova mulher e a moral sexual”, escrito
durante a revolução russa) é pertinente. Ela alerta, em paráfrase, para o fato
do “deixar para depois”, hábito comum até hoje dentro da “esquerda
revolucionária”, que deixa questões básicas como essa de fora do processo de
lutas. Não pensemos que as culturas ou os seres humanos construídas(os) ao
longo de séculos, a nível coletivo, sucumbirão automaticamente após uma
revolução – é um processo de desconstrução que leva tempo, e que, também, pode
ser praticado no agora e tido como experimentação. Quando uma coisa “depende”
d’outra, se ficarmos parados esperando se fazer sozinho, não acontece. Se
negligenciamos as pequenas responsabilidades nossas com nós mesmos e com os
outros, acabamos por nos perder do fazer em conjunto em sincronia com o “eu”;
matamos parte muito importante do processo, de qualquer um, que é o crescimento
individual.
Evidente que a revolução é de suma importância, mas
as práticas não podem se equivaler, por exemplo, à de outras religiões
ocidentais, no sentido de serem envoltas em dogmas, tabus, convicções que se
degeneraram e viraram fanatismo; e que mais afastam as pessoas, os jovens que
querem se somar à luta pela mudança, do que aproximam (tal como a poesia na
sequência traz). E que se for, pra de alguma forma, em algum outro sentido, o
socialismo se equivaler a alguma religião, que seja pela perspectiva do termo
“religião” (advindo de religare). Que seja para uma maior conexão com o
“si”, o cuidado que de certa forma nos ajuda a cultivarmos em cada um o lado
sensível, o humano em cada ser.
________
3. PROCESSO PELO QUAL ALGO OU ALGUÉM SE TORNA
DIFERENTE DO QUE ERA.
2. ALTERAÇÃO, MODIFICAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO
1. DEIXA
A PORTA ABERTA
PRA ELA ENTRAR:
MUDANÇA:
SUBSTANTIVO FEMININO
SINGULAR
DEVERIA SER VERBO
ASSIM COMO: REVOLUCIONAR
COMPREENSÃO FUNDAMENTAL PRA:
MUDANÇA
MUDANÇA NECESSÁRIA
PRA
MUDANÇA
O MUNDO DANÇA
A QUALQUER INSTANTE
CAI A FICHA
MUDANÇA ESTÁTICA
NEM NA FOTOGRAFIA
FÍSICA
MÁQUINA FOTOGRÁFICA:
EU
TU
NÓS
AUTOCRÍTICA
PRA ELA ENTRAR
DEIXA
A PORTA ABERTA___
<...>
Rafaela Lima (14/09/2020)
No texto de Alexandra Kollontai, no quarto capítulo chamado “Irmãs” de “O amor
na sociedade comunista – Carta à juventude operária”, que compõem a segunda
parte do livro já citado nos parágrafos
acima, ela aborda um acontecimento prático que teria se dado durante a Revolução
Russa que discorre, através da narração de uma história, sobre a importância do
fazer dentro do fazer ou como ela mesmo sintetiza noutro momento:
“A experiência da história
nos ensina que a elaboração da ideologia se realiza durante o próprio processo
de luta deste grupo contra as forças sociais adversas”. (Alexandra Kollontai)
Não menos importante:
“A psicologia da estrutura, baseada na economia
sexual, acrescenta à visão econômica da sociedade uma nova interpretação do
caráter e da biologia humana. A eliminação dos capitalistas individuais e a
substituição do capitalismo privado pelo capitalismo de Estado na Rússia em
nada veio alterar a estrutura do caráter típico, desamparada e subserviente das
massas humanas.” (Wilhelm Reich: Psicologia de massas do fascismo- Prefácio
à 3.a Edição em Língua Inglesa, Corrigida e Aumentada- pág. 21).
A complexidade abordada aqui nesse texto, indo do
micro ao macro pode ser pensada da seguinte maneira, simplificando:
> O individuo, por si só, reproduz internamente/psicologicamente
a estrutura do sistema econômico – podemos olhar, por exemplo, pras consequências
psicológicas de esse indivíduo estar presente dentro de uma sociedade/sistema
econômico que tem por base a competição. A tal da competição que até dado
momento nos é natural e necessária, no entanto, enquanto instrumento, coaduna
com a macro estrutura enrijecida, mexendo com as neuroses dos seres humanos –
questões de insegurança pelo padrão estético social e casos mais sérios.
> Dentro da relação entre amigxs/casais:
mulher-mulher; homem-homem; mulher-homem; além-gênero... sobre isso, uma breve
poesia feminina:
Romance burocratizado...
Psicologia feminina
não está ao meu lado...
a mulher é negada.
Como se sentir em meio a tudo isso?
Essas demandas, esse ritmo...
A ”maturidade” também aprisiona a mulher
Essa que quer evoluir, mas que carrega em si o
histórico de submissão
Um histórico de opressão, mil anos de escravidão
Freud: O futuro de uma ilusão
Séculos e séculos pertencendo ao pai, filhos e
irmão
Machismo! Machismo!
Me agride o teu não perceber ser abusivo
Ou fazer questão.
Quadrados dentro de quadrados
Alguns deles se chamam sistema econômico
Estão fixos na cabeça do humano
N’algum ponto
Na minha volta e na minha cerca
Existe uma placa...
Nela está escrito em letras maiúsculas:
PROPRIEDADE PRIVADA
A base da palhaçada está em nós
A crueldade do algoz, está em mim.
Rafaela Lima (08/2020)
> Dentro de um grupo, um micro sistema, em que os
membros reproduzem as instituições que estruturam o macro. Instituições,
partidos políticos, empresas, escolas, barzinho da esquina, etc.
“Depois que as necessidades biológicas originais
do homem foram transformadas pelas circunstâncias e pelas modificações sociais,
e passaram a fazer parte da estrutura do caráter humano, esta última reproduz a
estrutura social da sociedade, sob a forma de ideologias.” (Wilhelm Reich: Psicologia
de massas do fascismo- Prefácio à 3.a Edição em Língua Inglesa, Corrigida e
Aumentada- pág. 10).
***
A ARTE é tão importante em conjunto à política, ela
que pode resgatar-nos quando os pingos de humanidade se forem, evaporados,
concentrar e fazer chover novamente, mais pingos pra aliviar a alienação
emocional presente na sociedade, que afeta os gêneros, e que coaduna com o
machismo, com o patriarcado, com o estereótipo comportamental de homem, mulher.
Com a opressão, em suma. Tendo em vista sua importância e inclusive que a arte
também é reprodutora ideológica, por que a esquerda (partidos, grupos,
organizações, indivíduos, etc.) quando se trata de experienciar, sentir ou debate-la,
unir-se à, a deixa pra depois?! Salvo raras exceções.
Em termos musicais o Rap, gênero musical, abraçou a
luta com críticas ao sistema econômico, embora não o faça propondo, por vezes, uma
revolução propriamente dita, a formação e a informação que esse estilo leva às
massas – o público que atingem é de muitíssima importância e as contradições entre
imagem e letra – quanto mais gritantes, melhor para fazer os jovens pensarem
nas contradições entre teoria e prática. Desenvolverem o senso crítico. Mas e
por que a esquerda não abraça esse público também? Por que esperam que os
jovens das mais diferentes idades já entrem no caminho da militância sendo militantes
profissionais ou rebanho? Não compreendem o desenvolvimento, será? Não querem
esse amadurecimento? Questões de amargura pessoais entram aí?
Enquanto uns querem rebanhos, inflar o ego, outros
indivíduos querem mudança da forma de atuação, para seguir, seja lá qual
possível forma de se fazer uma revolução, o que cada um achar/sentir. Infinitas
possibilidades. São muitas divergências, mas no meio disso tudo o cuidado com
as pessoas importa, em conjunto às convergências e o trabalho de base que estão
diretamente conectados.
E se não tiver um fim, uma verdade absoluta? E se for
apenas um círculo em que damos várias voltas cada vez conhecendo e olhando
outros pontos de vista, e interagindo em cada rodada com as pessoas, só o que
nos sobraria seria o olhar com mais carinho e cuidado paras pessoas que estão ao
nosso lado. Cada uma apreende de maneira diferente – muito acontece de se ser
extremo num primeiro contato com o outro, que pensa diferente, seja por
ignorância ou por vontade, dentro da esquerda e fora dela – mas pode ser que seja
um caso de ignorância e só falte o conhecimento pra pessoa mudar, que essa tenha
escolhido aprender, se interesse pelo assunto, e esse método arcaico de
divergir afaste e destrua a curiosidade epistemológica1 que
precisamos nutrir se quisermos pessoas mais conscientes nas futuras gerações. A
revolução está longe, e pra aproximá-la, aproximar as pessoas é muito
importante. Não se aproxima desistindo do outro, não compreendendo a mudança ou
compreendendo como estática (não compreendendo, portanto). Existem formas
diferentes e subjetivas de aprendizagem.
A política é vida, é arte, é psicologia, é
biologia, é relações humanas, é mudança... são tantas coisas; a política é mais
um caminho/universo e nos limitamos a falar apenas sobre as mesmas coisas – não
que não sejam importantes, são, no entanto, sigo a atentar pra forma dentro da
forma, pra que o socialismo não se afaste mais ainda da humanização e agrave a
alienação emocional que corrobora para problemas sociais como o do machismo por
exemplo, e suas consequências práticas tanto em mulheres como em homens também.
Alexandra Kollontai em sua obra desenvolve o que chamou de “amor-camaradagem”, que seria a relação cujas bases não seriam na ideia de parceirx como propriedade privada (lógica instaurada na sociedade pela moral burguesa, o sentimento de posse). O amor-camaradagem, uma relação em que os “relacionandos” não se fecham em si, mas que estejam em sintonia com o coletivo, visando o crescimento em conjunto.
“Se conseguirmos que, das relações de amor,
desapareça o cego, o exigente e absorvente sentimento passional; se desaparece
também, o sentimento de propriedade, tanto quanto o sentimento egoísta de
unir-se para sempre ao ser amado; se conseguirmos que desapareça a vaidade do
homem, e que a mulher não renuncie criminosamente ao seu eu, não há duvidas de que,
com o desaparecimento de todos esses sentimentos, desenvolvam-se outros
elementos preciosos para o amor. Assim, por exemplo, aumentará o respeito para
com a personalidade do outro e também se aperfeiçoará a arte de levar em conta
os direitos dos demais; educar-se-á a sensibilidade recíproca e se desenvolverá
enormemente a tendência a manifestar o amor não somente com beijos e a braços,
mas também com uma unidade de ação e de vontade na criação comum”. (Kollontai: A nova mulher e a moral sexual, pág. 113).
Além da análise minuciosa da moral sexual, faz
construções embasadas historicamente, inclusive, análises da psicologia das
personagens femininas de obras famosas como “O diabo” e “Felicidade conjugal”
de Lev Tolstói e de autores como Grete Meisel-Hess em “A crise sexual”. Rebusca
as mudanças psicológicas que vão surgindo ao longo dos últimos 50 anos antes da
escrita de seu livro a partir da inserção das mulheres no trabalho, na produção
de capital e nomeia as novas mulheres que foram surgindo como sendo
“celibatárias”, tipo psicológico para a autora. Usaremos o amor? Já está sendo
usado.
Sobre a moral sexual Wilhelm Reich (1897-1957) traz
contribuições:
“Os ‘maus’ instintos ficam sob a guarda dos
‘bons’ costumes. Mais uma vez isto é perfeitamente lógico e correto no interior
de uma certa estrutura de pensamento. As pessoas que só amaldiçoam a estrutura
moralista de nossa sociedade, sem ver e compreender sua lógica interna,
fracassariam miseravelmente se tivessem de assumir o governo da sociedade e das
massas humanas”. (Wilhelm Reich: Éter, deus e diabo, cap. V, pag. 138)
Outro ponto importante a se pensar em relação às
estratégias de atuação e que, é atingida a partir de Wilhelm Reich em um de
seus livros: “Psicologia de massas do fascismo”, tem a ver com a manipulação
das emoções, fundamentalmente das mal resolvidas da massa, que circundam as
questões da sexualidade humana. A manipulação de emoções reprimidas que se
manifestam de diversas formas, como por exemplo, o sadismo, masoquismo, etc. se
dá e é reproduzida ideologicamente através dos meios de comunicação também. Somos
bombardeados por essas ”influenciações”, às vezes mais sutis e outras mais
escancaradas, que moldam o comportamento das massas e beneficiam o capitalismo.
Usam de forças destrutivas.
“A revolta fascista tem sempre origem na
transformação de uma emoção revolucionária em ilusão, pelo medo da verdade.” (Reich-
Psicologia de massas do fascismo- Prefácio à 3.a Edição em Língua Inglesa,
Corrigida e Aumentada – pág.12)
E em 1921, Kollontai afirma em “O amor na sociedade comunista – Carta
à juventude socialista”:
“O amor camaradagem é o ideal necessário ao
proletário nos períodos difíceis de grandes responsabilidades, quando luta para
o estabelecimento de sua ditadura ou para fortalecer sua continuidade.
Entretanto, quando o proletariado triunfar totalmente e for de fato uma
sociedade constituída, o amor apresentar-se-á de forma completamente distinta,
adquirirá um aspecto completamente desconhecido até agora pelos homens.”
Ou seja, acredita que o amor é um fator social.
Analisa os diferentes amores nas diferentes épocas históricas e como a moral
burguesa moldou os costumes e nossa noção de amar, a percepção do amor. E
agora, usaremos o amor na luta? Já estamos usando... (?)
“Agora, ouço-o argumentar, meu jovem camarada: ‘Concordo
quando você afirma que as relações de amor, baseadas no espírito de
fraternidade, se convertem no ideal da classe operária. Porém, não pesará
demasiado esta medida moral sobre os sentimentos amorosos? Este ideal não
poderia destroçar e mutilar o amor. Libertamos o amor da moral burguesa, mas
será que não lhe criaremos outras?’”
Tem razão, meu jovem camarada. A ideologia
proletária, ao não aceitar a moral burguesa no domínio das relações
matrimoniais, cria, inevitavelmente, sua própria moral de classe, as formas
regulamentadoras das relações entre os sexos que melhor correspondam às tarefas
da classe operária, que sirvam para educar os sentimentos de seus membros e
que, portanto, constituem até certo ponto correntes que aprisionam o sentimento
do amor.” (Kollontai- O amor na sociedade comunista - Carta à juventude
socialista: amor-camaradagem)
E agora, usaremos o amor na luta? Até que ponto?
Sobre o que se discorreu até aqui, é mais uma
forma, assim pode ser interpretada, mais uma simples discordância, mas que
ainda sim pode-se e deve-se levar em consideração. Nem que seja simplesmente
para refutar. As cartas estão dadas. Desiludido ninguém é, ainda mais sabendo
da nossa capacidade idealizadora, e, por parte, da necessidade dela também –
bem como a convicção. Ilusões dentro de ilusões, qual o seu direcionamento?
Quais as suas?
Talvez completude em obra, seja nesse caso,
concluir o texto com trechos do livro de Clarice Lispector, já que as
estruturas de escrita são limitadas, e com nós o texto pode até ter um fim, mas
e a reflexão segue viva, e até que ponto sai do começo?:
“Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei.
Por enquanto não sei: só ao me reviver é que vou viver. Mas como me reviver? Se
não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse
criar o que me aconteceu? Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é
relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir.
Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se
ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço
traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que
desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa
linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem. Até criar
a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois
tento mais uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me
exprimir. Também isto perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já
tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos. Ficarei perdida entre a mudez
dos sinais? Ficarei, pois sei como sou: nunca soube ver sem logo precisar mais
do que ver. Sei que me horrorizarei como uma pessoa que fosse cega e enfim
abrisse os olhos e enxergasse - mas enxergasse o quê? um triângulo mudo e incompreensível.
Poderia essa pessoa não se considerar mais cega só por estar vendo um triângulo
incompreensível? Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei
mais que a escuridão? a lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda
mais. E se eu olhar a claridade com uma lente, com um choque verei apenas a
claridade maior. Enxerguei, mas estou tão cega quanto antes porque enxerguei um
triângulo incompreensível. A menos que eu também me transforme no triângulo que
reconhecerá no incompreensível triângulo a minha própria fonte e repetição.
Estou adiando. Sei que tudo o que estou falando é só para adiar - adiar o
momento em que terei que começar a dizer, sabendo que nada mais me resta a
dizer. Estou adiando o meu silêncio. A vida toda adiei o silêncio? mas agora,
por desprezo pela palavra, talvez enfim eu possa começar a falar.”
(Retirado de A paixão segundo G.H - de Clarice Lispector).
...
Citação:
1 Paulo Freire: Pedagogia da autonomia
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Por um justo equilíbrio entre todas as teorias científicas progressistas: abaixo as dicotomias!
A velha esquerda, ainda presa em uma espécie
de “mente emocional”, julga todas as suas crenças
políticas como absolutamente verdadeiras e as contrapõe a qualquer outra
teoria. Por “crenças políticas” podemos entender os seus arremedos de
“marxismo”, geralmente recebidos de segunda mão e sem nenhuma reflexão séria e profunda.
A militância atual pouco lê sobre marxismo ou sobre qualquer outra coisa; pode
advir daí o seu desdém a todo avanço científico e a sua grosseira tendência de
reproduzir ecos de cima sem maiores críticas. Em suma: as suas “crenças”
refletem um medo congênito e não confesso a novas ideias e práticas.
Tal
conduta é o fim do espírito criador do marxismo, que leva em consideração a
dialética, isto é, o movimento da totalidade e a relação da parte com o todo.
Frente às profundas distorções do “marxismo” feitas pela mídia e a
intelectualidade burguesa, a velha esquerda não pode senão perder-se numa
reafirmação de dogmas e, por isso mesmo, não pode produzir nenhuma análise nova
e viva; que dirá responder às
distorções da mídia?
1.
As dicotomias
Seguidamente
vemos os intelectuais burgueses e pequeno burgueses criticando o marxismo,
dentre outros tópicos, pelo seu aspecto totalizante. Esta tendência totalizadora
de dar “respostas únicas” e “definitivas” sobre todas as outras – uma
influência direta da filosofia clássica alemã, de quem o marxismo é herdeiro –, ainda que muito importante, gera dicotomias que nos levam,
seguidamente, a becos sem saídas. Quanto mais novos e inexperientes são as
organizações de “esquerda” e os militantes formados por elas, maiores são as
dicotomias.
Uma
dicotomia é a divisão de um todo em apenas duas partes. Em outras palavras,
tudo deve pertencer a uma parte ou a outra, sendo elas mutuamente excludentes:
nada pode pertencer simultaneamente a ambas as partes. Isso é uma herança do
pensamento filosófico platônico e cristão, onde uma coisa é totalmente boa ou
totalmente ruim; pertencente a deus ou ao diabo; totalmente “certo” ou
“errado”; sadio ou doentio; e assim por diante. Ainda que tais pensamentos
filosóficos dicotômicos tenham sido importantes para o desenvolvimento
intelectual da humanidade, são visivelmente limitadores e geradores de
contradições das quais precisamos nos livrar agora, uma vez que já atingimos a
compreensão dialética da realidade – ou seja, a compreensão da interpenetração
dos contrários, da transformação do ser no não-ser, e vice-versa; de haver num
mesmo fenômeno elementos positivos e negativos.
Apesar
de já podermos ouvir claramente o canto de cisne das dicotomias
platônico-cristãs no pensamento humano, vemos a velha esquerda se aferrar a
elas de uma forma tanto mais infantil quanto nefasta para aprisionar o ego dos
seus militantes. A sua prática, como não poderia deixar de ser, acaba por
refletir essas compreensões mecanicistas e castradoras, que terminam por ser
apenas uma variante de controle de cima para baixo.
2.
As dicotomias na ciência e na filosofia
A
bem da verdade, não é apenas o marxismo que possui aspectos totalizadores que
se tornam pensamentos auto sabotadores quando manuseadas por mãos
inexperientes. Várias são as teorias e as filosofias que procedem desta forma –
talvez pela influência milenar platônico-cristã. Basta olhar para a história da
filosofia, da psicanálise, da ciência e da arte. Filósofos e pensadores
professam que apenas a aplicação quase
exclusiva de suas teorias ou técnicas podem “curar o mundo”, tal e qual uma
variante de doutrina religiosa. Muitos psicanalistas (de distintas vertentes)
sustentam, por exemplo, que somente a terapia pode “salvar o indivíduo”,
excluindo-se o restante da sociedade. O mesmo vale para propagandistas da
ciência, como Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson.
Para
eles, a ciência seria o norte absoluto, o que leva, por exemplo, a contradições
flagrantes, como o desprezo de Sagan em relação ao método psicanalítico por
este “curar apenas pela fala” e não apostar no “método científico” da química
psiquiátrica. Ou seja, um leve deslize que não apenas trata dogmaticamente o
que é “ciência”, limitando-a, e não reconhecendo a psicanálise como uma
importante ferramenta da própria ciência, como ignora, erroneamente, que as duas
formas sejam necessárias e complementares.
Dentro
do próprio campo psicanalítico também percebe-se tendências à dicotomização, em
grande parte como resultado do mesmo erro de Sagan e Tyson, cometidos, desta
vez, por Freud. Para ele, só o restrito “método científico” conhecido pelo seu
tempo poderia salvar a psicanálise. Então, estabeleceu-se falsas polarizações
com seus discípulos que honestamente buscavam desenvolver os galhos do tronco
que o próprio Freud plantou. Então, logo percebemos que se um psicanalista é
freudiano, ele não pode ser reichiano ou junguiano por trair o “método científico”
do seu fundador; e o mesmo pode ser estendido às demais áreas científicas e
filosóficas. Para que fique claro: uma justa apreciação do fenômeno psicológico
humano certamente exige contrastar e equilibrar as teorias freudianas,
junguianas, reichianas, lacanianas, etc., ainda que devamos reconhecer e
estudar suas diferenças, criticar e depurar seus erros. O mesmo vale para as
tendências marxistas progressistas e para quase todas as demais áreas do
conhecimento.
A
dicotomização absoluta leva ao empobrecimento do pensamento humano e à criação
de gaiolas, que impedem o voo livre do pensamento e do entendimento; como se
nos auto sabotássemos presos na visão da árvore ou de um simples galho desta
árvore, ao invés de percebermos toda a floresta e a ligação do seu bioma com
totalidade da Terra; isto é: rasgamos a big
picture e nos centramos voluntariamente nos pedaços rasgados da small picture.
Isso
não significa ignorar as preciosas contribuições de Sagan, Tyson, Freud ou de
qualquer outro pensador que tenha despendido a vida para contribuir com o
avanço intelectual, filosófico e científico da humanidade. Trata-se, justamente,
de tentar imprimir uma nova dinâmica e um novo método de pensamento já
percebidos e já apontados pelas tendências da evolução intelectual humana. É
precisamente uma conexão crítica que essa
evolução exige no momento. Uma vez que a resolução das necessidades dessa
evolução fossem claramente pensadas e devidamente consideradas, talvez nos
levariam a uma lógica e crítica diferente da que conhecemos. Para Hegel, por
exemplo, o conhecimento do absoluto (ou o mais próximo possível disso,
acrescentamos para contrabalançar o seu ufanismo) pode surgir por meio de uma
síntese da concepção intelectual e da reflexão; ou dito de outra forma: da
síntese e da posterior reflexão de teorias e pontos de vistas contraditórios.
Esta
crítica à dicotomização também não significa cair nos absurdos da pós-verdade,
auto-verdade ou prisões egotistas. Todas as teorias e filosofias devem ser
medidas por suas propostas, pela sua capacidade de relacionar-se com a
realidade concreta e, sobretudo, pela abertura
para a ligação com o restante da
realidade, pois ainda que não haja
verdade eterna, existem verdades inesgotáveis e em permanente transformação
– sobretudo no que diz respeito ao estágio em que se encontra o conhecimento
humano e nas condições construídas por ele para compreendê-las e divulgá-las.
Tudo isso deve ser coroado com a humanização
deste conhecimento – bem ao estilo freiriano,
para citar um exemplo – e, principalmente, o reconhecimento das nossas
limitações. Devemos ter como norte humanizar não apenas as ciências, as
filosofias e a arte, mas as próprias relações humanas, bastante desumanizadas.
3.
Por uma nova abordagem científica, filosófica e humana: desfazer as dicotomias!
Autores
como Fritjof Capra já perceberam e apontaram a necessidade de uma nova forma de
fazer ciência, filosofia e psicologia. A ciência, por exemplo, não pode
desfazer-se em autoproclamações desumanizadas, que leva em consideração apenas
um conhecimento fechado em si mesmo e autoproclamatório – uma espécie de
reprodução moderna dos concílios católicos –, tal como vemos hoje nas
universidades ou nos “especialistas” entrevistados pela grande mídia burguesa.
O
que pode transformar a produção intelectual e cultural humana é o aprimoramento
da junção de todas as teorias, num equilíbrio
harmônico, sabendo filtrar e amalgamar nelas tudo o que há de bom e depurar
o que há de ruim e limitador (aqui não se incluem, é claro, degenerações e
abortos teóricos, que são por demais evidentes). Isso é um exercício permanente
e, provavelmente, sem fim, em que o fundamental é ensinar o ser humano a pensar
e não a reproduzir uma decoreba, tal como funciona nosso sistema de ensino.
Repensar, fundir e/ou equilibrar harmonicamente todas as atuais e futuras
teorias e campos científicos e artísticos que já existem e os que ainda estão
por serem explorados deve ser a nossa “palavra de ordem”, pois é o caminho que pode nos colocar mais próximo
da “verdade” e da realidade.
Se
tudo isso não pode “resolver” os nossos problemas atuais, pelo menos nos deixa
com os pés mais próximos do chão e evita a degeneração em dogmas e tabus, que
engessam, infantilizam e por fim petrificam o pensamento humano.
4. A
dicotomização na política proletária
Como
foi dito no início, a dicotomização se reflete na prática política da velha
esquerda e gera verdadeiras aberrações. Com tais formas de proceder não pode
surgir uma nova prática que responda às necessidades políticas de emancipação
do proletariado, apenas a criação de gaiolas intelectuais que reproduzirão e
criarão engessamentos políticos práticos.
Em
um recente debate online entre
militantes de distintas regiões do Brasil surgiu uma questão interessante sobre
como abordar os trabalhadores ainda influenciados pelo petismo. Como sempre,
houve uma tendência à dicotomização e ao desprezo pela psicologia de massas da
sociedade capitalista.
Uma
companheira do sul colocou a necessidade de sermos cuidadosos no diálogo com os
trabalhadores iludidos que receberam bolsa família ou outro programa social dos
governos petistas; ao que foi respondida por um camarada do nordeste que
afirmou que “temos que ser bruscos” no sentido de finalmente “acordá-lo” de seu
sono letárgico, uma vez que um “diálogo brando” apenas reforçaria a sua
dependência e ilusões no petismo.
A
fala do camarada do nordeste expressa uma forte tendência à dicotomização, em
primeiro lugar, porque a classe trabalhadora é gigantesca e possui várias
estratificações e níveis de consciência, sendo necessário uma série de métodos
e formas de diálogos, desde o “diálogo brando” até o choque de consciência
“brusco”; em segundo lugar, não há porque restringir voluntariamente nossos
movimentos a apenas uma forma, ainda mais em questões secundárias.
Em
síntese: as duas modalidades de “diálogo” são importantes. Devemos cuidar com a
nossa própria autolimitação e sabotagem. Precisaremos das duas formas até mesmo
para um só indivíduo, o que dirá para toda a classe trabalhadora brasileira?
Nessas descobertas não há uma receita de bolo; o caminho se faz ao caminhar e a
sintonia fina é um exercício permanente que devemos nos especializar.
***
Para
que o quadro fique mais rico, caberia acrescentar ainda uma reflexão sobre as
limitações e as tendências à dicotomização na luta feminista, anti-racista e
dos movimentos LGBTTs. Quando estão sob clara influência burguesa, tais
movimentos tendem a pensar que o “seu programa” tal como é apresentado seria a
“salvação da humanidade” (ou, pelo menos, a salvação da parcela da humanidade
que abrangem), criando uma “nova sociedade” por si mesmo, desconsiderando-se
outros fenômenos políticos, econômicos, sociais, etc., geralmente separando-os
da luta por uma outra forma de sociedade; isto é, separando-os da luta pelo
socialismo. Muitos desses movimentos tendem a centrar-se unicamente na visão
errônea e limitada de que “todos os homens, brancos e heterossexuais” são o
problema por si mesmos, ignorando as condições concretas, as suas posições
políticas e, sobretudo, a sua prática...
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
Cortina de fumaça eleitoral sobre os incêndios do agronegócio e da grande mídia
A manipulação da Rede Globo é assustadora: não apenas chama agronegócio de pop, escondendo que as queimadas são de responsabilidade direta dele, como vende que ele está preocupado com a sua contenção...
***
A Amazônia continua ardendo pelas mãos do agronegócio subsidiado pelo bolsonarismo, a grande mídia ajudando a confundir e as eleições, mudam o que nisso tudo?
***
terça-feira, 6 de outubro de 2020
O que é o bolsonarismo?
Enquanto a velha esquerda se aferra à reprodução de ideias e, muitas vezes, de
dogmas, a classe dominante prima pelo
realismo. É claro que ela conta com todo o poder do dinheiro e de modernos
meios de informação e dominação, como a grande mídia, as escolas, universidades
e as atuais igrejas, que moldam o senso comum conforme seus interesses. Tudo
isso pesa de forma determinante, sem sombra de dúvidas. No entanto, a velha
esquerda, ainda que não possua os mesmos meios, abre mão do realismo, se embalando num verbalismo
revolucionário oco, que na maioria das vezes serve para afastar sectariamente pessoas
ao invés de agregar. Isto é, envolve-se em questões secundárias e ignora as
essenciais. Além disso, também faz vistas grossas aos conselhos de Marx e
Engels sobre a necessidade de estar em sintonia com os debates e métodos mais
avançados no campo científico. O resultado não poderia ser outro: colocam a
classe trabalhadora numa dupla desvantagem em relação à burguesia. A primeira é
uma desvantagem histórica (que já foi analisada por este blog[i]);
a segunda é uma opção política, que torna a velha esquerda refém de uma espécie
de miopia voluntária.
A
burguesia não perde tempo e está sempre sintonizada com tudo o que é produzido
e reproduzido pela ciência e tecnologia. Isto explica, por exemplo, a
avassaladora onda neofascista, que se
utiliza de métodos refinados e perigosos de manipulação da psicologia de massas[ii] –
homericamente ignorado pela velha esquerda – nas redes sociais. Esta faz toda
uma discussão mecanicista tacanha e bastante obtusa, que leva sempre a mesmas
conclusões que não nos faz andar um passo sequer. Quando se coloca a questão
sobre “o que é o bolsonarismo?” traz embutida certas limitações e vícios do
pensamento que caem, quase sempre, numa dicotomia platônico-cristã.
Se,
por exemplo, respondemos que o bolsonarismo é uma forma de “fascismo”, logo vem
o discurso obtuso de que, então, vamos incorrer no erro de apoiar
eleitoralmente e politicamente os governos petistas. Ora, camaradas, uma coisa
não necessariamente está ligada à outra. Pode-se caracterizar o bolsonarismo
como uma espécie de fascismo sem
incorrer no erro de apoiar politicamente o petismo ou de qualquer tipo de
frente popular.
O
bolsonarismo é a expressão brasileira do neofascismo,
uma corrente internacional
Criticar
tal conduta da velha esquerda não significa desconsiderar o núcleo racional de
muitos dos seus argumentos, que nos ajudam a delimitar melhor os nossos.
Refiro-me especificamente àqueles que afirmam que o bolsonarismo não rompeu com
a institucionalidade burguesa, mantendo aberto e funcionando o Congresso
Nacional, o STF e outros órgãos da legalidade democrático-burguesa, ainda que
os ameace verbalmente de forma corriqueira. Esse seria o “argumento definitivo”
para não caracterizar o bolsonarismo como “fascista”.
Tanto
neste blog, quanto em outras publicações, falávamos de “fascismo” e de
“ditadura aberta”. Tais afirmações levaram a uma justa ponderação por determinados
setores da esquerda que é necessário esmiuçar melhor agora. Em primeiro lugar é
necessário afirmar, como já disse acertadamente Trotski, que os fenômenos
históricos nunca experimentam uma repetição completa. Isso parece ter sido
esquecido por estes críticos da esquerda, mas nunca o foi por nós, mesmo que
usássemos impropriamente o termo “fascismo”. Por isso foi acrescentado o termo neo, no sentido de chamar a atenção para
esta diferenciação. No entanto, devemos admitir que este cuidado literário só
surgiu plenamente após a apresentação da tese da Construção pela Base ao X Congresso do CPERS[iii],
que procurava descrever o novo
fenômeno.
Nela
podemos ler o seguinte: “O
neofascismo é um movimento criado pelo
imperialismo decadente, os EUA e seus satélites, para a manutenção do seu
domínio mundial e dos seus mercados, ameaçados por China e Rússia. Assume
variadas formas de acordo com os seus interesses geopolíticos. Assemelha-se ao
fascismo clássico pelo terrorismo de Estado ou pelo terrorismo mercenário [seletivo], pela xenofobia, racismo e um
conservadorismo radical. Como todo fascismo, é um movimento antiproletário e
anticomunista. O neofascismo é o
abre-alas da burguesia imperialista, usado quando necessário para concretizar
suas políticas econômicas. Apesar de disseminar ódio, preconceito, fake
news, dando justificativas para guerras,
assassinatos e ditaduras militares, pode conviver com instituições
democrático-burguesas. O bolsonarismo é a aplicação desse neofascismo no Brasil. O seu discurso a favor da
ditadura militar não deixa de conviver com o Congresso Nacional, embora seja
sempre uma possibilidade a nos espreitar. O neofascismo se caracteriza também pela manipulação através da divulgação de fake
news nas redes sociais, cujos assessores
são técnicos utilizados pelo imperialismo. Elas ajudam a espalhar e consolidar
o irracionalismo, uma vez que a hipnose da massa necessita deste controle a
partir do ódio, do sadomasoquismo e do medo. O discurso contra o socialismo e o
comunismo é parte fundamental desta campanha, que tenta lançar um preconceito
prévio entre a população contra estes sistemas econômicos e suas teorias (os
únicos que podem por fim ao caos do esgotamento do capitalismo), ao mesmo tempo
em que classifica qualquer intervenção estatal na economia ou mesmo a
existência de direitos trabalhistas mínimos como ‘comunismo’”.
Este
trecho da tese conclui afirmando que o neofascismo
se utiliza de métodos de manipulação da psicologia de massas, o ódio sádico, o
irracionalismo, suas emoções infantis, o egotismo (que reforça a auto-verdade
ou a pós-verdade[iv]
e o imediatismo); os quais a “esquerda” sequer compreende (e muitas vezes nem
quer), mantendo o seu velho discurso padrão estéril
ou oportunista. Percebe-se que ela não pode abrir mão desse discurso e nem
denunciar as técnicas de manipulação de ódio e das emoções praticadas pelo neofascismo porque, em grande parte,
também as utiliza consciente ou inconscientemente. Parte da tática do neofascismo está baseada em lançar
iscas, dizendo e desdizendo (às vezes decretando e depois revogando) algo
geralmente bizarro para desviar atenção do foco central e trabalhando
conscientemente com a estratégia da confusão. A velha esquerda morde quase
todas estas iscas e isso, naturalmente, se reflete de forma negativa no
movimento dos trabalhadores. O neofascismo
também se aproveita de todas as falhas, da impunidade e do jogo de hipocrisia
das instituições e da legislação da democracia burguesa. Sabe fazer isso muito
bem, vendendo tais práticas como “anti-sistema” e discursando contra o
“politicamente correto”. Muitos trabalhadores julgam que exatamente por isso
Bolsonaro “fala a verdade”, enquanto os demais políticos “não falam o que
realmente pensam”.
É
digno de nota que mesmo quando chamávamos erroneamente o governo Bolsonaro de
“fascista”, utilizávamos frequentemente a famosa citação atribuída a José Saramago (que
teve o mérito de identificar o neofascismo
muito antes de ele surgir efetivamente) para ponderar e exemplificar nossa
posição: “os fascistas do futuro não vão
ter aquele estereótipo de Hitler ou Mussolini. Não vão ter aquele jeito de
militar durão. Vão ser homens falando tudo aquilo que a maioria quer ouvir.
Sobre bondade, família, bons costumes, religião e ética. Nessa hora vai surgir
o novo demônio, e tão poucos vão perceber a história se repetindo”.
Entre
os que não perceberão se encontra, infelizmente, a velha esquerda. Sem
compreender a sutileza dos seus mecanismos de funcionamento não há
possibilidade de combater o neofascismo.
Tampouco reconhecê-lo significa uma adesão automática à base de sustentação do
petismo. Tudo precisa ser analisado concretamente. A grande questão, contudo, é
que a burguesia não é estúpida. Ela
sabe que não pode repetir abertamente
o regime nazi-fascista ou as ditaduras militares latino-americanas – que era
exatamente o que esperava a velha esquerda para poder gritar “isto é
fascismo!”. Tal fascismo está disfarçado com novos métodos que não foram
compreendidos pela velha esquerda, preocupada em encaixar a realidade em suas
teorias pré-prontas. Não queremos dizer com isso que a burguesia não possa
avançar para métodos ditatoriais abertos, mas no momento não está sendo
necessário, uma vez que os regimes neofascistas
de Trump, Bolsonaro et caterva[v],
estão servindo perfeitamente para retirar os poucos direitos existentes,
cercear algumas liberdades sindicais, destruir o “estado de bem estar social” e
aplicar uma “nova economia uberizada”; isto é, está colocando o capitalismo
numa nova fase de acumulação e exploração de forma exitosa[vi].
Além
disso, a principal base de sustentação política do bolsonarismo, o agronegócio,
está tendo todos os seus interesses plenamente atendidos, desde a impunidade
para assassinatos no campo e as queimadas criminosas da Amazônia e do Pantanal,
até a garantia dos bilionários subsídios estatais e políticos à sua produção em
detrimento da indústria nacional e das demais áreas da economia interna.
Atender esses interesses garante a estabilidade política necessária ao
bolsonarismo dentro do difícil quadro conjuntural.
Egos
inflados
Um
dos métodos de angariar apoio do bolsonarismo é insuflar o ego de seus
“apoiadores” naquilo que há de pior, tal como um pai e uma mãe inexperientes
fazem ao mimar exageradamente o ego de uma criança, mesmo depois de grande. Se
basear nas taras, nos ódios, no sadomasoquismo, no sentimento de uma
pseudo-superioridade (“supremacia” branca, machista, homofóbica, religiosa e de
classe) lhe confere certa força entre as camadas médias e grande parte da
classe trabalhadora.
São
justamente estes setores que mais reproduzem a mentalidade e as repressões
resultantes da família patriarcal, onde o homem branco se garante “direitos
históricos” escusos. O bolsonarismo e o neofascismo
se agarram nesses privilégios para tentar preservá-los desesperadamente ao
mesmo tempo em que buscam poupar o capitalismo e o colocar numa nova fase de
exploração e funcionamento. Defender esta estrutura familiar e os seus egos é parte
fundamental desse programa, porque tal estrutura ideológica penetra nas
subjetividades individuais e no inconsciente coletivo, criando um muro de
contenção de hipocrisia e autoritarismo sobre as mentes isoladas. É necessário
assentar golpes de marreta nesse muro, que sai ileso na prática agitativa e
propagandística da velha esquerda (senão reforçado).
O
neofascismo e o seu guru, Steve
Bannon
Como
foi dito, o neofascismo é um
movimento internacional dirigido por Trump e o seu Tea Party, bem como pelo deep
state norte-americano e seus assessores. Cresce no mundo a olhos vistos. Alguns
autores, como Noam Chomsky, já falam em uma “Internacional Reacionária”, que,
além de Trump – o seu chefe – e Bolsonaro – seu capacho –, conta com outros subalternos,
como os “ditadores do Golfo”, Abdel Fatah al Sisie no Egito e Benjamin
Netanyahu em Israel, no Oriente Médio; Narendra Modi, na Índia; e Viktor Orban,
na Europa[vii].
Em alguns lugares, como no leste europeu, toma abertamente um caráter mais
ditatorial, enquanto que em outros, sem fechar efetivamente o regime (porque
julgam não ser necessário e até mesmo desgastante), atacam permanentemente as
instituições democrático-burguesas para jogar o povo contra elas, como se elas
fossem as únicas responsáveis pelas mazelas que resultam do sistema que o neofascismo defende e luta por preservar,
o capitalismo.
Em
todas as suas vertentes, porém, o discurso cultural é praticamente o mesmo:
racismo, misoginia, xenofobia, luta contra o “marxismo cultural” e o “socialismo”.
Reproduz na íntegra o programa da alta cúpula nazista de repressão sexual, o
que é a base do fascínio que exerce sobre amplas massas religiosas, manipuladas
com grande destreza e notável sucesso, enquanto que a velha esquerda olha tudo
estupefata, alheia ou desesperada[viii].
Em todos os casos menosprezam a técnica do inimigo, o que é um erro crasso.
No
entanto, o guru do movimento neofascista
internacional é sem dúvida Steve Bannon – o mesmo que se encontra hoje preso
por fraudes em algumas campanhas, mas não pelos seus verdadeiros crimes. Foi
ele que, com o patrocínio de Trump e cia., lançou as bases do movimento neofascista e coordenou minuciosamente a
manipulação das redes sociais e da psicologia de massas. Eduardo bananinha Bolsonaro, Olavo de Carvalho e
o resto da corja neofascista
brasileira possuem uma linha direta com ele.
Reconhecemos
a dificuldade de caracterizar um movimento que tem como método se camuflar, dar
o tapa e esconder a mão. Por isso, saudamos como positivo o vídeo sobre Steve Bannon
produzido pelo canal do Youtube, Meteoro Brasil, que traz uma confissão
involuntária dele feita em um grampo de uma entrevista informal a um jornalista
italiano que põe termo definitivo à questão. Na Itália, Steve Bannon ajudou a
promover a neofascista Giorgia
Meloni, que pertence aos Irmãos da Itália,
uma organização de caráter ultraconservador. Na referida entrevista, afirma o
seguinte: “Irmãos da Itália é um dos antigos partidos fascistas. É um
partido antigo da direita. Costumava ser fascista. Agora é ‘neo’, ‘neo’.
Lembre-se do teorema de Bannon: dê um rosto razoável para o populismo de
direita e você se elege”[ix].
Quando
foi lembrado pelo jornalista do termo dado por ele aos Irmãos da Itália, negou. O mesmo faz Bolsonaro por aqui, negando
qualquer associação pública com o nazi-fascismo, inclusive demitindo secretário
que repetiu discurso do ministro da propaganda nazista e tentando associar o
nazismo com a esquerda.
Roberto Alvim representando o governo Bolsonaro e Joseph Goebbels representando o nazismo |
Apesar
destas negativas, é visível para quem tiver coragem de concluir o que é
bastante óbvio. A confissão involuntária de Steve Bannon serve apenas para não
deixar margem a qualquer tipo de dúvida. Sem reconhecer a existência do neofascismo e a sutileza dos seus
métodos, será impossível combatê-lo com sucesso.
NOTAS
[ii]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/01/quem-esta-por-tras-de-olavo-de-carvalho.html
[iv]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/05/analise-do-livre-sobre-pos-verdade-e.html
[v] Et caterva é uma expressão em latim
usada de forma pejorativa; significa algo como "e os comparsas". Ex:
o presidente et caterva vão afundar o
país.
[vi]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/a-ditadura-de-bolsonaro-colocara-o.html
(neste texto se expressa um dos equívocos que a presente análise sobre o
bolsonarismo tenta apontar: não se trata de uma “ditadura aberta”, tal como foi
a de 1964 ou a nazi-fascista, mas uma nova forma de autoritarismo que visa
colocar a economia brasileira e ocidental numa nova fase de acumulação e
exploração do capitalismo – nesse sentido, o conteúdo do texto deste link
permanece correto, embora com o equívoco de pensar que se trataria de uma
ditadura tradicional).
[vii]
Ver: https://wscom.com.br/noam-chomsky-existe-o-risco-iminente-de-uma-guerra-civil-nos-estados-unidos/#.X24uxK90W-g.whatsapp
[viii]
Ver: http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/02/a-repressao-moral-da-sexualidade-e-uma.html
[ix]
Ver: https://www.youtube.com/watch?v=XCJ-R5jDbic&ab_channel=MeteoroBrasil
a partir dos 6 minutos e 33 segundos.