quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O conservadorismo das massas

O imobilismo, o absorver forças e esperanças, o conhecimento silencioso de sua própria profundidade, absolutamente não são artifícios. Isso é estrutural. Isso é automático. Isso é consequência de uma natureza animal e, ao mesmo tempo, imobilizada pela couraça. O povo age, o povo não filosofa sobre como age. Faz um mínimo necessário a sua sobrevivência. O povo é, por toda parte e sempre, a origem de todo o conservantismo. O líder conservador pode confiar em seus homens mais do que o líder que visa edificar um futuro melhor. O czar, o imperador, estão mais perto dos verdadeiros pensamentos do povo do que o profeta; mais perto do seu imobilismo. Os profetas só refletem os sonhos e esperanças silenciosos do povo. Está claro por que é o profeta e não o imperador que é morto.

Trecho do livro "O assassinato de Cristo", de Willhelm Reich


Comentários:

É fundamental a esquerda conhecer a obra de Reich porque ela acaba com o romantismo relacionado à massa humana, que é tratada de forma sagrada e incriticável (nos casos mais graves); ou como uma criança mimada que não pode ser contrariada (em casos menos grave, mas não menos problemáticos — tudo isso, obviamente, por medo de perder influência eleitoral e política). Se por um lado é certo que a direita, as elites e mesmo as burocracias sindicais e políticas tentam culpar a massa humana pela sua passividade, jogando toda a culpa dos problemas do país e do mundo sobre ela (basta lembrar o samba do Leandro Sapucahy: "eles colocam a culpa de tudo na população"); por outro, temos que reconhecer que há sim problemas na sua conduta prática, facilitando, por exemplo, a atuação dos ditadores, dos opressores e dos exploradores em geral.

Como foi dito antes, não se trata, então, de jogar toda a culpa, mas saber reconhecer os limites onde há problemas na sua atuação cotidiana, e onde a opressão vinda de cima não lhes deixou alternativa. A realidade, sabemos, não é tão esquemática assim. Na prática, as "culpas" se misturam e não é possível reconhecer claramente tais limites. Mas a questão central da crítica reichiana reproduz em grande parte a visão cristã-platônica, de reconhecer todo o bem de um lado e todo o mal noutro. Ou seja, quer se ver livre de responsabilidades sociais. O principal ponto que devemos nos atentar e nos especializar é em reconhecer o problema tal como ele é, inclusive quando ele provém da própria classe trabalhadora no sentido de se auto sabotar (sabemos que o ser humano é contraditório e que, muitas vezes, vê prazer na dor e vice-versa, tal como já nos demonstrou a dialética hegeliana e a psicanálise freudiana).

Em todos os casos, merece uma crítica relativista a afirmação enfática de Reich no trecho acima. Qual seja: a de que "o povo é, por toda parte e sempre, a origem de todo o conservantismo", justamente porque tal afirmação atenta contra o próprio método do Reich. Sabemos que uma parte do ser individual, que constitui a totalidade do povo, aceita e deseja a dominação do ditador, do rei, do fuhrer ou do opressor, mas isso não pode nos fazer esquecer de toda a "escola de dominação" de que dispõe a classe dominante, criando mil formas e tentáculos para tornar o povo dócil, conservador e a aceitar sua própria condição.

A realidade deve estar num justo equilíbrio entre a afirmação de Reich e a ponderação feita na frase anterior.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A hipocrisia institucional e o petismo

 

Os 13 anos em que o PT esteve à frente do governo federal foram marcados pela conciliação de classes e por uma variante do “reformismo sem reformas”. A concretização de alguns programas sociais e algumas pautas progressivas não podem esconder o fato de que os governos petistas não realizaram nenhuma mudança estrutural no país. O próprio Lula reconhece que “deveria ter feito mais”, por exemplo, na questão da regulamentação da grande mídia, onde não fez absolutamente nada; além de “ter dado lucro recorde aos bancos”, o que ele nunca fez questão de esconder – ao contrário, sempre bateu no peito, orgulhoso, para anunciar aos quatro cantos.

            O fato da frente popular petista ter sido uma contendora das lutas sociais, levando parte do descontentamento popular para o leito morto da institucionalidade burguesa, a não-realização de nenhuma mudança estrutural no Estado e na sociedade brasileira, e a disseminação de inúmeras ilusões eleitorais e pequeno-burguesas, não o torna pior do que o governo Bolsonaro, pois este é a expressão nefasta do movimento neofascista internacional, motivo pelo qual apresenta sem papas na língua pautas extremamente reacionárias e abertamente entreguistas. Mesmo garantindo os interesses estruturais e essenciais da burguesia brasileira, dentre os quais cabe destacar a manutenção da institucionalidade, o PT sofreu o golpe da direita, que não o perdoou e tampouco reconheceu os inestimáveis serviços prestados a ela.

            Este blog assim analisou os motivos subjacentes ao golpe do impeachment em 2016: “a política do PT de programas sociais gera uma disputa com a burguesia imperialista e nacional pelos recursos do Estado. Em épocas de expansão econômica é possível aumentar a trilionária ‘bolsa banqueiro, empresário e do agronegócio’, ao mesmo tempo que se garante a esmola do bolsa família, do ProUni, do Pronatec, etc. Porém, em épocas de crise internacional, através de ‘reformas’, exigem a totalidade desses recursos para contrabalançar a queda tendencial da taxa de lucros. Os governos do PT tentaram investir num desenvolvimentismo a partir das estatais, em particular, da Petrobrás. Adquiriram refinarias para produzir combustível e, assim, garantir uma relativa estabilidade de preços.  Isso bastou para a elite nacional e a sua mídia comercial taxarem o PT de ‘comunista’. Por essas razões, a Petrobrás foi grampeada pelo imperialismo, segundo denúncias de Edward Snowden; e não casualmente foi um dos principais alvos do golpe do impeachment de 2016”[i].

            Porém, ainda que, apesar do golpe de 2016, seja bastante claro para quem tiver olhos pra ver e ouvidos pra ouvir que o petismo cumpriu o triste papel de sustentáculo da ordem burguesa brasileira (fato reconhecido até mesmo pelo guru econômico da ditadura militar, Delfim Netto), se fosse honesto e realmente tivesse uma estratégia de reformas estruturais mínimas, o petismo poderia ter modificado a atuação sindical, por exemplo, se somado às mobilizações de 2013 para tensionar a elite do país à que concedesse tais mudanças mínimas e, sobretudo, poderia ter trabalhado por uma nova forma de funcionamento institucional; mas nem isso o petismo foi capaz de fazer: dançou conforme a música até mesmo nos mínimos detalhes.

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            A esquerda de velho tipo, na qual se inclui principalmente o PT, não destina nenhum espaço no seu programa ao combate à hipocrisia. Vendem a ideia de que basta “mudar o regime de propriedade” ou, pior ainda, “ser eleito” para que a mudança comece a se processar tendo em mãos apenas um programa político formal. A hipocrisia moral, social, institucional se dá nos pequenos detalhes que sustentam decisivamente os grandes alicerces do sistema. Ela possui uma lógica própria que leva ao total divórcio entre a vontade do eleitor e as pressões decisivas e fatais exercidas sobre o eleito, que deve trabalhar inexoravelmente de acordo com essa “lógica própria” – às vezes consciente, outras tantas vezes inconscientemente. Tal hipocrisia não pode ser combatida pelos métodos convencionais da “esquerda” que, ao fim e ao cabo, acabam por reproduzi-los. Pela lógica do seu funcionamento, tal hipocrisia pode formar maiorias silenciosas inconscientes, mas, também, de forma consciente através do utilitarismo e do imediatismo.

            Então, podemos concluir que o PT, além de não realizar nenhuma mudança estrutural no país porque não rompeu com a institucionalidade burguesa, sequer foi capaz de arranhar a sua hipocrisia. Assim sendo, reproduziu e ainda reproduz as suas relações simbólicas de hierarquia e poder, seja à frente do Estado, seja à frente dos sindicatos. Caiu vítima da hipocrisia institucional da qual foi um dos alicerces e baluartes. O PT não apenas não viu e não vê problema nesta hipocrisia institucional – mesmo depois do golpe –, que é escondida e disfarçada por mil “legislações” (geralmente cobradas apenas contra os pobres), protocolos, formalismos paralisadores que tem por finalidade frear a luta dos trabalhadores, mistificar e glorificar a hierarquia de poder da elite nacional, como se tornou beneficiário e promotor “popular” dessa hipocrisia.

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            É consenso entre a “esquerda” de que as relações capitalistas de produção – dentre as quais se encontram a hipocrisia da institucionalidade burguesa – desumanizam o ser humano, fazendo-o regredir à animalidade mais bestial. Por isso os grandes teóricos do pensamento socialista – em especial os marxistas – sempre alertaram que um dos principais objetivos do socialismo e do comunismo era humanizar as relações sociais e elevar todos os seres humanos da condição de animal. Frequentemente o surgimento do comunismo foi condicionado a uma nova conduta humana, com valor transcendental e histórico-universal. No entanto, para atingir objetivos tão grandiosos é necessário, de fato, humanizar o ser humano, combatendo, dentre outros males, a hipocrisia moral, social e institucional; ou seja: de um discurso completamente diferente da prática.

            Assim, “humanizar o ser humano” requer também a superação dos métodos políticos e sindicais da velha esquerda, que são levianos, nervosamente oportunistas, eleitoreiros, sindicais e... hipócritas! Em grande parte das vezes sequer escuta o outro. Está preocupado – ou, melhor, obcecado – em “fazer passar a sua política”, custe o que custar. Ouvir o outro requer, forçosamente, entrar no seu universo para apreendê-lo honestamente; exige, portanto, empatia. O movimentismo doentio e a necessidade de crescer e “agradar” a opinião pública a qualquer preço levam ao fechamento dos ouvidos dos militantes, que tendem a reproduzir ordens de cima e a se fechar à perspectiva dos que estão embaixo.

            Sabemos o quanto é difícil exercer a empatia e ouvir sinceramente o outro, mas este é um exercício imperioso para uma nova esquerda revolucionária. Desenvolver um trabalho de base que leve a escuta como um método muito sério de militância – sobretudo para se chegar a um denominador comum e, se possível, a consensos – é parte fundamental de uma nova prática política. Aí vai uma tentativa de sintetizar tudo isso em uma “palavra de ordem” para uma nova esquerda: saber ouvir e saber criticar, evitando o “demagogismo” basista (espontaneísta); pois saber ouvir não é compactuar com atrasos e posturas equivocadas dos trabalhadores de base, mas saber criticá-las sem impô-las e, principalmente, através do exemplo de uma nova prática, conseguir motivar e embalar as multidões, respeitando seus anseios e dialogando com eles.

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            Se, por um lado, um conselho popular ou de fábrica, um soviete ou mesmo um sindicato só podem ter uma política classista e socialista se tiverem à sua frente um partido revolucionário, que traduza e expresse organizada e concretamente essa consciência de classe; por outro, se não debatermos as questões ligadas à psicologia de massas, a hipocrisia moral/institucional e às responsabilidades sociais que cabem a todo trabalhador e a toda trabalhadora, não teremos socialismo ou comunismo e continuaremos nos voltando para trás, para buscar supostas respostas, já caducas e que apenas aprofundarão o caos e a falta de perspectiva.

            Por isso é importante não ficar esperando a “mudança de propriedade”, o socialismo ou o comunismo para “mudar o ser humano”, já que para atingi-los é condição fundamental começar a trabalhar desde já na nossa auto transformação (da mesma forma que não esperamos a sociedade socialista para começar a lutar contra o machismo, o racismo e a homofobia). As principais sugestões nesse sentido são:

·        Estudar e disseminar as lições da psicologia de massas do fascismo e do capitalismo, visando criar uma nova prática (procurar chegar a consensos de boas propostas classistas e evitar a dicotomização);

·     Humanizar espaços e debates: aprender ouvir e divergir honestamente entre trabalhadores, além de impulsionar onde for possível momentos artísticos de integração que desenvolvam a sensibilidade;

·        Cuidar e combater as dicotomias eternas/cristãs, jogando todo e qualquer mal para “fora de nós” e o reconhecendo apenas no outro. Se autocriticar e rever nossas posições permanentemente[ii];

·        Combater as auto ilusões e buscar ser o mais realista possível, sem abrir mão das nossas bandeiras históricas (tratadas pelos oportunistas incuráveis como “impossíveis” ou “utopias”). Lembrar a essência do leninismo[iii] – isto é, o seu realismo. Pra isso é importante ter noção do nosso tamanho e das nossas forças, além de nos reinventarmos, estudarmos e repensarmo-nos permanentemente.

·        Avaliar e estar atento a todo o tipo de reprodução da hipocrisia moral, institucional e social, sem o quê, é praticamente impossível a criação de novas formas de organizações e relações sociais, mais justas, vivas e humanas.

 


NOTAS
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[i] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/a-ditadura-de-bolsonaro-colocara-o.html
[ii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/autocritica.html
[iii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/a-essencia-do-leninismo.html


domingo, 25 de outubro de 2020

O debate da hipocrisia

 

O tão propalado "último debate" entre Trump e Biden nos EUA não apenas foi patético, repleto de acusações de ambos os lados e sem o menor resquício de verdade, como não expressou nenhum sentimento real das demandas mais sentidas pela população trabalhadora norte-americana. Apenas teatro, risos frios e calculistas e meias-verdades e mentiras completas. Todo o debate foi marcado por essa hipocrisia, com a sua lógica própria, como se não houvessem milhões de problemas que precisariam ser analisados previamente.
Trump teve a desfaçatez de dizer que foi o presidente "que mais coisas fez pelo povo negro dos EUA". Ora, pessoal, sejamos francos: um "supremacista branco" que massacrou as periferias negras e os protestos de rua falar algo assim e não ser contestado pelos organizadores do debate ou sequer pelo seu "oponente" é passar a ser parte dessa mentira institucionalizada; da mesma forma os ouvintes do debate de mentirinha...
Há tempos que a hipocrisia institucional vem matando qualquer tipo de seriedade de debates e pautas na "política". Quanto mais as pessoas se afastam disso tudo, mais o emaranhado de confusões niilistas se enrosca em nossos pescoços e vai nos enforcando lentamente. Vai ocorrendo, então, a lenta adaptação à esta rotina de enforcamentos, à esta mesma hipocrisia que a gente tanto odeia e repele.
Urge mudar a postura individual e coletiva frente a isso, sobretudo dos trabalhadores. Mas muitos que deveriam tentar dar o exemplo são os que mais lépida e voluntariamente se jogam nos braços dessa hipocrisia institucional desprezível...


sábado, 24 de outubro de 2020

A importância das divergências na formação de seres humanos: livre associação entre divergências políticas, crescimento pessoal, amor e incompletude

 *Por Rafaela Lima


Dentre tantas divergências dentro da esquerda pela interpretação acerca dos saberes teórico-práticos que circundam temas sociais, culturais, morais, este texto nos convida a pensar a intersecção dos saberes com as mais diferentes áreas do conhecimento humano, suas pontes e a importância das divergências. Pensar que crescimento individual/intelectual, política e vida, sim, estão juntas e não separadas, na medida em que lutamos por um lugar em que possamos nos desenvolver física, psicológica, mental, sexual, espiritual (mente), etc.; e que dentro dessa luta já podemos praticar o cuidado nas relações com x outrx, aguçar o ouvir, e tentar desenvolver relações mais saudáveis pautadas na clareza, no aprendizado coletivo e na contínua autoavaliação/autocrítica (individual-coletiva); assim, aproximando e não afastando as pessoas que tanto precisamos para dialogar, aprender, ensinar, construir. Ou seja, desconstruir e construir num mesmo processo: desconstruindo enquanto construímos e construindo enquanto desconstruímos, começando, nesse texto, pelo micro – o individual – e expandindo para as possíveis mudanças nas relações humanas (onde há, também, a reprodução da desigualdade de gênero, por exemplo, como será abordado mais à frente).

Fazendo o fluir dialético em questões para além do que geralmente chamamos, por convenção ou senso comum, de política, que se prende as mesmas formas arcaicas de pensar, de discursar, de debater, de fazer a luta. É um convite bem especial pra pensarmos o ”fazer no fazer”, não fazendo a separação comum entre crescimento individual e coletivo, mas o compreendendo dialeticamente. Levantando assim questionamentos importantes pra mudança, não se limitando apenas na esquerda, mesmo que esse seja seu foco, mas expandindo e contraindo para nossos círculos socias, de amigxs, de família, de vida.

Se trata de poder divergir e ser ouvido, de poder apresentar o contraponto sem ser rotulado dos mais “cabrunhosos” termos, insultos, até coisas mais graves como o cerceamento da liberdade de expressão, a expulsão de grupos, o fim da possibilidade de fala em público, etc. Nenhum conhecimento é menos importante que o outro, cada ser monta seu repertório – é uma ferramenta, quem lê é quem tira dali as contribuições pro próprio pensar/desenvolvimento intelectual e coletivo, tanto concordando como discordando; ambas reflexões são válidas e necessárias. A prática assombrosa que aterroriza quem ama aprender é a de ver tocarem fora contribuições válidas, que nos fazem pensar e refletir por simplesmente não enxergarem ligação direta daquele assunto com os temas fundamentais à questão do socialismo; ou por extremismo no pensamento/dicotomização: “se não está comigo é meu inimigo” – com pressuposto de que tudo que não é igual, não tem importância ou deve ser objeto de ódio; acha-se perda de tempo ou desimportante, quando na verdade esses diálogos em que se tem o contraponto, seja lá de qual ideologia for, servem para pensarmos em cima, trabalhando assim, também, na prática, o senso crítico a partir da polêmica. O conhecimento cativa a autonomia.

“Se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los”. (Isaac Asimov)

O militante socialista, hoje, no Brasil, é, também, um professor, tendo em vista, o baixo nível de conhecimento dentro da classe proletária; ou, pelo menos, poderia ser (é uma questão de necessidade). Não sê-lo em cargo social propriamente dito, mas em relação à partilha e à troca que há ou poderia haver de conhecimentos, nas relações horizontais. Ninguém sabe tudo e em algum aspecto cada um de nós é ignorante, pois somo incompletos, imperfeitos. Ora aluno, ora professores, ora, ora (!) os dois juntos. Um desafio dentro dessas relações de ensino-aprendizagem na troca entre militantes/seres é, sem dúvida, o ego. Do que adianta buscar saber e aprendê-lo se esse conhecimento não é propagado para elevar o nível coletivo de consciência? Morre em si... De que adianta, se, o detentor desse saber se negar a construção e formação em conjunto com as pessoas que ainda não tiveram contato com esse mesmo conhecimento? Enquanto isso os “eus” entram em conflito para se desenvolverem em meio ao que Zygmunt Bauman chamou de modernidade líquida – tempos em que a relativização tomou conta, e a ausência e excesso dentro do ser e o vazio, se expressam como depressão, ansiedade, transtornos psicológicos, etc., que influenciam na autoestima, confiança dos jovens cada vez mais, nas formas de ver a vida e certamente impacta na questão política; jovens esses que poderiam se somar à mudança. Sem o conhecimento, trabalhar uma questão básica que é a consciência de classe – que também é parte do conhecimento e estritamente necessária para uma futura e possível revolução – é contribuir com a prolongação da submissão. Como? Pela omissão, em prol do conhecimento como alimento do próprio ego, e não para a luta contra a dominação existente na sociedade. A necessidade de auto afirmação aparecendo dentro das relações humanas. É sobre o nós, o eu e o outro. Entende?

Pensar o socialismo é questão também de pensar as bases que edificam nossas relações. É pensar psicologia; é cuidar da forma dentro da forma. As discordâncias e divergências nas questões teórico-práticas do socialismo são motivos de rupturas nos campos político-pessoal criando rixas pessoais a partir de traumas negativos e das experiências subjetivas das partes. E é algo que dificulta e/ou impossibilita a mudança, enrijece a estrutura já estabelecida e nos perpetua na condição de reprodutores do sistema econômico, inclusive a nível individual (mas sempre bom lembrar que pode mudar). Este “precisar vestir uma armadura” para entrar no “campo político” nos desumaniza constantemente e impede relações mais saudáveis – as quais almejamos ter no socialismo –, mas também não nos iludamos: a revolução não é nenhuma santa milagreira ou deusa e há a necessidade de desconstruir e construir ao mesmo tempo nesse processo, ainda longe de ser revolucionário, em que nos encontramos.

Wilhelm Reich (1897-1957), cientista natural, contribui:

“O problema é o tipo de esforço de organização necessário para fazer com que os membros da população trabalhadora se voltem para eles mesmos, no sentido de libertá-los dos inúmeros acontecimentos negativos, repugnantes e desastrosos no mundo da política, dos negócios desonestos, da educação neurótica, da medicina covarde; como ajudá-los a aprender a se governarem sem cair nas garras de novos ditadores, novos políticos horríveis, novos excêntricos ou ideólogos. Esses são os problemas e há muitos mais. Então o problema não é o que poderia e deveria ser feito; comparando, isto seria fácil. O verdadeiro problema é como começar a agir. (Éter, deus e diabo; capítulo: O reino do diabo; Pág. 143).

> Pela base;

Tratar das questões que envolvem desigualdade de gênero dentro das relações humanas na “esquerda” (ou dentro do próprio processo do fazer revolucionário – tal como defendeu a militante e líder revolucionária Alexandra Kollontai [1872-1952] no livro “A nova mulher e a moral sexual”, escrito durante a revolução russa) é pertinente. Ela alerta, em paráfrase, para o fato do “deixar para depois”, hábito comum até hoje dentro da “esquerda revolucionária”, que deixa questões básicas como essa de fora do processo de lutas. Não pensemos que as culturas ou os seres humanos construídas(os) ao longo de séculos, a nível coletivo, sucumbirão automaticamente após uma revolução – é um processo de desconstrução que leva tempo, e que, também, pode ser praticado no agora e tido como experimentação. Quando uma coisa “depende” d’outra, se ficarmos parados esperando se fazer sozinho, não acontece. Se negligenciamos as pequenas responsabilidades nossas com nós mesmos e com os outros, acabamos por nos perder do fazer em conjunto em sincronia com o “eu”; matamos parte muito importante do processo, de qualquer um, que é o crescimento individual.  

Evidente que a revolução é de suma importância, mas as práticas não podem se equivaler, por exemplo, à de outras religiões ocidentais, no sentido de serem envoltas em dogmas, tabus, convicções que se degeneraram e viraram fanatismo; e que mais afastam as pessoas, os jovens que querem se somar à luta pela mudança, do que aproximam (tal como a poesia na sequência traz). E que se for, pra de alguma forma, em algum outro sentido, o socialismo se equivaler a alguma religião, que seja pela perspectiva do termo “religião” (advindo de religare). Que seja para uma maior conexão com o “si”, o cuidado que de certa forma nos ajuda a cultivarmos em cada um o lado sensível, o humano em cada ser.

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3. PROCESSO PELO QUAL ALGO OU ALGUÉM SE TORNA DIFERENTE DO QUE ERA.

2. ALTERAÇÃO, MODIFICAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO

1. DEIXA

A PORTA ABERTA 

PRA ELA ENTRAR:

MUDANÇA:

SUBSTANTIVO FEMININO

SINGULAR

DEVERIA SER VERBO

ASSIM COMO: REVOLUCIONAR

COMPREENSÃO FUNDAMENTAL PRA:

MUDANÇA

MUDANÇA NECESSÁRIA 

PRA

MUDANÇA

O MUNDO DANÇA

A QUALQUER INSTANTE

CAI A FICHA

MUDANÇA ESTÁTICA

NEM NA FOTOGRAFIA

FÍSICA

MÁQUINA FOTOGRÁFICA:

EU

TU

NÓS

AUTOCRÍTICA

PRA ELA ENTRAR

DEIXA

A PORTA ABERTA___

<...>

 

Rafaela Lima (14/09/2020)

 

No texto de Alexandra Kollontai, no quarto capítulo chamado “Irmãs” de “O amor na sociedade comunista – Carta à juventude operária”, que compõem a segunda parte do livro já citado nos parágrafos acima, ela aborda um acontecimento prático que teria se dado durante a Revolução Russa que discorre, através da narração de uma história, sobre a importância do fazer dentro do fazer ou como ela mesmo sintetiza noutro momento:

“A experiência da história nos ensina que a elaboração da ideologia se realiza durante o próprio processo de luta deste grupo contra as forças sociais adversas”. (Alexandra Kollontai)

 Não menos importante:

“A psicologia da estrutura, baseada na economia sexual, acrescenta à visão econômica da sociedade uma nova interpretação do caráter e da biologia humana. A eliminação dos capitalistas individuais e a substituição do capitalismo privado pelo capitalismo de Estado na Rússia em nada veio alterar a estrutura do caráter típico, desamparada e subserviente das massas humanas.” (Wilhelm Reich: Psicologia de massas do fascismo- Prefácio à 3.a Edição em Língua Inglesa, Corrigida e Aumentada- pág. 21).

A complexidade abordada aqui nesse texto, indo do micro ao macro pode ser pensada da seguinte maneira, simplificando:

> O individuo, por si só, reproduz internamente/psicologicamente a estrutura do sistema econômico – podemos olhar, por exemplo, pras consequências psicológicas de esse indivíduo estar presente dentro de uma sociedade/sistema econômico que tem por base a competição. A tal da competição que até dado momento nos é natural e necessária, no entanto, enquanto instrumento, coaduna com a macro estrutura enrijecida, mexendo com as neuroses dos seres humanos – questões de insegurança pelo padrão estético social e casos mais sérios.

> Dentro da relação entre amigxs/casais: mulher-mulher; homem-homem; mulher-homem; além-gênero... sobre isso, uma breve poesia feminina:

 

Romance burocratizado...

Psicologia feminina

não está ao meu lado...

a mulher é negada.

Como se sentir em meio a tudo isso?

Essas demandas, esse ritmo...

A ”maturidade” também aprisiona a mulher

Essa que quer evoluir, mas que carrega em si o histórico de submissão

Um histórico de opressão, mil anos de escravidão

Freud: O futuro de uma ilusão

Séculos e séculos pertencendo ao pai, filhos e irmão

Machismo! Machismo!

Me agride o teu não perceber ser abusivo

Ou fazer questão.

Quadrados dentro de quadrados

Alguns deles se chamam sistema econômico

Estão fixos na cabeça do humano

N’algum ponto

Na minha volta e na minha cerca

Existe uma placa...

Nela está escrito em letras maiúsculas:

PROPRIEDADE PRIVADA

A base da palhaçada está em nós

A crueldade do algoz, está em mim.

Rafaela Lima (08/2020)

 

> Dentro de um grupo, um micro sistema, em que os membros reproduzem as instituições que estruturam o macro. Instituições, partidos políticos, empresas, escolas, barzinho da esquina, etc.

“Depois que as necessidades biológicas originais do homem foram transformadas pelas circunstâncias e pelas modificações sociais, e passaram a fazer parte da estrutura do caráter humano, esta última reproduz a estrutura social da sociedade, sob a forma de ideologias.” (Wilhelm Reich: Psicologia de massas do fascismo- Prefácio à 3.a Edição em Língua Inglesa, Corrigida e Aumentada- pág. 10).

***

A ARTE é tão importante em conjunto à política, ela que pode resgatar-nos quando os pingos de humanidade se forem, evaporados, concentrar e fazer chover novamente, mais pingos pra aliviar a alienação emocional presente na sociedade, que afeta os gêneros, e que coaduna com o machismo, com o patriarcado, com o estereótipo comportamental de homem, mulher. Com a opressão, em suma. Tendo em vista sua importância e inclusive que a arte também é reprodutora ideológica, por que a esquerda (partidos, grupos, organizações, indivíduos, etc.) quando se trata de experienciar, sentir ou debate-la, unir-se à, a deixa pra depois?! Salvo raras exceções.

Em termos musicais o Rap, gênero musical, abraçou a luta com críticas ao sistema econômico, embora não o faça propondo, por vezes, uma revolução propriamente dita, a formação e a informação que esse estilo leva às massas – o público que atingem é de muitíssima importância e as contradições entre imagem e letra – quanto mais gritantes, melhor para fazer os jovens pensarem nas contradições entre teoria e prática. Desenvolverem o senso crítico. Mas e por que a esquerda não abraça esse público também? Por que esperam que os jovens das mais diferentes idades já entrem no caminho da militância sendo militantes profissionais ou rebanho? Não compreendem o desenvolvimento, será? Não querem esse amadurecimento? Questões de amargura pessoais entram aí?

Enquanto uns querem rebanhos, inflar o ego, outros indivíduos querem mudança da forma de atuação, para seguir, seja lá qual possível forma de se fazer uma revolução, o que cada um achar/sentir. Infinitas possibilidades. São muitas divergências, mas no meio disso tudo o cuidado com as pessoas importa, em conjunto às convergências e o trabalho de base que estão diretamente conectados.

                E se não tiver um fim, uma verdade absoluta? E se for apenas um círculo em que damos várias voltas cada vez conhecendo e olhando outros pontos de vista, e interagindo em cada rodada com as pessoas, só o que nos sobraria seria o olhar com mais carinho e cuidado paras pessoas que estão ao nosso lado. Cada uma apreende de maneira diferente – muito acontece de se ser extremo num primeiro contato com o outro, que pensa diferente, seja por ignorância ou por vontade, dentro da esquerda e fora dela – mas pode ser que seja um caso de ignorância e só falte o conhecimento pra pessoa mudar, que essa tenha escolhido aprender, se interesse pelo assunto, e esse método arcaico de divergir afaste e destrua a curiosidade epistemológica1 que precisamos nutrir se quisermos pessoas mais conscientes nas futuras gerações. A revolução está longe, e pra aproximá-la, aproximar as pessoas é muito importante. Não se aproxima desistindo do outro, não compreendendo a mudança ou compreendendo como estática (não compreendendo, portanto). Existem formas diferentes e subjetivas de aprendizagem.

A política é vida, é arte, é psicologia, é biologia, é relações humanas, é mudança... são tantas coisas; a política é mais um caminho/universo e nos limitamos a falar apenas sobre as mesmas coisas – não que não sejam importantes, são, no entanto, sigo a atentar pra forma dentro da forma, pra que o socialismo não se afaste mais ainda da humanização e agrave a alienação emocional que corrobora para problemas sociais como o do machismo por exemplo, e suas consequências práticas tanto em mulheres como em homens também.

Alexandra Kollontai em sua obra desenvolve o que chamou de “amor-camaradagem”, que seria a relação cujas bases não seriam na ideia de parceirx como propriedade privada (lógica instaurada na sociedade pela moral burguesa, o sentimento de posse). O amor-camaradagem, uma relação em que os “relacionandos” não se fecham em si, mas que estejam em sintonia com o coletivo, visando o crescimento em conjunto.

“Se conseguirmos que, das relações de amor, desapareça o cego, o exigente e absorvente sentimento passional; se desaparece também, o sentimento de propriedade, tanto quanto o sentimento egoísta de unir-se para sempre ao ser amado; se conseguirmos que desapareça a vaidade do homem, e que a mulher não renuncie criminosamente ao seu eu, não há duvidas de que, com o desaparecimento de todos esses sentimentos, desenvolvam-se outros elementos preciosos para o amor. Assim, por exemplo, aumentará o respeito para com a personalidade do outro e também se aperfeiçoará a arte de levar em conta os direitos dos demais; educar-se-á a sensibilidade recíproca e se desenvolverá enormemente a tendência a manifestar o amor não somente com beijos e a braços, mas também com uma unidade de ação e de vontade na criação comum”. (Kollontai: A nova mulher e a moral sexual, pág. 113).

Além da análise minuciosa da moral sexual, faz construções embasadas historicamente, inclusive, análises da psicologia das personagens femininas de obras famosas como “O diabo” e “Felicidade conjugal” de Lev Tolstói e de autores como Grete Meisel-Hess em “A crise sexual”. Rebusca as mudanças psicológicas que vão surgindo ao longo dos últimos 50 anos antes da escrita de seu livro a partir da inserção das mulheres no trabalho, na produção de capital e nomeia as novas mulheres que foram surgindo como sendo “celibatárias”, tipo psicológico para a autora. Usaremos o amor? Já está sendo usado.

Sobre a moral sexual Wilhelm Reich (1897-1957) traz contribuições:

“Os ‘maus’ instintos ficam sob a guarda dos ‘bons’ costumes. Mais uma vez isto é perfeitamente lógico e correto no interior de uma certa estrutura de pensamento. As pessoas que só amaldiçoam a estrutura moralista de nossa sociedade, sem ver e compreender sua lógica interna, fracassariam miseravelmente se tivessem de assumir o governo da sociedade e das massas humanas”. (Wilhelm Reich: Éter, deus e diabo, cap. V, pag. 138)

Outro ponto importante a se pensar em relação às estratégias de atuação e que, é atingida a partir de Wilhelm Reich em um de seus livros: “Psicologia de massas do fascismo”, tem a ver com a manipulação das emoções, fundamentalmente das mal resolvidas da massa, que circundam as questões da sexualidade humana. A manipulação de emoções reprimidas que se manifestam de diversas formas, como por exemplo, o sadismo, masoquismo, etc. se dá e é reproduzida ideologicamente através dos meios de comunicação também. Somos bombardeados por essas ”influenciações”, às vezes mais sutis e outras mais escancaradas, que moldam o comportamento das massas e beneficiam o capitalismo. Usam de forças destrutivas.

“A revolta fascista tem sempre origem na transformação de uma emoção revolucionária em ilusão, pelo medo da verdade.” (Reich- Psicologia de massas do fascismo- Prefácio à 3.a Edição em Língua Inglesa, Corrigida e Aumentada – pág.12)

E em 1921, Kollontai afirma em “O amor na sociedade comunista – Carta à juventude socialista”:

“O amor camaradagem é o ideal necessário ao proletário nos períodos difíceis de grandes responsabilidades, quando luta para o estabelecimento de sua ditadura ou para fortalecer sua continuidade. Entretanto, quando o proletariado triunfar totalmente e for de fato uma sociedade constituída, o amor apresentar-se-á de forma completamente distinta, adquirirá um aspecto completamente desconhecido até agora pelos homens.”

Ou seja, acredita que o amor é um fator social. Analisa os diferentes amores nas diferentes épocas históricas e como a moral burguesa moldou os costumes e nossa noção de amar, a percepção do amor. E agora, usaremos o amor na luta? Já estamos usando... (?)

“Agora, ouço-o argumentar, meu jovem camarada: ‘Concordo quando você afirma que as relações de amor, baseadas no espírito de fraternidade, se convertem no ideal da classe operária. Porém, não pesará demasiado esta medida moral sobre os sentimentos amorosos? Este ideal não poderia destroçar e mutilar o amor. Libertamos o amor da moral burguesa, mas será que não lhe criaremos outras?’”

Tem razão, meu jovem camarada. A ideologia proletária, ao não aceitar a moral burguesa no domínio das relações matrimoniais, cria, inevitavelmente, sua própria moral de classe, as formas regulamentadoras das relações entre os sexos que melhor correspondam às tarefas da classe operária, que sirvam para educar os sentimentos de seus membros e que, portanto, constituem até certo ponto correntes que aprisionam o sentimento do amor.” (Kollontai- O amor na sociedade comunista - Carta à juventude socialista: amor-camaradagem)

E agora, usaremos o amor na luta? Até que ponto?

Sobre o que se discorreu até aqui, é mais uma forma, assim pode ser interpretada, mais uma simples discordância, mas que ainda sim pode-se e deve-se levar em consideração. Nem que seja simplesmente para refutar. As cartas estão dadas. Desiludido ninguém é, ainda mais sabendo da nossa capacidade idealizadora, e, por parte, da necessidade dela também – bem como a convicção. Ilusões dentro de ilusões, qual o seu direcionamento? Quais as suas?

Talvez completude em obra, seja nesse caso, concluir o texto com trechos do livro de Clarice Lispector, já que as estruturas de escrita são limitadas, e com nós o texto pode até ter um fim, mas e a reflexão segue viva, e até que ponto sai do começo?:

“Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei. Por enquanto não sei: só ao me reviver é que vou viver. Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu? Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem. Até criar a verdade do que me aconteceu. Ah, será mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma reprodução do que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isto perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu já tentava apenas reproduzir, e apenas com as mãos. Ficarei perdida entre a mudez dos sinais? Ficarei, pois sei como sou: nunca soube ver sem logo precisar mais do que ver. Sei que me horrorizarei como uma pessoa que fosse cega e enfim abrisse os olhos e enxergasse - mas enxergasse o quê? um triângulo mudo e incompreensível. Poderia essa pessoa não se considerar mais cega só por estar vendo um triângulo incompreensível? Eu me pergunto: se eu olhar a escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? a lente não devassa a escuridão, apenas a revela ainda mais. E se eu olhar a claridade com uma lente, com um choque verei apenas a claridade maior. Enxerguei, mas estou tão cega quanto antes porque enxerguei um triângulo incompreensível. A menos que eu também me transforme no triângulo que reconhecerá no incompreensível triângulo a minha própria fonte e repetição. Estou adiando. Sei que tudo o que estou falando é só para adiar - adiar o momento em que terei que começar a dizer, sabendo que nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio. A vida toda adiei o silêncio? mas agora, por desprezo pela palavra, talvez enfim eu possa começar a falar.”

(Retirado de A paixão segundo G.H - de Clarice Lispector).

                                                                              ...

Citação:

1 Paulo Freire: Pedagogia da autonomia

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Por um justo equilíbrio entre todas as teorias científicas progressistas: abaixo as dicotomias!


“Conheça todas as teorias, 
domine todas as técnicas, 
mas ao tocar uma alma humana, 
seja apenas outra alma humana”. 
Carl G. Jung

A velha esquerda, ainda presa em uma espécie de “mente emocional”, julga todas as suas crenças políticas como absolutamente verdadeiras e as contrapõe a qualquer outra teoria. Por “crenças políticas” podemos entender os seus arremedos de “marxismo”, geralmente recebidos de segunda mão e sem nenhuma reflexão séria e profunda. A militância atual pouco lê sobre marxismo ou sobre qualquer outra coisa; pode advir daí o seu desdém a todo avanço científico e a sua grosseira tendência de reproduzir ecos de cima sem maiores críticas. Em suma: as suas “crenças” refletem um medo congênito e não confesso a novas ideias e práticas.

            Tal conduta é o fim do espírito criador do marxismo, que leva em consideração a dialética, isto é, o movimento da totalidade e a relação da parte com o todo. Frente às profundas distorções do “marxismo” feitas pela mídia e a intelectualidade burguesa, a velha esquerda não pode senão perder-se numa reafirmação de dogmas e, por isso mesmo, não pode produzir nenhuma análise nova e viva; que dirá responder às distorções da mídia?

 

1. As dicotomias

            Seguidamente vemos os intelectuais burgueses e pequeno burgueses criticando o marxismo, dentre outros tópicos, pelo seu aspecto totalizante. Esta tendência totalizadora de dar “respostas únicas” e “definitivas” sobre todas as outras – uma influência direta da filosofia clássica alemã, de quem o marxismo é herdeiro –, ainda que muito importante, gera dicotomias que nos levam, seguidamente, a becos sem saídas. Quanto mais novos e inexperientes são as organizações de “esquerda” e os militantes formados por elas, maiores são as dicotomias.

            Uma dicotomia é a divisão de um todo em apenas duas partes. Em outras palavras, tudo deve pertencer a uma parte ou a outra, sendo elas mutuamente excludentes: nada pode pertencer simultaneamente a ambas as partes. Isso é uma herança do pensamento filosófico platônico e cristão, onde uma coisa é totalmente boa ou totalmente ruim; pertencente a deus ou ao diabo; totalmente “certo” ou “errado”; sadio ou doentio; e assim por diante. Ainda que tais pensamentos filosóficos dicotômicos tenham sido importantes para o desenvolvimento intelectual da humanidade, são visivelmente limitadores e geradores de contradições das quais precisamos nos livrar agora, uma vez que já atingimos a compreensão dialética da realidade – ou seja, a compreensão da interpenetração dos contrários, da transformação do ser no não-ser, e vice-versa; de haver num mesmo fenômeno elementos positivos e negativos.

            Apesar de já podermos ouvir claramente o canto de cisne das dicotomias platônico-cristãs no pensamento humano, vemos a velha esquerda se aferrar a elas de uma forma tanto mais infantil quanto nefasta para aprisionar o ego dos seus militantes. A sua prática, como não poderia deixar de ser, acaba por refletir essas compreensões mecanicistas e castradoras, que terminam por ser apenas uma variante de controle de cima para baixo.

 

2. As dicotomias na ciência e na filosofia

            A bem da verdade, não é apenas o marxismo que possui aspectos totalizadores que se tornam pensamentos auto sabotadores quando manuseadas por mãos inexperientes. Várias são as teorias e as filosofias que procedem desta forma – talvez pela influência milenar platônico-cristã. Basta olhar para a história da filosofia, da psicanálise, da ciência e da arte. Filósofos e pensadores professam que apenas a aplicação quase exclusiva de suas teorias ou técnicas podem “curar o mundo”, tal e qual uma variante de doutrina religiosa. Muitos psicanalistas (de distintas vertentes) sustentam, por exemplo, que somente a terapia pode “salvar o indivíduo”, excluindo-se o restante da sociedade. O mesmo vale para propagandistas da ciência, como Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson.

            Para eles, a ciência seria o norte absoluto, o que leva, por exemplo, a contradições flagrantes, como o desprezo de Sagan em relação ao método psicanalítico por este “curar apenas pela fala” e não apostar no “método científico” da química psiquiátrica. Ou seja, um leve deslize que não apenas trata dogmaticamente o que é “ciência”, limitando-a, e não reconhecendo a psicanálise como uma importante ferramenta da própria ciência, como ignora, erroneamente, que as duas formas sejam necessárias e complementares.

            Dentro do próprio campo psicanalítico também percebe-se tendências à dicotomização, em grande parte como resultado do mesmo erro de Sagan e Tyson, cometidos, desta vez, por Freud. Para ele, só o restrito “método científico” conhecido pelo seu tempo poderia salvar a psicanálise. Então, estabeleceu-se falsas polarizações com seus discípulos que honestamente buscavam desenvolver os galhos do tronco que o próprio Freud plantou. Então, logo percebemos que se um psicanalista é freudiano, ele não pode ser reichiano ou junguiano por trair o “método científico” do seu fundador; e o mesmo pode ser estendido às demais áreas científicas e filosóficas. Para que fique claro: uma justa apreciação do fenômeno psicológico humano certamente exige contrastar e equilibrar as teorias freudianas, junguianas, reichianas, lacanianas, etc., ainda que devamos reconhecer e estudar suas diferenças, criticar e depurar seus erros. O mesmo vale para as tendências marxistas progressistas e para quase todas as demais áreas do conhecimento.

            A dicotomização absoluta leva ao empobrecimento do pensamento humano e à criação de gaiolas, que impedem o voo livre do pensamento e do entendimento; como se nos auto sabotássemos presos na visão da árvore ou de um simples galho desta árvore, ao invés de percebermos toda a floresta e a ligação do seu bioma com totalidade da Terra; isto é: rasgamos a big picture e nos centramos voluntariamente nos pedaços rasgados da small picture.

            Isso não significa ignorar as preciosas contribuições de Sagan, Tyson, Freud ou de qualquer outro pensador que tenha despendido a vida para contribuir com o avanço intelectual, filosófico e científico da humanidade. Trata-se, justamente, de tentar imprimir uma nova dinâmica e um novo método de pensamento já percebidos e já apontados pelas tendências da evolução intelectual humana. É precisamente uma conexão crítica que essa evolução exige no momento. Uma vez que a resolução das necessidades dessa evolução fossem claramente pensadas e devidamente consideradas, talvez nos levariam a uma lógica e crítica diferente da que conhecemos. Para Hegel, por exemplo, o conhecimento do absoluto (ou o mais próximo possível disso, acrescentamos para contrabalançar o seu ufanismo) pode surgir por meio de uma síntese da concepção intelectual e da reflexão; ou dito de outra forma: da síntese e da posterior reflexão de teorias e pontos de vistas contraditórios.

            Esta crítica à dicotomização também não significa cair nos absurdos da pós-verdade, auto-verdade ou prisões egotistas. Todas as teorias e filosofias devem ser medidas por suas propostas, pela sua capacidade de relacionar-se com a realidade concreta e, sobretudo, pela abertura para a ligação com o restante da realidade, pois ainda que não haja verdade eterna, existem verdades inesgotáveis e em permanente transformação – sobretudo no que diz respeito ao estágio em que se encontra o conhecimento humano e nas condições construídas por ele para compreendê-las e divulgá-las. Tudo isso deve ser coroado com a humanização deste conhecimento – bem ao estilo freiriano, para citar um exemplo – e, principalmente, o reconhecimento das nossas limitações. Devemos ter como norte humanizar não apenas as ciências, as filosofias e a arte, mas as próprias relações humanas, bastante desumanizadas.

 

3. Por uma nova abordagem científica, filosófica e humana: desfazer as dicotomias!

            Autores como Fritjof Capra já perceberam e apontaram a necessidade de uma nova forma de fazer ciência, filosofia e psicologia. A ciência, por exemplo, não pode desfazer-se em autoproclamações desumanizadas, que leva em consideração apenas um conhecimento fechado em si mesmo e autoproclamatório – uma espécie de reprodução moderna dos concílios católicos –, tal como vemos hoje nas universidades ou nos “especialistas” entrevistados pela grande mídia burguesa.

            O que pode transformar a produção intelectual e cultural humana é o aprimoramento da junção de todas as teorias, num equilíbrio harmônico, sabendo filtrar e amalgamar nelas tudo o que há de bom e depurar o que há de ruim e limitador (aqui não se incluem, é claro, degenerações e abortos teóricos, que são por demais evidentes). Isso é um exercício permanente e, provavelmente, sem fim, em que o fundamental é ensinar o ser humano a pensar e não a reproduzir uma decoreba, tal como funciona nosso sistema de ensino. Repensar, fundir e/ou equilibrar harmonicamente todas as atuais e futuras teorias e campos científicos e artísticos que já existem e os que ainda estão por serem explorados deve ser a nossa “palavra de ordem”, pois é o caminho que pode nos colocar mais próximo da “verdade” e da realidade.

            Se tudo isso não pode “resolver” os nossos problemas atuais, pelo menos nos deixa com os pés mais próximos do chão e evita a degeneração em dogmas e tabus, que engessam, infantilizam e por fim petrificam o pensamento humano.

 

4. A dicotomização na política proletária

            Como foi dito no início, a dicotomização se reflete na prática política da velha esquerda e gera verdadeiras aberrações. Com tais formas de proceder não pode surgir uma nova prática que responda às necessidades políticas de emancipação do proletariado, apenas a criação de gaiolas intelectuais que reproduzirão e criarão engessamentos políticos práticos.

            Em um recente debate online entre militantes de distintas regiões do Brasil surgiu uma questão interessante sobre como abordar os trabalhadores ainda influenciados pelo petismo. Como sempre, houve uma tendência à dicotomização e ao desprezo pela psicologia de massas da sociedade capitalista.

            Uma companheira do sul colocou a necessidade de sermos cuidadosos no diálogo com os trabalhadores iludidos que receberam bolsa família ou outro programa social dos governos petistas; ao que foi respondida por um camarada do nordeste que afirmou que “temos que ser bruscos” no sentido de finalmente “acordá-lo” de seu sono letárgico, uma vez que um “diálogo brando” apenas reforçaria a sua dependência e ilusões no petismo.

            A fala do camarada do nordeste expressa uma forte tendência à dicotomização, em primeiro lugar, porque a classe trabalhadora é gigantesca e possui várias estratificações e níveis de consciência, sendo necessário uma série de métodos e formas de diálogos, desde o “diálogo brando” até o choque de consciência “brusco”; em segundo lugar, não há porque restringir voluntariamente nossos movimentos a apenas uma forma, ainda mais em questões secundárias.

            Em síntese: as duas modalidades de “diálogo” são importantes. Devemos cuidar com a nossa própria autolimitação e sabotagem. Precisaremos das duas formas até mesmo para um só indivíduo, o que dirá para toda a classe trabalhadora brasileira? Nessas descobertas não há uma receita de bolo; o caminho se faz ao caminhar e a sintonia fina é um exercício permanente que devemos nos especializar.

***

            Para que o quadro fique mais rico, caberia acrescentar ainda uma reflexão sobre as limitações e as tendências à dicotomização na luta feminista, anti-racista e dos movimentos LGBTTs. Quando estão sob clara influência burguesa, tais movimentos tendem a pensar que o “seu programa” tal como é apresentado seria a “salvação da humanidade” (ou, pelo menos, a salvação da parcela da humanidade que abrangem), criando uma “nova sociedade” por si mesmo, desconsiderando-se outros fenômenos políticos, econômicos, sociais, etc., geralmente separando-os da luta por uma outra forma de sociedade; isto é, separando-os da luta pelo socialismo. Muitos desses movimentos tendem a centrar-se unicamente na visão errônea e limitada de que “todos os homens, brancos e heterossexuais” são o problema por si mesmos, ignorando as condições concretas, as suas posições políticas e, sobretudo, a sua prática...

           


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Cortina de fumaça eleitoral sobre os incêndios do agronegócio e da grande mídia

A manipulação da Rede Globo é assustadora: não apenas chama agronegócio de pop, escondendo que as queimadas são de responsabilidade direta dele, como vende que ele está preocupado com a sua contenção...

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A Amazônia continua ardendo pelas mãos do agronegócio subsidiado pelo bolsonarismo, a grande mídia ajudando a confundir e as eleições, mudam o que nisso tudo?

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As eleições municipais burguesas são um espetáculo bizarro, porém instrutivo, onde partidos que se proclamam "radicais", de "esquerda" e "independentes" numa cidade, se coligam utilitária e servilmente com os mesmos partidos que criticam em outra.
Qual o resultado disso?
Só pode ser o aumento absurdo da incoerência e a associação pejorativa disso com a "política". No entanto, é importante reforçar: isso é política burguesa!
Muita gente de "esquerda" acha que "política é isso mesmo" e que "não há o que fazer"...
Seria isso realismo político ou adaptação oportunista à mediocridade do possível?

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Alguns dados para ilustrar:

PT 140 cidades com o PSL de Bolsonaro; 302 cidades o DEM de Rodrigo Maia; 333 cidades com o PP (sucedâneo da ARENA) de Maluf e Amin; 314 cidades com o PSDB de Dória, FHC e Alckim; 606 cidades com o MDB de Temer; 193 cidades com o PSC de Wilson Witzel; e 48 cidades com o PRTB de Hamilton Mourão. PCdoB 70 cidades com o PSL de Bolsonaro; 169 cidades com o DEM de Rodrigo Maia; 224 cidades com o PP (ex-ARENA) de Maluf e Amin; 214 cidades com o PSD de Kassab; 194 cidades com o MDB de Temer; 153 cidades com o PSDB de Dória, FHC e Alckim; 151 cidades com o Republicanos de Crivella e Russomano; 124 com o PTB de Roberto Jeferson.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O que é o bolsonarismo?

 

Enquanto a velha esquerda se aferra à reprodução de ideias e, muitas vezes, de dogmas, a classe dominante prima pelo realismo. É claro que ela conta com todo o poder do dinheiro e de modernos meios de informação e dominação, como a grande mídia, as escolas, universidades e as atuais igrejas, que moldam o senso comum conforme seus interesses. Tudo isso pesa de forma determinante, sem sombra de dúvidas. No entanto, a velha esquerda, ainda que não possua os mesmos meios, abre mão do realismo, se embalando num verbalismo revolucionário oco, que na maioria das vezes serve para afastar sectariamente pessoas ao invés de agregar. Isto é, envolve-se em questões secundárias e ignora as essenciais. Além disso, também faz vistas grossas aos conselhos de Marx e Engels sobre a necessidade de estar em sintonia com os debates e métodos mais avançados no campo científico. O resultado não poderia ser outro: colocam a classe trabalhadora numa dupla desvantagem em relação à burguesia. A primeira é uma desvantagem histórica (que já foi analisada por este blog[i]); a segunda é uma opção política, que torna a velha esquerda refém de uma espécie de miopia voluntária.

            A burguesia não perde tempo e está sempre sintonizada com tudo o que é produzido e reproduzido pela ciência e tecnologia. Isto explica, por exemplo, a avassaladora onda neofascista, que se utiliza de métodos refinados e perigosos de manipulação da psicologia de massas[ii] – homericamente ignorado pela velha esquerda – nas redes sociais. Esta faz toda uma discussão mecanicista tacanha e bastante obtusa, que leva sempre a mesmas conclusões que não nos faz andar um passo sequer. Quando se coloca a questão sobre “o que é o bolsonarismo?” traz embutida certas limitações e vícios do pensamento que caem, quase sempre, numa dicotomia platônico-cristã.

            Se, por exemplo, respondemos que o bolsonarismo é uma forma de “fascismo”, logo vem o discurso obtuso de que, então, vamos incorrer no erro de apoiar eleitoralmente e politicamente os governos petistas. Ora, camaradas, uma coisa não necessariamente está ligada à outra. Pode-se caracterizar o bolsonarismo como uma espécie de fascismo sem incorrer no erro de apoiar politicamente o petismo ou de qualquer tipo de frente popular.

 

O bolsonarismo é a expressão brasileira do neofascismo, uma corrente internacional

            Criticar tal conduta da velha esquerda não significa desconsiderar o núcleo racional de muitos dos seus argumentos, que nos ajudam a delimitar melhor os nossos. Refiro-me especificamente àqueles que afirmam que o bolsonarismo não rompeu com a institucionalidade burguesa, mantendo aberto e funcionando o Congresso Nacional, o STF e outros órgãos da legalidade democrático-burguesa, ainda que os ameace verbalmente de forma corriqueira. Esse seria o “argumento definitivo” para não caracterizar o bolsonarismo como “fascista”.

            Tanto neste blog, quanto em outras publicações, falávamos de “fascismo” e de “ditadura aberta”. Tais afirmações levaram a uma justa ponderação por determinados setores da esquerda que é necessário esmiuçar melhor agora. Em primeiro lugar é necessário afirmar, como já disse acertadamente Trotski, que os fenômenos históricos nunca experimentam uma repetição completa. Isso parece ter sido esquecido por estes críticos da esquerda, mas nunca o foi por nós, mesmo que usássemos impropriamente o termo “fascismo”. Por isso foi acrescentado o termo neo, no sentido de chamar a atenção para esta diferenciação. No entanto, devemos admitir que este cuidado literário só surgiu plenamente após a apresentação da tese da Construção pela Base ao X Congresso do CPERS[iii], que procurava descrever o novo fenômeno.

            Nela podemos ler o seguinte: “O neofascismo é um movimento criado pelo imperialismo decadente, os EUA e seus satélites, para a manutenção do seu domínio mundial e dos seus mercados, ameaçados por China e Rússia. Assume variadas formas de acordo com os seus interesses geopolíticos. Assemelha-se ao fascismo clássico pelo terrorismo de Estado ou pelo terrorismo mercenário [seletivo], pela xenofobia, racismo e um conservadorismo radical. Como todo fascismo, é um movimento antiproletário e anticomunista. O neofascismo é o abre-alas da burguesia imperialista, usado quando necessário para concretizar suas políticas econômicas. Apesar de disseminar ódio, preconceito, fake news, dando justificativas para guerras, assassinatos e ditaduras militares, pode conviver com instituições democrático-burguesas. O bolsonarismo é a aplicação desse neofascismo no Brasil. O seu discurso a favor da ditadura militar não deixa de conviver com o Congresso Nacional, embora seja sempre uma possibilidade a nos espreitar. O neofascismo se caracteriza também pela manipulação através da divulgação de fake news nas redes sociais, cujos assessores são técnicos utilizados pelo imperialismo. Elas ajudam a espalhar e consolidar o irracionalismo, uma vez que a hipnose da massa necessita deste controle a partir do ódio, do sadomasoquismo e do medo. O discurso contra o socialismo e o comunismo é parte fundamental desta campanha, que tenta lançar um preconceito prévio entre a população contra estes sistemas econômicos e suas teorias (os únicos que podem por fim ao caos do esgotamento do capitalismo), ao mesmo tempo em que classifica qualquer intervenção estatal na economia ou mesmo a existência de direitos trabalhistas mínimos como ‘comunismo’”.

            Este trecho da tese conclui afirmando que o neofascismo se utiliza de métodos de manipulação da psicologia de massas, o ódio sádico, o irracionalismo, suas emoções infantis, o egotismo (que reforça a auto-verdade ou a pós-verdade[iv] e o imediatismo); os quais a “esquerda” sequer compreende (e muitas vezes nem quer), mantendo o seu velho discurso padrão estéril ou oportunista. Percebe-se que ela não pode abrir mão desse discurso e nem denunciar as técnicas de manipulação de ódio e das emoções praticadas pelo neofascismo porque, em grande parte, também as utiliza consciente ou inconscientemente. Parte da tática do neofascismo está baseada em lançar iscas, dizendo e desdizendo (às vezes decretando e depois revogando) algo geralmente bizarro para desviar atenção do foco central e trabalhando conscientemente com a estratégia da confusão. A velha esquerda morde quase todas estas iscas e isso, naturalmente, se reflete de forma negativa no movimento dos trabalhadores. O neofascismo também se aproveita de todas as falhas, da impunidade e do jogo de hipocrisia das instituições e da legislação da democracia burguesa. Sabe fazer isso muito bem, vendendo tais práticas como “anti-sistema” e discursando contra o “politicamente correto”. Muitos trabalhadores julgam que exatamente por isso Bolsonaro “fala a verdade”, enquanto os demais políticos “não falam o que realmente pensam”.

            É digno de nota que mesmo quando chamávamos erroneamente o governo Bolsonaro de “fascista”, utilizávamos frequentemente a famosa citação atribuída a José Saramago (que teve o mérito de identificar o neofascismo muito antes de ele surgir efetivamente) para ponderar e exemplificar nossa posição: “os fascistas do futuro não vão ter aquele estereótipo de Hitler ou Mussolini. Não vão ter aquele jeito de militar durão. Vão ser homens falando tudo aquilo que a maioria quer ouvir. Sobre bondade, família, bons costumes, religião e ética. Nessa hora vai surgir o novo demônio, e tão poucos vão perceber a história se repetindo”.

            Entre os que não perceberão se encontra, infelizmente, a velha esquerda. Sem compreender a sutileza dos seus mecanismos de funcionamento não há possibilidade de combater o neofascismo. Tampouco reconhecê-lo significa uma adesão automática à base de sustentação do petismo. Tudo precisa ser analisado concretamente. A grande questão, contudo, é que a burguesia não é estúpida. Ela sabe que não pode repetir abertamente o regime nazi-fascista ou as ditaduras militares latino-americanas – que era exatamente o que esperava a velha esquerda para poder gritar “isto é fascismo!”. Tal fascismo está disfarçado com novos métodos que não foram compreendidos pela velha esquerda, preocupada em encaixar a realidade em suas teorias pré-prontas. Não queremos dizer com isso que a burguesia não possa avançar para métodos ditatoriais abertos, mas no momento não está sendo necessário, uma vez que os regimes neofascistas de Trump, Bolsonaro et caterva[v], estão servindo perfeitamente para retirar os poucos direitos existentes, cercear algumas liberdades sindicais, destruir o “estado de bem estar social” e aplicar uma “nova economia uberizada”; isto é, está colocando o capitalismo numa nova fase de acumulação e exploração de forma exitosa[vi].

            Além disso, a principal base de sustentação política do bolsonarismo, o agronegócio, está tendo todos os seus interesses plenamente atendidos, desde a impunidade para assassinatos no campo e as queimadas criminosas da Amazônia e do Pantanal, até a garantia dos bilionários subsídios estatais e políticos à sua produção em detrimento da indústria nacional e das demais áreas da economia interna. Atender esses interesses garante a estabilidade política necessária ao bolsonarismo dentro do difícil quadro conjuntural.

 

Egos inflados

            Um dos métodos de angariar apoio do bolsonarismo é insuflar o ego de seus “apoiadores” naquilo que há de pior, tal como um pai e uma mãe inexperientes fazem ao mimar exageradamente o ego de uma criança, mesmo depois de grande. Se basear nas taras, nos ódios, no sadomasoquismo, no sentimento de uma pseudo-superioridade (“supremacia” branca, machista, homofóbica, religiosa e de classe) lhe confere certa força entre as camadas médias e grande parte da classe trabalhadora.

            São justamente estes setores que mais reproduzem a mentalidade e as repressões resultantes da família patriarcal, onde o homem branco se garante “direitos históricos” escusos. O bolsonarismo e o neofascismo se agarram nesses privilégios para tentar preservá-los desesperadamente ao mesmo tempo em que buscam poupar o capitalismo e o colocar numa nova fase de exploração e funcionamento. Defender esta estrutura familiar e os seus egos é parte fundamental desse programa, porque tal estrutura ideológica penetra nas subjetividades individuais e no inconsciente coletivo, criando um muro de contenção de hipocrisia e autoritarismo sobre as mentes isoladas. É necessário assentar golpes de marreta nesse muro, que sai ileso na prática agitativa e propagandística da velha esquerda (senão reforçado).

 

O neofascismo e o seu guru, Steve Bannon

            Como foi dito, o neofascismo é um movimento internacional dirigido por Trump e o seu Tea Party, bem como pelo deep state norte-americano e seus assessores. Cresce no mundo a olhos vistos. Alguns autores, como Noam Chomsky, já falam em uma “Internacional Reacionária”, que, além de Trump – o seu chefe – e Bolsonaro – seu capacho –, conta com outros subalternos, como os “ditadores do Golfo”, Abdel Fatah al Sisie no Egito e Benjamin Netanyahu em Israel, no Oriente Médio; Narendra Modi, na Índia; e Viktor Orban, na Europa[vii]. Em alguns lugares, como no leste europeu, toma abertamente um caráter mais ditatorial, enquanto que em outros, sem fechar efetivamente o regime (porque julgam não ser necessário e até mesmo desgastante), atacam permanentemente as instituições democrático-burguesas para jogar o povo contra elas, como se elas fossem as únicas responsáveis pelas mazelas que resultam do sistema que o neofascismo defende e luta por preservar, o capitalismo.

            Em todas as suas vertentes, porém, o discurso cultural é praticamente o mesmo: racismo, misoginia, xenofobia, luta contra o “marxismo cultural” e o “socialismo”. Reproduz na íntegra o programa da alta cúpula nazista de repressão sexual, o que é a base do fascínio que exerce sobre amplas massas religiosas, manipuladas com grande destreza e notável sucesso, enquanto que a velha esquerda olha tudo estupefata, alheia ou desesperada[viii]. Em todos os casos menosprezam a técnica do inimigo, o que é um erro crasso.

            No entanto, o guru do movimento neofascista internacional é sem dúvida Steve Bannon – o mesmo que se encontra hoje preso por fraudes em algumas campanhas, mas não pelos seus verdadeiros crimes. Foi ele que, com o patrocínio de Trump e cia., lançou as bases do movimento neofascista e coordenou minuciosamente a manipulação das redes sociais e da psicologia de massas. Eduardo bananinha Bolsonaro, Olavo de Carvalho e o resto da corja neofascista brasileira possuem uma linha direta com ele.

            Reconhecemos a dificuldade de caracterizar um movimento que tem como método se camuflar, dar o tapa e esconder a mão. Por isso, saudamos como positivo o vídeo sobre Steve Bannon produzido pelo canal do Youtube, Meteoro Brasil, que traz uma confissão involuntária dele feita em um grampo de uma entrevista informal a um jornalista italiano que põe termo definitivo à questão. Na Itália, Steve Bannon ajudou a promover a neofascista Giorgia Meloni, que pertence aos Irmãos da Itália, uma organização de caráter ultraconservador. Na referida entrevista, afirma o seguinte: Irmãos da Itália é um dos antigos partidos fascistas. É um partido antigo da direita. Costumava ser fascista. Agora é ‘neo’, ‘neo’. Lembre-se do teorema de Bannon: dê um rosto razoável para o populismo de direita e você se elege”[ix].

            Quando foi lembrado pelo jornalista do termo dado por ele aos Irmãos da Itália, negou. O mesmo faz Bolsonaro por aqui, negando qualquer associação pública com o nazi-fascismo, inclusive demitindo secretário que repetiu discurso do ministro da propaganda nazista e tentando associar o nazismo com a esquerda.

Roberto Alvim representando o governo Bolsonaro e Joseph Goebbels representando o nazismo

          Apesar destas negativas, é visível para quem tiver coragem de concluir o que é bastante óbvio. A confissão involuntária de Steve Bannon serve apenas para não deixar margem a qualquer tipo de dúvida. Sem reconhecer a existência do neofascismo e a sutileza dos seus métodos, será impossível combatê-lo com sucesso.

 

NOTAS


[v] Et caterva é uma expressão em latim usada de forma pejorativa; significa algo como "e os comparsas". Ex: o presidente et caterva vão afundar o país.

[vi] Ver:  http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/a-ditadura-de-bolsonaro-colocara-o.html (neste texto se expressa um dos equívocos que a presente análise sobre o bolsonarismo tenta apontar: não se trata de uma “ditadura aberta”, tal como foi a de 1964 ou a nazi-fascista, mas uma nova forma de autoritarismo que visa colocar a economia brasileira e ocidental numa nova fase de acumulação e exploração do capitalismo – nesse sentido, o conteúdo do texto deste link permanece correto, embora com o equívoco de pensar que se trataria de uma ditadura tradicional).

[ix] Ver:  https://www.youtube.com/watch?v=XCJ-R5jDbic&ab_channel=MeteoroBrasil a partir dos 6 minutos e 33 segundos.