O agronegócio não é pop: ele promove a destruição do bioma, a violência no campo, na política, na sociedade e, ainda por cima, não paga impostos.
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1.
Muito se fala entre a militância do CPERS que o
sindicato está afastado da base e que a direção central não a reflete. Porém, a
direção central, composta por PT, PCdoB, PDT, PP, CUT e CTB, reflete quase que
fidedignamente o pensamento e a conduta da maior
parte da categoria. Não é casual, portanto, que tenha se eleito pela
terceira vez consecutiva – ainda que possamos questionar muitos aspectos das
eleições sindicais do CPERS.
2.
Como
seria, então, esse pensamento e essa conduta da base que se reflete na direção
central?
Em grande parte, o magistério público tende a um
pensamento reformista e conformista, que reflete, de certo modo, suas condições
e que, por isso mesmo, aposta toda a artilharia em uma “mudança” gradual, via
eleições, pressão institucional nos deputados e vereadores, além da espera
passiva pela justiça burguesa, com uma incapacidade de aprender com as
experiências que beira, muitas vezes, a negação. Poderíamos estender essa
tendência ao funcionalismo público em geral, não casualmente, dirigido e
orientado pelo petismo e o sindicalismo cutista, embora esta política sempre encontre
boa receptividade na base.
Isso não quer dizer que o funcionalismo público não
lute. Ele luta, embora subordine de bom
grado a luta à estratégia reformista, com todas as ilusões eleitorais
decorrentes daí. Basta ver como o discurso de “votar certo nas próximas eleições”
se repete seguidamente na base e quando vem das direções sindicais também é
recebido com um abraço caloroso cheio de ilusões.
3.
A
direção central, portanto, sabe como abordar as ilusões mais sentidas pela base
com uma linguagem que lhe é acessível e cara – embora, obviamente, sua política
não solucione praticamente nada. Ela instiga o espírito de rebanho, a espera passiva, o paternalismo e a lei do
menor esforço.
Em linhas gerais, a maior parte da base do CPERS
foge das responsabilidades que lhe cabem e tende
a apoiar qualquer discurso que alimente e dialogue com estas esperanças.
Por outro lado, isso não quer dizer que ele não possa ser derrotado e
modificado. Para isso, o primeiro passo é tomar consciência da gravidade do
problema.
Contudo, a direção central, sem nenhum tipo de
escrúpulo, sabe utilizar-se muito bem deste discurso paternalista –
reproduzido, em muitos aspectos, pelas “oposições”. Estas, por sua vez, mesmo
reproduzindo o essencial deste paternalismo, tentam se diferenciar a partir de
uma retórica “de luta”, “mobilização e ações radicalizadas” que, na realidade,
estão descoladas da realidade concreta. Elas não percebem (ou não querem
perceber) que a sua política não tem a mesma aceitação que o discurso petista,
servindo, no geral, para jogar a maior parte da base nos braços da própria direção
central. Não tiram nenhuma conclusão da realidade a sua volta e não reavaliam
nunca seus métodos e práticas.
4.
Combater
o pensamento petista requer uma discussão de fôlego que as “oposições” não têm
disposição, dado que é impopular e faz perder influência política num
sindicalismo hegemonizado pelo PT e por ilusões eleitorais na sua base.
Procuram atalhos que não existem e não questionam o que é o mais importante: a
prática desta hegemonia sindical! Tensionam com discursos radicalizados,
propondo sempre pautas supostamente
mais avançadas – como greve em quase todas as oportunidades, tipo uma solução
milagrosa; ou “ocupações” sem correlação de forças –, enquanto conciliam com
todo o restante da estrutura e da cultura sindical vigentes, a qual respeitam
religiosamente e não percebem nela nenhum problema, chegando, até mesmo, a
reivindicá-la. Todo o problema seria apenas “a linha da atual direção central”.
Dentro
dessa cultura sindical destaca-se o discurso dissociado da prática, a
não-escuta, o correntismo (isto é, a preponderância das correntes sobre o
estatuto)[1], a
reincidência nos crimes de não cumprir quando não se quer o que é deliberado nas
instâncias de base, nem discutir o que vem dos núcleos no Conselho Geral, que é
um organismo totalmente vertical e controlado pela direção central. Por que
isso ocorre? Por causa, precisamente, da hegemonia do sindicalismo petista
sobre o CPERS.
Apesar
dos discursos aparentemente radicais e diferentes, por respeitarem
religiosamente a atual estrutura sindical baseada no correntismo, situação e
oposição terminam por se equivalerem no essencial. A base da categoria, por sua
vez, com poucas exceções, enfia a cabeça na terra, tal como faz o avestruz,
dizendo: eles que são “políticos” que se entendam e, preferencialmente, me
apresentem soluções prontas e fáceis! Aí chegam as eleições e ela vota no
discurso oficial, mesmo dizendo que “o CPERS não faz nada”; ou se omite de sua participação ativa, seja nas eleições, seja
no cotidiano do sindicato.
5.
Vigora na base do CPERS a noção de que o sócio é
como um consumidor de classe média. Ou seja, ele se associa ao sindicato e
espera receber apenas benefícios pelo simples ato de se associar. Tal como um
consumidor, que espera que sua mercadoria funcione quando a compra e, se isso
não acontece, liga para o PROCON para reclamar. Reclama demais, sem ação condizente
com sua reclamação e sem compreender as relações sociais que a envolvem,
ignorando suas responsabilidades sociais,
sindicais e, muitas vezes, profissionais. Isto é, sem reconhecer nenhum problema na sua
omissão, acha que o simples ato de se desfiliar do sindicato irá resolver algo.
Com esforço podemos compreender o descontentamento
do ato da desfiliação, mas isso não pode ter outro resultado que o próprio
fortalecimento da burocracia sindical que supostamente quer combater. Se
associar a um sindicato é fazer parte de uma agremiação, se juntar a outras
pessoas e tentar organizar a luta por direitos coletivos (muitas vezes vistos
apenas como individuais) e reconhecimento profissional. Isso quer dizer que
precisa ser ativo e não simplesmente passivo, esperando que as direções,
correntes ou outros atores decidam “por nós”. Esta cultura precisa ser
enfrentada e modificada urgentemente.
É necessário acompanhar o sindicato, ser crítico, ser coerente com a nossa
crítica e com a nossa cobrança. Em síntese, é fundamental se ver como parte do
sindicato e não como um agente de fora dele que apenas se preocupa em ganhar
benefícios sem esforço algum, simplesmente esperando isso do ato de se filiar[2].
6.
Contudo, é preciso afirmar que grande parte desta
noção de “consumidor de classe média” é mantida pela estrutura burocrática dos
sindicatos, que tende a afastar a base das principais decisões, além das
correntes majoritárias, que trabalham no sentido de reforçar essa compreensão,
bajulando-a e poupando-lhe críticas que venham no sentido de despertar esta
consciência da necessidade de sua participação ativa e independente no sindicato. A maior parte das correntes entende
“participação no sindicato” como apoio e suporte passivo às suas posições,
candidatos, chapas, delegados, etc.
Esta atitude é compreensível: caso a base vá além
desta consciência, tende a não aceitar mais a atual estrutura sindical em voga
no CPERS.
7.
Essa incoerência gritante entre o que se fala e o
que se faz, tanto no CPERS, quanto fora dele, não seria aceitável caso a maior
parte da base se levantasse e a acusasse, dando e lutando por outros exemplos.
Mas infelizmente ela tende a tratá-lo como normal.
Por um lado, isso reflete os séculos de opressão,
de espírito de rebanho e submissão. Por outro, demonstra certas propensões
humanas para nos identificarmos com aquilo que supostamente criticamos e
combatemos. No caso, há uma certa identificação e uma auto-justificação para
proceder conciliando com estas incoerências ou, pelo menos, a tratando como
normais.
8.
A humanidade viveu por milênios abaixo de opressões
militares e religiosas sustentadas por monarquias e impérios sanguinários. A
obediência é uma marca dos seres humanos até hoje, que se transforma em
imperativos morais e de servidão voluntária e involuntária muito difíceis de se
quebrar. Isso deveria ser combatido nos
sindicatos (e não reforçado!), transformando-os em instrumentos da auto
emancipação da classe trabalhadora, e não de contenção e acomodação a serviço
da ordem.
Quando uma direção sindical fala com o linguajar
oficial da estrutura ou apela para os medos (da punição, do moralmente correto versus o moralmente errado; do bem versus o mal) está ajudando a adocicar a
raiva e o descontentamento, além de moldar a “sua categoria” aos ditames do que
quer a sociedade oficial – e todos os nossos principais problemas bebem, de uma
forma ou outra, nesta fonte.
Há um diálogo impositivo, que ocorre tacitamente,
entre a direção sindical que impõe políticas como um pai autoritário e uma base
que se submete como filho, muitas vezes buscando inconscientemente esta
autoridade que aprendeu como “único caminho correto” desde o berço. Todo
sindicalismo que alimenta ou aproveita-se dessa submissão está servindo, quer
queira, quer não queira, ao fortalecimento das estruturas patriarcais e,
portanto, oficiais; reforçando, assim, o sistema ou, na melhor das hipóteses, o
governo e a mídia que supostamente
querem combater.
Uma alternativa a isso não é a bagunça de posições,
a desfiliação ou a insubordinação geral, mas o incentivo à responsabilidade
social e sindical de cada um, seja no local de trabalho, seja cumprindo suas
atribuições sindicais e, principalmente,
sendo coerente com o seu discurso e com suas próprias reivindicações, que devem
ser acolhidas e replicadas por instâncias sindicais democráticas, abertas, de
escuta e cumprimento estrito do que é proposto e debatido, se convertendo numa
verdadeira via de duas mãos entre sindicato e base. Conclui-se, portanto, que é
necessário mudar a postura da base e a estrutura oficial do CPERS, sendo uma a
causa dos erros da outra.
9.
Há na
base do CPERS e no movimento da classe trabalhadora em geral o problema do
“eterno retorno”.
Mas o que é isso? É aquela tendência de cometer
sempre os mesmos erros, fazer sempre a mesma coisa e ainda assim esperar
resultados diferentes. Os nossos movimentos grevistas são repletos de exemplos
nesse sentido.
Desgraçadamente,
este “eterno retorno” também está presente na “vanguarda” de esquerda, que
poderia quebrar conscientemente estes círculos viciosos. Não há preocupação da
sua parte em condensar e passar adiante as lições do movimento operário
nacional, internacional e do próprio CPERS. Quando há a mínima preocupação com
isso, vemos que não há coerência com suas conclusões mais duras – porque
geralmente é uma tarefa impopular que não rende votos e influência fácil – ou
quando ocorre o milagre de ser coerente com elas, temos o oposto: a base da
categoria as ignora, dado que demonstra não
valorizar esse tipo de conduta, tendendo a consumir discursos que acalmem e
alimentem seus anseios íntimos de filhos.
10.
Uma
mãe ou um pai que protegem demais ou interferem demais na vida de um filho,
geram, inevitavelmente, um “medo da vida” e, de certa forma, uma dependência
extrema. O mundo externo se transforma num monstro assustador, muito maior do
que ele realmente é.
Portanto,
gera distorções e ilusões sobre a própria vida. A mãe e o pai saudáveis devem
educar seus filhos para a vida, para os problemas reais – o que inclui as
dúvidas, as dores e as incertezas.
Não casualmente, a direção central do CPERS e as suas principais correntes de “oposição” bajulam a base da categoria e não a “educam para a vida”, mas para a dependência; nem geram auto reflexão crítica nem soberania com responsabilidade social e individual, porque todo o seu sindicalismo está fundamentado nesta relação de dependência paternal (e material).
11.
Não é
apenas a direção central do CPERS que não escuta a sua base. Como vimos, ela é
uma reprodução mais ou menos exata do que se passa na base da nossa categoria,
que muitas vezes também não escuta estudantes e pais da comunidade escolar, se
colocando acima dela a partir de protocolos formais. Uma grande parcela da
nossa categoria – a de nomeados sem
consciência de classe – também não escuta e não faz questão nenhuma de
ouvir outra parcela – a de contratadas e contratados[3].
Os contratados sem consciência de classe
não agem de forma muito melhor – e, assim, o círculo vicioso e destrutivo segue
seu curso, que beneficia e termina no leito morto da direção central.
Reproduz-se
então, a prática da não-escuta nas mais distintas esferas. Quem deveria dar o
exemplo para tentar quebrar esse elo
nefasto seria a direção central e as suas correntes majoritárias; mas, ao
contrário, reproduzem a lógica dos ouvidos-moucos e da patrola contra o que lhe
questiona. Não há diálogo, mas imposições.
Há,
também, um número expressivo de educadores do chão de escola que não escutam
aqueles lutadores independentes porque o discurso não lhes apresenta “soluções
fáceis e cômodas”, uma vez que foram “educados” na perspectiva do “sócio como
consumidor de classe média”.
12.
Os
núcleos de base podem ser a “salvação”! – empolgam-se alguns.
Poderia ser, se eles não fossem reprodutores da
cultura sindical oficial, presente tanto na direção central quanto nas
correntes de “oposição” que os dirigem, o que inclui a prática da não-escuta
daquilo que não se enquadra na cultura oficial.
Nos núcleos de base (seja nos de Porto Alegre, seja
nos do interior) existe um pequeno círculo de militantes que, no mais das
vezes, discursam para si mesmos, disputando entre correntes que nunca se
colocam questões essenciais da cultura sindical e do próprio funcionamento do
CPERS, em assembleias de 30 a 50 pessoas (na melhor das hipóteses), onde
existem mais de 1000 filiados! Tanto os discursos quanto a política dos
núcleos, no geral, não chegam nas escolas. Primeiro, porque estas têm sido
indiferentes à vida do CPERS; segundo, porque os núcleos reproduzem a cultura
sindical vigente, que está satisfeita em si mesmo, se julgando a mais correta e
a “única possível”.
Assim, o distanciamento entre sindicato e o chão da
escola está selado.
13.
O
CPERS reproduz tal e qual o que faz a Secretaria de Educação e a política
oficial do país: as CREs responsabilizam a SEDUC por determinada política; a
SEDUC responsabiliza os governos ou alguma outra secretaria de Estado, quando
não jogam a culpa diretamente em alguma de suas CREs. Assim, não há
responsáveis e a culpa é do espírito santo! Espera-se que as reivindicações
morram antes de se concretizar porque assim ninguém vai ser capaz de resolver o
que é reivindicado.
No
CPERS as correntes usam do mesmo método: os núcleos de “oposição” jogam a
responsabilidade sobre a direção central; a direção central a joga para os
núcleos de “oposição” e, assim, todos fogem das suas responsabilidades e
autocríticas necessárias sobre a cultura sindical que precisamos assimilar para
superar e mudarmos a situação calamitosa em que nos encontramos.
O
mesmo se passa com a base da categoria, ainda que de forma mais rarefeita. A
base joga para o sindicato a sua inação frente as aberrações que provém do
próprio sindicato; o sindicato joga para a base os reflexos da sua política
nefasta e da sua cultura sindical. Assim, ficamos refém de um problema
aparentemente sem causas. Todo mundo espera uma solução fácil que resolva tudo
sem que se tenha que fazer nada. E todos os erros estão sempre nos outros,
nenhuma pontinha deles estão em nós. O movimento sindical e a “luta” podem
fazer tudo por nós, menos a parte que nos cabe. As direções sindicais, por sua
vez, precisam tomar vergonha na cara e ter a coragem de reconhecer os reflexos
das suas políticas na base.
14.
Não
há dúvida de que a direção central tem mais responsabilidades que os núcleos –
assim como a SEDUC tem a maior responsabilidade do que as CREs (afinal de
contas, os funcionários das CREs simplesmente aplicam o que a SEDUC delibera e,
se procuram lavar as mãos, tornam-se
coniventes e responsáveis, ainda que de forma indireta, pela concretização
de sua política!). Mas nem tudo depende diretamente da direção central. Por
exemplo: uma política para formação sindical, a própria democracia de base nas
suas instâncias, uma outra cultura de escuta, a luta pela democracia nas
instâncias superiores, a delegação de poder e tarefas para pessoas de fora da
direção do núcleo; enfim, existem diversas possibilidades de se proceder de
forma diferente sem necessariamente depender de alguma liberação de verbas ou
de consentimento político por parte da direção central.
No
mais das vezes observa-se apenas esta desculpa entre “núcleos versus direção central” para não se
tentar algo diferente que procure renovar a prática sindical. Percebe-se,
portanto, que os núcleos de “oposição” estão em plena sintonia com a cultura
sindical burocrática e correntista professada pela direção central. Esta é a
causa real de sua inação!
15.
O
CPERS é um sindicato de aposentados. Mais de 50% do quadro de sócios é
constituído por eles. Nenhum setor é tão bajulado pela direção central quanto
os aposentados, que possuem diversos cargos e fóruns dentro do CPERS, muitos
deles à revelia de setores da ativa. Ainda que nem todos aposentados sejam
ligados à direção central e reprodutores da sua política, pois muitos são
independentes, um grande contingente é base de sustentação da cultura sindical
vigente, o que acaba levando água ao moinho da direção central.
A
estrutura eleitoral e de poder do CPERS está baseada nos “aposentados
reservistas”, que são mobilizados e convocados nos períodos eleitorais, nos
congressos e assembleias gerais decisivas para dar maioria segura às correntes
dirigentes. Estes “aposentados reservistas” não participam ativamente das
assembleias de núcleo, gerais ou mesmo das greves; em síntese, não participam
ativamente da vida sindical do CPERS, mas “aparecem” nos momentos decisivos
para dar maioria às políticas da direção central e correntes majoritárias. Esta
deformação da democracia sindical é percebida por poucos e tratada como
absolutamente normal pela direção central e pelas correntes majoritárias.
Isso
não significa ignorar a contribuição dada pelos aposentados para a construção
do CPERS. Trata-se, ao contrário, de renovar a prática sindical a partir da
percepção do papel que sua maioria vem cumprindo até aqui.
16.
Cabe
a pergunta: o que leva estes “aposentados reservistas”, bem como o conjunto da
base da categoria, a agirem desta forma? A questão é de difícil resposta, mas é
mais difícil ainda procurá-la fora dos métodos apontados pela psicologia de
massas (freudiana, reichiana e junguiana) e da filosofia da práxis.
Da mesma forma devemos proceder no que diz respeito ao ódio incontido que
impera em muitas falas de assembleias gerais ou outros fóruns contra
representantes de posições opostas às nossas.
O que o gera e o que ele alimenta?
17.
Há na
psicologia de massas um problema bastante sério acerca da relação entre
imagens. A relação entre as pessoas da massa e, também, entre as
“lideranças”, é baseada em imagens que fazemos de nós e dos outros. Há ainda a
imagem das correntes sindicais e das organizações que dominam a vida do CPERS.
A imagem que fazemos de nós mesmos e dos outros não
é o que realmente somos. Dá para se fazer um paralelo com os perfis das redes
sociais. Lá postamos apenas nossa realidade aparente, e não profunda. As nossas
tristezas, crises e conflitos não são postadas. Estas são a vida como ela é.
18.
A vida sindical é pautada por estas imagens: a
imagem que fazemos de nós mesmos e dos outros, a imagem das correntes, etc. Não
conhecemos os conflitos internos que paralisam e geram desordens nos outros,
nem demonstramos os nossos. Vivemos na superficialidade e no acordo tácito
entre imagens. Grande parte das pessoas que vivem presos nessa lógica, terminam
por consumir imagens, discursos, ideias vazias que nunca são colocadas em
práticas. Tudo fica aparentemente bem se essas imagens seguem intactas; causa
dor e confusão quando elas são questionadas. Tende-se, assim, a lançar nos
outros as nossas próprias sombras.
Cada corrente sindical e organização política lança
a sua política “mais que correta e perfeita” ignorando e escondendo suas
próprias sombras. Grande parte da imagem que as pessoas fazem de si mesmas
consome essa política, seja no discurso, seja nas eleições, seja na prática
cotidiana.
Qual é o resultado inevitável disso?
19.
É
comum ouvir das pessoas que participam do CPERS sobre o problema relacionado ao
egocentrismo das lideranças sindicais. Este problema existe, embora ele não deixe
de ser, no geral, um reflexo
programático e político. Isto é: não existe um ego abstrato, pairando no ar,
mas eles encarnam os interesses de tal ou qual classe social, bem como dos seus
respectivos programas e ideias, que possuem suas contradições. Dependendo do
ego, assumem contornos maiores ou menores.
Por
isso mesmo é necessário prestar atenção à mecânica dos discursos e das práticas.
Muito se fala em “categoria” e na “classe trabalhadora”. As lideranças que
hegemonizam o CPERS sempre buscam se identificar com essas palavrinhas que dão
a ideia de coletividade. Em quase nenhum caso se trata da dissolução do ego na
coletividade, isto é, na categoria e na classe trabalhadora. Ao contrário,
trata-se da identificação do ego com o que é maior, isto é, tal ou qual
liderança se coloca como a plena representação da “categoria” ou da “classe
trabalhadora”, que é multifacetada e contraditória (ainda mais no estado em que
se encontra).
Este
jogo de retórica serve para esconder os interesses egocêntricos (ou de poucos)
como se fossem da coletividade. No discurso até pode haver elementos que
abordem interesses coletivos, mas no geral é essencialmente vantajoso para o
ego que o professa, no sentido direto de hegemonia ou controle, ou no sentido
indireto de fama, de reconhecimento, de vaidade. Por outro lado, grande parte
da base se vê refletida por este egocentrismo porque, de algum jeito, age da
mesma forma, só que em escala menor. É pelo ego que são pescados e manipulados,
já que o ser humano tende a erigir-se a si próprio como regra do universo.
Nesse
sentido, a propaganda eleitoral dentro do CPERS se reveste de uma dificuldade
específica: pouca ou nenhuma repercussão tem o debate geral sobre programa e
teoria feitos coletivamente; se destaca a propaganda individualizada e
personalista, na maioria das vezes baseada no “amiguismo” e feita de forma rasa.
Alianças sindicais e eleitorais são firmadas em cima destas práticas. Isso
decide as eleições sindicais, os congressos e o próprio futuro do CPERS.
20.
Como
diminuir essa atividade essencialmente egocêntrica dentro do CPERS? Como
diminuir o espírito de rebanho que bebe na fonte desse egocentrismo?
Responder essas perguntas é uma tarefa essencial
para a militância do CPERS que quer, de fato, uma mudança com consciência de classe para este
sindicato e para toda a categoria. Sem a resolução destas dúvidas talvez não
haja muito futuro para o CPERS, que tende a devorar-se a si mesmo numa luta
estéril.
Em síntese: estamos sempre nos adaptando ao que
existe, à realidade, com a justificativa de que é difícil mudar algo. Ou seja:
estamos sempre “aceitando” e depois vivendo no estado que “aceitamos”, nos
acostumando a ele, para em seguida viver reclamando dele. Nunca – ou quase
nunca – dizemos não! O que tememos não é o desconhecido, mas a perda do
conhecido. Esse conhecido é a nossa existência aflita, com muito sofrimento,
esperando que depois virá “coisa melhor”, um tanto espontaneamente, sem mexer
em nada de substancial na estrutura social, econômica e sindical, já que esta é
“muito difícil de se modificar”. Aí tendemos a fugir deste fato, adiando o
enfrentamento a tudo que questiona a falsa estabilidade emocional que construímos
para enfrentar este dia-a-dia.
Referências
O
agrupamento revolucionário Transição
Socialista (TS) lançou um manifesto para a vanguarda brasileira intitulado Chamado à conformação de uma nova organização revolucionária[1]. Tal
manifesto tem a boa preocupação de tentar reagrupar e reorganizar os ativistas
revolucionários que se encontram espalhados pelo país, frente ao fato de que a
maior parte da “esquerda” institucional está adaptada às estruturas oficiais da
sociedade burguesa.
O texto inicia com um balanço duro sobre
a adaptação desta “esquerda” ao longo dos governos petistas, criticando em
particular a chamada “esquerda socialista”, que, segundo o manifesto, “não passou pela prova de fogo”[2].
De fato ela não passou, pois se manteve refém das práticas petistas, reformistas,
autoritárias e burocráticas, reproduzindo, no geral, discursos e pensamentos
dogmáticos que não foram capazes de fazer frente à influência petista sobre a
classe trabalhadora. O chamado da TS nos permite uma revisão desta influência, abrindo
margem para uma reflexão sobre qual é a estratégia para a superação do petismo,
sem o quê, como aponta o texto, não haverá possibilidade de criação de uma
organização revolucionária no nosso país.
Contudo,
as explicações presentes nos tópicos A, B e C do ponto 2 do texto são
insuficientes, dado que não avançam além do que já foi acumulado teoricamente
pela vanguarda e tendem, portanto, a olhar apenas uma parte do problema (sem
falar no ponto C, que deveria sim mesclar as tarefas democráticas e de
“libertação nacional” com a transição ao socialismo para não cometer o mesmo
erro do PT e do reformismo em geral, que as dissocia; ou do ultraesquerdismo,
que só lembra do “socialismo”).
Como o chamado diz – e se tem acordo
com isso –, a maior parte da esquerda socialista se alinhou direta ou
indiretamente ao PT e, por isso mesmo, não gerou nada de novo. Isso se deu, em grande parte, porque não houve um
movimento do proletariado brasileiro que gerasse tendências reais que pudessem
dar suporte a outras formas de organização e, em particular, de duplo poder. O
chamado da TS traz várias citações de episódios recentes da história política
de massas do Brasil que foram importantes – excetuando-se as mobilizações pelo
“Fora Dilma” que tinham uma natureza reacionária, com o quê, certamente, haverá
divergências por parte dos camaradas –, mas não assinalaram, por exemplo, que a
classe trabalhadora não apresentou formas organizativas embrionárias que
apontassem para a superação das instituições burguesas – tal como as
mobilizações “espontâneas” em fevereiro de 1917 na Rússia.
***
As análises apresentadas acima nos
forçam a tirar algumas conclusões contraditórias e angustiantes: 1) o elemento
consciente passa a ter um papel ainda mais importante do que teve nos processos
revolucionários do século XX – embora a esquerda entenda isso de forma muito
limitada; 2) as vanguardas conscientes estão cada vez mais isoladas da massa em
geral, ao passo que estas demonstram tendências para se aproximar da direita
mais reacionária.
O próprio texto da TS reconhece que há
uma “impotência no proletariado brasileiro”, já que o ápice de sua construção
social foi o PT. Apesar de todos os elementos negativos desta experiência, ela nos
deixou lições importantes. Devemos reconhecer, forçosamente, que houve uma
espécie de estagnação do proletariado brasileiro nesta fase petista. Nada de
novo tem vingado para além desta experiência político-eleitoral de massas da
classe trabalhadora, expressa pelo petismo. Temos, por isso mesmo, que
perguntar o que estaria por trás desta “impotência”? Como renovar a nossa
agitação e propaganda com a finalidade de superar essa impotência? É difícil
responder tais questionamentos porque a história não se faz por encomenda, mas
é possível arriscar alguns palpites para pensarmos conjuntamente. Nessa busca é
imprescindível renovar nosso arsenal levando em consideração um elemento até
então ignorado pela esquerda: o debate acerca da psicologia de massas.
Por exemplo: a TS afirma que “não restou dúvida a ninguém de que o PT é
um partido burguês como os demais (ou até melhor para a burguesia do que os
demais, pois controla os ‘movimentos sociais’)”[3].
Esta conclusão é genérica e muito avançada para a massa, pois iguala conclusões
de pequenos setores da vanguarda ao pensamento da massa em geral. Compreendo
que apenas alguns setores de vanguarda concluíram que o PT é “um partido burguês até melhor para a burguesia do
que os demais partidos burgueses porque controla os movimentos sociais”. A
massa concluiu apenas que o PT é um
partido como os demais. Chegou a
esta conclusão precária e genérica a partir dos diversos escândalos de
corrupção que o partido se envolveu, bem como pela grande campanha supostamente
contra a corrupção na política desencadeada pela mídia burguesa (tipo Lava-Jato
por exemplo).
A partir dessa conclusão precária e
limitada, a massa evoluiu à direita e não à esquerda, voltando-se para o
bolsonarismo[4].
A suposta “esquerda socialista” evidentemente contribuiu para isso de uma forma ou outra, dado o seu nível
teórico, político, propagandístico e programático, mas existem tendências
confusas e contraditórias nas massas que são perigosamente ignoradas pela
“esquerda”. Na medida em que houvesse uma evolução da massa para a esquerda,
ela se sacodiria e jogaria para longe – ou, pelo menos, colocaria em uma crise
profunda – as pequenas e grandes organizações da classe trabalhadora, apontando
para novas tendências políticas e de organização. Mas não houve: ela foi à
direita! O doutrinarismo desta “esquerda”, completamente descolado da
realidade, também ajuda muitas vezes pavimentando o caminho da direita.
Uma das questões essenciais para uma
futura organização revolucionária é se debruçar sobre esses problemas graves
que envolvem a psicologia de massas da classe trabalhadora e do povo em geral.
Portanto, não se trata apenas de ilusões reformistas e eleitoreiras que são
disseminadas, dentre outros, pelo PT, mas, sobretudo, de entender a psicologia
de massas e o conservadorismo que vive em seu seio.
Podemos perceber através do estudo
deste tipo de psicologia que há uma tendência muito forte na massa humana de
querer ficar sob tutela de algum tipo de líder. Por exemplo, se lhes déssemos a
mais ampla independência, desatássemos as suas mãos, ampliássemos suas
liberdades, enfraquecêssemos sua tutela, ela imediatamente pediria o retorno
dessa ou de outra tutela. Este sentimento é muito forte e decisivo para ser
ignorado. Não estou afirmando que se trate de uma força invencível, mas de que
é necessário o levarmos seriamente em consideração. E esta perspectiva está
definitivamente fora das preocupações das organizações “revolucionárias” no
geral, bastando afirmar: “venham a mim e ao meu programa correto, criancinhas”!
Estas “criancinhas”, contudo, insistem
em voltar-se para um líder “carismático” e populista, seja ele Mussolini,
Hitler, Franco, Bolsonaro ou Lula (o Psol já trabalha para formar os seus). Será
que nunca ocorreu à esquerda “revolucionária” perguntar por que isso se repete
tanto? O que é preciso para renovar as suas práticas, agitações e propagandas a
fim de evitar que isso aconteça? O que é necessário fazer para demonstrar para
as massas o porquê de o reformismo não ser o caminho correto? Isto é, devemos
forçosamente tentar explicar por que
a massa prefere as ilusões reformistas e eleitoreiras disseminadas pelo PT
(dentre outros) ao programa revolucionário? Há uma flagrante idealização da
massa, que se expressa nos discursos: “quando a massa despertar”, “quando
estivermos no socialismo”, “a massa precisa fazer isso; precisa fazer aquilo”;
mas ela não faz, e o porquê disso nunca é respondido, senão que renovam-se às
ilusões nesta idealização da massa, apagando-se totalmente as suas nuances
reais. Ou então se explica insuficientemente: tudo é o resultado da falta de
uma direção revolucionária – ok! Mas por que a massa tende a preferir uma
“direção” reformista à uma direção revolucionária?
***
Outro exemplo singelo, que é repetido
seguidamente pelas pequenas organizações ditas “revolucionárias” de norte a sul
do país e até a nível internacional, é o seguinte: frente a demissão de
diretores de escola por parte de uma prefeitura do interior de MG, como
resultado da recusa do magistério público em retornar às aulas presenciais durante
a pandemia, uma pequena organização revolucionária chamou o sindicato e “a
classe trabalhadora” para trancar a cidade inteira, visando pará-la para fazer
o prefeito voltar atrás. A despeito da importância da denúncia pública da ação
autoritária do prefeito, salta aos olhos que a proposta é inviável.
Quem
vai trancar a cidade? As burocracias sindicais das centrais e dos sindicatos
denunciadas pela própria organização revolucionária? O PT e a CUT, que respeitam
toda a estrutura oficial? A organização revolucionária que é um agrupamento de
uma dezena de militantes? Ou ela apostaria neste chamado messiânico para que a
massa responda espontânea e automaticamente indo trancar a cidade, sem nenhum
tipo de direção e organização prévia?
A dita “esquerda revolucionária” tem
trabalhado com essas hipóteses corriqueiramente, sem nenhum balanço ou
autocrítica; isto é, sem perceber o seu descolamento da realidade (basta olhar
os “fora este ou aquele” que agita seguidamente
[5]).
A última hipótese, em particular, não tem surtido efeito algum e a massa nunca
– ou quase nunca – tem seguido o que é apontado por estes chamados messiânicos
que a idealizam. Existem fases para a construção de uma organização
revolucionária que são sumariamente ignoradas pela “esquerda”, onde qualquer
agrupamento com um punhado de militantes já age como se fosse o partido
revolucionário pronto e acabado. Isto é: além do conhecimento elementar sobre a
psicologia de massas, falta a noção dos limites de até onde um grupo de
propaganda com intervenção pontual em algumas categorias pode ir, bem como das
suas respectivas palavras de ordem, agitação, propaganda, trabalho de base, etc.
A fase das grandes mobilizações
espontâneas ou semi-espontâneas da classe trabalhadora passou. Hoje quem tem
mobilizado pessoas com mais êxito é a direita[6]. A
esquerda revolucionária segue isolada (e se isolando cada vez mais) dado que
desconhece e ignora (muitas vezes voluntariamente) as questões fundamentais da
psicologia de massas, para reproduzir consignas abstratas e descoladas da
realidade, julgando-se a mais fiel depositária do pensamento e da prática
“marxista-leninista”.
As massas tem sido conduzidas com base
em forças emotivas, que sobrepõem-se à argumentação racional da “esquerda”.
Basta ver como agiu historicamente o fascismo italiano e alemão; e como age o neofascismo estadunidense e brasileiro.
São muitas as investigações científicas e filosóficas que demonstram a
capacidade das emoções para burlar a racionalidade. Com frequência as ideias
subjacentes aos impulsos emotivos ficam camufladas, mascaradas, encobertas[7]. A
esquerda, por uma leitura vulgar do marxismo, julga a massa humana sempre
revolucionária em qualquer ocasião: ela que vai “trancar a cidade”; ela que vai
corrigir os erros da vanguarda; ela que é a solução – messiânica – pra qualquer problema. Contudo, temos visto que os
argumentos racionais nada podem frente à pulsão emotiva intensa, explorada pelo
neofascismo e inclusive pelo petismo,
na pessoa de Lula (dentre outros).
Estas são algumas das questões que uma
futura organização revolucionária deve encarar e responder se quiser, de fato,
superar o petismo. Destas respostas, que precisam ser testadas pela experiência
desta “nova militância”, possivelmente surgirá uma nova prática. Hoje,
desgraçadamente, são questões de difícil resposta para o conjunto da esquerda,
o que dirá para pequenas organizações e militantes isolados? Somente no debate,
na divergência honesta, na militância em comum, no aprendizado de uma escuta verdadeira entre a militância
revolucionária (e desta para com a massa em geral), em suma, somente na
construção coletiva e com consciência de
classe, poderemos encontrar tais respostas que, no meu ponto de vista, são
essenciais e absurdamente minimizadas ou ignoradas.
***
Contudo, apesar de ser difícil
encontrar essas respostas, é possível arriscar algumas. Combater o espírito de
rebanho e de submissão presente na massa deve se iniciar dentro das
organizações revolucionárias, no combate ao personalismo, ao egocentrismo, ao
“dirigismo” e ao “adesismo”. Este exemplo deve partir da própria formação e
funcionamento básico de uma futura organização revolucionária.
A prática da construção entre a
esquerda “revolucionária” está pautada pela imposição de projetos e pelo
adesismo. Ou seja: grande parte dessas organizações esperam simplesmente uma
adesão de outros grupos, geralmente por vias impositivas. Não há uma
aproximação baseada em claros princípios, em trocas reais, em escutas.
Reproduzem, assim, muito do que faz a “esquerda” institucional[8].
Como não cair no “dirigismo” e no
simples “adesismo”? Como não cair nas acusações sem fim que apenas desagregam?
Penso que o primeiro passo é começar se
preocupando com todas as questões apontadas aqui. Uma vez que elas forem assimiladas
por uma futura organização revolucionária, talvez possamos ver o fim da
repetição do ciclo que impõe o “eterno retorno ao PT”.
Outras ideias para o desenvolvimento de um “comitê de enlace” foram desenvolvidas no artigo Combater a crise de direção requer paciência e propostas realistas:algumas ideias para avançar na “unidade” da esquerda revolucionária – disponível neste blog. Espero que recebam esta resposta de forma positiva e que ela sirva para suscitar novas e profundas reflexões com a finalidade de superar a crise de direção revolucionária.
Referências
[1]
Ver: http://www.transicao.org/destaque/chamado-a-conformacao-de-uma-nova-organizacao-revolucionaria/
[2]
Idem.
[3]
Idem.
[5]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/10/sobre-palavra-de-ordem-fora-bolsonaro.html
e também: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/04/como-o-economicismo-se-manifesta-hoje.html
Um helicóptero militar estadunidense sobrevoando a embaixada dos EUA em Cabul em 15 de agosto - Photo: AFP / Wakil Kohsar |
O
presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou a retirada das suas tropas do
Afeganistão no dia 14 de abril numa operação que deve se encerrar na simbólica
data de 11 de setembro de 2021. Imediatamente se desencadeou uma escalada “meteórica”
de ascensão ao poder por parte do Talibã, que começou por tomar o controle de
várias cidades do país, culminando na rápida
tomada de Cabul em 16 de agosto.
A retirada das tropas estadunidenses
foi interpretada por alguns setores da “esquerda” como uma “vitória
anti-imperialista”, mas isso é um novo equívoco. Podemos observar o esgotamento
da hegemonia imperialista estadunidense no mundo, no qual se insere a
mudança de sua geopolítica no oriente. Porém, isso não é uma derrota.
A retirada das tropas norte-americanas do
Afeganistão tem mais a ver com um
reposicionamento dos EUA na disputa mundial com a China e Rússia do que com
uma suposta derrota militar. Isto é: trata-se de uma manobra política e
estratégica nas novas condições em que os EUA se encontram. O desenvolvimento autônomo
de uma zona euroasiática deixou os EUA marginalizados, acelerando a perda de
sua posição hegemônica no mercado mundial. A chamada “guerra contra o terror”,
desencadeada após os atentados de 11 de setembro de 2001, foi um pretexto para
uma ofensiva global do imperialismo estadunidense visando reverter a sua
decadência econômica e a perda gradativa de seu posto hegemônico.
A ocupação norte-americana do
Afeganistão, iniciada em 2001, visava vários objetivos: deter o enfraquecimento
da sua hegemonia mundial, criar uma cunha entre a Ásia e a Europa, evitando a
conformação de um bloco euroasiático, servir de apoio para a futura ocupação do
Iraque – cuja finalidade seria a mesma, além de apropriar-se das riquezas
naturais do Oriente Médio, como o petróleo.
Refletindo suas alianças locais firmadas no final do século XX com
Japão e China – reincorporada ao mercado mundial com um certo status privilegiado – os EUA deixavam livre a influência econômica japonesa no sudeste asiático, enquanto se
concentrava nas questões relacionadas à segurança (leia-se: controle militar). Naquele momento, dado a
relação estreita entre a economia norte-americana e chinesa, esta aliança foi um bom negócio
para ambos países, sobretudo porque o Japão, a despeito de alguns movimentos
que apontavam para uma busca de autonomia, estava sob controle indireto
estadunidense desde o final da Segunda Guerra Mundial. A “segurança” da região
visava, portanto, garantir a hegemonia do dólar e a tranquilidade comercial,
além de manter-se como uma cunha entre a Europa e a Ásia.
A correlação de forças, no entanto, foi
se modificando em favor da China, que passou gradativamente a assumir não
apenas a liderança econômica da Ásia, mas no mundo todo. O objetivo central da
retirada das tropas ianques do Afeganistão, portanto, cumpre a finalidade de
gerar o caos e a insegurança do mercado euroasiático em formação, com a visível
finalidade de sabotar a expansão da “Nova Rota da Seda”, cujas principais
estradas e ligações terrestres com destino à Europa passam pelo território
afegão, além de isolar a Rússia, aliada estratégica da China, e abrir flancos
contra o Irã[1].
Talvez tenha sido por isso que o
governo chinês classificou de “irresponsável” a retirada dos Estados Unidos do
Afeganistão. Pequim incluiu desde 2016 o Afeganistão em seu grande projeto de
infraestruturas da “Nova Rota da Seda”[2]. Os EUA, por sua vez, vêm
tentando conter a expansão econômica chinesa utilizando-se de diversos
estratagemas. A saída do Afeganistão é mais um passo nesse
sentido, o que denota a busca da Casa Branca por uma nova política que consiga
enfrentar a atual correlação de forças internacionais, que lhe é visivelmente desfavorável.
Um dos objetivos da burguesia
imperialista estadunidense é semear o terror e o pânico no mercado
internacional e na opinião pública ocidental através da grande mídia. O impacto
negativo desta propaganda também serve a finalidades internas, cujo objetivo é
gerar uma nova situação na política nacional visando angariar apoio para
sustentar a mentalidade de guerra contra o bloco chinês e russo. Redes de televisão
norte-americanas como a CNN, por exemplo, além de veicularem as imagens de
“guerra civil” e “caos” nas ruas e no aeroporto de Cabul – replicadas pelas
redes sociais –, já falam de novas possibilidades de atentados terroristas
contra os EUA por parte de organizações como o próprio Talibã.
No vácuo da desocupação, o “novo”
governo rapidamente afirmou que vai anistiar funcionários afegãos da OTAN e que
não interferirá nas atividades empresariais. Expressando os elementos da sua
tradicional diplomacia internacional, o governo chinês, por outro lado,
declarou ter interesse em relações amistosas com o “novo” governo, afirmando
que irá “respeitar a vontade do povo afegão”. Pequim também anunciou que está
planejando grandes negócios com o Talibã – declaração que foi amplamente
utilizada pela mídia ocidental.
Após a falácia da “guerra contra o
terror”, iniciada em 2001, com a retirada das suas tropas do Afeganistão, a provável
jogada de propaganda ideológica dos EUA se voltará contra o “novo eixo
do mal”, formado por Talibã, Paquistão e a China[3]! Estes serão os enredos
centrais na sua tentativa de apavorar a opinião pública ocidental contra
ascensão chinesa, que provavelmente será vendida como aliada dos terroristas. Acompanhemos
atentamente os próximos capítulos.
Já a classe trabalhadora continua
alijada do poder tanto num cenário, quanto no outro. Como agravante, vemos parte
da “esquerda” comemorando “vitórias” inexistentes sobre o imperialismo, o que
só pode manter a luta da classe trabalhadora – o que inclui a sua propaganda –
na confusão e na estagnação.
Referências