As críticas a Bolsonaro apresentadas na reportagem foram reles despiste, uma vez que tanto Rede Globo quanto governo Bolsonaro trabalham pelo desmantelamento total da Petrobrás, pelo fim da política de controle de preços (ainda que o governo Bolsonaro faça demagogia para tentar controlar o descontentamento dos caminhoneiros) e, principalmente, defendem em uníssono, de forma desesperada e incondicional, a agenda de privatizações. Picuinhas para consumo de parte da população, mas unidade indestrutível no essencial: a política econômica!
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021
Jornalismo criminoso
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021
A luta entre o movimento makhnovista e o bolchevismo: confrontações entre o real e o imaginário – uma polêmica inédita com o anarquismo
Nestor Makhno (ao centro) junto dos seus guerrilheiros |
Grande parte dos anarquistas
sustenta que o bolchevismo foi o responsável pela opressão e a destruição da
revolução russa. Para ilustrar, sempre trazem como exemplo a luta entre o
movimento liderado por Nestor Makhno e o governo bolchevique. Aí, segundo os
anarquistas, residiria não apenas a demonstração da “real conduta” bolchevique e
a suposta superioridade da teoria anarquista sobre a “comunista”, mas também os
verdadeiros motivos da degeneração da revolução russa.
A
confrontação teórica deste artigo tem como base o livro do principal
historiador do makhnovismo, Piotr
Arshinov, História do movimento
makhnovista (1918-1921). Neste embate, será evitado o método messiânico que
pretende proclamar o bem todo de um lado e o mal completo no seu adversário –
método presente tanto no makhnovismo,
quanto no bolchevismo (embora com diferentes variações). Portanto, cada ideia
será ponderada e medida pelo seu peso na realidade.
Cabe
lembrar que o anarquismo compreende que o objetivo central de uma revolução é a
completa destruição estatal e de toda a autoridade no exato momento em que o
processo revolucionário ocorre. Para os marxistas (e os bolcheviques, em
particular), ao contrário, tal ação é impossível por não corresponder às
condições materiais concretas, que carrega uma pesada herança do passado;
sendo, portanto, necessário um período de desenvolvimento controlado por um
Estado proletário que crie as condições materiais para a sua auto dissolução.
O
contexto histórico da luta entre o movimento makhnovista e o bolchevismo: a guerra civil revolucionária de
1918-1921
Os
bolcheviques, para se defender das acusações makhnovistas de repressão e traição, argumentam que seus acusadores
ignoram categoricamente a difícil conjuntura que viviam de enfrentamento à
contrarrevolução. Cabe lançar um olhar sobre a situação. O embate entre o
movimento makhnovista e o bolchevismo
tem como cenário a Ucrânia de 1918-1921: país dilacerado por uma feroz guerra
civil, tal como estava todo o ex-império russo após a invasão dos exércitos
imperialistas, em 1918, levando o governo bolchevique a ficar quase restrito à
Moscou. Nada mais do que 14 exércitos, liderados pelos reacionários Koltchak e
Denikin, e financiados por Inglaterra, França, EUA e boa parte dos grandes
bancos internacionais – o famigerado exército
branco –, lutavam contra a revolução, procurando destituir os bolcheviques
do poder. Tal luta não poderia deixar de se estender à Ucrânia, região
intermediária entre a Rússia e a Europa.
Nas
palavras de Piotr Arshinov: “Desde o
primeiro dia da tomada de Guliaipolé [aldeia populosa da Ucrânia] por Denikin, um grande número de camponeses
foi fuzilado, as habitações saqueadas e centenas de carriolas de carros,
carregados de víveres e de toda a espécie de objetos pertencentes aos
habitantes da aldeia, conduzidos pelos cossacos para o Don e Kuban. Quase todas
as mulheres judias de Guliaipolé foram violadas”[i].
E mais adiante: “Foi por isso que o
Exército de Makhno foi seguido por milhares de famílias camponesas que
abandonavam as suas aldeias, conduzindo o seu gado e levando as suas coisas.
Uma fila contínua se estendia por centenas de quilômetros, uma verdadeira
emigração de povos (...). Durante a
retirada, essa massa enorme e pesada de fugitivos disseminou-se por toda a
Ucrânia; a maior parte deles perdeu para sempre todos os seus bens e
habitações, uma grande quantidade perdeu também a vida”[ii].
E ainda: “A região insurgida estava, no
verão de 1919, numa situação tal que toda a obra de edificação revolucionária
era absolutamente impossível”[iii].
Este
foi o triste retrato não apenas da Ucrânia ao longo da guerra civil, mas de
toda a Rússia nos difíceis anos que se seguiram à revolução de 1917. Em um
contexto como esse, todas as ideologias são postas à prova – e não apenas elas,
mas também a conduta dos seres humanos. Devemos partir dessa realidade complexa
para entender os acontecimentos históricos e não de abstrações de princípios
morais, por mais importante que eles sejam. Aqui ocorre um medo crônico e infantil
dos anarquistas de sujar o seu “purismo” e o seu “revolucionarismo” entrando em
contato com as podridões inevitáveis que emergem das massas humanas em
situações como estas. Ou seja, esperam um caminho revolucionário sem
contradição alguma, perfeito e exato; em uma massa humana também perfeita e
exata.
O
exército guerrilheiro, ligado a Makhno, teve papel importante no combate ao
exército branco, sem dúvida, embora tenha trazido também suas profundas
contradições – geralmente ignoradas pelos anarquistas, que tendem a lançar todo
o mal sobre a “repressão” bolchevista. Não podemos esquecer que os seres
humanos são seres contraditórios, possuindo em seu interior igualmente coisas
boas e ruins. Se em tempos de calmaria já demonstram tendências perversas,
imaginem em uma guerra civil! Um período terrivelmente severo de
contrarrevolução traz à tona tudo o que há de ruim e de desmotivador na espécie
humana. Há, por isso mesmo, que se ter muito cuidado e prudência nesta análise.
***
Cabe
aqui uma questão de ordem sobre o método. A obra de Piotr Arshinov e o
pensamento anarquista em geral (talvez com algumas exceções) – bem como a
grande mídia e a intelectualidade burguesa –, além de desconsiderarem a
conjuntura de guerra civil, desconsideram também as diferenças entre o
bolchevismo dirigido por Lenin e Trotski e o “bolchevismo” dirigido por Stalin.
A “repressão” ao movimento makhnovista
seria a prova definitiva desta identidade. Neste artigo partimos das boas
conclusões da obra de Trotski sobre a degeneração da revolução soviética,
sobretudo no seu livro A revolução traída,
de 1937. Por mais que não se concorde com a teoria e a prática trotskista,
existem inúmeros fatos e dados históricos fundamentais e
incontestáveis, além de reflexões filosóficas, que precisam ser conhecidas
e refletidas pelos anarquistas na sua crítica.
Não
se trata aqui, obviamente, de ignorar que houveram excessos e erros da parte
dos bolcheviques em meio a uma atroz guerra civil – inclusive tais erros,
sobretudo vindo das camadas mais
inexperientes do bolchevismo, podem ter tomado ares de crimes sádicos –, mas pintá-los exatamente
com as mesmas cores que se pinta a burguesia, tal como faz Arshinov, é um
exagero e um desserviço à classe trabalhadora porque, como foi dito, ignora as
contradições inerentes a um processo revolucionário e porque, também, aqueles a
quem criticamos não aplicaram o nosso
projeto de governo e sociedade – numa palavra: a nossa ideologia. Nesse
sentido, o livro de Arshinov é um verdadeiro panfleto anti-bolchevique que
sofre dos mesmos erros que critica (fala que os bolcheviques caluniam o
movimento makhnovista, mas os exageros
de Arshinov não ficam nada atrás). Arshinov não iguala apenas bolchevismo e
stalinismo, mas traça um sinal de igual entre o primeiro e a monarquia russa e
a burguesia internacional, como se fossem a mesma coisa (às vezes dá a entender
que é até pior). Tais afirmações seriam baseadas em algum rigor histórico, sustentando
uma análise equânime, ou apenas em ódio ideológico resultante de uma guerra
civil?
Os
anarquistas geralmente respondem, indignados, que a prova definitiva é o fato dos
“bolcheviques fuzilarem os guerrilheiros makhnovistas” e “destruir seu
movimento”; mas o exército makhnovista
também fuzilou soldados e militantes bolcheviques. Como se vê, ambos movimentos
cometeram erros que merecem ser analisados dentro da perspectiva que cada
vertente política imprime para a coerência e o desenvolvimento da revolução. É
por isso que o debate político deve sair do campo do “purismo” e analisar o
mais refletida e honestamente possível o contexto histórico, evitando-se, até onde é
possível, todo o tipo de emoção incompreendida e de narcisismo ideológico. Numa
guerra civil, qualquer penalidade mais suave que a morte raramente tem efeito
dissuasório.
O general contrarrevolucionário Anton Denikin (ao centro). |
Estatismo
x anti-estatismo: os makhnovistas
eram desprovidos de autoridade e de aparato estatal?
“A
grande questão é que os bolcheviques são estatistas e, por isso, autoritários”,
dizem os anarquistas, “e isso, por si só, leva qualquer revolução à
degeneração”. Em algumas passagens do livro de Arshinov podemos vê-lo atribuir
automaticamente o egoísmo ao estatismo, como se houvesse relação direta de
causa e efeito. Engels já respondeu de forma satisfatória os argumentos
anarquistas sobre autoritarismo e anti-autoritarismo no seu famoso artigo Sobre a autoridade[iv];
por isso, não cabe acrescentar muito mais ao que já foi dito sobre este tema. O
que queremos aqui é dar outras perspectivas a esta discussão, tirando-a deste
ping-pong.
O
livro de Arshinov traz inúmeras declarações que atestam a existência de um
exército makhnovista centralizado em
um Estado-maior, de conselhos de
representantes, sovietes e uma infinidade de gradações de comandantes, ordens e
despachos. Assim sendo, declarar que não se representa nenhuma autoridade é
completamente diferente de não ser nenhuma autoridade de fato. Não adianta
camuflar a realidade afirmando se tratar da “representação pura”, “autêntica”
ou “natural”, porque se trata, em última análise, de ser exatamente uma direção política dos camponeses
ucranianos. O que faz uma direção política senão despachar ordens, apresentar
um programa e uma estratégia? Se se reúne para decidir questões gerais em uma
sociedade dividida em classes e com diferentes níveis de consciência (e eles
existiam, conforme atesta Arshinov sobre os camponeses despolitizados e antissemitas),
se está cumprindo um papel de autoridade, mesmo que juremos de pés juntos que
nós representamos a “anarquia”.
No
capítulo 7 da obra de Arshinov, que trata de uma das vitórias dos makhnovistas sobre o exército branco,
intitulando-o como “era de liberdade” que instituiu uma suposta “região livre”
e, portanto, administrada pelo anarquismo (ou seja, uma região supostamente “sem
autoridade”), lemos que foi permitida a livre circulação de 5 ou 6 jornais de
orientação política diversa, incluindo os social-revolucionários
(SRs – ex-narodiniks) de esquerda e
de direita, além dos mencheviques e dos próprios bolcheviques. Contudo,
Arshinov escreve que a única restrição que julgaram necessário impor aos bolcheviques, aos SRs de
esquerda e a outros estatistas “foi a de
não poderem formar comitês revolucionários jacobinos que tinham, como fim,
exercer sobre o povo uma ditadura”[v].
Isto
é, exerceram a mesma autoridade que
exerce a burguesia com suas “liberdades democráticas”: tudo o que se transforme
em organização direta e prática que
ameace o poder estabelecido, primeiro deve ser classificado como “errado” e
“ditadura”, de acordo com a nossa ideologia; depois deve ser perseguido e
dissolvido. Sejamos francos, companheiros, que os marxistas e bolcheviques foram
mais honestos ao falarem em ditadura do
proletariado e em um necessário período de transição que vai levar algum
tempo e que deve partilhar o poder entre correntes de trabalhadores (tal como
foi a Comuna de Paris). Não douram a pílula chamando isso de “fim” ou “ausência
da autoridade”.
O
que fez Makhno contra os bolcheviques que ousaram organizar comitês “deste
gênero” nas cidades que foram “apoderadas por suas tropas”? “Ameaçou trespassar com as suas armas todos
os membros do comitê comunista no caso de estes tentarem levar a cabo mesmo a
menor medida autoritária contra o povo trabalhador. Em Yekaterinoslav, também
um comitê revolucionário do gênero foi dissolvido, da mesma maneira. Quanto a
este ponto de vista, os makhnovistas operavam com muita energia e consequência.
Ao garantirem e defenderem a completa liberdade de expressão e associação, não
deviam vacilar, sem dúvida, em tomar todas as medidas possíveis contra
organizações políticas que se atrevessem a impor, pela força, a sua vontade e
autoridade a todos os trabalhadores. E quando, no mês de dezembro de 1919, o
Comandante do 3º Regimento Insurrecional Makhnovista, Crimea Polonsky,
encontrou-se comprometido numa organização autoritária do gênero, foi executado
juntamente com outros membros dessa organização”[vi].
Isto
é: apenas Makhno detinha o privilégio “natural” da representação “pura” e
“democrática” dos trabalhadores, o que significaria, nos seus sonhos, uma
suposta não-autoridade ou “democracia
pura”. Este idílio quer dar a entender que chamar de autoridade o ato de “trespassar pelas armas os adversários
políticos” seria uma blasfêmia. Justificam-no afirmando se tratar de supostas
“ideologias autoritárias”. Mas quem define o que é “autoritário” ou não? A
nossa ideologia, é claro! Tal visão absurda está expressa na afirmação de que
os camponeses que fugiam da repressão da contrarrevolução juntavam-se a Makhno,
“para o qual convergiam como para o seu guia natural”[vii].
Os desertores que se uniam ao exército vermelho bolchevique, ao contrário, eram
“iludidos”. Tal visão deturpada, narcísica e paternalista, dá a entender qual
foi o método que Arshinov utilizou para escrever seu livro: se os “bandidos
bolcheviques” levantam uma bandeira política, trata-se de autoritarismo; mas se
Makhno levanta uma bandeira política é a expressão “natural das coisas”.
E
não foram apenas os “bandidos bolcheviques” que foram “trespassados pelas
armas”, mas camponeses antissemitas ou aqueles que não obedecessem às ordens não-autoritárias dos conselhos liderados
por Makhno. Segundo Arshinov: “toda a
requisição e confisco individuais, assim como a troca de cavalos e de veículos
com os camponeses, sem autorização por escrito dos chefes, serão severamente
punidos. (...) E todo o insurgido que
suportasse um ato semelhante, se cobriria de vergonha e atrairia contra ele o castigo do Exército Revolucionário
Popular. Os interesses da revolução e de uma luta bem compreendida para as nossas ideias exigem que a disciplina fraternal mais rigorosa seja observada em nossas
fileiras. O mais profundo respeito e a maior obediência do ponto de vista militar, para com os comandantes escolhidos por nós, são absolutamente
indispensáveis. A grande causa que nos é dado defender exige-o, e nós levaremos
assim, a bom termo, essa causa, que seria comprometida se não tivéssemos
disciplina. (...). Assinado: O comandante do Exército Revolucionário
Insurrecional da Ucrânia: Pai
Makhno”[viii].
Eis
aí, escondido atrás de inúmeros sofismas como “disciplina fraternal mais rigorosa” e de “comandantes
escolhidos por nós”, a autoridade, a hierarquia e o Estado – todos não
declarados, é claro; e encobertos pela balela de “guia natural”. Se exige
disciplina à hierarquia de poder, existe Estado e autoridade, por mais que
juremos de pés juntos que somos a encarnação da anti-autoridade. E, nesse caso, trata-se, antes de tudo, de uma
direção política, assim como o bolchevismo o foi, sem fazer tanta demagogia com
as palavras. Talvez seja por isso que Arshinov afirmou que “ao terror dos bolcheviques responderam com golpes não menos rudes”[ix].
***
Fernando
Claudín, no seu longo trabalho A crise do
movimento comunista, também analisa como os anarquistas adaptaram
oportunistamente sua teoria às imperiosas exigências militares durante a guerra
civil espanhola de 1936-1939. Ele escreve: “a
‘revolução libertária’ que os anarcossindicalistas implementaram na Catalunha e
em Aragão, e procuravam estender a outras áreas da zona republicana, não só era
absolutamente incompatível com a restauração do Estado republicano
democrático-burguês – era-o também com as exigências mais elementares, militares
e econômicas, da guerra. (...) Independentemente
da validade ou não das concepções anarcossindicalistas sobre o sistema social
que deveria substituir o capitalismo, evidente era a sua incompatibilidade com
as exigências da guerra. Demonstrou-o inapelavelmente a prática, e também é
significativo que, no plano da análise, até os autores mais simpáticos às realizações
sociais da CNT durante a guerra civil sejam obrigados a reconhecer esse aspecto
fundamental. Na medida em que os anarcossindicalistas procuraram enfrentar a
guerra com eficácia, tiveram que abandonar, sucessivamente, os seus postulados
essenciais. E quando não o faziam, a tentativa de implementá-los constitui um
enorme obstáculo para resolver o problema mais imediato e angustiante da
revolução: derrotar a contrarrevolução, personificada nos exércitos dos
generais espanhóis e de seus aliados estrangeiros. Essa tarefa exigia um poder
ditatorial, uma unidade máxima, o sacrifício transitório de qualquer aspiração
de melhorias materiais etc. A tarefa poderia ser resolvida por um poder
proletário revolucionário ou por um poder burguês – mas, nunca, sem poder”[x].
***
Uma
das grandes questões a ser debatida é que os anarquistas não compreendem (ou
não querem compreender) a importância e o papel da direção política da classe
trabalhadora, negando que Makhno e sua teoria propunham-se a ser uma direção política. Os anarquistas
transformam o espontaneísmo popular em doutrina oficial e atribuem a qualquer
direção, partido ou Estado (indistintamente ao programa ou a política que
defendem) o papel de “burocratizadores por natureza” – uma espécie de tradução
para a política moderna do pecado
original bíblico. É precisamente o espontaneísmo
popular, cultuado da forma mais bárbara, que eles entendem como não-autoridade; e condenam com as
palavras mais duras (até com o fuzilamento, em caso de guerra civil) aqueles
que não concordam com essa ideologia. Este menosprezo à direção política,
entendendo que a classe se dirige espontaneamente mesmo com distintos níveis de
consciência e heterogeneidade, tende a caminhar para a desorganização política
e à subordinação inconsciente às direções burguesas declaradas ou não
declaradas – e terminam por chamar isso, orgulhosamente, de “autodeterminação
das massas”.
Certos
camaradas anarquistas pensam que se “centralizar pela classe”, tal como ela é,
representaria um antídoto ou talismã contra a degeneração política (ou seja, este
seria o suposto erro dos bolcheviques, que não teriam respeitado os “interesses
da classe”, nem suas aspirações “naturais”). Mas isso é um erro de “purismo”,
já que o proletariado se subdivide em vários segmentos, como vanguarda e
retaguarda, com outros tantos níveis de consciência e conduta intermediários.
Isto é um fato sociológico reconhecido até mesmo por Makhno, que a entende
desta forma: “o assassínio desta [a
revolução russa] apenas ocorreu graças à
enorme ingenuidade infantil do povo, e ainda mais por causa das baionetas dos
mercenários que, na sua cegueira, se vendiam ao partido leninista”[xi].
A “ingenuidade infantil” de um trabalhador, por exemplo, pressupõe um
determinado nível de consciência.
Nesse
caso, temos uma nítida demonstração que o anarquismo se acha o herdeiro natural
da “massa” tal como ela é e que os bolcheviques seriam manipuladores
desprezíveis e inescrupulosos. Ou seja, se trataria de elementos estranhos à
classe trabalhadora e, portanto, não de uma legítima disputa de ideias por
distintas direções políticas (no caso o bolchevismo “marxista” de um lado e o
anarquismo makhnovista de outro), mas
dos “bandidos estatistas” contra os “totalmente
puros e corretos” que “seriam a expressão autêntica das massas”. Como foi dito,
Arshinov afirma no seu livro que os “estatistas são indivíduos egoístas”; isto
é, se atribui um egoísmo congênito a quem acredita que só poderemos atingir o comunismo
por intermédio de um Estado enquanto ainda não temos condições materiais e
culturais para a sua supressão plena. Não seria uma compreensão de que não
podemos fazer proselitismo sobre o fato de que após a revolução precisaremos de
um Estado proletário, mas de uma “aspiração
consciente à sujeição das massas, pelo seu fundo essencialmente dominador e
explorador. (...) [considerando o
bolchevismo] como o único e verdadeiro
autor de todos os males e de todos os horrores com que o poder soviético
submergia no país”[xii].
Isso não é apenas uma calúnia, mas uma propaganda anti-bolchevique dicotômica,
muito mais raivosa do que a própria burguesia imperialista foi capaz.
Propor
a supressão imediata do Estado (o que, como vimos, não foi feito por Makhno) é idealismo filosófico no mais alto grau!
Os bolcheviques expressavam tanto quanto os makhnovistas
os anseios das massas por vias e estratégias diferentes. Afirmar que o makhnovismo era o seu guia natural[xiii]
e único é uma espécie de messianismo
religioso. Sabemos que o stalinismo afirma algo semelhante, mas esta
responsabilidade é dele, e não do bolchevismo, que procurou dividir o poder com
outras vertentes políticas, como os mencheviques e SR’s “de esquerda”. Apenas a
grande mídia burguesa e o anarquismo desonesto
(ou ignorante) tenta atribuir o
totalitarismo ao bolchevismo de Lenin.
Trotski
escreveu: “O comitê central do nosso
partido buscou uma aliança com os SRs de esquerda. Propusemos a eles que
tomasse parte na construção do governo dos sovietes. Eles hesitavam e diziam
que o governo deveria ter o caráter de uma coalizão entre os partidos
soviéticos. Mas os mencheviques e os SRs de direita haviam rompido com o
Congresso dos Sovietes porque eram defensores decididos de uma coalizão com
os partidos anti-soviéticos. Assim, só nos restava deixar os SRs de esquerda a
tarefa de tentar trazer seus colegas de direita para o campo da revolução;
porém, enquanto eles se ocupavam dessa causa sem esperança, nós nos sentíamos
obrigados a assumir toda a responsabilidade pelo governo”[xiv].
E
o que fizeram os SRs? Procuraram as tropas de Makhno para combater os
bolcheviques[xv], que já
enfrentavam, da mesma forma que o movimento makhnovista,
a contrarrevolução branca liderada por Denikin e Wrangel. Pior do que isso:
mencheviques e SRs (de esquerda e de direita) participaram da conspiração de Krasnáia Gorka, em 1919 (isto é: no auge
da guerra civil), que tinha por objetivo entregar Petrogrado aos exércitos
brancos. Nesta conspiração participaram também os cadetes (democratas
constitucionalistas, o partido da burguesia liberal russa)[xvi].
A
grande mídia, somada aos intelectuais burgueses (acadêmicos ou não), a
“esquerda” reformista e os próprios anarquistas adoram aludir à “ditadura
totalitária de partido único dos bolcheviques”, mas ignoram ou omitem esses
dados históricos fundamentais sobre a opção
política seguida pelos demais partidos soviéticos. Dito de outra forma: a noção
de que o sistema soviético ou a ditadura do proletariado deva ser uma ditadura de partido único é uma invenção
exclusiva do stalinismo.
O
purismo individual tende a se frustrar por não ver a realidade histórica se
encaixar numa solução milagrosa e, frequentemente, termina por se unir
(consciente ou inconscientemente) à propaganda da reação. Por tudo isso é muito
importante procurarmos ser cuidadosos
com o que reproduzimos ou deixamos de reproduzir no campo da ideologia.
***
Outra
questão importante de método: não se pode igualar a vanguarda da massa com a
sua retaguarda, ainda que tenhamos que levar em consideração seus anseios (aqui
muitos anarquistas pulam contra aqueles que querem “dirigir autoritariamente a
massa” – isto é, gritam contra a vanguarda –, tratando-a como um todo
monolítico, ignorando fenômenos sociológicos e psicológicos que apenas
perpetuam o espontaneísmo). Neste caso, se condena o bolchevismo pela ousadia
de ter tomado o poder e, de quebra, se transforma esta grande experiência num
crime.
Imaginar
que uma revolução terá uma linha reta entre a revolta popular “pura” e os
interesses da massa humana (envolta a inúmeros preconceitos, confusões, com
diferentes níveis de consciência e de ilusões) e que, portanto, nenhum conflito
ocorrerá no seio das massas trabalhadoras que demandem algum tipo de repressão,
é o mesmo que renunciar à revolução, porque não existe um “movimento puro” que
não se confronte com a sua parte atrasada que, direta ou indiretamente, acabará
por reproduzir os ecos das classes dominantes. Ou seja, tomar o poder através
de uma revolução vai colocar muito provavelmente o setor avançado da classe
contra o seu setor atrasado. E o que acontecerá se não se reprimir
“autoritariamente” tal “setor atrasado” que se levantar contra o poder
revolucionário? O “setor atrasado”, reproduzindo as ideologias e ações da
classe dominante, reprimirá autoritariamente o seu setor avançado e será a
ponta de lança da restauração da velha ordem.
***
Os
makhnovistas também “denunciaram” a
utilização de técnicos e especialistas militares do czarismo e da burguesia pelo
exército vermelho, como se isso comprovasse uma “traição”. Sobre isso, os
bolcheviques assim se justificaram: para realizar a construção de um novo
exército do nada, bem como de outras
medidas necessárias ao desenvolvimento econômico e social, seria necessário “uma organização ideal. E uma vez que a
nossa organização estatal está muito longe de ser perfeita (o que nada tem de
surpreendente, considerando que ela é jovem, nova, e as dificuldades
extraordinárias do seu desenvolvimento), lançar-se na realização em vasta
escala e imediatamente de qualquer coisa de completo ou mesmo de muito vasto
nesse terreno, seria cair numa quimera extremamente perniciosa em termos de
organização. Mas é possível fazer muito de parcial para nos aproximarmos do
ideal neste aspecto”[xvii].
E
continuam: “o nosso partido luta e lutará
implacavelmente contra a presunção pseudo-radical, mas de fato ignorante, de
que os trabalhadores estão em condições de vencer o capitalismo e o regime
burguês sem aprender dos especialistas burgueses, sem os utilizar e sem passar
por uma longa escola de trabalho ao lado deles. É claro que, paralelamente, o
partido não fará nem a mínima concessão política a essa camada burguesa, o
partido reprime e reprimirá implacavelmente todos os seus propósitos
contrarrevolucionários. (...) A
contradição entre o estado de espírito de homens ocupados na longa escola do
trabalho ao lado dos especialistas militares e o estado de espírito das pessoas
entusiasmadas com a tarefa imediata de ‘reprimir implacavelmente propósitos
contrarrevolucionários’ dos especialistas militares pode levar facilmente, e
leva, a fricções e conflitos”[xviii].
E,
em comparação com a situação da Ucrânia, concluem, confirmando a experiência da
guerra civil espanhola de 1936-1939, que “a
anarquia, os seus vestígios, os seus restos e sobrevivências causaram, tanto ao
nosso exército, como ao ucraniano, infinitamente mais calamidades,
desagregações, derrotas, catástrofes, baixas e perdas de material de guerra do
que todas as traições dos especialistas militares”[xix].
A
resistência a utilização dos oficiais czaristas não era apenas de anarquistas,
mas havia entre os próprios bolcheviques, sendo denunciada enfaticamente pelos
mencheviques, SRs e anarquistas como uma “traição”. Durante a revolução de 1917
os bolcheviques tinham denunciado o militarismo e estimulado o soldado a
revoltar-se contra a disciplina, considerando o oficial como seu inimigo.
Foram, portanto, obrigados a modificar o estado de espírito que eles mesmos
criaram antes de erigir o exército vermelho.
Quando
a força militar russa esfacelou-se após a proclamação da paz e das negociações
de Brest-Litovsk, parte dos bolcheviques julgava ser possível organizar uma
“guerra revolucionária” contra a Alemanha, mesmo sem exército regular. Nesse
sentido, aproximavam-se das posições anarquistas. Conforme atestou a invasão
alemã, que tomou um território praticamente indefeso, não era possível qualquer
ação militar de resistência. Se a Alemanha não tomou a Rússia foi porque
enfrentava outros tantos problemas próprios. Portanto, estavam correndo contra
o tempo e não havia como criar do nada
um exército regular sem recorrer aos antigos oficiais czaristas.
Nesse
sentido, Trotski argumentou que “a
herança cultural de que se apossara a revolução, deveria ser salva, cultivada e
desenvolvida, e, enquanto ela tivesse de defender-se, a habilidade e o
conhecimento militares devia ser considerados como parte dessa herança”.
Tais conclusões, apesar de contraditórias, criava a possibilidade de erigir um
exército, no menor tempo possível, capaz de enfrentar não apenas a Alemanha,
mas a contrarrevolução que se erguia. Isso também foi possível graças a
engenharia político-militar desenvolvida por Trotski, que submeteu todos os
oficiais ao controle de comissários políticos.
O
próprio chefe da contrarrevolução e ex-general czarista, Denikin, em luta
contra o exército vermelho e a guerrilha makhnovista, teve de reconhecer: “o governo soviético pode orgulhar-se da
habilidade com que escravizou a vontade e o cérebro dos generais e oficiais
russos, fazendo deles um instrumento involuntário, mas obediente...”[xx].
Ao final da guerra civil, os oficiais “czaristas” constituíam apenas um terço
dos corpos de comando. Não sem problemas de método e de percurso, dois terços
foram promovidos das fileiras dos próprios combatentes, constituídos, em sua
maioria, de operários e camponeses.
A
visão dos makhnovistas em relação aos
mencheviques e SRs: haveria revolução de outubro sem o bolchevismo?
Arshinov
e os anarquistas makhnovistas fazem
uma distorção grosseira da história da revolução. Tentam apagar o papel
determinante cumprido pelos bolcheviques não apenas para a revolução de outubro
de 1917, como para a posterior hegemonia dos sovietes, dos quais, o próprio makhnovismo se utilizou. Assim o historiador
anarquista se expressa: “a revolução
russa e o sistema autoritário dos comunistas são dois antípodas. (...) Durante a revolução russa, o poder comunista
não é nem foi senão a forma mais sutil, mais flexível e, ao mesmo tempo, a mais
tenaz da reação. (...) Ao alto do
forte movimento dos camponeses e dos operários que deu a revolução de outubro
de 1917, elevou-se o sistema autoritário dos comunistas”[xxi].
Isso
pode parecer uma simples propaganda da mídia burguesa (com alguns requintes de distorção histórica), mas não: trata-se da
propaganda makhnovista sobre o papel
dos bolcheviques na revolução russa. Qualquer indivíduo honesto que estudar a
revolução russa com um pingo de boa
vontade perceberá que até outubro de 1917 os bolcheviques não apenas eram a
extrema minoria dos sovietes, como as suas principais lideranças eram
constantemente perseguidas e presas (muitas delas, como Lenin, foram obrigadas
a sair da Rússia). De fevereiro até a revolução de outubro de 1917, nenhuma
autoridade e nenhuma “verdade” eram aceitas sem exame[xxii].
Como,
então, os bolcheviques poderiam expressar “a
mais tenaz reação” frente “ao forte
movimento dos camponeses e operários” e ainda assim ganhar sua liderança?
Acaso haveria condições para que Lenin e Trotski coagissem uma massa humana a
apoiá-los sem nenhum tipo de poder estatal sólido, senão a força de suas ideias
e palavras de ordem que refletiam os anseios da massa? Admitiriam, então, os
anarquistas makhnovistas que o forte
movimento dos camponeses e operários era, em sua essência, reacionário, por se
submeter acriticamente a uma direção reacionária?
É
claro que não. São as afirmações de Arshinov que se constituem em uma flagrante
propaganda reacionária. Reconstituamos os fatos históricos: os sovietes estão
no centro da revolução russa, chegando ao ponto de ser parte indispensável de
sua vitória. Sem a organização soviética, certamente não teria havido o triunfo
revolucionário. Surgidos na revolução de 1905, os sovietes foram reprimidos
durante o período de reação (1907-1916), ressurgindo em 1917. Entre fevereiro e
outubro de 1917 os sovietes foram totalmente hegemonizados pelos mencheviques,
que lhes imprimiram um caráter conciliador, os deixando totalmente à mercê do
governo provisório. Se estabeleceu, então, um período de duplo poder entre os
sovietes e o governo provisório, que estava empenhado em reestabelecer todas as
instituições burguesas do país e reprimir as movimentações populares. Sovietes
e instituições burguesas não poderiam conviver muito tempo nesta disputa não
declarada pelo poder; alguém haveria de terminar se impondo sobre o outro. A
política menchevique levava ao poder burguês e a subordinação total (isto é, a
destruição) dos sovietes. Foram os bolcheviques que imprimiram um caráter de independência de classe a eles,
preparando as condições para que tomassem o poder em outubro de 1917, não,
casualmente, durante um dos congressos de sovietes de toda a Rússia[xxiii].
Uma
vez conquistando a maioria nos sovietes, os bolcheviques resolveram o duplo
poder entre os sovietes e o governo provisório burguês em favor dos primeiros.
Esta maioria conquistada pelos bolcheviques não se sustentaria um único minuto
se não fosse a expressão dos operários e camponeses em luta durante o processo
revolucionário. Tampouco uma pequena fração do movimento operário russo, como
foram os bolcheviques até setembro de 1917, poderia ter mantido o poder –
praticamente sem exército! – durante uma cruel guerra civil, caso não fosse a
expressão direta dos interesses das massas trabalhadoras.
Afirmar,
portanto, que “os sovietes tinham que continuar livres” e que necessitavam se
“centralizar pela classe” ou “buscar seu guia natural”, como se os bolcheviques
representassem algo alheio à classe trabalhadora e ao mundo do trabalho,
demonstra não apenas a clara transformação do espontaneísmo em um programa
político preferível à revolução, como, através da omissão de críticas, evidencia
o apoio indireto dos makhnovistas à
direção menchevique ou dos SRs, consciente ou inconscientemente, já que eram
estes que estavam no poder com a burguesia. Ao contrário do que quer Arshinov, não
existe uma “classe abstrata” com “interesses abstratos de classe”. De 1917 até
a ascensão ao poder da burocracia stalinista, os bolcheviques foram a
encarnação consciente dos interesses da classe operária russa e internacional.
Respondendo
à mesma polêmica, Trotski escreveu: “Os
que opõem uma abstração de sovietes à ditadura do partido deveriam compreender
que somente graças à direção dos bolcheviques os sovietes saíram do pântano
reformista para o papel de órgãos do Estado proletário”[xxiv].
Assim sendo, se seguíssemos a orientação política dos anarquistas makhnovistas, não haveria revolução
russa e nem poder dos sovietes. Haveria apenas o triunfo da conciliação de
classes através do governo provisório saído da revolução de fevereiro de 1917,
que não titubearia em esmagar os sovietes na primeira ocasião.
Dito
de outra forma: o espontaneísmo da rebelião popular de operários e camponeses
seria canalizado politicamente para o apoio ao governo provisório burguês de
Kerenski que, dentre outras maldades, previa uma possível restauração
monárquica. Nisso, contaria com o apoio político, direto ou indireto, de
mencheviques, SRs e anarquistas.
Parte do exército makhnovista |
Acordos
instáveis e banditismo
Numa
conjuntura extremamente complexa, que culminou em uma guerra civil violenta, os
acordos militares não poderiam ser diferentes disso. De um lado, os bolcheviques
exigiam a subordinação das tropas de Makhno ao exército vermelho (muitas vezes
de forma dura); do outro, os makhnovistas
resistiam a estas exigências (apelando, na maioria das vezes, à uma espécie de
paixão “purista” que ignorava determinadas complexidades). Com comunicações
exíguas e difíceis, e em um ambiente empesteado de boatos, sabotagens e
“telefones sem fio”, é bastante compreensível que qualquer acordo militar entre
ambas frações políticas fossem instáveis e de vida curta. Sem falar no
fuzilamento de soldados de ambos os lados,
o que não tardaria a deteriorar as relações definitivamente.
Ainda
que Arshinov negue, certamente pesaram os ressentimentos nacionais históricos
na relação entre a Ucrânia e o império grão-russo, marcados pela opressão secular
imposta pela Rússia czarista. Haveria tempo hábil de se repensar toda a relação
conturbada de séculos entre estas nações em meio ao caos de uma guerra civil
contra exércitos imperialistas? Apenas aqueles que pensam que existem estradas
de tijolos amarelos nas encruzilhadas históricas e não se preparam para as
tormentas da conjuntura, podem responder que sim. Isso, é óbvio, não deve
invalidar certas tentativas, bem como
uma análise a posteriori que busque
as causas do desentendimento e procure entendê-las, retificá-las e, se
possível, superá-las.
Se
por um lado, a crítica dos anarquistas makhnovistas
contra os bolcheviques em razão da dura repressão desencadeada por eles
possuem, sim, elementos de verdade que precisam ser refletidos por todos
aqueles que reivindicam o legado bolchevista; por outro, há que se pesar, também,
as ações anarquistas naquele contexto e o que precipitavam.
Na
guerra civil russo-ucraniana houveram inúmeros episódios de banditismo, como
não poderia deixar de ser. Se criou um perfil social descrito por Arshinov como
o Naletchik; isto é, aquele indivíduo
que faz dos roubos à mão armada um gênero de profissão, chegando a se tornar um
tipo muito espalhado por toda a Rússia. Os Naletchiks
se aproveitavam da situação bélica e certamente ajudaram a espalhar boatos,
ações terroristas e dificultaram a relação já deteriorada entre bolcheviques e makhnovistas. Os últimos acusam os
primeiros de iniciarem uma luta contra o movimento makhnovista a pretexto de combaterem o banditismo.
Houveram
verdades e mentiras acerca das acusações do bolchevismo nesses episódios. Tudo
isso dará muita dor de cabeça aos historiadores na tentativa de desenredar os
nós de propaganda e contrapropaganda dos dois movimentos. Um fato, trazido pelo
próprio Arshinov, corrobora com a acusação bolchevique: trata-se do arrivista,
de nome Grigoriev, que chegou a liderar uma tropa que seguidamente descambava
para o banditismo. Segundo Arshinov: “Grigoriev
nunca foi um revolucionário. A sua conduta, tanto nas fileiras de Petliura como
nas dos bolcheviques, teve, constantemente, um espírito de aventura”[xxv].
E mais adiante: “A guerra que Grigoriev
tinha declarado aos sovietes inspirou-se não em motivos revolucionários, mas
pessoais, no princípio, e contrarrevolucionários, em seguida. Não possuindo uma
ideologia estável, agregava-se a qualquer movimento em que visse uma vantagem
de momento para ele: ao de Petliura, para começar; para acabar, ao de Denikin”[xxvi].
E
mais adiante afirma que “Grigoriev
tentou, por diversas vezes, durante a sua revolta, pôr-se em relações com
Makhno. Mas só um dos seus telegramas dirigidos a Guliapolé chegou ao seu
destino; esse telegrama era assim concebido: ‘Batko’ (pai) por que hesitas com
os comunistas? Dá-lhe uma sova!”[xxvii].
Ainda que os makhnovistas não tenham
aderido ao movimento de Grigoriev, mesmo que muito tentados, os boatos
reforçavam a desconfiança, dado todo o ambiente de incertezas.
Pra
piorar tais desconfianças, com a desculpa de se aproximar das “massas com
espírito revolucionário influenciadas por Grigoriev” (o que é um paradoxo, para
dizer o mínimo), “Makhno pôs-se em
relações com os seus destacamentos, pretendendo querer unificar todas as forças
dos insurgidos”[xxviii]
(Grigoriev era um insurgido?). “Pela
iniciativa de Makhno, um congresso dos insurgentes governos de Kherson,
Yekaterinoslav e da Turida devia reunir-se em 27 de julho de 1919, na aldeia de
Sentovo, perto de Alexandria. A ordem do dia do congresso comportava a
organização de um programa de ação
para toda a Ucrânia insurrecional [um programa de ação com um aventureiro?], segundo as necessidades do momento [de
quem?]. Perto de 20 mil pessoas –
camponeses insurgidos, os destacamentos de Grigoriev, Makhno – reuniram-se
nesse dia em Sentovo. No número dos oradores inscritos figuravam Grigoriev,
Makhno e outros representantes das duas correntes. Grigoriev foi o primeiro a
tomar a palavra. Convidava os camponeses e insurgidos a empregar todas as suas
forças para expulsar os bolcheviques do país [que estavam em luta contra
Denikin, diga-se de passagem] sem
desprezar nenhuma força aliada. Dizia mesmo estar disposto a aliar-se, neste
sentido, a Denikin: uma vez sacudido o jugo do bolchevismo, o povo veria então
o que se deveria fazer. Esta declaração foi funesta a Grigoriev. Makhno e o seu camarada Tchubenko, tomando a
palavra imediatamente, declararam que a luta contra os bolcheviques não seria
verdadeiramente revolucionária se não fosse travada em nome da Revolução
Social. Uma aliança com os piores inimigos do povo – os generais – só podia ser
uma aventura contrarrevolucionária e criminosa. Grigoriev convidava-os todos a
tomar parte nessa contrrarevolução”[xxix].
Além
deste problemático congresso com Grigoriev, Makhno recebeu também um delegado
enviado pelo general Wrangel[xxx]
– um dos chefes da contrarrevolução burguesa –, que lhe entregou uma mensagem
pedindo: “nos ajudeis com todas as vossas
forças a esmagar as tropas de Trotski. O nosso comandante superior vos ajudará
na medida de suas forças; fornecendo-vos o material e as munições necessárias;
e enviando-vos especialistas”[xxxi].
Apesar de Arshinov afirmar que o emissário de Wrangel foi sumariamente fuzilado
– e que os bolcheviques sabiam “perfeitamente” do incidente (o que é
questionável, dadas as dificuldades de comunicação e os boatos) –, ele também
afirma que “toda a gente estava
convencida de que Makhno trabalhava de acordo com Wrangel”[xxxii].
Vamos
entender, por partes, significados e consequências de tais ações: o que esperar
de um congresso para construir um “programa de ação” com um aventureiro
contrarrevolucionário? Por que não se propôs o mesmo congresso aos bolcheviques;
sobretudo por intermédio dos sovietes ucranianos? Mesmo que Makhno tenha
“rechaçado” a proposta contrarrevolucionária de Grigoriev e de Wrangel, que
espécie de impacto tal congresso e aquele “convencimento de toda a gente”
poderiam ter em meio uma guerra civil, cheia de boatos e sabotagens, numa época
em que as comunicações se faziam por telegrama (quase uma espécie de “telegrama
sem fio”)?
Grande
parte dos breves acordos militares selados entre os bolcheviques e o movimento makhnovista tiveram tais fatores como
pano de fundo, bem como acusações, denúncias e fuzilamentos de ambos os lados. Que
acordos poderiam resultar de tudo isso?
***
Em
sua propaganda anti-bolchevique, o movimento makhnovista não poupa tintas: chama-os de estatistas egoístas, promotores de um terror igual ao das classes
dominantes[xxxiii];
além de possuírem uma “aspiração consciente à sujeição das
massas, pelo seu fundo essencialmente
dominador e explorador”[xxxiv].
Ou ainda: o caráter revolucionário e proletário do bolchevismo é lenda[xxxv].
Os bolcheviques, segundo Arshinov, respondiam de forma não menos dura, dizendo que
Makhno seria um aliado de Wrangel.
Sabemos
da dureza das palavras bolchevistas e, de muitos exageros cometidos, sobretudo
quando se tratam de militantes inexperientes ou temerosos, como é o caso de
Dybenko e Kamenev. Contudo, segundo Isaac Deutscher, reconhecido biógrafo de
Trotski – justamente por realizar um trabalho imparcial, ainda que com visível
apreço pelo biografado –, “a tarefa a ser
realizada [durante a guerra civil de 1918-1921] era centralizar o exército vermelho e estabelecer um só comando.
Trotski dissolveu os guardas vermelhos e os destacamentos camponeses. A
incorporação das unidades de guerrilheiros não foi satisfatória porque
contagiou os destacamentos regulares com o ‘espírito de guerrilha’. Por fim,
Trotski ordenou a dissolução completa das unidades de partisans e ameaçou com
punição rigorosa os comandantes e comissários que incorporassem tais unidades.
Insistiu na organização de todo exército em divisões e regimentos constituídos
com uniformidade. Isso levou a numerosos conflitos com as guerrilhas,
especialmente com o exército guerrilheiro comandado por Makhno. (...) Fizeram-se várias tentativas inúteis de
reconciliação com os guerrilheiros de Makhno. No curso de uma delas, Trotski
declarou publicamente falsa a acusação de que Makhno colaborara com os guardas
brancos, embora denunciasse enfaticamente o comportamento dos seus partisans,
por motivos políticos e militares. Por fim, a cavalaria de Budienni dispersou e
eliminou os destacamentos de Makhno”[xxxvi].
Os
programas militares eram contraditórios: um exigia um exército centralizado
para lutar contra a contrarrevolução imperialista; o outro exigia a guerra de
guerrilhas e destacamentos isolados com comando próprio. Os anarquistas podem
denunciar e rechaçar com razão o fato da cavalaria do exército vermelho
eliminar os destacamentos makhnovistas,
mas não podem deixar de reconhecer que Trotski retificou-se publicamente sobre
as acusações de colaboracionismo lançadas sobre Makhno, principalmente por se
tratar de um cenário extremamente complexo e repleto de boatos de guerra. Nem
Arshinov, nem os anarquistas atuais fazem o favor de reconhecer.
Sobre
o caráter de classe do campesinato
Devemos
dar uma atenção especial à questão da idealização das massas camponesas por
parte do makhnovismo. Em sua
propaganda contra ele, os bolcheviques acusavam Makhno de “idealizar o
campesinato”, tratando-o como uma das forças
mais puras da revolução. O bolchevismo em geral, e Trotski em particular,
compreendia o campesinato como parte constituinte da pequena-burguesia. Eles
não consideravam os pequenos proprietários como uma força revolucionária
independente, mas sim como uma massa amorfa, dispersa, com limitados interesses
locais, incapaz de uma ação nacional coordenada[xxxvii]
– apesar de que em meio à guerra civil Makhno tenha conseguido organizar
parcialmente tais setores em razão da destruição completa de suas propriedades
pela contrarrevolução. Tal episódio ocorrido na Ucrânia seria, muito
provavelmente, passageiro, assim como o foi na Rússia.
Sobre
isso, Arshinov escreveu: “Foi Trotski,
chegando então à Ucrânia, que deu o modelo para esta campanha: o movimento
insurrecional não era, segundo ele, senão um movimento dos ricos proprietários
agrícolas (kulaks), procurando estabelecer o seu poder na região. Todos os
discursos dos makhnovistas e dos anarquistas sobre a comuna libertária dos
trabalhadores não eram senão um truque de guerra, pois os makhnovistas e
anarquistas aspiravam, na realidade, a estabelecer a sua própria autoridade
anarquista, que seria, por fim, a dos ricos kulaks (O jornal A caminho, nº51,
artigo de Trotski: ‘A Makhnovitchina’)”[xxxviii].
Por
um lado, certamente o bolchevismo cometeu exageros na sua luta pela
centralização militar, qualificando a relação de Makhno com os camponeses como
“truque de guerra”, além de diminuir a importância do camponês, pois nem todos
eram kulaks; por outro lado, Arshinov
e Makhno cometem o erro oposto: idealizam o campesinato lhe dando qualidades
muito além das que possuíam naquele contexto. No entanto, a afirmação de que os
makhnovistas queriam estabelecer a
sua própria autoridade anarquista
está correta, como já vimos. Foi exatamente o que se passou. E afirmar que eles
não representavam nenhuma autoridade
não apaga o fato de eles serem uma
autoridade na prática, repleta de “conselhos”, “Estado-maiores”,
comandantes, deliberações e ordens do dia; de “disciplinas rigorosas”, obediência
à hierarquia e declarações oficiais assinadas pelo pai Makhno. Todo o livro de Arshinov está repleto de documentos e
afirmações nesse sentido.
Nele,
o termo “massas populares” aparece, seguidamente, como sinônimo de
“camponeses”, embora sem maiores precisões. Ainda que a todo momento acusem os
bolcheviques do “crime de dirigir as massas”, de “lhe impor suas vontades”, de
usar o “terror das classes dominantes”, contrapondo tudo isso a si mesmo, que
seria o “movimento natural” das massas trabalhadores, “saindo das camadas mais profundas do povo”[xxxix],
Arshinov conclui que “grande parte de
nossos teóricos possui suas origens na intelligentsia”[xl]. Aqui a hipocrisia chega ao auge, pois
o anarquismo sempre criticou o bolchevismo por defender que teóricos “de fora”
da classe operária “lhe dirigissem” (ver O
que fazer?, de Lenin), quando na essência, expõem neste último trecho a
mesma concepção, só que de forma não assumida.
***
Arshinov
expressa, a seguir, a referida idealização das massas camponesas quando declara
que “os comunistas não cessam de pintar
os camponeses como uma força reacionária saturada de instintos mesquinhos e
estreitos de pequenos proprietários. Esse espírito de propriedade, o espírito
do lucro e a avareza não dominarão? Não voltarão os camponeses as costas à
cidade, abandonando-a sem o socorro necessário? Estamos firmemente convencidos
de que não”[xli].
Frente
ao “espírito do lucro” e da “avareza” que se relevou na prática e que levou
muitos camponeses a “voltarem as costas à cidade”, contrariando o “firme convencimento
de Arshinov” e levando o governo bolchevique a apelar para o comunismo de guerra (que criou a
política de requisição forçada de grãos durante a guerra civil, sendo
abandonada posteriormente na NEP), o nosso autor assim “justifica” os instintos
mesquinhos dos camponeses ricos: “Para a
massa dos camponeses, a pólvora e o chumbo estão ligados tão intimamente ao
poder dos comunistas, que olham com desconfiança até a troca de mercadorias,
posta em moda pelo governo nestes últimos tempos, e preferem negociar com os
especuladores privados do que com os representantes da autoridade. A única
solução possível da questão dos víveres durante a revolução só se encontrará na
base dos laços revolucionários que unam a cidade e os campos trabalhadores. Os
camponeses jamais quererão ceder de bom grado os produtos do seu trabalho aos
funcionários do Estado”[xlii].
Pra
justificar os vergonhosos instintos de
classe dominante dos camponeses, que preferiram negociar com especuladores privados ao invés dos “representantes
da autoridade”, Arshinov tenta lhes atribuir uma qualidade anarquista inata que
não existe; ou se ela existe, deveria reconhecê-la como abertamente reacionária,
porque beneficia os especuladores privados sem nenhum contraponto. Pretende,
também, inventar uma solução mágica de que somente os “laços revolucionários
que unam a cidade e os campos trabalhadores” podem resolver impasses reais, quando
a conjuntura histórica era marcada por Denikins e Wrangeis, exércitos brancos e
sabotagens de toda a ordem. Inevitavelmente, tais laços necessitarão de uma
autoridade revolucionária e da criação de condições
materiais (sempre ignoradas pela teoria anarquista) que levarão, muito
provavelmente, dezenas de décadas para conseguirem surgir e se firmar.
Lamentavelmente,
a realidade, cruel e dura como é, frustrará muitas “almas puras e delicadas”
que ainda preferem acreditar que ela segue o caminho da nossa vontade pessoal, “casualmente”,
porque ela fecha com a ideologia que queremos.
Mais
uma vez (e como sempre), Kronstadt!
Outro
acontecimento que é sempre invocado pelos anarquistas (dentre outros) contra o
bolchevismo diz respeito à repressão do governo soviético, ainda sob a direção
de Trotski e Lenin, aos marinheiros de Kronstadt (uma fortaleza militar
localizada no mar do norte), que se sublevaram durante a guerra civil com
algumas exigências de “abertura política”. O que, de fato, se passou e como foi a relação do governo bolchevique com os marinheiros de Kronstadt?
Com
o mesmo espírito que perpassa todo o seu livro, Arshinov aborda o tema: “durante a revolução russa, o poder
comunista não é nem foi senão a forma mais sutil, mais flexível, e, ao mesmo
tempo, a mais tenaz reação. Desde os seus primeiros momentos, uma luta se
levantou entre esse poder e a revolução. Neste combate, as massas trabalhadoras
da Rússia já perderam as primeiras conquistas da sua revolução: a liberdade de
organização, de palavra, de imprensa, a abolição da pena de morte etc. Essa
luta passou, de uma maneira ou de outra, por toda a vasta extensão da Rússia,
penetrando em cada aldeia e cada oficina: o seu apogeu foi atingido pela
insurreição revolucionária da Ucrânia; estendeu-se em seguida de novo a vários
governos da Rússia Central e fez-se ouvir no levante dos marinheiros de
Kronstadt”[xliii].
De
forma nada humilde, Arshinov apresenta o movimento insurrecional ucraniano como
o apogeu da revolução russa, além de
não trazer nenhuma informação sobre o que se passou no levante de Krostadt –
deixando subentendido, evidentemente, mais um “crime autoritário” do
bolchevismo. Geralmente faltam dados a respeito deste episódio, que se desenrolou
em 1921, num momento crítico da guerra civil. Será que, de fato, os
bolcheviques utilizaram da demagogia e do proselitismo com os marinheiros de
Kronstadt antes de tomar o poder em outubro de 1917 para, em seguida,
reprimi-los brutalmente? Qual era o contexto e o que aconteceu?
Como
é sabido, no auge da guerra civil as liberdades democráticas básicas foram
restringidas, como a eleição livre para os sovietes e as frações dentro do
partido bolchevique. Em um ambiente marcado pela guerra, fome, sabotagem,
conspiração e boataria, esta foi a decisão
de ferro tomada pelo comitê central bolchevique numa experiência sem
precedentes. Cada pessoa que, apesar de estar fora da pressão histórica em que
foram tomadas e no conforto do lar, se coloque no lugar e pense como seria o
modo “correto” de agir em uma situação como essa. Tais medidas, como não
poderiam deixar de ser, tiveram efeitos negativos em vários setores da
sociedade; em especial, entre os marinheiros de Kronstadt, que desde 1917
tiveram um caráter rebelde e de questionamento. Quem tornou, efetivamente,
estas medidas de restrição das liberdades civis e de militarização do trabalho
como o alicerce permanente da sociedade da União Soviética foi o stalinismo.
Para Lenin (que polemizou contra Trotski sobre este tema), seriam passageiras.
Ainda
durante 1917, ocorre uma sublevação em Kronstadt que não se curva a nenhuma
autoridade. Os marinheiros resistiam a qualquer tentativa de lhes impor
disciplina. Em fins de maio daquele ano, os ministros mencheviques do governo
provisório acusaram os marinheiros perante o soviete de Petrogrado. Trotski
saiu em defesa deles, não procurando lhes
desculpar os excessos, mas alegando que seriam evitados se o governo não
tivesse nomeado para altos cargos homens odiados da antiga aristocracia russa.
Segundo Trotski, tais “ministros” tinham se negado a lutar contra o perigo dos
Cem Negros (grupo contrarrevolucionário que realizava pogroms de judeus e representava o que havia de mais atrasado na sociedade
russa), preferindo declarar guerra aos marinheiros e soldados de Kronstadt[xliv].
Ao
longo do ano de 1917, a fortaleza de Kronstadt foi decisiva para a tomada do
poder em outubro, chegando Trotski a alcunha-la de “a glória e o orgulho da revolução”[xlv].
Quando ocorreram as referidas restrições das liberdades civis em 1921, Trotski,
que chefiava o exército vermelho, propõe medidas ainda mais drásticas, como a
militarização do trabalho e a intensificação de um monolitismo estatal, o que,
evidentemente, gerou descontentamento nos marinheiros e soldados da fortaleza.
O levante era chefiado por anarquistas, que intensificaram o espírito de
insubordinação militar em meio à guerra civil.
Issac
Deutscher escreve que “as tripulações dos
navios de guerra foram tomadas de uma febre política que lembrava a excitação
de 1917. Nas reuniões aprovaram resoluções exigindo a liberdade para os
trabalhadores, uma política nova para os camponeses e eleições livres para os
sovietes. (...) Dentro em pouco o
grito ‘abaixo a tirania bolchevique’ ressoava por Kronstadt. Os comissários bolcheviques
no local foram rebaixados e detidos. Um comitê anarquista assumiu o comando e
em meio ao entusiasmo de marinheiros, a bandeira da revolta foi hasteada. (...)
Não foi formulado nenhum programa
definido. (...) Os bolcheviques
denunciaram os homens de Kronstadt como amotinados contrarrevolucionários
chefiados por um general branco. A denúncia parece ter sido infundada. Tendo,
por tanto tempo, combatido motim após motim, todos patrocinados ou estimulados
pelos guardas brancos, os bolcheviques não podiam acreditar que eles não
tivessem também influído naquela revolta. Algum tempo antes, a imprensa branca
exilada fizera alusões sombrias ao descontentamento que estava fermentando em
Kronstadt e isso aumentou as suspeitas. O politburo, a princípio inclinado a
iniciar negociações, finalmente resolveu sufocar o levante. Não poderia tolerar
o desafio da armada e temia que a revolta, embora não tivesse possibilidades de
transformar-se numa revolução, agravasse o caos dominante. Mesmo depois da
derrota dos guardas brancos, numerosos grupos rebeldes e amotinados percorriam
o país, desde o litoral até o mar Cáspio, saqueando e pilhando cidades e
assassinando representantes do governo”[xlvi].
Talvez
a justificativa de que a repressão foi uma forma de conter o descontrole e o
caos total em meio a uma guerra civil não convença quem não pode ser
convencido, mas o fato é que, seguindo os critérios de Trotski apresentados
ainda em 1917, para poder condenar e reprimir a insubordinação dos marinheiros
de Kronstadt, os bolcheviques combateram, de armas nas mãos, não apenas as
milícias ultra reacionárias dos Cem Negros, mas também os cadetes e os
exércitos brancos.
***
Muito
além da descrição do caos generalizado promovido pela rebelião, ao contrário do
que Deutscher aponta, o levante tinha um programa mais ou menos definido, ainda
que não fosse nítido. Segundo Lenin: “o
traço característico dos acontecimentos de Kronstadt é exatamente a vacilação
do elemento pequeno-burguês. Algo totalmente formado, claro, definido, existia
bem pouco. Nebulosas palavras de ordem de ‘liberdade’, de ‘liberdade de
comércio’, de ‘emancipação’, de ‘sovietes sem bolcheviques’, ou novas eleições
para os sovietes, ou a libertação da ‘ditadura do partido’, etc. Tanto os
mencheviques como os SRs declaram que o movimento de Kronstadt é ‘seu’. (...)
Todos os elementos dos guardas brancos se
mobilizam imediatamente ‘em favor de Kronstadt’ com uma rapidez, podemos dizer,
radiotelegráfica. (...) Em mais de
meia centena de jornais dos guarda brancos, que se editam no exterior em língua
russa, desencadeiam uma furiosa campanha por sua energia ‘em favor de
Kronstadt’. Os grandes bancos, todas as forças do capital financeiro, abrem
contas de ajuda a Kronstadt. O inteligente líder da burguesia e dos
latifundiários, o democrata-constitucionalista [cadete], explica pacientemente ao imbecil Viktor Tchernov, de modo direto (e
aos mencheviques Dan e Roskov, presos em Petrogrado, por estarem comprometidos
com os acontecimentos de Kronstadt, de um modo indireto), que não há porque se
apressar com a Constituinte, que se pode e se deve manifestar em favor do poder
soviético, mas sem bolcheviques. (...) E
não me refiro propriamente ao fato de Miliukov ser mais inteligente como pessoa
do que eles, mas ao fato de que um líder de um partido da grande burguesia,
devido à sua situação de classe, vê com mais clareza, compreende melhor a
essência de classe do assunto e suas relações políticas, do que os líderes da
pequena-burguesia”[xlvii].
Como
se pode ver, a questão é muito mais complexa do que apenas “autoritarismo
bolchevista”, embora, como sabemos, isso não impedirá que simplificações
grotescas e pueris continuem sendo feitas e apresentadas como “argumentos políticos”.
Lenin
era um agente da Alemanha?
A
conhecida calúnia lançada contra Lenin de que no seu regresso para a Rússia, em
abril de 1917, através de um trem fretado que cruzou a Alemanha, ele teria
fechado um “acordo secreto” com o governo alemão para destruir os esforços de
guerra do seu país, apesar de já refutada, é absurdamente requentada por alguns
anarquistas na atualidade. Segundo o governo provisório burguês, liderado pelos
cadetes, essa volta “comprovaria” a ligação de Lenin como um agente secreto da
Alemanha. Em 1917, tal calúnia encontrou eco nos mencheviques e SRs, que
conheciam Lenin de longa data, mas não tiveram a dignidade de desmenti-la.
Justiça seja feita, este argumento de
desespero não foi invocado por Arshinov em seu livro.
Uma
vez que neste texto estamos tentando fazer uma reconstrução histórica, vale a
pena abordar este tema também. Quem serviu de ponte entre Lenin e o governo
alemão foi o deputado social-democrata suíço Grimm, que era pacifista e também
tinha participado da conferência internacional de Zimmerwald, em 1915. Dois
anos mais tarde, ele ajudou a preparar a viagem de Lenin desde a Suíça até a
Rússia, via Alemanha. Tal “compromisso secreto” consistia em pleitear a
liberdade de soldados alemães feitos prisioneiros pelo governo russo em troca
de uma viagem em segurança sem nenhuma interferência no seu vagão.
Para
quem não quer entender e que, na falta de argumentos, busca forjar
desconfianças na teoria da conspiração (sempre mais atrativa para os cérebros
impressionistas), é inútil responder que Lenin decidiu viajar através da
Alemanha depois que todas as outras vias, como França e Inglaterra, lhe foram
negadas. Também é inútil argumentar que muitos dos seus adversários
mencheviques voltaram junto com Lenin, ou um pouco depois, pelo mesmo
itinerário. Verificou-se posteriormente que cerca de quinhentos emigrados
russos voltaram da Suíça via Alemanha – destes, cerca de quatrocentos eram
antibolcheviques e “social-patriotas”[xlviii].
Todos
eles eram, também, agentes alemães? Além do mais, este suposto “acordo secreto”
que transformaria Lenin em agente alemão não se refletiu nem por um só momento
na sua política enquanto esteve no poder soviético. Ao contrário, incentivou como
lhe era possível naquele contexto uma revolução na Alemanha. Nem mesmo Arshinov
foi capaz de requentar uma acusação tão baixa.
Uma
comparação com as revoluções lideradas por Zumbi dos Palmares e Toussaint
L’Ouverture
Segundo
Engels, no seu artigo Sobre a autoridade,
“a revolução é o ato mais autoritário que
se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade
à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios
autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ter combatido em
vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos
reacionários”[xlix].
Basta lançar um breve olhar sobre a história para constatar a veracidade da
afirmação. Isso não é uma opção, mas uma triste constatação das exigências da luta
contra as classes dominantes. Evidentemente que tal ato, por impor a vontade de
uma classe sobre outra, gera contradições inevitáveis, abrindo precedentes para
a degeneração. A realidade é contraditória (e uma guerra mais ainda). Não fomos
nós que a fizemos assim; ela é o que é. Temos que nos conscientizar do fenômeno
e tentar trabalhar para minimizar seus inevitáveis impactos. Tomar um remédio
forte e amargo gera, inevitavelmente, efeitos colaterais. De nada adianta
praguejarmos e denunciarmos tais efeitos, sem compreendê-los, procurando fazer
demagogia sobre um remédio sem eles, que infelizmente não existe (até que
alguém consiga provar o contrário...).
Cabe
aqui uma comparação com dois outros movimentos de emancipação da classe
oprimida: a revolução liderada pelos quilombolas de Palmares ao longo do século
17, no Brasil; e a revolução haitiana de 1791-1804 que aboliu a escravidão
negra.
No
primeiro caso, Zumbi, quando assumiu o governo, “instaurou uma ditadura: algo assim como uma ditadura de salvação
pública. (...) As circunstâncias a
impunham. A capitulação de Gamga-Zumba ainda estava por produzir suas piores
consequências, levando-se em conta que importantes chefes militares haviam
desertado para Cucaú e que o inimigo contaria doravante com as mais completas
informações sobre a organização interna da república negra. Os que perseveravam
na rebelião tinham pela frente a perspectiva de uma guerra em condições mais
desfavoráveis do que nunca. A pátria dos escravos estava em perigo. (...) Há informações precisas de que Zumbi sem
perda de tempo subordinou toda a vida de Palmares às exigências da guerra
implacável que se anunciava. Deslocou povoações inteiras para lugares mais
remotos. Incorporou às milícias e submeteu a adestramento intensivo todos os
homens válidos. Multiplicou os postos de vigilância e observação na orla das
matas. (...) Finalmente, decretou a
lei marcial: os que tentassem desertar para Cucaú, seriam passados pelas armas”[l].
O
mesmo podemos apontar sobre a revolução haitiana liderada por Toussaint
L’Overture, que foi ainda mais longe que Zumbi. Além de se aliar ao exército republicano francês, sabendo jogar muito bem com as suas contradições, Toussaint, num dado
momento da revolução que gerou uma contradição aguda, acabou fuzilando o
general negro, seu discípulo, “Moïse – um
dos mais fiéis partidários da abolição total da escravidão negra – para
demonstrar fidelidade aos franceses. A ausência deste general seria decisiva
para perder o controle de determinadas regiões do Haiti durante a guerra contra
as tropas de Lecrec, o cunhado de Napoleão”[li].
Ou
seja, Zumbi e Toussaint instauraram ditaduras de salvação pública durante uma
guerra desesperada pela libertação e passaram pelas armas aliados próximos.
Todos esses erros autoritários, por acaso, comprometeram sua causa? Apenas para
aqueles que vivem nas nuvens, possuindo uma “alma pura e delicada”, no mais das
vezes, intolerante às frustrações, e que esperam uma revolução como uma estrada
de tijolos amarelos, podem jogar tudo fora sem compreender a essência do
fenômeno histórico e a conjuntura em que cada movimento se deu.
Vejamos,
agora, o que diz Lenin: “a república
soviética era uma fortaleza sitiada pelo capital mundial. Só podemos conceder o
direito de a utilizar como refúgio contra Koltchak [Denikin e Wrangel] e, em geral, o direito de habitar nela,
àqueles que participam ativamente na guerra e nos ajudam por todos os meios”[lii].
Sabemos da dureza dessas palavras, mas que diferenças há entre este trecho
escrito por Lenin e o que fez Zumbi e Toussaint? O grande erro consiste, na
verdade, em que aquelas pessoas que temem lobos, continuam querendo ir à
floresta[liii].
Ao invés de chorarmos os efeitos colaterais e o gosto terrivelmente amargo do
remédio, deveríamos entender a dialética da contrarrevolução, nos preparando
para ela, aumentando a nossa capacidade de tolerância à frustração.
Pai
Makhno? O papel da psicologia de massas e os erros bolchevistas
Estaria
o problema da degeneração do bolchevismo e da extinta União Soviética na
utilização do Estado como método de transição ao socialismo – tal como
preconiza a teoria anarquista – ou nas condições materiais e históricas da
Rússia, somadas à ausência de
preocupações relacionadas à psicologia de
massas?
O
debate para superar a “crise do socialismo” e compreender o que se passou na
União Soviética está menos no peso da “ditadura do proletariado” realizada pelo
Estado, no regime do terror e na sua posterior degeneração expressa nos regimes
stalinistas (que tem causas bastante compreensíveis), do que na necessidade de desenvolver a psicologia de
massas do socialismo, a educação, a autonomia individual que respeite a
coletividade e a individualidade dentro daquela, que combata a apatia, a
repressão moral-sexual e o espírito de
rebanho. Os problemas do “socialismo” expressos no século 20 – tal como a
sua degeneração em ditadura stalinista – é causa ou consequência do espírito de
rebanho presente em grande parte da massa? Quem pode afirmar seguramente qual
dessas duas opções é a preponderante? É justamente esta problemática que está
colocada para a futura geração de revolucionários que poderá superar a crise, e
não os olhos no passado que condena as vitórias do proletariado como “crimes
autoritários” e exalta o espontaneísmo como “guia natural”. É saber como casar
a direção política das massas com o seu espontaneísmo, sem adestrá-lo ou
oprimi-lo, porém, sem deixá-lo correndo atrás da própria cauda; ou o que é
pior: deixá-lo canalizado e dirigido pela burguesia! São precisamente estas
questões que os anarquistas não respondem, lançando preconceitos anti-partido,
anti-organização e anti-bolchevique.
Que
efeitos se produzem na criação e na educação de incontáveis gerações humanas
uma concepção hierárquica estatal, uma administração mecânica da sociedade, o
medo da responsabilidade social, a intensa necessidade de um líder (ou de um “pai”)
e um profundo anseio por autoridade somado a um pensamento mecanicista no
domínio científico? Não se eliminam séculos de opressão social da estrutura
mental dos seres humanos da noite para o dia. Os trabalhadores e as
trabalhadoras conscientes, suas organizações sindicais e políticas, não podem
mais ignorar os efeitos do espírito de rebanho na estrutura psicológica das
massas. Idealizar a massa, esquecendo-se destas contradições intestinas, é um
erro muito grave que gera diversos empecilhos para a emancipação da classe
trabalhadora.
Da
mesma forma, a evolução socialista de uma sociedade futura não pode ser medida
apenas pelos índices econômicos – por mais importantes que o sejam –, mas
também pelo grau de autonomia e confiança que cria nos indivíduos isolados e na
massa em geral (nos seus mais distintos segmentos). A evolução socialista deve
ser medida, sobretudo, pela capacidade educacional de criar indivíduos conscientes,
independentes, críticos e autônomos. A principal vitória do socialismo – para
além da industrialização, da eliminação do analfabetismo, do desenvolvimento de
condições materiais básicas para o proletariado – estará na sua capacidade de
formar adultos socialmente auto-suficientes do ponto de vista intelectual e emocional
(mas sempre ligados entre si pelos interesses gerais da sociedade), para que
estes possam educar as crianças no mesmo sentido. Sabemos que é a educação
autoritária de crianças pequenas, ensinando-as a serem medrosas e submissas,
que assegura aos políticos oportunistas e demagogos, aos pastores e a um führer, a obediência e a fé de milhões
de trabalhadores[liv].
No
livro A revolução traída, Trotsky
levanta questões pertinentes para a psicologia de massas, as quais não são
colocadas pelos anarquistas. Por exemplo, quando ele tenta explicar parte da
degeneração do partido bolchevique e a ascensão de uma camada de burocratas: “Politicamente, tratava-se de reabsorver a
vanguarda revolucionária em um material humano desprovido de experiência e de
personalidade, mas em contrapartida, acostumado a obedecer os chefes”.
Porém,
Trotski não consegue responder a seguinte questão justamente por lhe faltar a
discussão sobre a psicologia de massas: por que mesmo com toda a experiência
revolucionária persistiram aqueles indivíduos “acostumados a obedecer os chefes”? Por que estes elementos
atrasados e “sem personalidade”
triunfaram sobre a oposição de esquerda no partido bolchevique? O que o debate
psicanalítico, junguiano e reichiano sobre a psicologia de massas
poderia contribuir para superar a postura de estar “acostumado a obedecer chefes”? A repressão militar do stalinismo,
o isolamento da União Soviética e o refluxo da revolução mundial explicam quase
tudo, mas não tudo[lv].
Isaac
Deutscher, na sua biografia de Trotski, tenta buscar respostas para tais
indagações: “todo partido revolucionário
imagina, a princípio, que sua tarefa é simples: tem de eliminar um ‘punhado’ de
tiranos ou exploradores. É certo que habitualmente os tiranos e os exploradores
constituem uma minoria insignificante. Mas a velha classe dominante não viveu
isolada do resto da sociedade. No curso do seu prolongado domínio, cercou-se
por uma rede de instituições, compreendendo grupos e indivíduos de muitas
classes e deu vida a muitas ligações e fidelidades que nem mesmo uma revolução
destrói totalmente”[lvi].
Aqui chegamos, precisamente, aos problemas da psicologia de massas. Como
intervir sobre estas ligações que “nem mesmo uma revolução destrói totalmente”?
Os
anarquistas, por sua vez, veem méritos em práticas reacionárias espontâneas
(que, muitas vezes, é uma mera reprodução dos hábitos), idealizam as massas e
sequer se colocam estas questões. Ao contrário disso, no livro de Arshinov
vemos uma série de citações acríticas sobre a guerrilha e os camponeses quando
tratam Makhno como o pai da
insurreição urcraniana. Inclusive o autor chega a criticar a postura dos
bolcheviques de questionar tal tipo de tratamento. Não são poucas as
assinaturas, despachos ou expressões envolvendo e clamando o pai Makhno. O autoritarismo paterno no
seio da família patriarcal, nos dirá a psicanálise freudiana e a economia
sexual reichiana, é uma das bases do
autoritarismo social, reproduzida por inúmeros regimes políticos. O movimento makhnovista, na pessoa de Arshinov, e os
anarquistas atuais, parecem não ver nenhum problema nisso.
Para
Arshinov, “a makhnovitchina entende a
revolução social no seu verdadeiro
sentido. Compreende que a vitória e a consolidação da revolução, o desenvolvimento
de todas as vantagens que daí advém só são possíveis com uma aliança íntima
entre as classes laboriosas da cidade e do campo. (...) [os camponeses] consideram os operários das cidades como
seus próprios irmãos, como membros da mesma grande família dos trabalhadores”[lvii].
Cabe perguntar aqui quem seria o pai desta família? Arshinov não responde, mas
deixa subentendido. O pai não é “vendido” pela sociedade patriarcal como uma
espécie de “guia natural”? A cultura política escondida por trás da palavrinha
“pai” remete às estruturas
ideológicas de regimes autoritários e paternalistas, tanto no ocidente, quanto
no oriente (basta ver a psicologia de massas do fascismo e do confucionismo). Se
queremos, de fato, combater o autoritarismo, não deveria ser uma obrigação
anarquista condenar o termo “pai Makhno”?
Não
haverá possibilidade de construção da sociedade socialista – e muito menos o
avanço para a sociedade comunista – se não trabalharmos duramente para a
superação do espírito de rebanho das massas[lviii].
É somente nesta superação que
poderemos criar as condições para a
sua auto suficiência (que deve ser, dialeticamente, individual e coletiva) e, a
partir desta, para a autogestão da sociedade sem Estado, com os seus processos
administrativos e econômicos coletivos. Durante um tempo, inevitavelmente
precisaremos do Estado para este processo reeducativo em larga escala.
Superar
o espírito de rebanho requer que as organizações proletárias se debrucem
honestamente sobre os problemas da repressão sexual, da família patriarcal, da
moral neurótica, da educação repressiva, castradora e autoritária (além de se
auto examinarem internamente a todo momento); ao mesmo tempo em que devem
procurar mobilizar a classe trabalhadora contra a exploração e a opressão
econômica da burguesia e do imperialismo. Todos estes processos devem ser
vistos como faces de uma mesma moeda.
Nem o bolchevismo atingiu tal perspectiva, muito menos o makhnovismo. Este foi um dos principais elementos da degeneração da
revolução russa – e não a simples justificativa da utilização do Estado como instrumento político para o período de
transição, mesmo sabendo de todas as contradições contidas neste processo.
***
Quando
lemos as declarações dos bolcheviques redigidas, em sua maioria, por Lenin, contra
a invasão dos exércitos brancos liderados por Denikin, Wrangel e Koltchak, não
podemos deixar de nos espantar com a dureza das palavras e das concepções[lix].
Tais palavras – desesperadas e apaixonadas, escritas no calor de uma luta de
morte para tentar convencer milhões de pessoas – reafirmavam a mais estrita
necessidade de coesão e firmeza militar. Elas eram seguidas pelas ações mais
enérgicas (bem características de Lenin e do bolchevismo), que não podiam
deixar de ter inúmeras consequências e efeitos colaterais (muitos
imprevisíveis); embora, infelizmente, ainda não tenhamos descoberto outro
remédio menos amargo para lidar com os gananciosos e incorrigíveis membros das
classes dominantes.
Erguido
em um tempo relativamente curto, sendo “temperado com o aço”, o bolchevismo
desenvolveu uma técnica e uma engenharia política que, ao mesmo tempo que
demonstrou pela 1ª vez à classe operária mundial como conquistar o poder (e
como mantê-lo), também pode causar catástrofes e desastres se cair em mãos de
pessoas com mentalidade estreita e psicopática (pior se forem os dois casos
juntos, como desgraçadamente aconteceu na Rússia com Stálin).
Aqui
vale lembrar as tristes, mas rispidamente sóbrias, palavras do artigo de
Trotski intitulado Bolchevismo e
stalinismo: “quando os bolcheviques
faziam concessões às tendências pequeno-burguesas dos camponeses, quando
estabeleciam regras restritas para o ingresso no partido, quando depuravam este
partido de elementos que lhe eram estranhos, quando proibiam outros partidos, quando
introduziram a NEP, quando cediam as empresas em forma de concessões, ou quando
firmavam acordos diplomáticos com os governos imperialistas, extraíam desse
feito fundamental uma conclusão que, desde o começo, lhes era teoricamente
clara: a conquista do poder, por mais importante que seja, não converte o
partido em dono todo-poderoso do processo histórico. Certamente que, tendo-se
apoderado do aparelho do Estado, o partido tem a possibilidade de influenciar
no desenvolvimento da sociedade com uma força sem precedentes, mas, em troca, é
submetido a uma ação múltipla por parte de todos os outros elementos desta
sociedade. Ele pode ser alijado do poder por golpes diretos das forças hostis
ou, com o ritmo mais lento da evolução, degenerar interiormente, mesmo
mantendo-se no poder. É precisamente esta dialética do processo histórico que
os pensadores sectários não compreendem, tratando de encontrar um argumento
definitivo contra o bolchevismo na putrefação da burocracia stalinista. No
fundo, estes senhores dizem: ‘um partido revolucionário é ruim quando não traz
em si garantias contra a sua própria degeneração’. Enfocado por um critério
semelhante, o bolchevismo está evidentemente condenado: não possui nenhum
talismã. Mas esse mesmo critério é falso. O pensamento científico exige uma
análise concreta: como e por que o partido se decompôs? (...) A conclusão que chegamos é a seguinte:
evidentemente o stalinismo ‘surgiu’ do bolchevismo; mas não surgiu de um modo
lógico e sim dialético; não como sua afirmação revolucionária, mas como a sua
negação termidoriana, o que não é a mesma coisa”[lx].
***
Arshinov,
no início do seu livro, afirma que o “tratado
de Brest-Litovsk, concluído pelos bolcheviques, escancarou as portas da Ucrânia
aos austro-alemães”[lxi].
Com esta forma leviana de colocar a questão, ele quis demonstrar que o
bolchevismo estava pouco se lixando para a Ucrânia, o que está longe de ser
verdadeiro. Quem conhece a complexidade da correlação de forças envolvida nas
negociações de paz de Brest-Litovsk, sabe que isso não passa de uma agitação
propagandística anarquista, apagando o fato de que o poder de fogo estava do
lado alemão e que os delegados soviéticos, liderados por Trotski, fizeram o
possível e o impossível para tentar evitar a entrega de territórios, bem como
para sublevar a classe trabalhadora europeia. No caso de alguma dúvida, é
aconselhável ler a obra de Isaac Deutscher, O
profeta armado, que descreve longamente o drama destas negociações.
Nelas,
a burguesia ucraniana participou, bem como outros grupos aventureiros
organizados na Rada (uma espécie de
parlamento burguês ucraniano), que tentaram tirar o máximo de lucro das
desavenças entre as “potências maiores”, no caso, Rússia e Alemanha. Mesmo acompanhado
pelo pior tipo de arrivismo, Trotski e os delegados soviéticos toleraram a
participação da Ucrânia nestas negociações que, num dado momento,
traiçoeiramente tentou fechar uma paz em separado com o Kaiser alemão.
Apesar
de tudo isso, houveram interferências problemáticas do governo soviético russo
na Ucrânia, reconhecidas por uma mensagem privada de Trotski a Lenin. Nela,
Trotski declara expressamente que “a
administração soviética na Ucrânia baseara-se, desde o início, em pessoas
enviadas da Rússia e não em elementos locais. Pediu, então, um rompimento com
esse método de governo”[lxii].
Tal método, contudo, não foi rompido a tempo, sendo mantido e aprofundado pelo
stalinismo na sequência dos acontecimentos.
***
Tal
artigo que aqui se encerra não pretende responder se os bolcheviques estavam
corretos em reprimir a guerrilha makhnovista.
Aqui não se tratou de encontrar respostas morais aos problemas concretos, mas
fazer uma difícil reconstrução histórica levando-se em consideração as
problemáticas da revolução russa, caras tanto ao bolchevismo quanto ao makhnovismo.
Esta
experiência amarga deve servir para fazer a esquerda refletir sobre os seus
desafios e a relação que estabelece entre si. Certamente o bolchevismo cometeu
erros e excessos resultantes do desespero em manter o governo funcionando. Conservar
as estruturas sociais em meio à guerra civil e ao caos é tarefa hercúlea e,
como nos falou Trotski, quando o partido cedia
e decretava, estava se moldando e se
deformando. Em muitas oportunidades, o bolchevismo se expressou através de
simplificações que são muito perigosas, sem mencionar alguns requintes de
arrogância e empáfia, como, por exemplo, Lenin mencionando Makhno em um
discurso na conferência dos comitês de instrução política, o colocando no mesmo
balaio de gato que Kerenski, Iudénitch e Koltchak[lxiii].
Um acordo entre o governo soviético liderado pelos bolcheviques com a guerrilha
ucraniana de Makhno através dos sovietes
de ambos países seria totalmente inviável?
Para
nós, que estamos olhando de fora daquele doloroso processo histórico, parece
que era possível. Contudo, certamente um acordo não dependeria apenas dos
bolcheviques, ainda que estes tivessem a maior parcela de responsabilidade. Por
outro lado, pudemos demonstrar como o movimento makhnovista e o anarquismo, a despeito de defenderem a ausência de
autoridade, na verdade instituem a autoridade da sua “não-autoridade”. Repetem,
assim, os mesmos erros de Nietzsche que, ao propor uma suposta ausência de
moral, cria a moral de “não ter moral”[lxiv].
Tais
sofismas, que tendem a glorificar as supostas “almas puras e delicadas” – como
Arshinov descreve um dos militantes makhnovistas[lxv]
–, intolerantes à frustração, não estão aptos a olhar a amarga realidade de
frente. Nesse sentido, criam diversos empecilhos políticos em nome de uma
quimera, muitas vezes, totalmente descolada da realidade, tratando inimigos
como amigos; e amigos como inimigos. Para reciclar as relações entre as
diversas organizações militantes da esquerda se faz necessário refletir
profundamente sobre os fatos expostos nesta tentativa de reconstrução
histórica. Dentro desta reciclagem, vai ser muito importante que aqueles que
reivindicam o legado bolchevique se empenhem numa revisão autocrítica de
determinadas posturas assumidas pelo bolchevismo, assim como os anarquistas
devem refinar melhor os seus argumentos, superando a dicotomia do bem versus o mal.
REFERÊNCIAS:
[i]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 148).
[ii]
Idem.
[iii]
Idem (página 177).
[v]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 171).
[vi]
Idem (página171 e 172).
[vii]
Idem (página 147 – grifos meus).
[viii]
Idem (páginas 248 e 249 – grifos meus).
[ix]
Idem (página 183).
[x] CLAUDÍN,
Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo,
2013 (páginas 262 e 263, nota de rodapé).
[xii]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 82).
[xiii]
Idem (página 147).
[xiv]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/quem-teme-frustracao-nao-pode-fazer-uma.html
[xv]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 124).
[xvi]
LENIN, Vladmir I. Obras Escolhidas em três tomos (tomo 3). Edições progresso,
Moscou; edições Avante!, Lisboa, 1986 (página 169).
[xvii]
Idem (página 174).
[xviii]
Idem (página 170).
[xix]
Idem.
[xx]
Estas e outras informações dos 3 últimos parágrafos são de DEUTSCHER, Isaac.
Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2005 (páginas 492, 495 e 497).
[xxi] ARSHINOV,
Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 286).
[xxii]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 309).
[xxiii]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/quem-teme-frustracao-nao-pode-fazer-uma.html
[xxiv]
Idem.
[xxv]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 120).
[xxvi]
Idem (página 149).
[xxvii]
Idem (página 125).
[xxviii]
Idem (página 150).
[xxix]
Idem (páginas 150 e 151 – grifos meus).
[xxx]
Idem (página 194).
[xxxi]
Idem (páginas 194 e 195).
[xxxii]
Idem (página 195).
[xxxiii]
Idem (página 185).
[xxxiv]
Idem (página 82).
[xxxv]
Idem (página 290).
[xxxvi]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 497).
[xxxvii]
Idem (página 200).
[xxxviii]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 130).
[xxxix]
Idem (página 270).
[xl]
Idem (página 271).
[xli]
Idem (página 303).
[xlii]
Idem.
[xliii]
Idem (página 287).
[xliv]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (páginas 321 e 322).
[xlv]
Idem (página 333).
[xlvi]
Idem (páginas 608 e 609).
[xlvii]
A Nova Política Econômica (NEP), capitalismo de Estado – transição –
socialismo. De vários autores, dentre eles Lenin, Trotsky, Valentino Gerratana.
Organizado e traduzido por BERTELLI, Antonio Roberto. Global Editora, São
Paulo, 1987 (páginas 173 e 174).
[xlviii]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 325).
[l]
FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Editora graal, biblioteca de
história, Rio de Janeiro, 1984 (página 124).
[lii]
LENIN, Vladmir I. Obras Escolhidas em três tomos (tomo 3). Edições progresso,
Moscou; edições Avante!, Lisboa, 1986 (página 173).
[liii]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/quem-teme-frustracao-nao-pode-fazer-uma.html
[lv]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/09/reich-trotsky-e-os-delirios-da-esquerda.html
[lvi]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 407).
[lvii]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 289 – grifos meus).
[lviii]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/01/pre-requisitos-para-democracia.html
(um estudo sobre a influência do espírito de rebanho na “democracia”).
[lix]
Ver: “Todos à luta contra Denikin! – carta do CC do PCR (bolchevique) às
organizações do partido” in LENIN,
Vladmir I. Obras Escolhidas em três tomos (tomo 3). Edições progresso, Moscou;
edições Avante!, Lisboa, 1986 (páginas 161 até 175).
[lx]
TROTSKY, Leon. “Bolchevismo e Stalinismo”
in A questão do partido – Marx, Engels, Lenin e Trotsky. Kairós editora,
São Paulo, 1978.
[lxi]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 49).
[lxii]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 453 – nota de rodapé).
[lxiii]
LENIN, Vladmir I. Obras Escolhidas em três tomos (tomo 3). Edições progresso,
Moscou; edições Avante!, Lisboa, 1986 (página 402).
[lxv]
ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca
Entremares, Brasil, 2018 (página 263).