terça-feira, 31 de agosto de 2021

Que papel cumpre o agronegócio na política brasileira?


O agronegócio não é pop: ele promove a destruição do bioma, a violência no campo, na política, na sociedade e, ainda por cima, não paga impostos.

Se inscreva no canal para seguir de olho no agronegócio: https://www.youtube.com/c/DeOlhonosRuralistas

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

A psicologia de massas do CPERS


O melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer
é parar de projetar nossas sombras nos outros
(Carl Jung).

 

1.

Muito se fala entre a militância do CPERS que o sindicato está afastado da base e que a direção central não a reflete. Porém, a direção central, composta por PT, PCdoB, PDT, PP, CUT e CTB, reflete quase que fidedignamente o pensamento e a conduta da maior parte da categoria. Não é casual, portanto, que tenha se eleito pela terceira vez consecutiva – ainda que possamos questionar muitos aspectos das eleições sindicais do CPERS.

 

2.

         Como seria, então, esse pensamento e essa conduta da base que se reflete na direção central?

Em grande parte, o magistério público tende a um pensamento reformista e conformista, que reflete, de certo modo, suas condições e que, por isso mesmo, aposta toda a artilharia em uma “mudança” gradual, via eleições, pressão institucional nos deputados e vereadores, além da espera passiva pela justiça burguesa, com uma incapacidade de aprender com as experiências que beira, muitas vezes, a negação. Poderíamos estender essa tendência ao funcionalismo público em geral, não casualmente, dirigido e orientado pelo petismo e o sindicalismo cutista, embora esta política sempre encontre boa receptividade na base.

Isso não quer dizer que o funcionalismo público não lute. Ele luta, embora subordine de bom grado a luta à estratégia reformista, com todas as ilusões eleitorais decorrentes daí. Basta ver como o discurso de “votar certo nas próximas eleições” se repete seguidamente na base e quando vem das direções sindicais também é recebido com um abraço caloroso cheio de ilusões.

 

3.

         A direção central, portanto, sabe como abordar as ilusões mais sentidas pela base com uma linguagem que lhe é acessível e cara – embora, obviamente, sua política não solucione praticamente nada. Ela instiga o espírito de rebanho, a espera passiva, o paternalismo e a lei do menor esforço.

Em linhas gerais, a maior parte da base do CPERS foge das responsabilidades que lhe cabem e tende a apoiar qualquer discurso que alimente e dialogue com estas esperanças. Por outro lado, isso não quer dizer que ele não possa ser derrotado e modificado. Para isso, o primeiro passo é tomar consciência da gravidade do problema.

Contudo, a direção central, sem nenhum tipo de escrúpulo, sabe utilizar-se muito bem deste discurso paternalista – reproduzido, em muitos aspectos, pelas “oposições”. Estas, por sua vez, mesmo reproduzindo o essencial deste paternalismo, tentam se diferenciar a partir de uma retórica “de luta”, “mobilização e ações radicalizadas” que, na realidade, estão descoladas da realidade concreta. Elas não percebem (ou não querem perceber) que a sua política não tem a mesma aceitação que o discurso petista, servindo, no geral, para jogar a maior parte da base nos braços da própria direção central. Não tiram nenhuma conclusão da realidade a sua volta e não reavaliam nunca seus métodos e práticas.

 

4.

         Combater o pensamento petista requer uma discussão de fôlego que as “oposições” não têm disposição, dado que é impopular e faz perder influência política num sindicalismo hegemonizado pelo PT e por ilusões eleitorais na sua base. Procuram atalhos que não existem e não questionam o que é o mais importante: a prática desta hegemonia sindical! Tensionam com discursos radicalizados, propondo sempre pautas supostamente mais avançadas – como greve em quase todas as oportunidades, tipo uma solução milagrosa; ou “ocupações” sem correlação de forças –, enquanto conciliam com todo o restante da estrutura e da cultura sindical vigentes, a qual respeitam religiosamente e não percebem nela nenhum problema, chegando, até mesmo, a reivindicá-la. Todo o problema seria apenas “a linha da atual direção central”.

         Dentro dessa cultura sindical destaca-se o discurso dissociado da prática, a não-escuta, o correntismo (isto é, a preponderância das correntes sobre o estatuto)[1], a reincidência nos crimes de não cumprir quando não se quer o que é deliberado nas instâncias de base, nem discutir o que vem dos núcleos no Conselho Geral, que é um organismo totalmente vertical e controlado pela direção central. Por que isso ocorre? Por causa, precisamente, da hegemonia do sindicalismo petista sobre o CPERS.

         Apesar dos discursos aparentemente radicais e diferentes, por respeitarem religiosamente a atual estrutura sindical baseada no correntismo, situação e oposição terminam por se equivalerem no essencial. A base da categoria, por sua vez, com poucas exceções, enfia a cabeça na terra, tal como faz o avestruz, dizendo: eles que são “políticos” que se entendam e, preferencialmente, me apresentem soluções prontas e fáceis! Aí chegam as eleições e ela vota no discurso oficial, mesmo dizendo que “o CPERS não faz nada”; ou se omite de sua participação ativa, seja nas eleições, seja no cotidiano do sindicato.

 

5.

Vigora na base do CPERS a noção de que o sócio é como um consumidor de classe média. Ou seja, ele se associa ao sindicato e espera receber apenas benefícios pelo simples ato de se associar. Tal como um consumidor, que espera que sua mercadoria funcione quando a compra e, se isso não acontece, liga para o PROCON para reclamar. Reclama demais, sem ação condizente com sua reclamação e sem compreender as relações sociais que a envolvem, ignorando suas responsabilidades sociais, sindicais e, muitas vezes, profissionais. Isto é, sem reconhecer nenhum problema na sua omissão, acha que o simples ato de se desfiliar do sindicato irá resolver algo.

Com esforço podemos compreender o descontentamento do ato da desfiliação, mas isso não pode ter outro resultado que o próprio fortalecimento da burocracia sindical que supostamente quer combater. Se associar a um sindicato é fazer parte de uma agremiação, se juntar a outras pessoas e tentar organizar a luta por direitos coletivos (muitas vezes vistos apenas como individuais) e reconhecimento profissional. Isso quer dizer que precisa ser ativo e não simplesmente passivo, esperando que as direções, correntes ou outros atores decidam “por nós”. Esta cultura precisa ser enfrentada e modificada urgentemente. É necessário acompanhar o sindicato, ser crítico, ser coerente com a nossa crítica e com a nossa cobrança. Em síntese, é fundamental se ver como parte do sindicato e não como um agente de fora dele que apenas se preocupa em ganhar benefícios sem esforço algum, simplesmente esperando isso do ato de se filiar[2].

 

6.

Contudo, é preciso afirmar que grande parte desta noção de “consumidor de classe média” é mantida pela estrutura burocrática dos sindicatos, que tende a afastar a base das principais decisões, além das correntes majoritárias, que trabalham no sentido de reforçar essa compreensão, bajulando-a e poupando-lhe críticas que venham no sentido de despertar esta consciência da necessidade de sua participação ativa e independente no sindicato. A maior parte das correntes entende “participação no sindicato” como apoio e suporte passivo às suas posições, candidatos, chapas, delegados, etc.

Esta atitude é compreensível: caso a base vá além desta consciência, tende a não aceitar mais a atual estrutura sindical em voga no CPERS.

 

7.

Essa incoerência gritante entre o que se fala e o que se faz, tanto no CPERS, quanto fora dele, não seria aceitável caso a maior parte da base se levantasse e a acusasse, dando e lutando por outros exemplos. Mas infelizmente ela tende a tratá-lo como normal.

Por um lado, isso reflete os séculos de opressão, de espírito de rebanho e submissão. Por outro, demonstra certas propensões humanas para nos identificarmos com aquilo que supostamente criticamos e combatemos. No caso, há uma certa identificação e uma auto-justificação para proceder conciliando com estas incoerências ou, pelo menos, a tratando como normais.

 

8.

A humanidade viveu por milênios abaixo de opressões militares e religiosas sustentadas por monarquias e impérios sanguinários. A obediência é uma marca dos seres humanos até hoje, que se transforma em imperativos morais e de servidão voluntária e involuntária muito difíceis de se quebrar. Isso deveria ser combatido nos sindicatos (e não reforçado!), transformando-os em instrumentos da auto emancipação da classe trabalhadora, e não de contenção e acomodação a serviço da ordem.

Quando uma direção sindical fala com o linguajar oficial da estrutura ou apela para os medos (da punição, do moralmente correto versus o moralmente errado; do bem versus o mal) está ajudando a adocicar a raiva e o descontentamento, além de moldar a “sua categoria” aos ditames do que quer a sociedade oficial – e todos os nossos principais problemas bebem, de uma forma ou outra, nesta fonte.

Há um diálogo impositivo, que ocorre tacitamente, entre a direção sindical que impõe políticas como um pai autoritário e uma base que se submete como filho, muitas vezes buscando inconscientemente esta autoridade que aprendeu como “único caminho correto” desde o berço. Todo sindicalismo que alimenta ou aproveita-se dessa submissão está servindo, quer queira, quer não queira, ao fortalecimento das estruturas patriarcais e, portanto, oficiais; reforçando, assim, o sistema ou, na melhor das hipóteses, o governo e a mídia que supostamente querem combater.

Uma alternativa a isso não é a bagunça de posições, a desfiliação ou a insubordinação geral, mas o incentivo à responsabilidade social e sindical de cada um, seja no local de trabalho, seja cumprindo suas atribuições sindicais e, principalmente, sendo coerente com o seu discurso e com suas próprias reivindicações, que devem ser acolhidas e replicadas por instâncias sindicais democráticas, abertas, de escuta e cumprimento estrito do que é proposto e debatido, se convertendo numa verdadeira via de duas mãos entre sindicato e base. Conclui-se, portanto, que é necessário mudar a postura da base e a estrutura oficial do CPERS, sendo uma a causa dos erros da outra.

 

9.

         Há na base do CPERS e no movimento da classe trabalhadora em geral o problema do “eterno retorno”.

Mas o que é isso? É aquela tendência de cometer sempre os mesmos erros, fazer sempre a mesma coisa e ainda assim esperar resultados diferentes. Os nossos movimentos grevistas são repletos de exemplos nesse sentido.

         Desgraçadamente, este “eterno retorno” também está presente na “vanguarda” de esquerda, que poderia quebrar conscientemente estes círculos viciosos. Não há preocupação da sua parte em condensar e passar adiante as lições do movimento operário nacional, internacional e do próprio CPERS. Quando há a mínima preocupação com isso, vemos que não há coerência com suas conclusões mais duras – porque geralmente é uma tarefa impopular que não rende votos e influência fácil – ou quando ocorre o milagre de ser coerente com elas, temos o oposto: a base da categoria as ignora, dado que demonstra não valorizar esse tipo de conduta, tendendo a consumir discursos que acalmem e alimentem seus anseios íntimos de filhos.

 

10.

         Uma mãe ou um pai que protegem demais ou interferem demais na vida de um filho, geram, inevitavelmente, um “medo da vida” e, de certa forma, uma dependência extrema. O mundo externo se transforma num monstro assustador, muito maior do que ele realmente é.

         Portanto, gera distorções e ilusões sobre a própria vida. A mãe e o pai saudáveis devem educar seus filhos para a vida, para os problemas reais – o que inclui as dúvidas, as dores e as incertezas.

         Não casualmente, a direção central do CPERS e as suas principais correntes de “oposição” bajulam a base da categoria e não a “educam para a vida”, mas para a dependência; nem geram auto reflexão crítica nem soberania com responsabilidade social e individual, porque todo o seu sindicalismo está fundamentado nesta relação de dependência paternal (e material).


11.

         Não é apenas a direção central do CPERS que não escuta a sua base. Como vimos, ela é uma reprodução mais ou menos exata do que se passa na base da nossa categoria, que muitas vezes também não escuta estudantes e pais da comunidade escolar, se colocando acima dela a partir de protocolos formais. Uma grande parcela da nossa categoria – a de nomeados sem consciência de classe – também não escuta e não faz questão nenhuma de ouvir outra parcela – a de contratadas e contratados[3]. Os contratados sem consciência de classe não agem de forma muito melhor – e, assim, o círculo vicioso e destrutivo segue seu curso, que beneficia e termina no leito morto da direção central.

         Reproduz-se então, a prática da não-escuta nas mais distintas esferas. Quem deveria dar o exemplo para tentar quebrar esse elo nefasto seria a direção central e as suas correntes majoritárias; mas, ao contrário, reproduzem a lógica dos ouvidos-moucos e da patrola contra o que lhe questiona. Não há diálogo, mas imposições.

         Há, também, um número expressivo de educadores do chão de escola que não escutam aqueles lutadores independentes porque o discurso não lhes apresenta “soluções fáceis e cômodas”, uma vez que foram “educados” na perspectiva do “sócio como consumidor de classe média”.

 

12.

         Os núcleos de base podem ser a “salvação”! – empolgam-se alguns.

Poderia ser, se eles não fossem reprodutores da cultura sindical oficial, presente tanto na direção central quanto nas correntes de “oposição” que os dirigem, o que inclui a prática da não-escuta daquilo que não se enquadra na cultura oficial.

Nos núcleos de base (seja nos de Porto Alegre, seja nos do interior) existe um pequeno círculo de militantes que, no mais das vezes, discursam para si mesmos, disputando entre correntes que nunca se colocam questões essenciais da cultura sindical e do próprio funcionamento do CPERS, em assembleias de 30 a 50 pessoas (na melhor das hipóteses), onde existem mais de 1000 filiados! Tanto os discursos quanto a política dos núcleos, no geral, não chegam nas escolas. Primeiro, porque estas têm sido indiferentes à vida do CPERS; segundo, porque os núcleos reproduzem a cultura sindical vigente, que está satisfeita em si mesmo, se julgando a mais correta e a “única possível”.

Assim, o distanciamento entre sindicato e o chão da escola está selado.

 

13.

         O CPERS reproduz tal e qual o que faz a Secretaria de Educação e a política oficial do país: as CREs responsabilizam a SEDUC por determinada política; a SEDUC responsabiliza os governos ou alguma outra secretaria de Estado, quando não jogam a culpa diretamente em alguma de suas CREs. Assim, não há responsáveis e a culpa é do espírito santo! Espera-se que as reivindicações morram antes de se concretizar porque assim ninguém vai ser capaz de resolver o que é reivindicado.

         No CPERS as correntes usam do mesmo método: os núcleos de “oposição” jogam a responsabilidade sobre a direção central; a direção central a joga para os núcleos de “oposição” e, assim, todos fogem das suas responsabilidades e autocríticas necessárias sobre a cultura sindical que precisamos assimilar para superar e mudarmos a situação calamitosa em que nos encontramos.

         O mesmo se passa com a base da categoria, ainda que de forma mais rarefeita. A base joga para o sindicato a sua inação frente as aberrações que provém do próprio sindicato; o sindicato joga para a base os reflexos da sua política nefasta e da sua cultura sindical. Assim, ficamos refém de um problema aparentemente sem causas. Todo mundo espera uma solução fácil que resolva tudo sem que se tenha que fazer nada. E todos os erros estão sempre nos outros, nenhuma pontinha deles estão em nós. O movimento sindical e a “luta” podem fazer tudo por nós, menos a parte que nos cabe. As direções sindicais, por sua vez, precisam tomar vergonha na cara e ter a coragem de reconhecer os reflexos das suas políticas na base.

 

14.

         Não há dúvida de que a direção central tem mais responsabilidades que os núcleos – assim como a SEDUC tem a maior responsabilidade do que as CREs (afinal de contas, os funcionários das CREs simplesmente aplicam o que a SEDUC delibera e, se procuram lavar as mãos, tornam-se coniventes e responsáveis, ainda que de forma indireta, pela concretização de sua política!). Mas nem tudo depende diretamente da direção central. Por exemplo: uma política para formação sindical, a própria democracia de base nas suas instâncias, uma outra cultura de escuta, a luta pela democracia nas instâncias superiores, a delegação de poder e tarefas para pessoas de fora da direção do núcleo; enfim, existem diversas possibilidades de se proceder de forma diferente sem necessariamente depender de alguma liberação de verbas ou de consentimento político por parte da direção central.

         No mais das vezes observa-se apenas esta desculpa entre “núcleos versus direção central” para não se tentar algo diferente que procure renovar a prática sindical. Percebe-se, portanto, que os núcleos de “oposição” estão em plena sintonia com a cultura sindical burocrática e correntista professada pela direção central. Esta é a causa real de sua inação!

 

15.

         O CPERS é um sindicato de aposentados. Mais de 50% do quadro de sócios é constituído por eles. Nenhum setor é tão bajulado pela direção central quanto os aposentados, que possuem diversos cargos e fóruns dentro do CPERS, muitos deles à revelia de setores da ativa. Ainda que nem todos aposentados sejam ligados à direção central e reprodutores da sua política, pois muitos são independentes, um grande contingente é base de sustentação da cultura sindical vigente, o que acaba levando água ao moinho da direção central.

         A estrutura eleitoral e de poder do CPERS está baseada nos “aposentados reservistas”, que são mobilizados e convocados nos períodos eleitorais, nos congressos e assembleias gerais decisivas para dar maioria segura às correntes dirigentes. Estes “aposentados reservistas” não participam ativamente das assembleias de núcleo, gerais ou mesmo das greves; em síntese, não participam ativamente da vida sindical do CPERS, mas “aparecem” nos momentos decisivos para dar maioria às políticas da direção central e correntes majoritárias. Esta deformação da democracia sindical é percebida por poucos e tratada como absolutamente normal pela direção central e pelas correntes majoritárias.

         Isso não significa ignorar a contribuição dada pelos aposentados para a construção do CPERS. Trata-se, ao contrário, de renovar a prática sindical a partir da percepção do papel que sua maioria vem cumprindo até aqui.

 

16.

         Cabe a pergunta: o que leva estes “aposentados reservistas”, bem como o conjunto da base da categoria, a agirem desta forma? A questão é de difícil resposta, mas é mais difícil ainda procurá-la fora dos métodos apontados pela psicologia de massas (freudiana, reichiana e junguiana) e da filosofia da práxis. Da mesma forma devemos proceder no que diz respeito ao ódio incontido que impera em muitas falas de assembleias gerais ou outros fóruns contra representantes de posições opostas às nossas.

O que o gera e o que ele alimenta?


17.

         Há na psicologia de massas um problema bastante sério acerca da relação entre imagens. A relação entre as pessoas da massa e, também, entre as “lideranças”, é baseada em imagens que fazemos de nós e dos outros. Há ainda a imagem das correntes sindicais e das organizações que dominam a vida do CPERS.

A imagem que fazemos de nós mesmos e dos outros não é o que realmente somos. Dá para se fazer um paralelo com os perfis das redes sociais. Lá postamos apenas nossa realidade aparente, e não profunda. As nossas tristezas, crises e conflitos não são postadas. Estas são a vida como ela é.

 

18.

A vida sindical é pautada por estas imagens: a imagem que fazemos de nós mesmos e dos outros, a imagem das correntes, etc. Não conhecemos os conflitos internos que paralisam e geram desordens nos outros, nem demonstramos os nossos. Vivemos na superficialidade e no acordo tácito entre imagens. Grande parte das pessoas que vivem presos nessa lógica, terminam por consumir imagens, discursos, ideias vazias que nunca são colocadas em práticas. Tudo fica aparentemente bem se essas imagens seguem intactas; causa dor e confusão quando elas são questionadas. Tende-se, assim, a lançar nos outros as nossas próprias sombras.

Cada corrente sindical e organização política lança a sua política “mais que correta e perfeita” ignorando e escondendo suas próprias sombras. Grande parte da imagem que as pessoas fazem de si mesmas consome essa política, seja no discurso, seja nas eleições, seja na prática cotidiana.

Qual é o resultado inevitável disso?

 

19.

         É comum ouvir das pessoas que participam do CPERS sobre o problema relacionado ao egocentrismo das lideranças sindicais. Este problema existe, embora ele não deixe de ser, no geral, um reflexo programático e político. Isto é: não existe um ego abstrato, pairando no ar, mas eles encarnam os interesses de tal ou qual classe social, bem como dos seus respectivos programas e ideias, que possuem suas contradições. Dependendo do ego, assumem contornos maiores ou menores.

         Por isso mesmo é necessário prestar atenção à mecânica dos discursos e das práticas. Muito se fala em “categoria” e na “classe trabalhadora”. As lideranças que hegemonizam o CPERS sempre buscam se identificar com essas palavrinhas que dão a ideia de coletividade. Em quase nenhum caso se trata da dissolução do ego na coletividade, isto é, na categoria e na classe trabalhadora. Ao contrário, trata-se da identificação do ego com o que é maior, isto é, tal ou qual liderança se coloca como a plena representação da “categoria” ou da “classe trabalhadora”, que é multifacetada e contraditória (ainda mais no estado em que se encontra).

         Este jogo de retórica serve para esconder os interesses egocêntricos (ou de poucos) como se fossem da coletividade. No discurso até pode haver elementos que abordem interesses coletivos, mas no geral é essencialmente vantajoso para o ego que o professa, no sentido direto de hegemonia ou controle, ou no sentido indireto de fama, de reconhecimento, de vaidade. Por outro lado, grande parte da base se vê refletida por este egocentrismo porque, de algum jeito, age da mesma forma, só que em escala menor. É pelo ego que são pescados e manipulados, já que o ser humano tende a erigir-se a si próprio como regra do universo.

         Nesse sentido, a propaganda eleitoral dentro do CPERS se reveste de uma dificuldade específica: pouca ou nenhuma repercussão tem o debate geral sobre programa e teoria feitos coletivamente; se destaca a propaganda individualizada e personalista, na maioria das vezes baseada no “amiguismo” e feita de forma rasa. Alianças sindicais e eleitorais são firmadas em cima destas práticas. Isso decide as eleições sindicais, os congressos e o próprio futuro do CPERS.

        

20.

         Como diminuir essa atividade essencialmente egocêntrica dentro do CPERS? Como diminuir o espírito de rebanho que bebe na fonte desse egocentrismo?

Responder essas perguntas é uma tarefa essencial para a militância do CPERS que quer, de fato, uma mudança com consciência de classe para este sindicato e para toda a categoria. Sem a resolução destas dúvidas talvez não haja muito futuro para o CPERS, que tende a devorar-se a si mesmo numa luta estéril.

Em síntese: estamos sempre nos adaptando ao que existe, à realidade, com a justificativa de que é difícil mudar algo. Ou seja: estamos sempre “aceitando” e depois vivendo no estado que “aceitamos”, nos acostumando a ele, para em seguida viver reclamando dele. Nunca – ou quase nunca – dizemos não! O que tememos não é o desconhecido, mas a perda do conhecido. Esse conhecido é a nossa existência aflita, com muito sofrimento, esperando que depois virá “coisa melhor”, um tanto espontaneamente, sem mexer em nada de substancial na estrutura social, econômica e sindical, já que esta é “muito difícil de se modificar”. Aí tendemos a fugir deste fato, adiando o enfrentamento a tudo que questiona a falsa estabilidade emocional que construímos para enfrentar este dia-a-dia.

 

 

Referências


[1] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/05/uma-eleicao-nos-moldes-atuais-pode.html

[2] Idem.

[3] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/04/escuta-categoria.html

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Uma resposta ao chamado da TS

 

O agrupamento revolucionário Transição Socialista (TS) lançou um manifesto para a vanguarda brasileira intitulado Chamado à conformação de uma nova organização revolucionária[1]. Tal manifesto tem a boa preocupação de tentar reagrupar e reorganizar os ativistas revolucionários que se encontram espalhados pelo país, frente ao fato de que a maior parte da “esquerda” institucional está adaptada às estruturas oficiais da sociedade burguesa.

         O texto inicia com um balanço duro sobre a adaptação desta “esquerda” ao longo dos governos petistas, criticando em particular a chamada “esquerda socialista”, que, segundo o manifesto, “não passou pela prova de fogo”[2]. De fato ela não passou, pois se manteve refém das práticas petistas, reformistas, autoritárias e burocráticas, reproduzindo, no geral, discursos e pensamentos dogmáticos que não foram capazes de fazer frente à influência petista sobre a classe trabalhadora. O chamado da TS nos permite uma revisão desta influência, abrindo margem para uma reflexão sobre qual é a estratégia para a superação do petismo, sem o quê, como aponta o texto, não haverá possibilidade de criação de uma organização revolucionária no nosso país.

Contudo, as explicações presentes nos tópicos A, B e C do ponto 2 do texto são insuficientes, dado que não avançam além do que já foi acumulado teoricamente pela vanguarda e tendem, portanto, a olhar apenas uma parte do problema (sem falar no ponto C, que deveria sim mesclar as tarefas democráticas e de “libertação nacional” com a transição ao socialismo para não cometer o mesmo erro do PT e do reformismo em geral, que as dissocia; ou do ultraesquerdismo, que só lembra do “socialismo”).

         Como o chamado diz – e se tem acordo com isso –, a maior parte da esquerda socialista se alinhou direta ou indiretamente ao PT e, por isso mesmo, não gerou nada de novo. Isso se deu, em grande parte, porque não houve um movimento do proletariado brasileiro que gerasse tendências reais que pudessem dar suporte a outras formas de organização e, em particular, de duplo poder. O chamado da TS traz várias citações de episódios recentes da história política de massas do Brasil que foram importantes – excetuando-se as mobilizações pelo “Fora Dilma” que tinham uma natureza reacionária, com o quê, certamente, haverá divergências por parte dos camaradas –, mas não assinalaram, por exemplo, que a classe trabalhadora não apresentou formas organizativas embrionárias que apontassem para a superação das instituições burguesas – tal como as mobilizações “espontâneas” em fevereiro de 1917 na Rússia.

***

         As análises apresentadas acima nos forçam a tirar algumas conclusões contraditórias e angustiantes: 1) o elemento consciente passa a ter um papel ainda mais importante do que teve nos processos revolucionários do século XX – embora a esquerda entenda isso de forma muito limitada; 2) as vanguardas conscientes estão cada vez mais isoladas da massa em geral, ao passo que estas demonstram tendências para se aproximar da direita mais reacionária.

         O próprio texto da TS reconhece que há uma “impotência no proletariado brasileiro”, já que o ápice de sua construção social foi o PT. Apesar de todos os elementos negativos desta experiência, ela nos deixou lições importantes. Devemos reconhecer, forçosamente, que houve uma espécie de estagnação do proletariado brasileiro nesta fase petista. Nada de novo tem vingado para além desta experiência político-eleitoral de massas da classe trabalhadora, expressa pelo petismo. Temos, por isso mesmo, que perguntar o que estaria por trás desta “impotência”? Como renovar a nossa agitação e propaganda com a finalidade de superar essa impotência? É difícil responder tais questionamentos porque a história não se faz por encomenda, mas é possível arriscar alguns palpites para pensarmos conjuntamente. Nessa busca é imprescindível renovar nosso arsenal levando em consideração um elemento até então ignorado pela esquerda: o debate acerca da psicologia de massas.

         Por exemplo: a TS afirma que “não restou dúvida a ninguém de que o PT é um partido burguês como os demais (ou até melhor para a burguesia do que os demais, pois controla os ‘movimentos sociais’)”[3]. Esta conclusão é genérica e muito avançada para a massa, pois iguala conclusões de pequenos setores da vanguarda ao pensamento da massa em geral. Compreendo que apenas alguns setores de vanguarda concluíram que o PT é “um partido burguês até melhor para a burguesia do que os demais partidos burgueses porque controla os movimentos sociais”. A massa concluiu apenas que o PT é um partido como os demais. Chegou a esta conclusão precária e genérica a partir dos diversos escândalos de corrupção que o partido se envolveu, bem como pela grande campanha supostamente contra a corrupção na política desencadeada pela mídia burguesa (tipo Lava-Jato por exemplo).

         A partir dessa conclusão precária e limitada, a massa evoluiu à direita e não à esquerda, voltando-se para o bolsonarismo[4]. A suposta “esquerda socialista” evidentemente contribuiu para isso de uma forma ou outra, dado o seu nível teórico, político, propagandístico e programático, mas existem tendências confusas e contraditórias nas massas que são perigosamente ignoradas pela “esquerda”. Na medida em que houvesse uma evolução da massa para a esquerda, ela se sacodiria e jogaria para longe – ou, pelo menos, colocaria em uma crise profunda – as pequenas e grandes organizações da classe trabalhadora, apontando para novas tendências políticas e de organização. Mas não houve: ela foi à direita! O doutrinarismo desta “esquerda”, completamente descolado da realidade, também ajuda muitas vezes pavimentando o caminho da direita.

         Uma das questões essenciais para uma futura organização revolucionária é se debruçar sobre esses problemas graves que envolvem a psicologia de massas da classe trabalhadora e do povo em geral. Portanto, não se trata apenas de ilusões reformistas e eleitoreiras que são disseminadas, dentre outros, pelo PT, mas, sobretudo, de entender a psicologia de massas e o conservadorismo que vive em seu seio.

         Podemos perceber através do estudo deste tipo de psicologia que há uma tendência muito forte na massa humana de querer ficar sob tutela de algum tipo de líder. Por exemplo, se lhes déssemos a mais ampla independência, desatássemos as suas mãos, ampliássemos suas liberdades, enfraquecêssemos sua tutela, ela imediatamente pediria o retorno dessa ou de outra tutela. Este sentimento é muito forte e decisivo para ser ignorado. Não estou afirmando que se trate de uma força invencível, mas de que é necessário o levarmos seriamente em consideração. E esta perspectiva está definitivamente fora das preocupações das organizações “revolucionárias” no geral, bastando afirmar: “venham a mim e ao meu programa correto, criancinhas”!

         Estas “criancinhas”, contudo, insistem em voltar-se para um líder “carismático” e populista, seja ele Mussolini, Hitler, Franco, Bolsonaro ou Lula (o Psol já trabalha para formar os seus). Será que nunca ocorreu à esquerda “revolucionária” perguntar por que isso se repete tanto? O que é preciso para renovar as suas práticas, agitações e propagandas a fim de evitar que isso aconteça? O que é necessário fazer para demonstrar para as massas o porquê de o reformismo não ser o caminho correto? Isto é, devemos forçosamente tentar explicar por que a massa prefere as ilusões reformistas e eleitoreiras disseminadas pelo PT (dentre outros) ao programa revolucionário? Há uma flagrante idealização da massa, que se expressa nos discursos: “quando a massa despertar”, “quando estivermos no socialismo”, “a massa precisa fazer isso; precisa fazer aquilo”; mas ela não faz, e o porquê disso nunca é respondido, senão que renovam-se às ilusões nesta idealização da massa, apagando-se totalmente as suas nuances reais. Ou então se explica insuficientemente: tudo é o resultado da falta de uma direção revolucionária – ok! Mas por que a massa tende a preferir uma “direção” reformista à uma direção revolucionária?

***

         Outro exemplo singelo, que é repetido seguidamente pelas pequenas organizações ditas “revolucionárias” de norte a sul do país e até a nível internacional, é o seguinte: frente a demissão de diretores de escola por parte de uma prefeitura do interior de MG, como resultado da recusa do magistério público em retornar às aulas presenciais durante a pandemia, uma pequena organização revolucionária chamou o sindicato e “a classe trabalhadora” para trancar a cidade inteira, visando pará-la para fazer o prefeito voltar atrás. A despeito da importância da denúncia pública da ação autoritária do prefeito, salta aos olhos que a proposta é inviável.

Quem vai trancar a cidade? As burocracias sindicais das centrais e dos sindicatos denunciadas pela própria organização revolucionária? O PT e a CUT, que respeitam toda a estrutura oficial? A organização revolucionária que é um agrupamento de uma dezena de militantes? Ou ela apostaria neste chamado messiânico para que a massa responda espontânea e automaticamente indo trancar a cidade, sem nenhum tipo de direção e organização prévia?

         A dita “esquerda revolucionária” tem trabalhado com essas hipóteses corriqueiramente, sem nenhum balanço ou autocrítica; isto é, sem perceber o seu descolamento da realidade (basta olhar os “fora este ou aquele” que agita seguidamente [5]). A última hipótese, em particular, não tem surtido efeito algum e a massa nunca – ou quase nunca – tem seguido o que é apontado por estes chamados messiânicos que a idealizam. Existem fases para a construção de uma organização revolucionária que são sumariamente ignoradas pela “esquerda”, onde qualquer agrupamento com um punhado de militantes já age como se fosse o partido revolucionário pronto e acabado. Isto é: além do conhecimento elementar sobre a psicologia de massas, falta a noção dos limites de até onde um grupo de propaganda com intervenção pontual em algumas categorias pode ir, bem como das suas respectivas palavras de ordem, agitação, propaganda, trabalho de base, etc.

         A fase das grandes mobilizações espontâneas ou semi-espontâneas da classe trabalhadora passou. Hoje quem tem mobilizado pessoas com mais êxito é a direita[6]. A esquerda revolucionária segue isolada (e se isolando cada vez mais) dado que desconhece e ignora (muitas vezes voluntariamente) as questões fundamentais da psicologia de massas, para reproduzir consignas abstratas e descoladas da realidade, julgando-se a mais fiel depositária do pensamento e da prática “marxista-leninista”.

         As massas tem sido conduzidas com base em forças emotivas, que sobrepõem-se à argumentação racional da “esquerda”. Basta ver como agiu historicamente o fascismo italiano e alemão; e como age o neofascismo estadunidense e brasileiro. São muitas as investigações científicas e filosóficas que demonstram a capacidade das emoções para burlar a racionalidade. Com frequência as ideias subjacentes aos impulsos emotivos ficam camufladas, mascaradas, encobertas[7]. A esquerda, por uma leitura vulgar do marxismo, julga a massa humana sempre revolucionária em qualquer ocasião: ela que vai “trancar a cidade”; ela que vai corrigir os erros da vanguarda; ela que é a solução – messiânica – pra qualquer problema. Contudo, temos visto que os argumentos racionais nada podem frente à pulsão emotiva intensa, explorada pelo neofascismo e inclusive pelo petismo, na pessoa de Lula (dentre outros).

         Estas são algumas das questões que uma futura organização revolucionária deve encarar e responder se quiser, de fato, superar o petismo. Destas respostas, que precisam ser testadas pela experiência desta “nova militância”, possivelmente surgirá uma nova prática. Hoje, desgraçadamente, são questões de difícil resposta para o conjunto da esquerda, o que dirá para pequenas organizações e militantes isolados? Somente no debate, na divergência honesta, na militância em comum, no aprendizado de uma escuta verdadeira entre a militância revolucionária (e desta para com a massa em geral), em suma, somente na construção coletiva e com consciência de classe, poderemos encontrar tais respostas que, no meu ponto de vista, são essenciais e absurdamente minimizadas ou ignoradas.

***

         Contudo, apesar de ser difícil encontrar essas respostas, é possível arriscar algumas. Combater o espírito de rebanho e de submissão presente na massa deve se iniciar dentro das organizações revolucionárias, no combate ao personalismo, ao egocentrismo, ao “dirigismo” e ao “adesismo”. Este exemplo deve partir da própria formação e funcionamento básico de uma futura organização revolucionária.

         A prática da construção entre a esquerda “revolucionária” está pautada pela imposição de projetos e pelo adesismo. Ou seja: grande parte dessas organizações esperam simplesmente uma adesão de outros grupos, geralmente por vias impositivas. Não há uma aproximação baseada em claros princípios, em trocas reais, em escutas. Reproduzem, assim, muito do que faz a “esquerda” institucional[8].

         Como não cair no “dirigismo” e no simples “adesismo”? Como não cair nas acusações sem fim que apenas desagregam? Penso que o primeiro passo é começar se preocupando com todas as questões apontadas aqui. Uma vez que elas forem assimiladas por uma futura organização revolucionária, talvez possamos ver o fim da repetição do ciclo que impõe o “eterno retorno ao PT”.

         Outras ideias para o desenvolvimento de um “comitê de enlace” foram desenvolvidas no artigo Combater a crise de direção requer paciência e propostas realistas:algumas ideias para avançar na “unidade” da esquerda revolucionária – disponível neste blog. Espero que recebam esta resposta de forma positiva e que ela sirva para suscitar novas e profundas reflexões com a finalidade de superar a crise de direção revolucionária.



Com minhas saudações revolucionárias
Lucas Berton 

 

Referências


[2] Idem.

[3] Idem.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Houve vitória anti-imperialista no Afeganistão?

Um helicóptero militar estadunidense sobrevoando a embaixada dos EUA em Cabul em 15 de agosto - Photo: AFP / Wakil Kohsar

O presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou a retirada das suas tropas do Afeganistão no dia 14 de abril numa operação que deve se encerrar na simbólica data de 11 de setembro de 2021. Imediatamente se desencadeou uma escalada “meteórica” de ascensão ao poder por parte do Talibã, que começou por tomar o controle de várias cidades do país, culminando na rápida tomada de Cabul em 16 de agosto.

         A retirada das tropas estadunidenses foi interpretada por alguns setores da “esquerda” como uma “vitória anti-imperialista”, mas isso é um novo equívoco. Podemos observar o esgotamento da hegemonia imperialista estadunidense no mundo, no qual se insere a mudança de sua geopolítica no oriente. Porém, isso não é uma derrota.

         A retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão tem mais a ver com um reposicionamento dos EUA na disputa mundial com a China e Rússia do que com uma suposta derrota militar. Isto é: trata-se de uma manobra política e estratégica nas novas condições em que os EUA se encontram. O desenvolvimento autônomo de uma zona euroasiática deixou os EUA marginalizados, acelerando a perda de sua posição hegemônica no mercado mundial. A chamada “guerra contra o terror”, desencadeada após os atentados de 11 de setembro de 2001, foi um pretexto para uma ofensiva global do imperialismo estadunidense visando reverter a sua decadência econômica e a perda gradativa de seu posto hegemônico.

         A ocupação norte-americana do Afeganistão, iniciada em 2001, visava vários objetivos: deter o enfraquecimento da sua hegemonia mundial, criar uma cunha entre a Ásia e a Europa, evitando a conformação de um bloco euroasiático, servir de apoio para a futura ocupação do Iraque – cuja finalidade seria a mesma, além de apropriar-se das riquezas naturais do Oriente Médio, como o petróleo.

         Refletindo suas alianças locais firmadas no final do século XX com Japão e China – reincorporada ao mercado mundial com um certo status privilegiado – os EUA deixavam livre a influência econômica japonesa no sudeste asiático, enquanto se concentrava nas questões relacionadas à segurança (leia-se: controle militar). Naquele momento, dado a relação estreita entre a economia norte-americana e chinesa, esta aliança foi um bom negócio para ambos países, sobretudo porque o Japão, a despeito de alguns movimentos que apontavam para uma busca de autonomia, estava sob controle indireto estadunidense desde o final da Segunda Guerra Mundial. A “segurança” da região visava, portanto, garantir a hegemonia do dólar e a tranquilidade comercial, além de manter-se como uma cunha entre a Europa e a Ásia.

         A correlação de forças, no entanto, foi se modificando em favor da China, que passou gradativamente a assumir não apenas a liderança econômica da Ásia, mas no mundo todo. O objetivo central da retirada das tropas ianques do Afeganistão, portanto, cumpre a finalidade de gerar o caos e a insegurança do mercado euroasiático em formação, com a visível finalidade de sabotar a expansão da “Nova Rota da Seda”, cujas principais estradas e ligações terrestres com destino à Europa passam pelo território afegão, além de isolar a Rússia, aliada estratégica da China, e abrir flancos contra o Irã[1].

         Talvez tenha sido por isso que o governo chinês classificou de “irresponsável” a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão. Pequim incluiu desde 2016 o Afeganistão em seu grande projeto de infraestruturas da “Nova Rota da Seda”[2]. Os EUA, por sua vez, vêm tentando conter a expansão econômica chinesa utilizando-se de diversos estratagemas. A saída do Afeganistão é mais um passo nesse sentido, o que denota a busca da Casa Branca por uma nova política que consiga enfrentar a atual correlação de forças internacionais, que lhe é visivelmente desfavorável.

         Um dos objetivos da burguesia imperialista estadunidense é semear o terror e o pânico no mercado internacional e na opinião pública ocidental através da grande mídia. O impacto negativo desta propaganda também serve a finalidades internas, cujo objetivo é gerar uma nova situação na política nacional visando angariar apoio para sustentar a mentalidade de guerra contra o bloco chinês e russo. Redes de televisão norte-americanas como a CNN, por exemplo, além de veicularem as imagens de “guerra civil” e “caos” nas ruas e no aeroporto de Cabul – replicadas pelas redes sociais –, já falam de novas possibilidades de atentados terroristas contra os EUA por parte de organizações como o próprio Talibã.

         No vácuo da desocupação, o “novo” governo rapidamente afirmou que vai anistiar funcionários afegãos da OTAN e que não interferirá nas atividades empresariais. Expressando os elementos da sua tradicional diplomacia internacional, o governo chinês, por outro lado, declarou ter interesse em relações amistosas com o “novo” governo, afirmando que irá “respeitar a vontade do povo afegão”. Pequim também anunciou que está planejando grandes negócios com o Talibã – declaração que foi amplamente utilizada pela mídia ocidental.

         Após a falácia da “guerra contra o terror”, iniciada em 2001, com a retirada das suas tropas do Afeganistão, a provável jogada de propaganda ideológica dos EUA se voltará contra o “novo eixo do mal”, formado por Talibã, Paquistão e a China[3]! Estes serão os enredos centrais na sua tentativa de apavorar a opinião pública ocidental contra ascensão chinesa, que provavelmente será vendida como aliada dos terroristas. Acompanhemos atentamente os próximos capítulos.

         Já a classe trabalhadora continua alijada do poder tanto num cenário, quanto no outro. Como agravante, vemos parte da “esquerda” comemorando “vitórias” inexistentes sobre o imperialismo, o que só pode manter a luta da classe trabalhadora – o que inclui a sua propaganda – na confusão e na estagnação.

 

Referências