terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Futebol, religião e política se discute, sim!

Alguns torcedores do São Paulo tocaram pedra e bomba no ônibus do time de futebol como forma de demonstrar seu descontentamento com o empate. Gente que certamente não teria a mesma coragem pra enfrentar, com a mesma determinação e paixão, Covas e Dória se fossem convocados.

Certa vez, Lima Barreto disse: "o Brasil não tem povo, tem público"; e um amigo meu acrescentou: "não tem público, tem torcida organizada".
Episódios como esse, que são bastante recorrentes, me lembram da poesia do camarada Paulo (publicada na revista Zé! Nº1):

PÃO & CIRCO
Há pouco tempo, num jogo de vôlei, uma torcida inteira urrou a homossexualidade de um jogador do time adversário, tentando desestabilizá-lo.
Era um jogo importante, se não estou enganado. Decisão de um título, acho.
Então é licito que se perca o respeito por um ser humano.
Que se jogue as favas a dignidade de alguém.
Que se apele ao mais reles preconceito. Tudo pelo nosso time!
Já se vem fazendo isso há muito tempo neste país.
Aqui não se luta por direitos, mata-se por futebol.
Não se range os dentes para a injustiça, mas para o adversário.
“Jornalistas” discutem seriamente um 0x0 medíocre entre jogadores medíocres.
Enquanto a violência e a falta de ética grassam nos gramados e mal noticiadas, homens feitos aguardam ansiosamente por uma copa do mundo.
E continuarão aguardando ansiosamente, no chão de uma sala de espera de um hospital.
E ansiosamente sairão à rua para trabalhar, temendo a falta de segurança.
Não há dinheiro – dizem.
O que não há é vergonha na cara digo eu.
Como ter esperanças?
Antônio Abujamra diz que a Esperança matou este país.
E não sei se cada povo tem o governo que merece...
(embora muitas vezes pareça que sim).
Panis et circenses...
(Paulo de Quadros)

PS: a grande mídia condena duramente o vandalismo desses torcedores, mas é co-responsável pelo seu fanatismo.
PS 2: nesse post não abordamos as divergência sobre a religião, mas o blog tem diversas postagens sobre esse tema.
PS 3: este blog mantém o mais profundo respeito às torcidas organizadas antifascistas que lutam contra a discriminação e os problemas da politicagem burguesa nas arquibancadas dos grandes estádios e nas ruas.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O establishment sindical

O establishment é uma força cega que nos move sem percebermos

 

Há um termo inglês comum em política, muito utilizado pela grande imprensa e por outras áreas, que define a estrutura hierárquica de funcionamento da nossa sociedade: o establishment. Ele designa uma estrutura social, econômica e política que exerce forte controle sobre o conjunto da sociedade, funcionando como base dos poderes estabelecidos. Não se restringe apenas à política e às instituições do Estado, mas ao pensamento corrente defendido pela grande mídia e pela “opinião pública” moldada por esta. Várias medidas políticas e sociais tomadas pelos governos, bem como a conduta individual em sociedade, estão moldadas tacitamente pelo establishment; que é uma espécie de ethos: um conjunto de costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (das instituições, dos afazeres das pessoas comuns, etc.) e da cultura em geral (valores, ideias, crenças), características de uma determinada coletividade, época ou região.

            Quem molda o establishment são, evidentemente, e em primeiro lugar, os interesses econômicos da classe dominante. Em segundo, os séculos de tradições e hábitos não questionados, que são utilizados direta ou indiretamente por ela. Assim, quem fica de fora deste campo não-declarado é excluído praticamente de tudo (os chamados outsiders), chegando a ser ridicularizados ou, em casos extremos, a sofrer repressões violentas. O establishment pode ser comparado ao termo cunhado por Gramsci como hegemonia. Isto é, a classe dominante se sustenta não apenas na repressão policial e estatal, mas no “consenso ideológico” criado e imposto pelas igrejas, universidades, grande mídia (dentre outros). A isto, precisamente, Gramsci chamou de hegemonia política.

            Tal establishment ou hegemonia existe na sociedade oficial, sobretudo naquilo que este blog chamou de hipocrisia institucional (ou seja, toda a hipocrisia que existe nos parlamentos burgueses, bem como no seu poder judiciário e executivo, que escondem atrás de protocolos, de “tradições”, de “procedimentos institucionais”, de “legislações”, discursos e práticas vazias que servem apenas para esfriar e fazer a massa aceitar a sua condição subalterna[i]); mas também está presente no movimento sindical. Como sabemos, os sindicatos atuais estão envolvidos em uma lógica institucional e por uma teia de legislações que os subordinam totalmente à legalidade institucional burguesa (isto é: ao Estado burguês).

            Assim sendo, criam o seu establishment próprio que impede que ocorra uma real organização de base e que a “vida viva” que existe nas profundezas de cada categoria possa se expressar. A culminância desse establishment sindical se dá na censura às minorias organizadas que atuam nestes sindicatos. Os protocolos legalistas do movimento sindical atual asfixiam e matam a democracia real que seria o combustível necessário para o surgimento de um sindicalismo de base e que, de fato, fosse transformador.

 

A “fé profissional” no establishment

            Muitas pessoas – inclusas centenas de organizações de “esquerda” – acreditam no establishment como uma força independente, tal como uma espécie de fé religiosa, seja consciente ou inconscientemente. Se subordinam a ele tal como uma fatalidade divina. Estas pessoas não ousam confessar, nem mesmo a seus corações, as dúvidas que têm a respeito desses assuntos. Elas valorizam esta fé implícita e disfarçam para si mesmas a sua real descrença quando xingam os políticos e a politicagem (e mesmo as direções sindicais pelegas), mas aceitam cordialmente as imposições que vem através do establishment, como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra. Isso se dá desta forma porque é mais fácil “organizar” e impor subordinação à rebanhos humanos através das “forças invisíveis” que operam na nossa sociedade, mesmo com um discurso de “esquerda”.

            Thomas Paine escreveu sobre a crença profissional que resulta em mentiras mentais, as quais lidamos todos os dias nas pequenas e grandes coisas. Ele escreveu: “a descrença não consiste em acreditar, nem em desacreditar; consiste em professar que se crê naquilo que não se crê. É impossível calcular o dano moral, se é que possível chama-lo assim, que a mentira mental tem causado na sociedade. Quando o ser humano corrompeu e prostituiu de tal modo a castidade de sua mente, a ponto de empenhar a sua crença profissional em coisas que não acredita, ele está preparado para cometer qualquer outro crime”[ii].

            O establishment – como “força social invisível” que impõe “consensos” –, se alimenta, sobretudo, desta crença profissional de coisas em que não acreditamos, mas fingimos acreditar. Inúmeros são os militantes e as organizações sindicais e de “esquerda” que tornam-se “crentes profissionais” de ideologias, discursos, protocolos e métodos “que não acreditam”. Se tudo isso ainda não está evidente, que se aguce mais a visão e os ouvidos para se tentar perceber.

 


O establishment sindical é uma micro reprodução do establishment parlamentar e político

            O que se passa nos sindicatos é uma micro reprodução do que se passa nos parlamentos e na política burguesa que ocorre a nível nacional e mundial. Já analisamos a hipocrisia institucional resultante da forma de funcionamento das instituições burguesas. A corrupção que corre livre, leve e solta nestas instituições é o reflexo inevitável dessa forma de funcionamento, onde o eleito está completamente livre do eleitor, devendo responder à institucionalidade, e não a quem o elegeu. O mecanismo está tão bem montado e blindado, que se torna praticamente impossível destituí-lo. A massa em geral não percebe tais limitações e vê problema apenas na “conduta ética” dos políticos, que “poderiam agir do modo correto” se assim o quisessem.

            É claro que esta visão foi plantada por décadas no inconsciente coletivo do povo pela grande mídia, mas para cada indivíduo aparece como se fossem seus próprios pensamentos. Está aí, por exemplo, uma das grandes prisões mentais que solidificam a estrutura social de exploração do nosso país (e de muitos outros no mundo). Na sociedade burguesa, a política é apenas para “profissionais” e nada, nem ninguém, pode lhes tirar o “direito” que é visto quase como um mandato divino. O establishment político está firmemente alicerçado na hipocrisia institucional atual (blindado, como foi dito, por uma hipocrisia intrínseca de protocolos, hábitos, legislações, etc.). Não ocorre à classe trabalhadora que é necessário demolir as instituições políticas atuais e modifica-las, dando poder de fato aos de baixo. Seria o único jeito de “controlar” quem está em cima.

            O mesmo se passa com o mundo sindical, embora tal establishment não esteja previsto em uma legislação formal, sendo mais tácito do que explícito e oficial. Nos sindicatos ocorre um acordo informal entre as correntes políticas e sindicais que os controlam, que excluem correntes minoritárias e ativistas independentes que são questionadores. Para isso, se escondem atrás da “legislação” burocrática – nesse caso, reproduzindo tal e qual o establishment político e parlamentar –, que degenera em uma série de censuras, controles de falas e asfixiamento de divergências.

            No CPERS, por exemplo, que é um dos maiores sindicatos da América Latina, impera um acordo informal, inexistente no seu estatuto, em que só tem direito a fala de avaliação de conjuntura nas assembleias gerais as correntes sindicais que foram eleitas ao Conselho Geral. Isto é uma invenção política para solidificar o establishment sindical, baseado nas mesmas forças políticas e sindicais de sempre. Cria-se um círculo vicioso, que reforça não apenas a estrutura vertical dos sindicatos, bem como reforça indiretamente a própria estrutura política da sociedade de classes.

            Uma boa contribuição para repensarmos esta prática advém do humanismo freiriano, que é uma necessidade para a nova prática sindical em que devemos apostar. Tal pedagogia apregoa que precisamos aprender a ouvir os outros para dar fim ao “fascismo sindical” – isto é, terminar com as práticas de abafamento burocrático ou aberto de minorias que tentam sinceramente propor e debater políticas sindicais e o fim do “grenalismo”, que não pode gerar outro sentimento que não o ódio entre nós. As pessoas devem estar acima do establishment; e não o establishment acima delas. Pode parecer uma conclusão simplória e óbvia, mas às vezes reforçar o simples e o óbvio é mais do que necessário.

            Algum representante das correntes sindicais majoritárias pode argumentar, num último lampejo de honestidade, que tais correntes minoritárias, geralmente de cunho sectário, iriam criar inúmeras dificuldades com políticas megalomaníacas, inclusive podendo levar ao fim do próprio sindicato. Tais acusações estão mais baseadas na “facilidade” que é ignorar as divergências abafando-a com a patrola das legislações e das “maiorias” do que em um esforço sincero e honesto de entender e ouvir o outro. Tais grupos sectários, com suas propostas mirabolantes, devem sempre ser chamados para a realidade. O debate deve ser feito e não jogado para debaixo do tapete com o tacão do establishment de direção política dos sindicatos. Vejam um pequeno exemplo: Lenin à frente do governo soviético lançou o livro “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” (sempre muito citado pelo oportunismo brasileiro, mas pouco lido e compreendido). O debate com estas “minorias sectárias” foi esmiuçado e trazido à luz; e não simplesmente suprimido.

            Um sindicato não é e não pode ser propriedade privada de nenhuma corrente majoritária (esta tem sido, infelizmente, a regra). Todo trabalhador e toda trabalhadora (bem como seus respectivos agrupamentos) devem ser ouvidos e o debate deve ocorrer, por mais difícil e desgastante que isso seja. Acolher todas as demandas e bandeiras e propor o debate aberto sempre que possível e, inclusive, colocar os proponentes de projetos mirabolantes de frente para as próprias contradições de suas propostas é o método mais correto – isto é: dar-lhes uma parte do poder para que executem e vejam como se saem na prática (geralmente demonstrando a inconsistência de suas propostas). Assim se cria um caminho alternativo contra o encastelamento dos sindicatos em si mesmos.

            Os projetos oportunistas, que comprometem os sindicatos com agendas do establishment oficial dos governos burgueses, devem ser combatidos, sempre com argumentos, teses, discursos e, sobretudo, com coerência; jamais com o abafamento pelo peso do aparato. Esse ethos de submissão e rebanho; isto é: esta “força invisível” precisa ser desnudada e trazida à luz da consciência, pois ela decide políticas, posições de “maioria” e molda práticas, submissões não declaradas e, muitas vezes, sequer percebidas. Funciona quase como uma “religião organizada”. Quanto mais conscientes estivermos sobre o peso morto dos hábitos, da tradição, dos protocolos “vazios e chochos” do establishment político e sindical, que servem unicamente para apagar o incêndio da indignação e das iniciativas questionadoras, melhor poderemos desenvolver um sindicalismo organizado pela base, que seja a representação mais próxima do possível dos interesses sinceros e autênticos da classe trabalhadora (ainda que hoje, em sua maioria, estejam submersos no inconsciente coletivo).

 

 

REFERÊNCIAS


[ii] PAINE, Thomas. The age of reason In SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios – a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia de Bolso, São Paulo, 2013 (página 238).

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A encenação da vacina

João Dória e o governo Bolsonaro transformaram a aprovação da utilização da vacina contra o corona vírus pela Anvisa num episódio burlesco e deprimente. O tucano "independente", que tem projeto personalista, nitidamente transforma as declarações oficiais do lançamento da vacina num palanque eleitoral com vistas a 2022; enquanto o ministro da saúde bolsonarista, o "general" Pazuello, retruca afirmando se tratar de declarações "politizadas acerca de questões de saúde pública", denunciando que o governo de São Paulo omitiu inúmeras informações do apoio dado pelo seu ministério e pelo SUS à fabricação da vacina.

Com uma apresentação teatral, copiada descaradamente do governo britânico, o governador de São Paulo dá um passo adiante nesta disputa quando diz que enviará para Manaus 50 mil vacinas à reveria do ministério da saúde que, segundo ele, é inconfiável. Ou seja, desacata a hierarquia institucional do país como forma de luta política. Para isso, evidentemente, se utiliza do poderio econômico paulista, que sempre foi uma força autônoma no Brasil.
Dória tem se vendido como um gestor responsável, que "escuta a ciência", querendo se colocar contra o obscurantismo bolsonarista. Vai capitalizando, com a ajuda política petista, o desgaste do governo Bolsonaro. Para Tarso Genro, por exemplo, é João Dória que tem que liderar a luta pelo impeachment do atual governo federal (fala isso sem nenhuma vergonha; ao contrário: vende essa capitulação, que custará muito caro à classe trabalhadora, como política "realista" e "responsável").
Aí está se revelando, na prática, o que significa a palavra de ordem "Fora Bolsonaro" sem correlação de forças. O restante da "esquerda" nada faz em relação a esse teatro mórbido. Apenas reproduz, em essência, a política apresentada por Dória (Vacina já!), não desmascara a postura oportunista do governador paulista, nem do petismo, reforçando direta ou indiretamente o "Fora Bolsonaro" e o "Viva Dória!".
Assim, o ciclo segue seu curso: se cai o neofascismo bolsonarista, o poder é ocupado pela burguesia "democrática", que vai seguir com todo o seu programa econômico neoliberal de uberização e de sustentação do agronegócio, mas com o discurso demagógico de "respeito à ciência", "contra o obscurantismo", em defesa do "liberalismo" à brasileira. A classe trabalhadora, em todos os cenários, perde. E o pior não é perder: é não ter perspectiva, nem programa com as organizações de "esquerda" que aí estão.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Identitarismo sem classismo

Há uma tendência bastante preocupante no movimento dos trabalhadores — impulsionada, sobretudo, pelo partido democrata (o imperialismo soft) — de colocar questões identitárias acima das classistas, em todo e qualquer contexto, conforme atesta o lamentável episódio da "ocupação" do congresso estadunidense por trumpistas.

Vi que muita gente colocou que os "manifestantes" não foram reprimidos em razão de serem homens brancos. Isto é um erro. Eles não foram reprimidos porque são neofascistas, estão a serviço do grande capital e de todo o projeto de Trump. Coloque-se um trabalhador branco a invadir o congresso ianque por alguma reivindicação que se choque com os interesses do grande capital norte-americano, e então teremos a velha repressão conhecida da classe operária (independentemente de cor, sexo, orientação sexual, etnia ou credo).
Da mesma forma, coloquem lideranças democratas em tais protestos, como Barack Obama, Kamala Harris, Michèle Flournoy ou o "general negro" Lloyd Austin, e veremos a polícia tratá-los da mesma forma que os supremacistas brancos foram tratados (isso, é claro, se desconsiderarmos a tendência desses indivíduos a desacreditar do método de protestos populares).
Antes de tudo, um salvo-conduto: não quero dizer que não exista repressão aos negros e negras nas periferias — os bairros "negros" dos EUA e as favelas brasileiras não deixam dúvida (ainda que também possamos argumentar que lá existe uma repressão principal à pobreza, à ausência de propriedade, o que, infelizmente, ainda remete à uma maioria populacional negra). Mas este certamente não foi o caso na "invasão" do congresso ianque.
Quero, na verdade, chamar a atenção para as questões de classe e a importância de termos cuidado em relação a essa tendência mundial impressa pelo partido democrata que, a despeito de se basear em elementos reais, podem ter desfechos reacionários e segregacionistas para a classe trabalhadora (mais dos que já existem...).

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

A "esquerda" parlamentar e os conchavos para a eleição da presidência da Câmara dos Deputados

Rodrigo Maia e Baleia Rossi, sorridentes.

*Por Professor Sílvio Alexandre

Voltando ao assunto:

O deputado federal Baleia Rossi do MDB, candidato de Rodrigo Maia à presidência da Câmara Federal, votou pelo afastamento de Dilma Rousseff e era, e é, um dos deputados mais próximos de Michel Temer! O outro candidato, Arthur Lira, do PP, é apoiado por Bolsonaro e também votou pelo afastamento de Dilma.
 
Não tenho certeza e nem fiz uma pesquisa rápida sobre como votou Rodrigo Maia no processo de impeachment da presidenta Dilma... Desconfio, tenho quase certeza, que votou contra a Dilma!

A bancada do PT na Câmara fechou voto no Baleia Rossi. A desculpa é de que ele defenderá as "pautas democráticas" (tipo a reforma trabalhista do Michel Temer???). Na verdade, o que definiu o voto no Baleia, foi um processo de negociação de cargos na mesa diretora da Câmara: cargos é igual a verbas, recursos financeiros e poder, ou, a partilha do poder com os gângsteres de Brasília!

Hoje fiquei sabendo que no Senado, a bancada do PT irá votar em Rodrigo Pacheco do DEM. Candidato do Alcolumbre e do, pasmem..., Bolsonaro!!!

Estava pensando aqui também em qual foi, e é, a posição do Rodrigo Maia sobre o julgamento e prisão do Lula (nem me arrisco a fazer uma pesquisa rápida para não ficar mais estupefato ainda)...

Penso que se, não seria melhor, a maior bancada de deputados federais na Câmara e a segunda maior no senado, largar essa gente toda de mão e se dedicar com todo afinco, energia e estrutura financeira e política, para organizar o povo para uma grande revolta...

Esse seria o papel de bancadas que se dizem de esquerda como PT, PCdoB, PSB, PDT! Inclusive o PSOL, que parece seguir o mesmo caminho declarando o voto no Baleia Rossi...

Na verdade, eu e tu, sabemos bem que esses parlamentares ditos de esquerda tomaram um gosto pelos "salões acarpetados, o ar condicionado e todas mordomias da democracia burguesa"!

Uma vergonha!!!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Uma Disneylândia com pena de morte

 

"Uma Disneylândia com pena de morte": assim um ocidental definiu Singapura. Um entreposto comercial do ocidente cravado no meio das rotas comerciais marítimas da Ásia. Cidade-Estado, que reúne os bilionários do continente e serve como paraíso fiscal e de investimento praticamente sem impostos.
É conhecido o tratamento que a mídia burguesa dispensa à China e a pobre Coréia do Norte: ditaduras sanguinárias, violadoras de direitos humanos, déspotas que controlam a vida de milhões e patrocinam a censura na imprensa "livre". Tudo isso seriam os sintomas da aplicação do "maldito" comunismo.
Justamente aqui cabe perguntar como funciona Singapura, o "jardim do Éden" do ocidente? O modelo econômico que, segundo a grande mídia, deveria ser seguido por todo o mundo...
Lee Kwan Yew — o ditador de Singapura, que a governou com mãos de ferro de 1959 até 1990, seguindo como "consultor" (na verdade chefe de Estado informal) nos bastidores até a sua morte, mas chamado pela mídia ocidental como "político de sucesso", como "o homem que vê à frente" — moldou Singapura como um Estado unipartidário, onde o seu partido (PAP) é estratificado de acordo com a competência tecnocrática (de "livre" mercado). Oposições são perseguidas e não consentidas. Em Singapura (tal como na China e na maior parte dos Estados asiáticos "modernos") os valores confucionistas básicos são a extrema disciplina e a cega obediência à autoridade.
O tráfico de drogas era punido com pena de morte (para os miseráveis, é claro, não para a elite, que faz uso "legal" delas), o que levou àquela citação sobre "Disneylândia com pena de morte". Até bem pouco tempo atrás a homossexualidade também era punida com a pena de morte.
Na doutrina confucionista, enquanto o reino está em paz e é próspero, o imperador tem o direito de reter o mandato sem maiores questionamentos (isso explica, em parte, o despotismo dos governos autoritários do continente, que são vistos assim apenas pelo ocidente). A única ideologia de Singapura — que casa como uma luva com a capitalista — é "pragmatismo" e "eficiência" (às custas de quê? Às custas da exploração do meio ambienta e dos direitos mais básicos e elementares da classe trabalhadora — embora seja vendido pela mídia oficial do país, em conluio com a ocidental, que ela está feliz em razão da prosperidade).
O governo e seus ideólogos (de lá e de cá) afirmam que quando observamos o nível de vida alcançado por Singapura é praticamente impossível acusar o governo de não zelar pelo "bem coletivo". E enquanto se demoniza a "liberdade de imprensa" da China, se exalta a mídia oficial controlada em Singapura, afirmando que "à parte a reverência ao governo, seu nível técnico é excelente". Como se vê, sempre dois pesos, duas medidas. Isso não é nos tratar como palhaços?
E por que age assim a grande mídia ocidental? Não é preciso ser um gênio em sociologia, economia ou geopolítica pra entender que enquanto ela crucifica China e Coréia do Norte, exalta aberta ou disfarçadamente as ditaduras de Singapura, Malásia, Tailândia, Taiwan, Hong Kong, Indonésia, dentre outras, justamente porque as primeiras passaram por revoluções "comunistas" (com todas as suas contradições, que não esquecemos) e que, bem ou mal, tais revoluções questionaram pontualmente o imperialismo e as suas ideologias de "livre mercado". Para a grande mídia ocidental não interessa que haja obediência cega, controle da mídia e partido único em Singapura. Interessa que ela dê lucro recorde ao capital internacional que lá investir e dance conforme a música do mercado mundial. Esta é a senha para ser santificado... ou demonizado!
***
A China, através do seu PCC, bem como o governo de Singapura, "se levanta" contra o que chamam de os 6 males do ocidente: "drogas, pornografia, prostituição, rapto de mulheres para posterior venda, jogo e superstição".
Os governos das potências asiáticas atribuem esses males à "vida decrépita" do Ocidente (e, em especial, da América do Norte). Mas aqui, cabe perguntar: por que, então, esses males se proliferariam com tanta facilidade no oriente se não houvesse uma propensão no ser humano para eles? A resposta é que isso são mazelas da sociedade capitalista (e não do "ocidente"), sem o quê, o sistema não pode existir. O PCC e o "moderno governo" de Singapura, ao escancararem as suas portas ao capitalismo internacional, abriram a porta para estes males, que já existiam nas suas sociedades em estado latente, embora em menor número do que hoje.
Sem combater o capitalismo, no sentido de avançar do "capitalismo de Estado" ao socialismo (isto é: mudar a psicologia de massas do povo visando uma real autogestão coletiva que escute as pessoas e crie uma nova sociabilidade humana), estes "6 males" não apenas não serão derrotados, como se aprofundarão.
Aliás, nada mais parecido com a degeneração dos "6 males", oriundas do estilo de vida da burguesia ocidental, do que a visão de mundo e as práticas da atual burguesia oriental. Não há como fazer a "liberdade" de mercado funcionar sem abrir esta caixa de Pandora.


sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Contatos imediatos de primeiro grau

Nós, seres humanos, como espécie, estamos interessados na comunicação com a inteligência extraterrestre. Não seria um bom começo ampliar a comunicação com a inteligência terrestre, com outros seres humanos de cultura e línguas diferente, com os grandes macacos, com os golfinhos, mas particularmente com estes mestres inteligentes do fundo do mar, as grandes baleias?

Trecho de Cosmos, de Carl Sagan

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A ética confucionista e o espírito do novo capitalismo chinês — notas sobre a China contemporânea



第一 Muitos pensadores demonstraram a relação fundamental que existiu entre a reforma protestante desencadeada por Lutero/Calvino e o espírito do capitalismo europeu. O mais célebre, talvez, tenha sido Max Weber. Romper a redoma de ferro imposta pela igreja católica foi essencial para o posterior desenvolvimento da burguesia e do capitalismo comercial. Sem esta alteração na estrutura do cristianismo seria quase impossível a ascensão meteórica do capitalismo ocidental, que inclusive resultou na dominação sobre o oriente. Alguns intelectuais ocidentais ironizam: "Confúcio nunca leu Adam Smith"; e "Max Weber", podemos acrescentar.


第二 Confúcio desprezava os mercadores e todos aqueles que eram devotados à "caça ao lucro". Dentro da sua lógica, não faz sentido as preocupações modernas como o frenesi do comércio mundial, o crescimento econômico, o "progresso" e as "classes inferiores" serem incorporadas no governo ou terem algum reconhecimento social. Para Confúcio, apenas os intelectuais e os camponeses eram considerados "produtivos". Ainda que o confucionismo antigo defenda uma espécie de "meritocracia", ela nada tinha a ver com a desenvolvida pelo capitalismo inglês, mas apenas para melhor servir o imperador na burocracia estatal. Sua rígida visão social ordenava obediência ao governo monárquico, que detém um suposto "mandato dos céus", submissão aos pais, diligência e aperfeiçoamento do trabalho, além do respeito à ordem social. Segundo ele, a harmonia social deriva da obediência à autoridade — tanto na família quanto no Estado. Esta é uma das razões que explica porque a China, mesmo sendo o berço de muitas das principais invenções humanas, não chegou ao capitalismo já durante o século 11 (ou seja, pelo menos 4 séculos antes da burguesia europeia).


第三 Toda a mitologia chinesa é derivada de líderes políticos pragmáticos que teriam recebido o "mandato dos céus". Esta é a essência da cultura monárquica chinesa que, como podemos intuir, se estende até hoje e, de certa forma, sobrevive no inconsciente coletivo da milenar nação. O mítico imperador amarelo, Huang Ti, já no século 26 a.C. cunhava moedas de bronze, inventava barcos, criava bichos-da-seda, incentivava a medicina, dividia a administração do seu reino em províncias. No final do século 2 a.C., o aclamado "grande unificador", Qin Shihuang, conseguiu finalmente soldar a ferro e fogo os reinados e ducados separados em um só império, enterrando vivo quem se colocasse contra.


卧室 Apesar de existir o "mandato dos céus", há também a compreensão de que "o desejo do povo é o desejo dos céus". Enquanto o reino está em paz e é próspero, o imperador tem o direito de reter o mandato sem maiores questionamentos (isso explica, em parte, o despotismo asiático e a passividade da classe trabalhadora frente ao PC Chinês e aos demais governos autoritários do continente). Se o imperador não honra seus compromissos e não consegue evitar uma crise, o povo tem o direito de se insurgir. Toda esta "sociologia" deriva do confucionismo, que é a doutrina moral e ética de quase toda a cultura asiática.


第五 O PCC, sob a batuta de Mao Tsé-tung, tentou erradicar o confucionismo da China, afirmando se tratar de uma ideologia reacionária. Trabalhou duramente para isso e o episódio da "Revolução Cultural" demonstra no que resultou parte dos seus esforços; seguindo, é verdade, o método bizarro do stalinismo (que é primo-irmão do despotismo asiático). O resultado não poderia ser muito diferente do que ocorreu. Os sucessores de Mao, com Deng Xiaoping à frente, reestabeleceram sutilmente determinadas compreensões confucionistas, agora já transformadas por uma espécie de "reforma protestante". Segue tudo igual: obediência, ode ao trabalho, diligência, hierarquias; com o acréscimo do "enriquecei-vos" como sinal de graça, presente no protestantismo europeu e no ideário de Bukhárin (abençoado por Stalin durante certo tempo, diga-se de passagem).


第六 A China moderna encontrou na estrutura de poder criada pelo stalinismo e expressa pelo PCC o mesmo poder dos imperadores antigos, que garantiu a sua esperada estabilidade política e econômica, calcada numa prosperidade meteórica e explosiva. De um país dividido, humilhado e saqueado pelo imperialismo ocidental, além de algemado economicamente pelas compreensões confucionistas, passou para a 1ª potência do mundo no século 21. Ironicamente não foram os consultores de Wall Street ou de Cambridge que impulsionaram a "reforma protestante" no confucionismo, mas os "comunistas", que através das suas "modernizações econômicas", obrigaram Confúcio a ler Adam Smith e atualizá-lo em, no mínimo, 4 séculos.
***
Na China o governo exige das multinacionais que lá "investem" subsídios para institutos de pesquisa (na maioria dos casos 50% ou até mesmo 70% da produção). Os chineses dispõem-se a conceder direitos comerciais apenas a joint ventures. A Microsoft só ganhou um "ok" legal para operar na China depois de concordar em desenvolver uma versão oficial em mandarim e em estabelecer as bases da própria indústria chinesa de software. AT&T e Alcatel estabeleceram laboratórios, enviaram pesquisadores para estudar no Ocidente e empregaram milhares de engenheiros chineses em suas linhas de desenvolvimento de produtos.
No Brasil pedem aos oligopólios que "embelezem" as ruas e praças com um paisagismo que enche os olhos da classe média, mas que lucra milhões em isenções fiscais e, como um parasita, não deixa nada para o país: apenas mais terra arrasada!
Um país de pé, olho no olho; outro de joelhos, dizendo que "não há saída" fora dessa chantagem. Certamente o mercado interno chinês tem muito mais estofo do que o mercado brasileiro (ou latino americano) para impor algo ao capital internacional. Mas, de qualquer forma, uma população de 210 milhões de pessoas é maior do que países e regiões inteiras da Europa e de outros continentes, com riquezas naturais exclusivas. Se tal mercado não se valorizar, quem o fará?
Não será, certamente, a "elite do atraso", que através do seu "empreendedorismo" e do seu "liberalismo", fará isso. Pelo contrário: entregar tudo de mão beijada é a única "liberdade" que conhecem...

sábado, 2 de janeiro de 2021

Os dilemas da assembleia constituinte no Chile

 


*Texto escrito originalmente para o blog da Construção pela Base (www.construcaopelabase.blogspot.com).


O mundo acompanha com expectativa os desdobramentos da rebelião popular do Chile, que culminou na vitória da proposta pela alteração da constituição no plebiscito realizado no dia 25 de outubro de 2020. Por esta razão a esquerda olha o resultado do plebiscito e tira suas conclusões, marcadas, como sempre, por um ufanismo flagrante e contraditório.

         Contudo, há que se ter muito cuidado! Sobretudo com a desordem das palavras de ordem!

         Não tivemos nenhuma “vitória” por enquanto, apenas o positivo rechaço da população chilena aos anos de neoliberalismo, que terminaram na rebelião popular de 2019. Ainda é cedo para comemorar qualquer “vitória” porque a burguesia ainda detém todo o processo em suas mãos. Como sempre, ela está cedendo os anéis para conservar os dedos e, se não formos cuidadosos, podemos acompanhar a promulgação de uma constituição ainda mais reacionária do que a existente hoje sob os aplausos e gritos de “vitória” por parte da esquerda.

         Para evitar isso, vale refletir sobre os seguintes dilemas:

 

Dilema nº1

         Os protestos massivos de 2019 terminaram reféns do espontaneísmo, uma vez que não forjaram uma direção revolucionária com influência suficiente para dirigir uma revolução até o fim; ou seja: até a destruição do Estado burguês e o lançamento dos alicerces de um Estado de trabalhadores baseados nas assembleas territoriales (assembleias territoriais), que, por vários motivos, não conseguiram se alçar como organismos de duplo poder[i]. Como sempre, a esquerda levantou uma miríade de palavras de ordem confusas e contraditórias que, no final das contas, refletia o espontaneísmo reinante no seio do movimento de massas. Não conseguiu hierarquizar e popularizar palavras de ordem que concretizassem um programa revolucionário. Para isso, foi decisivo a ausência de uma direção revolucionária.

         A esquerda existente no Chile – tal como a brasileira – vive uma miséria teórica sem precedentes. Reproduz frases prontas que estão completamente descoladas da realidade, quando não coloca a carroça na frente dos bois, o que não pode gerar outra coisa que não mais confusão. Muitos grupos de esquerda compreendiam, corretamente, que a palavra de ordem de assembleia constituinte servia como desvio das tarefas fundamentais de uma revolução socialista, muito embora isso não tenha se refletido na sua atuação prática e a própria burguesia, que como foi dito, nunca perdeu a direção do processo, tenha se antecipado e, ela própria, proposto a assembleia constituinte como forma de frear e conter o descontentamento popular.

         Até mesmo o MRT (organização editora do Esquerda Diário), que é o campeão da palavra de ordem de assembleia constituinte para qualquer país em qualquer conjuntura, reconhece que se trata de “uma tentativa de desvio institucional”[ii]. Antes tarde do que nunca! Apesar disso, diferentemente do processo revolucionário russo de 1917, quando os bolcheviques conseguiram evitar com maestria esse “desvio institucional” e preservar a direção da revolução – dada, é claro, uma série de características específicas daquele momento histórico –, o mesmo não pode ser falado agora, sobre o Chile de 2020. A assembleia constituinte chilena é uma realidade que não pode ser ignorada e evitada em razão das profundas ilusões das massas e da própria esquerda, bem como de características específicas da conjuntura histórica que levaram aos protestos de 2019-2020.

         Longe de cair nos delírios da LIT-PSTU, que chama a atual proposta de assembleia constituinte no Chile de “vitória esmagadora” e de “avanço da revolução”, ao mesmo tempo em que reconhece que “todo o Processo Constitucional vai ser comandado pelos mesmos de sempre”[iii], devemos nos preparar para enfrentar essa realidade, sem ufanismos e desvarios; e sem cair no erro oposto, expresso pela Revolución Obrera – uma organização proletária da Colômbia –, que contrapõe esquematicamente “as ruas” com a atual “participação no processo da assembleia constituinte”[iv], como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra e pudéssemos combater tais ilusões estando fora do processo e o ignorando. Mesmo que grande parte da população chilena não tenha votado pela assembleia constituinte, tal processo é visto como parte das mobilizações de 2019 e é fruto de profundas ilusões e esperanças das mesmas. Claramente não vivemos uma situação como a de 1917, onde o boicote à assembleia constituinte era um dever revolucionário; daí advém o profundo equívoco da Revolución Obrera.

         Para combater as ilusões dos trabalhadores chilenos, em primeiro lugar, devemos dialogar com o correto sentimento que vê a assembleia constituinte como parte do processo desencadeado em 2019, demonstrando que nada está decidido ainda – portanto, sem nenhuma “vitória” ou “triunfo” até o momento – e, ao contrário, tudo está em jogo; além de nos prepararmos conscientemente para todas as armadilhas que a burguesia chilena já está preparando (incluso a utilização da assembleia constituinte como isca para a desmobilização). A CST e o MES (ambas correntes internas do Psol) também são reféns do mesmo ufanismo da LIT, que inevitavelmente joga areia nos olhos das massas trabalhadoras e não é capaz de formular uma única bandeira que torne possível “enterrar de vez os entulhos da ditadura chilena”[v].

         Nesse sentido, julgamos que o primeiro passo é colocar em ordem as palavras de ordem e definir até onde devemos ir para conquistarmos uma vitória real. Ou seja: basta tirar Sebastian Piñera do poder e supostamente “enterrar” o neoliberalismo pinochetista e da Escola de Chicago sem tocar nas instituições políticas e no sistema jurídico do país? Isto é: basta gritar “Fora Piñera” sem trabalhar concretamente por uma agitação e propaganda que possa preparar o poder dos trabalhadores? Ou pior ainda: poderemos avançar vendendo como vitória e como “avanço da revolução” a simples execução de um plebiscito que estará “nas mãos dos mesmos de sempre”?

 

Dilema Nº2

         O fato de não podermos ignorar a realização da assembleia constituinte não nos deve tornar, sob hipótese alguma, embelezadores da mesma. Tampouco devemos tolerá-la dentro dos estreitos limites em que foi concebida: restrita às “leis internacionais” (as mesmas que endossam todo o neoliberalismo pinochetista) e à maioria de 2/3 para poder legislar. Tal como o bom e velho método leninista, devemos usar a atual assembleia constituinte como uma tribuna de agitação revolucionária para insuflar as mobilizações de rua e ampliar todas as denúncias contra o capitalismo, o patriarcado e o conjunto da velha sociedade que busca se manter a qualquer custo.

         Um dos principais erros a serem evitados é manter o debate da assembleia constituinte restrito a pautas básicas, como o direito à educação, saúde e aposentadoria pública; bem como à discussão sobre o caráter das “câmaras de representantes”, uni ou bicameral. Isso seria um economicismo em nível superior. A questão central para a participação na assembleia constituinte é tentar transformar as reivindicações mínimas dos protestos de rua em revolução socialista!

         Tarefa extremamente difícil, sabemos, mas não impossível, desde que tenhamos clareza sobre a caracterização da assembleia constituinte e das tarefas a serem propostas numa estreita relação com a mobilização popular concreta. Portanto, a questão central é fazer com que o processo que levou à assembleia constituinte não morra e, principalmente, que não caia na versão tradicional de constituintes burguesas, descoladas da realidade popular. Há que se resgatar os melhores exemplos de pressão popular da revolução francesa de 1789 e, se esforçando por recriar as mobilizações de rua de 2019, tentar instalar – guardadas as proporções – o que Trotski propôs para a realidade espanhola de 1936-1939: uma corte constituinte revolucionária[vi].

         Nesse sentido, devemos tentar traduzir essa palavra de ordem para o Chile de 2019-2020 procurando ligá-la estreitamente às assembleias territoriais e às demandas dos protestos de rua, para elevá-las e ir além. Afinal de contas, foram estes protestos organizados pelas assembleias territoriais que arrancaram a assembleia constituinte. É quase consenso entre a “esquerda” que a proposta de assembleia constituinte será usada desesperadamente pela burguesia chilena para não mudar nada, desviar e enfraquecer a luta. A questão agora, porém, é como tentar evitar isso.

 

Assembleia territorial chilena em sessão

Dilema Nº3

         O Esquerda Diário (MRT) informa que “nas grandes massas primam muitas ilusões nesse processo. Muitos acreditam que será escrito por independentes, porque há enorme descrédito dos partidos. Mas o mais provável é que as eleições estejam dominadas pelos velhos partidos e que buscarão tentar cooptar ‘independentes’ para integrá-los ao caminho da auto-reforma”[vii].

         Uma das questões centrais de qualquer agitação e propaganda revolucionária para o Chile hoje diz respeito à eleição dos deputados constituintes, que estão sendo claramente restritas ou ameaçadas em prol da hegemonia dos velhos aparatos partidários, sejam de direita, sejam da “esquerda” reformista. A rebelião popular chilena demonstrou que está farta deste tipo de “representatividade” e cabe à esquerda revolucionária tentar traduzir em palavras de ordem esse sentimento tão evidente. Em primeiro lugar, deve-se tentar reativar as assembleias territoriais e vinculá-las abertamente ao processo da constituinte. Foram estas assembleias que estiveram a frente de grande parte da mobilização de 2019 e são elas que devem estar à frente da assembleia constituinte, uma vez que esta última só existe por causa da mobilização oriunda das primeiras.

         Segundo entrevista do professor chileno, Jorge Magasich, ao canal Fronteira Vermelha[viii], estão surgindo centenas de milhares de “candidatos” populares à assembleia constituinte, o que deve necessariamente fragmentar as listas de independentes e enfraquecê-las, fortalecendo os partidos tradicionais (sobretudo os de direita). Ele sugeriu, então, a tentativa de construção de uma lista independente única que unifique os ativistas do movimento popular. Aqui existe a preciosa oportunidade de propor a sua organização via assembleias territoriais (se elas não tiverem ativas é outra excelente oportunidade para tentar reativá-las, visto que as eleições para a constituinte se darão em abril de 2021 e, apesar de tudo, há tempo), obrigando os partidos de “esquerda”, “operários” e que se dizem “socialistas”, a submeter sua institucionalidade às assembleias territoriais. Elas foram um produto e um motor das mobilizações de 2019; são elas que devem controlar a eleição dos constituintes realmente independentes e legislar por um novo Chile. Devemos relembrar a velha proposta da Comuna de Paris de mandatos revogáveis a qualquer momento; tanto para os representantes das assembleias territoriais, quanto para os da direita. Eleito que defender algo diferente do que deseja seus eleitores, deve ter o mandato imediatamente revogado – e assim deve ser legislado também para qualquer cargo representativo no futuro. Assim dialogaremos com o sentimento de rechaço aos partidos e ao parlamento burguês.

         Isto é: deve-se contrapor para a população trabalhadora a assembleia constituinte burguesa, dominada pelos partidos tradicionais, conservadores, de direita, pinochetistas não declarados, da “esquerda” conciliadora e refém da hipócrita institucionalidade burguesa; e a assembleia constituinte proletária, das assembleias territoriais, das verdadeiras demandas populares surgidas no calor das mobilizações de rua. Se não há consciência e espaço político para isso hoje, deve ser desencadeado um grande movimento de agitação e propaganda por todos os ativistas independentes, organizações de esquerda e socialistas para instigar o debate e a reflexão a nível nacional e internacional.

         Eis que os partidos da institucionalidade brasileira saúdam e propagam a necessidade de uma “institucionalidade” (burguesa, não declarada) para a assembleia constituinte chilena. O PCdoB, por exemplo, que expressa posição muito semelhante a do PT, escondendo-se atrás da declaração conjunta dos partidos da “esquerda” institucional chilena, afirma que “a institucionalidade deve implementar com urgência uma agenda que combata os abusos e as desigualdades para aliviar a situação que milhares de famílias estão vivendo”[ix]. Ou seja, sendo acrítica quanto aos perigos da declaração dos partidos chilenos, passa a disseminar as mesmas ilusões. Atribuir “à institucionalidade” o dever de fazer as transformações sociais no Chile é o mesmo que matar a constituinte antes dela nascer.

         O problema da institucionalidade burguesa não se resolve conferindo 50% de vagas para as mulheres e Mapuches no abstrato, mas garantir que essa representatividade tenha consciência de classe e um programa socialista que vá claramente além dos limites da institucionalidade burguesa. Importante ressaltar que trabalhar a consciência de classe é de grande necessidade não apenas dentro dessa representatividade, mas de forma ampla, sendo realizada diretamente e através dos movimentos, nas massas – tendo em vista que é uma ausência teórico-prática generalizada dentro da esquerda e que o trabalho de base é de suma importância nesse processo.

 

Dilema Nº4

         A maioria esmagadora da “esquerda” chilena e mundial está satisfeita com uma constituição que garanta educação, saúde e previdência pública e sirva para tirar Piñera do poder, independentemente do que venha depois. Isso tudo é importante, mas sem mexer na estrutura institucional burguesa tudo isso não passará de “letra morta” – e nesse ponto certamente a Revolución Obrera e muitas outras organizações tem razão. A tudo isso chamamos de economicismo em um nível superior.

         A LIT analisa, corretamente, que “todo o esforço que fizemos, marchas pacíficas, plebiscitos, elaboração de uma lei com demonstração técnica de sua viabilidade, etc., tudo isso foi jogado no lixo pelo governo e o Parlamento. Óbvio! O governo e a maioria dos parlamentares são financiados pelos donos das AFPs [os empresários da previdência privada]! Dessa forma, não conseguimos nenhuma mudança. A única conclusão que milhões de trabalhadores tiraram, é que tudo o que fizemos não nos serviu para nada e que os representantes de NO + AFP se venderam”[x]. A obviedade de tais conclusões, no entanto, não se reflete na política da LIT para a assembleia constituinte atual no sentido de questionar e varrer as instituições democrático-burguesas que realizam este tipo de atrocidade.

         Para concretizar qualquer medida que atenda aos interesses dos trabalhadores deve ser garantido o poder real (ou, pelo menos, deve-se apostar nisso). Isto é, não podemos nos limitar aos marcos aceitáveis para a burguesia, pois esta não seria uma atuação revolucionária no processo da assembleia constituinte – ao contrário, seria agir exatamente como age a esquerda reformista e como a burguesia espera. Por isso, uma das propostas fundamentais é a modificação estrutural das instituições de representantes; ou seja, propor o fim do parlamentarismo burguês e a transformação das assembleias territoriales nas instituições de governo para o Chile, conferindo-lhe poderes legislativos, executivos e judiciários.

         Da mesma forma, será necessário assegurar a eleição dos magistrados para os cargos de justiça, de administração e de legislação (extirpando as castas), sendo que seus mandatos devem ser revogáveis a qualquer momento; além de defender a obrigatoriedade de eleição para todo cargo estatal, seja de bancos públicos ou de administração dos recursos naturais, como o cobre, por eleitores formados pela classe trabalhadora que está na base de tais empresas – acabando, assim, com as indicações de cúpula, seja do presidente, seja dos seus ministros. Para isso, deve-se tentar despertar o interesse do povo pela administração da sociedade e da economia através das assembleias territoriais, e não meramente incentivá-lo a “eleger representantes”. Ir, ao longo do processo, trabalhando, se possível, para garantir a exclusiva representatividade dos partidos e organizações ligadas aos protestos de rua nessas assembleias territoriais, como poder real e alternativo ao parlamento burguês.

         Não menos importante, é destituir as forças armadas pinochetistas e criar milícias populares e de trabalhadores sob controle das assembleias territoriais, que já exerciam papel de controle da circulação de pessoas nos bairros ao longo dos protestos de 2019. Retomar e aprofundar esse processo é fundamental, contrapondo-o ao atual exército pinochetista, apontando que, em tempos de paz, a alta oficialidade também deve ser eleita pelas assembleias territoriais.

 

Outra assembleia territorial chilena em sessão

Dilema Nº5

         Nas suas declarações, a LIT faz a seguinte análise: “Da UDI à Frente Ampla/PC, todos já estão dizendo que querem defender a propriedade privada na Nova Constituição, fazendo mudanças cosméticas que não permitirão uma verdadeira independência e soberania de nosso país. Nós dizemos com clareza: devemos tocar os interesses das grandes famílias e das empresas transnacionais, nacionalizar o cobre e os recursos naturais, colocar a riqueza do país sob o controle da classe trabalhadora e do povo. Queremos acabar com a propriedade privada, porque se o trabalho de produção é socializado e realizado por toda a classe trabalhadora, por que a apropriação da riqueza dessa mesma produção é privada para um punhado de ricos? Recuperar tudo o que nos foi roubado, expropriar o seu patrimônio, é o caminho de recuperar a nossa soberania”[xi].

         A despeito da contradição de propor o “controle da riqueza do país sob controle da classe trabalhadora e do povo” sem indicar quais serão as formas de poder operário correspondentes, a transição econômica e o fim da propriedade privada é um processo mais lento e mais profundo[xii], que depende das formas políticas que o possível poder dos trabalhadores a partir das assembleias territoriais conseguir adotar – sobretudo se a esquerda tiver a firme preocupação de despertar as trabalhadoras e os trabalhadores para assumirem seu protagonismo consciente e ativo nelas (ou seja, desenvolver uma nova psicologia de massas que crie independência intelectual comprometida com a coletividade). Pelas experiências do século 20 e, em particular, pela situação atual do Chile e da América Latina, podemos constatar que ainda falta consciência de classe, organização e condições materiais para abolirmos totalmente a propriedade privada.

         Uma tentativa de solucionar tal contradição é tolerar uma economia mista (propriedade coletiva e privada) até onde for inevitável, mas tendo a propriedade coletiva como eixo através das assembleias territoriais, isto é, do Estado. Propor o poder popular via assembleias territoriais significa, precisamente, trabalhar conscientemente pelo controle operário e popular da produção, mas reconhecendo que, atualmente, faltam consciência e organização suficientes para extirpação tão profunda. Este cuidado é importantíssimo para evitar uma reprodução do stalinismo e dos seus planos quinquenais. Os primeiros passos de um possível futuro governo das assembleias territoriais seriam regulamentar a economia privada e o mercado. O fim da propriedade privada deve ser proposto na exata medida do crescimento consciente e organizado do controle operário e popular da produção e da economia em geral.

 

Aos que hesitam!

         Algumas pessoas reféns do imediatismo e da “mediocridade do possível” podem perguntar: poderemos realizar tudo o que foi proposto até aqui? A resposta decisiva para essa importante pergunta é: tudo depende de como a esquerda irá intervir neste processo, com qual programa, palavras de ordem e disposição de espírito. O conjunto destas propostas – se bem organizadas, agitadas e propagandeadas – pode ser a chave para uma possível mudança na correlação de forças e, principalmente, para ir além da institucionalidade burguesa da assembleia constituinte, preparando o empoderamento da classe trabalhadora. Desde 2019 que “as nossas palavras de ordem estão em desordem”, como dizia Bertold Brecht[xiii]. É preciso hierarquizá-las e colocá-las numa perspectiva classista, evitando todo o tipo de ufanismos; além de aprendermos a ouvir e a sentir o povo, para construir este caminho levando suas experiências, anseios e preocupações progressivas em consideração.

         A vanguarda revolucionária deverá desempenhar um papel hercúleo de agitação e propaganda das ideias que foram expostas até aqui para tentar concretizá-las – além de procurar criticar, dialogar e sintetizar outras que sejam honestas e venham no mesmo sentido. Explicar paciente e o mais amplamente possível tais ideias para que entre no imaginário popular e no inconsciente coletivo. Se não for possível executá-las imediatamente, as deixamos plantadas para o futuro, tanto no Chile como para toda a América Latina. A condição para isso é tirá-las do papel e levá-las ao seio do movimento de massas.

         Nesta construção coletiva e social dois elementos são fundamentais: tais propostas só podem ter um desfecho positivo para a classe trabalhadora se a mobilização de 2019 continuar e se ampliar dentro desta perspectiva, abrindo espaço para a construção de uma organização revolucionária capaz de inspirar e orientar todo o processo político, alertando e lutando contra todas as armadilhas que já existem e as que surgirão. É imprescindível a criação de uma ou várias organizações revolucionárias que confluam nesses objetivos centrais. Se conseguirem desenvolver corretamente as perspectivas apresentadas de ir além da institucionalidade burguesa, podem e devem se tornar a direção revolucionária que tanta falta fez em 2019 e continua fazendo até hoje – e, sem o quê, qualquer constituição não passará de um pedaço de papel repleto de letras mortas.

 

Referências


[xii] Ver e refletir sobre as conclusões do seguinte texto: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/socialismo-com-caracteristicas-chinesas.html (ver especialmente os capítulos 4 e 5).