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A grande obra do ex-comunista espanhol Fernando Claudín, intitulada “A crise do movimento comunista”, de 727 páginas e publicada no Brasil pela Editora Expressão Popular, é um monumento teórico de crítica ao stalinismo e a todos os problemas do comunismo internacional construído e desencadeado pela União Soviética (URSS) ao longo do século XX. Tal crítica segue em vigência, porque boa parte dos problemas teóricos criticados no livro ainda não estão nem perto de serem superados e não são sequer conhecidos pela esquerda. Daí a enorme importância da republicação do livro pela Expressão Popular. Originalmente publicado em 1970, o livro de Claudín ainda não foi superado porque a esquerda, no geral, segue reproduzindo os graves problemas descritos por ele, tal como se o tempo tivesse se congelado na década de 1930.
Fernando Claudín nasceu em Zaragoza,
Espanha, no ano de 1913. De formação política stalinista, tornou-se participante
ativo da guerra civil espanhola (1936-1939) e dos expurgos internos do Partido
Comunista Espanhol (PCE) contra as oposições à burocracia, chegando a ganhar
grande influência partidária na sequência do XX Congresso do PCUS que
“denunciou os crimes de Stalin”, em fevereiro de 1956. Conheceu as entranhas
das manipulações políticas dos aparatos ligados à Moscou. Passando a ocupar
cargos remunerados da maior importância, como o Comitê Central, a Comissão
Executiva e o Secretariado do PCE, Claudín adquire um amplo conhecimento do
movimento comunista nacional e internacional, que perpassa por toda a sua obra.
Este conhecimento acaba se tornando
fonte de desentendimentos com a outra ala da burocracia do PCE a partir do
crescimento das divergências que irrompem no final de 1963. No ano seguinte,
Claudín e outros dirigentes são expulsos do PCE, dando fim a uma longa etapa de
sua vida e lhe colocando obrigações pela busca do sustento que lhe expandem os
horizontes e derrubam uma série de viseiras que o stalinismo lhe tinha imposto,
abrindo-lhe a mente e a garganta. É nesse contexto, e baseado na experiência
política de mais de 30 anos no PCE e na Internacional Comunista (IC), que
Claudín irá escrever sua grandiosa obra.
Na introdução da edição brasileira, José
Paulo Netto afirma que a vida lhe impôs um desafio pessoal “na sequência da sua exclusão do PCE: tratava-se de compreender as suas
três décadas de inserção no movimento comunista, sua honrada dedicação e seu
enorme fracasso político”. E chama a atenção para a sóbria notação final
com que Claudín conclui a introdução do seu livro: “é desnecessário dizer que este livro não é apenas uma crítica do
movimento comunista – é também uma autocrítica do autor. Mas isso não tem a
menor importância”[i].
Aqui devemos discordar de Claudín: com uma
“esquerda” que jamais faz auto crítica sobre o que quer que seja e não busca
seriamente a causa de nenhum fracasso, tentando mudar radicalmente o curso
das coisas, a auto crítica é, sem dúvida, da maior importância! Tanto para José Paulo Netto quanto para nós, “não se pode temer o esclarecimento dos
erros (e dos crimes); só ele pode impulsionar criticamente o pensamento e a
prática do movimento comunista”[ii].
1.
A crise de consciência frente ao trotskismo
Nesta autocrítica e nesta busca por
esclarecimento, no entanto, existem ziguezagues e contradições. Como militante
disciplinado nos seus primeiros anos no PCE, Claudín sempre foi um severo
crítico e adversário do trotskismo, mas possivelmente isso nunca tenha sido
muito bem aceito por ele, que reconhecia inconscientemente as contribuições do
pensamento de Trotsky. Nos anos subsequentes à sua expulsão, acabou por devorar
toda a literatura produzida pelo movimento trotskista e dar vasão à ela nas
páginas do seu livro. Isso, como é bastante compreensível, não foi feito sem
grandes contradições e dores. Abrir mão de posições políticas – ainda mais se
tratando do stalinismo – é um difícil processo. Claudín assume muitas posições
de Trotsky, sem o declarar, no seu livro, o que leva um dos seus partidários,
Jorge Semprún, que escreve um dos prefácios, a nos advertir de determinados
“perigos”. Reconhecer que se apoiou os monstruosos crimes de Stalin
acriticamente pensando “construir o comunismo internacional” não pode ser
tarefa simples, uma vez que mexe com o nosso espelho profundo e, até mesmo, com
a nossa auto estima.
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Fernando Claudín
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Para Claudín e Semprún, as posições de
Trotsky apresentam “limitações
intrínsecas” que derivaria daquilo que “devemos
chamar de idealismo subjetivo e voluntarista”[iii].
Ou seja, Claudín, mas sobretudo Semprún, tentam igualar a teoria de Trotsky ao guevarismo; isto é, ao foquismo revolucionário, como se
bastasse a “boa vontade” dos revolucionários para “fazer a revolução”. Isso se
daria desta forma porque eles julgam que “Trotsky
nunca submete à crítica os próprios fundamentos da estratégia [da
Internacional stalinizada] denunciada por
ele”. É assim que ambos autores interpretam a teoria trotskista da “crise
de direção”, bem como as suas críticas ao movimento comunista hegemonizado pelo
stalinismo; o que não impede Semprún de escrever que, todas as análises
críticas de Trotsky sobre os erros da IC são “frequentemente certeiras” e, às vezes, “proféticas”. A despeito deste equívoco, a obra de Claudín faz jus
em diversas passagens, ao pensamento e às análises do trotskismo, por vezes,
repetindo quase textualmente suas críticas às posições, às vacilações e às
traições do aparato stalinista, inclusive recorrendo às análises de Isaac
Deutscher – reconhecido biógrafo de Trotsky.
Mas a proximidade de Claudín com Trotsky
não para por aí. Mesmo sendo um ex-stalinista, Claudín realiza análises mais
profundas e esclarecedoras das traições do aparato da URSS do que os herdeiros
da IV Internacional, que estavam muito mais preocupados em reproduzir dogmas e
frases feitas, conforme atestaremos adiante.
2.
A dissolução da Internacional Comunista (IC) em 1943
A espinha dorsal de toda a obra de
Claudín parte do crime político cometido pela burocracia stalinista de
dissolução da IC a mando dos EUA e Inglaterra, que exigiram algumas “garantias
de boa vontade” da parte de Stalin para selar o pacto político-militar dos
Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Garantia esta que foi dada de muito
bom grado por Stalin, mas que não passou incólume por Claudín e muitos outros
comunistas que ainda mantinha algum tipo de criticidade.
Nas palavras do autor: “A IC não é liquidada porque está em crise, mas pelo que, apesar da
crise, ainda simboliza: a revolução proletária. Toda a política dos partidos
comunistas – à exceção dos poucos que começam a se insubordinar contra o
comando de Moscou – fica determinada pelo objetivo que Stalin se propõe (como
está documentalmente provado) desde as suas primeiras negociações com os outros
dois ‘grandes’: a divisão do mundo em áreas de influência. Isso implica que os
partidos comunistas renunciem a priori
a toda tentativa de transformar a guerra antifascista em revolução socialista”[iv].
São fartos os documentos e os fatos
citados por Claudín, demonstrando como a dissolução da IC serviu apenas aos
interesses do imperialismo Ocidental, e nada de positivo trouxe ao movimento
comunista. Claudín escreve: “Inadmissível
para as potências capitalistas era uma Rússia soviética que fomentasse a
revolução socialista para além das suas fronteiras, quer pela ajuda teórica,
política e material ao movimento revolucionário no mundo capitalista, quer pela
criação de um regime social que desse efetivos passos para a libertação
econômica, política e cultural dos trabalhadores, constituindo assim um exemplo
explosivo para o proletariado mundial. A incredulidade de Lenin e seus
camaradas diante da possibilidade de uma coexistência duradoura com o mundo
capitalista explica-se também por essa razão: para eles, a Rússia soviética
era, antes de mais nada, essa força impulsionadora da revolução em escala
mundial”[v].
Foi exatamente este papel que Stalin cumpriu
não apenas dissolvendo a IC para renunciar a uma perspectiva revolucionária nos
países capitalistas, mas por toda a sua ação teórica e prática visando
consolidar uma estabilidade econômica e política para o “truste estatal soviético que
entrava em cena”.
***
Claudín ainda traça dois momentos distintos
da crise da IC: o período em que ela foi dirigida por Lenin e Trotsky; e o
período em que o stalinismo se consolidou como sua direção hegemônica. Ainda
que ele caracterize o período stalinista como traição aberta ao movimento
operário internacional, demonstrando que a IC se tornou um reles instrumento
dos interesses e da diplomacia do chauvinismo
grão-russo, nada tendo em comum com os interesses pelo desenvolvimento da
revolução e do socialismo – tal como teve nos seus primeiros anos –, o nosso
autor não poupa críticas importantíssimas a Lenin e Trotsky que, a despeito de
os reconhecerem como revolucionários sinceros, contribuíram com alguns
equívocos teóricos e organizativos que pesaram nos seus problemas
futuros.
Podemos listar alguns deles: ultracentralismo (deixando para trás
determinadas características importantes da organização política da 1ª
Internacional, liderada por Marx e Engels), eurocentrismo
e equívocos teóricos decorrentes dos
primeiros (em particular, a visão um tanto catastrofista das crises do
capitalismo, que eram vistas como o seu possível fim, ignorando sua capacidade
de regeneração – ainda que Claudín traga muitas citações em contrário de Lenin
de que “não existe situação sem saída para a burguesia”).
***
a) Ultracentralismo: No
primeiro caso, também chamado de “russificação” da IC por Claudín, ele afirma
que devemos partir do fato de que há divergências entre a concepção de partido
de Marx e Lenin. Para o autor “não há em
Marx uma teoria sistemática do partido proletário, mas os seus juízos sobre o
tema, apreendidos em conexão com a sua atividade de militante, primeiro na Liga
dos Comunistas e, mais tarde, na 1ª Internacional ou no Partido Socialista
alemão, formam um conjunto coerente e significativo. A ideia que Marx faz do
partido político proletário é um corolário da sua concepção da revolução
comunista como autoemancipação da classe operária. Nenhuma instância exterior –
chefe carismático, grupo de conjurados, partido político – pode, segundo ele,
substituir a ‘maturidade’ revolucionária da classe operária. Ou a revolução
comunista será obra sua ou não haverá revolução. (...) Defende a legitimidade das divergências teóricas e políticas no seio da
Internacional e das suas seções, a plena liberdade de discussão na imprensa,
nas assembleias e congressos. Ao mesmo tempo, não admite a imposição de nenhum
critério de ‘partido’ quando se trata da investigação científica. (...) Cada vez que a forma concreta adquirida pelo
partido – Liga dos Comunistas ou 1ª Internacional – lhes parece entrar em
contradição com o movimento real da classe, Marx e Engels não vacilam em propor
o seu desaparecimento”[vi].
Em suma, para Claudín a missão do partido revolucionário na perspectiva de Marx
e Engels não seria “assumir a direção da
classe, mas ajudá-la a ‘autodirigir-se’”[vii].
Foi por isso que Claudín traz a
brilhante passagem aprovada na sessão do Conselho Geral da 1ª Internacional, em
9 de março de 1868: “O programa [da I
Internacional] se limita a traçar as
linhas gerais do movimento operário e deixa a sua elaboração teórica a cargo
das seções, que, para tanto, aproveitar-se-ão do impulso oferecido pelas
necessidades da luta prática e pelo intercâmbio de ideias. Nos órgãos das
seções e em seus congressos se admitem, indistintamente, todas as convicções
socialistas”. E em cima desse trecho, Claudín observa que: “Pode-se fazer a ressalva de que as
condições em que se constitui e atua a Terceira Internacional [IC] são outras. É verdade. Mas não no que toca
às razões profundas que determinam os métodos preconizados por Marx. A
diversidade de condições em que se encontravam as diferentes frações da classe
operária, a necessidade de que a elaboração teórica partisse das exigências da
luta prática e tivesse por leito o intercâmbio de ideias, seu livre confronto
na imprensa e nos organismos das seções – eram imperativos tão absolutos
(metodologicamente falando) na época da Terceira Internacional quanto na da
Segunda ou da Primeira. De fato são as condições básicas da elaboração de uma
teoria ou política revolucionária que não seja dogmática e responda às demandas
do movimento real”[viii].
Ainda que saibamos que grande parte da
crítica caiba ao partido stalinista, pois Lenin nunca propôs ou foi conivente
com o vazio culto à personalidade e a uma ortodoxia reacionária e engessada,
existem certos exageros de Lenin e de Trotsky no desenvolvimento do
“centralismo democrático”, o que acaba sendo reproduzido de uma forma mecânica
piorada – ainda hoje! – pela militância brasileira e mundial. Foi nesse sentido
que Rosa Luxemburgo criticou argutamente a visão partidária bolchevique,
sustentando que “é ignorar a natureza
íntima do oportunismo o atribuir-lhe, como quer Lenin, a preferência invariável
por uma forma determinada de organização, concretamente pela descentralização.
(...) Concedendo ao órgão dirigente
poderes tão absolutos, de um caráter negativo, como faz Lenin, apenas se
reforça num grau muito perigoso o conservadorismo inerente a esse órgão”[ix].
Ou seja, ainda que lhe seja um terreno bem fértil, Rosa alerta para o fato de
que nem sempre o oportunismo se manifesta na descentralização, como foi o caso
específico russo da polêmica com os mencheviques.
Neste sentido, a “crise do movimento
comunista” não apenas se manteve, como se aprofundou[x].
Por outro lado, há que se tomar um enorme cuidado com o proselitismo
espontaneísta, que pode resultar dessa visão dos trabalhadores se
“autodirigirem” e se “auto emanciparem”, pois a luta política se dá também no
seio do movimento da classe operária, que conta com grande influência política da
burguesia. Frente a isso, como não abrir uma artilharia pesada de críticas e
desencadear a luta política, podendo levar a uma “luta fratricida” (pra usar
uma expressão muito comum das burocracias sindicais e reformistas, reproduzidas
pela base de trabalhadores independentes).
***
b) Eurocentrismo: o
outro problema apontado por Claudín foi o eurocentrismo
presente na IC. Ainda que saibamos que a Europa foi por séculos – e de
certa forma ainda é – o centro do mercado mundial e, portanto, do capitalismo,
uma Internacional jamais poderia ignorá-la para virar os seus olhos para os
movimentos da sua periferia. Esta é, precisamente, a amarga lição do período de
vigência da IC. Foi na periferia do sistema – sobretudo Rússia e China – que se
produziram as duas maiores revoluções do século passado. Preocupados em
reproduzir a ortodoxia marxista de que a revolução deveria triunfar no centro
do sistema – portanto, na Europa (e, em especial, na Alemanha) – os olhos da IC
estiveram grudados no velho continente ao longo de toda a sua existência
(1919-1943), mesmo que houvesse fortes tendências vindas dos países coloniais.
É verdade que Lenin reconheceu – como bem demonstrou Claudín – o movimento
colonial de libertação nacional, embora nunca tenha dado destaque nos informes
e nos tempos de debate na IC, o que abriu várias lacunas posteriores.
A crítica que Claudín faz à teoria
marxista merece nossa atenção e reflexão no seguinte ponto: “a lógica interna da teoria marxiana da
revolução socialista mundial trazia em si duas ideias de cariz eurocêntrico,
que teriam uma enorme gravitação na IC. A primeira, de caráter principalmente
estratégico: a libertação do mundo explorado pelo capitalismo seria o resultado
da revolução socialista no Ocidente; e a segunda, de caráter cultural, no
sentido mais amplo desse termo: a transformação socialista do mundo significava
a sua europeização. Lenin parte dessa herança teórica”[xi].
Um pouco antes deste trecho, Claudín relembra uma análise esboçada por Marx por
volta de 1853 sobre a “grande revolução dos Taiping” na China, afirmando um
tanto profeticamente que ela “pode
contribuir para provocar a revolução europeia mais do que qualquer outra causa
política”[xii].
Contudo, o ápice da demonstração das
limitações que a europeização impunha à IC é retratada quando Claudín narra o
“enérgico protesto” do delegado indiano M.N. Roy, quando ele, mais profeticamente
que Marx, demonstrou uma “escassa
confiança na perspectiva da revolução no Ocidente”, conforme todos os
debates dos primeiros congressos apontavam – sobretudo as esperanças em relação
à Alemanha. Claudín aponta que “Roy
embasa esse ponto de vista no pressuposto de que o capitalismo europeu,
valendo-se dos recursos que extrai das colônias, está em condições de levar ao
extremo politicamente necessário as concessões econômicas ao proletariado
ocidental”[xiii].
E mais adiante complementa trazendo uma resolução aprovada nos primeiros
congressos da IC por iniciativa de Roy, que sustentava que: “o superlucro obtido pela exploração das
colônias é o suporte principal do capitalismo contemporâneo, e enquanto este
não for privado dessa fonte de superlucros, a classe operária europeia terá
dificuldades para derrocar a ordem capitalista”[xiv].
Lenin tenta refutar este ponto de vista,
que se demonstrou decisivo no desenvolvimento da história subsequente do
movimento comunista na Europa, afirmando simplesmente que “o camarada Roy vai
muito longe” porque sequer os comunistas indianos tinham conseguido “criar um
partido comunista em seu país”, apesar de existirem 5 milhões de proletários na
Índa. Segundo Lenin, erroneamente, esse fato bastaria “para demonstrar que
seus pontos de vista estariam desprovidos de fundamento”[xv].
Por fim, Claudín aponta que: “a ética eurocêntrica continuará dominante
na direção da IC e nos partidos comunistas das metrópoles europeias, tomando,
às vezes, um matiz colonialista. No III Congresso, Roy faz a seguinte
intervenção: ‘concederam-me 5 minutos para meu informe [sobre a Índia] e como esse tema não pode ser esgotado nem
em uma hora, quero aproveitar o tempo para fazer um enérgico protesto. O modo
como a questão do Oriente foi tratado nesse congresso é puramente oportunista,
convindo melhor a um congresso da II Internacional. Não é possível chegar a
conclusões concretas a partir de algumas frases que as delegações tiveram
autorização para pronunciar’”[xvi].
Registrar momentos como esse – quase nunca
lembrados pela esquerda atual – é um dos principais méritos da grande obra de
Claudín.
***
c) Os problemas teóricos:
capitalismo agonizante? O terceiro ponto dos problemas
trazidos por Claudín no período anterior à stalinização da IC está relacionado
com o exagero nas tintas para classificar a crise do capitalismo, o que teve certos
efeitos nocivos para a elaboração de uma política para o movimento operário
internacional.
O livro de Claudín nos aponta que o IV
Congresso da IC resume da seguinte maneira a questão (em cujo desenvolvimento e
conclusões Lenin teve uma intervenção direta): “Depois de analisar a situação econômica mundial, o III Congresso pôde
constatar, com a maior precisão, que o capitalismo, cumprida a sua missão de
desenvolver as forças produtivas, caiu na mais irredutível contradição, não só
com as necessidades da atual evolução histórica, mas, ainda, com as mais
elementares condições da existência humana (...) O capitalismo sobrevive a si mesmo. (...) O que experimenta hoje é a agonia. O colapso do capitalismo é
inevitável”[xvii].
Depois, ele complemente afirmando que “os três primeiros congressos formularam o
mesmo diagnóstico em termos de ‘agonia’. No primeiro se sustenta
categoricamente a ‘incapacidade absoluta das classes dirigentes para reger de
agora em diante o destino dos povos’, ‘a incapacidade do capitalismo financeiro
para restaurar a economia destruída’, ‘a impossibilidade de reconstruir a
produção sobre bases antigas’, ‘a crise mortal geral que afeta a circulação de
produtos no regime capitalista’ e ‘a impossibilidade de regressar não só à
livre concorrência, mas à dominação dos trustes, cartéis, etc’. (...) Ou seja, as contradições básicas,
estruturais, do capitalismo tinham chegado – de acordo com a IC leniniana – a
um ponto de incompatibilidade absoluta com o funcionamento do sistema. Este é o
conteúdo concreto que, neste período, possui o conceito de ‘capitalismo agonizante’”[xviii].
Logo a seguir ele complementa: “É verdade que nos textos de Lenin se podem
encontrar afirmações aparentemente contraditórias com esse conteúdo”, como,
por exemplo: “enquanto o proletariado não
estiver em condições de golpeá-lo decisivamente a burguesia sempre poderá
viabilizar uma saída; a putrefação do capitalismo não significa que a produção
não possa crescer em tal ou qual ramo, em tal ou qual país, enquanto nos outros
ramos econômicos e países ocorrer o contrário”[xix].
Para Claudín, em Lenin, diferentemente de Stalin, o aspecto
economicista-catastrofista era compensado “pelo
caráter global da sua teoria da revolução, na qual o momento político, o
partido e a luta de classes indiscutivelmente tinham a primazia; era replicado
pela sua metodologia dialética no exame de qualquer problema, pela sua
capacidade de retificação em função das necessidades da ação política, baseadas
sempre na análise concreta da situação concreta (embora certas facetas
importantes da concepção leniniana do partido implicassem uma tendência
prejudicial a esse enfoque dialético). Na medida em que o leninismo era
dogmatizado [pelo stalinismo] vai
adquirindo uma existência autônoma, deixando de ser tratado como elemento de
uma totalidade dialética”[xx].
Entre estas e outras análises que
afirmavam, de uma forma ou outra, que “o
capitalismo caminha para o seu crack
definitivo” – sobretudo quando da decorrência da crise econômica mundial de
1929, quando a IC já estava sob comando direto do stalinismo –, uma sessão
plenária do Comitê Executivo da IC foi obrigada a reconhecer a existência de
uma “estabilização relativa” do capitalismo. Não acrescentou, contudo, que a
“estabilização relativa” tem sido a regra.
Em resumo, Claudín quis nos dizer que “a maior crise econômica da história do
capitalismo, em lugar de ser a ‘crise final’ e desembocar na revolução proletária,
como se acreditava na IC, apresentou-se como o parto doloroso de uma nova fase
do desenvolvimento do capitalismo: o capitalismo monopolista de Estado.
(...) Mais uma vez a ‘lógica’ monstruosa
do mecanismo capitalista se revela mais forte que a consciência moral da
humanidade e que a consciência de classe do proletariado – e revela-se mais
astuta que os dispositivos estratégicos e táticos do ‘partido mundial’ da
revolução”[xxi].
Apesar de muito preciso, este trecho não
vai buscar as raízes desta fraqueza da “consciência moral da humanidade” e da
“consciência de classe do proletariado” avançando sobre o difícil, inexplorado
e desconhecido (para a esquerda!) terreno da psicologia de massas, conforme veremos mais adiante. Esta
deficiência, que leva a análise de Claudín a um certo beco sem saída, talvez
tenha causado a sua evolução para o eurocomunismo;
isto é, para a direita. O fato,
contudo, é que a tese vigente na IC durante aqueles anos, segundo a qual
estávamos diante da “crise final” do sistema capitalista, derivava precisamente
da negação da referida capacidade de recuperação do capitalismo e do quanto
suas crises são “auto regenerativas” e “auto racionalizantes”, às custas, é
claro, da criação de um regime de maior exploração da classe trabalhadora –
sobretudo nos seus rincões mais periféricos.
No seu livro intitulado “Aonde vai a França?”, Trotsky escreveu
que: “não há nenhuma crise que, por si
mesma, possa ser ‘mortal’ para o capitalismo. As oscilações da conjuntura criam
somente uma situação na qual será mais fácil ou mais difícil para o
proletariado derrotar o capitalismo. A passagem da sociedade burguesa para a
sociedade socialista pressupõe a atividade de pessoas vivas, que fazem a sua
própria história. Não a fazem por acaso nem segundo seu gosto, mas sob a
influência de causas objetivas determinadas. Entretanto, suas próprias ações –
sua iniciativa, sua audácia, sua devoção ou, pelo contrário, sua estupidez e
covardia – entram como elos necessários na cadeia do desenvolvimento histórico.
Ninguém contou as crises do capitalismo nem indicou de antemão qual será a
última”[xxii].
Esta análise brilhante, mesmo que correta
no geral, ignora as deliberações dos congressos da IC que exageravam nas tintas
do “colapso definitivo” e da qual ele mesmo foi um dos redatores, deixando de
levar em consideração que a IC stalinista, em 1929, afirmava categoricamente
que a humanidade acompanhava a “última crise do sistema” baseando-se –
dogmaticamente – nos debates da própria Internacional. Trotsky não revê ou
relativiza as deliberações dos primeiros congressos da IC, deixando em aberto
aqueles exageros teóricos. Ainda reforçou, equivocadamente, que “o capitalismo não pode dar aos
trabalhadores novas reformas sociais, nem sequer as pequenas esmolas: vê-se
obrigado a tomar as que deu antes”[xxiii].
Segundo Claudín fora exatamente “as pequenas esmolas” extraídas das colônias
mundiais – sobretudo das asiáticas – que garantiram a preservação das bases do
capitalismo e a ilusão dos operários no continente europeu.
De certa forma e até certo ponto, podemos ser condescendentes com Trotsky, pois ele acompanhava
o auge da degeneração da IC e tentava inflamar inspiração nos seus últimos
resquícios revolucionários, além de ser motivado pelos melhores princípios –
diferentemente do stalinismo. Triste mesmo é constatar que a “esquerda
comunista” atual repete quase como um estrofe religioso aquelas determinações
de quase um século atrás sem tirar nenhuma conclusão.
3.
A
brilhante denúncia dos crimes do stalinismo no cenário europeu
Sabemos que a obra de Trotsky é uma
valiosa herança teórica que, dentre outros temas fundamentais, retrata as
criminosas traições do stalinismo mundo afora. Porém, com seu assassinato em
1940, perdeu-se também suas ricas análises, pois os “herdeiros” da IV
Internacional imiscuíram-se em assuntos dogmáticos que apagaram o brilho
fundamental das denúncias de sua principal liderança. Este papel coube,
ironicamente, a um ex-stalinista, que é o autor da obra que estamos a analisar
criticamente, Fernando Claudín.
Ainda que com o atraso de algumas
décadas, Claudín faz uma rica análise da política do stalinismo durante e após
a Segunda Guerra Mundial, além, é claro, dos conflitos no seio do movimento
comunista internacional que os “trotskistas” não tiveram capacidade de fazer
com a mesma profundidade. Nos referimos aqui aos acordos entre a URSS e os
aliados, bem como a política em relação à França, Itália, Iugoslávia e China.
Revisitando a política do stalinismo
para a França e a Itália – os dois maiores países da Europa continental que
poderiam decidir os destinos do continente, uma vez que a Alemanha tinha
retrocedido definitivamente – Claudín faz uma profunda crítica da política de
aliança com as burguesias nacionais imposta pelo stalinismo aos partidos
comunistas destes países. Tal política aliancista ficou conhecida como Frente
Popular, e teve o papel de conter a revolução socialista na França e de selar o
destino da Espanha na guerra civil contra a ascensão do fascismo neste país e
no restante do continente.
Assim ele descreve os dramáticos
acontecimentos deste período: “Na França,
antes que Blum forme o governo, as massas operárias se lançam à greve e ocupam
fábricas no mês de junho. A proximidade destes dois movimentos ativa um
processo que poderia mudar radicalmente o panorama europeu. É indubitável que,
naquele momento, a profundidade revolucionária e a dinâmica combativa do
movimento espanhol eram maiores do que o francês, mas este continha um
potencial revolucionário que foi deliberadamente travado precisamente por
aqueles que deveriam impulsioná-lo. A frustração das possibilidades contidas no
junho francês deixou isolada a revolução espanhola e foi uma das causas
essenciais da sua derrota militar. O caminho ficou livre para a agressão
hitleriana e a Segunda Guerra Mundial. A responsabilidade da social-democracia
internacional, sobretudo do Partido Socialista francês, no rumo tomado pelos
acontecimentos não é menor do que a da social-democracia alemã na vitória de
Hitler. Mas é muito improvável que o juízo da história absolva de toda a culpa
a IC”[xxiv].
Não bastasse o freio imposto pelo
stalinismo à luta contra a ascensão do nazi-fascismo, tentando preservar o
equilíbrio internacional entre Alemanha e URSS, a mudança de 180º durante e
após a Segunda Guerra Mundial não será menos catastrófico. Somada à dissolução
da IC em 1943 a pedido dos “aliados”, a política do pós-guerra imposta ao PCF e
ao PCI foi um verdadeiro crime que sacrificou as possibilidades de uma
revolução socialista nesses países, selando o destino da parte Ocidental do
continente – a mais rica e importante – como base de sustentação do
imperialismo estadunidense. Nenhum trotskista conseguiu realizar uma denúncia
mais completa e contundente deste cenário político – tanto é assim que alguns deles
citam a obra de Claudín como forma de ilustrar seus argumentos (vide a
apresentação da edição brasileira da obra Aonde
vai a França?, de Trotsky, dentre outros trabalhos).
***
Uma vez terminada a Segunda Guerra
Mundial e o nazi-fascismo derrotado, a influência atingida pelos comunistas nos
movimentos nacionais antifascistas era tamanha que a burguesia francesa,
italiana e do Leste europeu ficou completamente à mercê dos partidos
comunistas, como atesta com inúmeros exemplos e documentos a obra de Claudín.
Com a IC extinta, surgiu em seu lugar o malfadado Centro de Informação dos partidos comunistas (COMINFORM),
totalmente hegemonizado pelos interesses da diplomacia da URSS – ou seja: o
coroamento da vulgarização e da degeneração completa a que o stalinismo
submeteu o internacionalismo proletário marxista.
Como a linha política internacional
ditada pelas potências capitalistas mundiais – EUA e Inglaterra –, secundadas
pela URSS, era a divisão do mundo em áreas de influência, o COMINFORM trabalhou
dia e noite para garantir a dócil centralização dos PCs europeus aos ditames do
que queria a cúpula soviética. Por que o imperialismo internacional tolerou a
divisão do mundo em “áreas de influência” com a Rússia soviética? Ora,
justamente porque o prestígio dos partidos comunistas na luta anti-fascista
mundial foi enorme ao ponto de os deixarem prontos para tomar o poder em
diversos países – como a França, a Itália e a Grécia (onde foram
revoltantemente traídos pelo stalinismo) – ou levando-os efetivamente ao poder,
como na Iugoslávia e na China.
Na maioria dos países da Europa
Ocidental – bem como na China – a orientação política dada pelo stalinismo era
para que os PCs formassem governos de coalização com a burguesia nacional,
reproduzindo a catastrófica política anterior de “frentes populares”, chamadas
agora, eufemisticamente, de “democracias populares” ou de “novas democracias”.
Os representantes de Moscou entraram numa patética manobra contorcionista
teórica para justificarem o injustificável, cuja única finalidade foi garantir
os interesses da diplomacia da URSS no jogo de poder mundial, praticamente
consentindo com a deflagração da “Guerra Fria” (termo um tanto questionável,
conforme já apresentou-se posição a respeito neste blog[xxv]).
Vejamos agora como Claudín denuncia corretamente
os novos crimes do stalinismo neste contexto histórico: “a Itália burguesa, saída do Risorgimento, não conhecera crise nacional tão grave como a aberta em 1943, e o
mesmo se pode dizer da França desde a Comuna. A catástrofe nacional de 1940
revelou à luz do dia a debilidade do capitalismo francês. O Estado submergiu,
substituído por uma caricatura estatal a serviço do ocupante. As calamidades da
guerra se entrecruzaram com a humilhação da vergonhosa derrota e da ocupação
alemã. E não havia dúvidas sobre as causas: estruturas socioeconômicas
esclerosadas, parasitismo colonial e atraso técnico, parlamentarismo apodrecido
e impotente. As classes dirigentes, todas as suas frações políticas,
cobriram-se de descrédito. Sobre elas recaíam inteiramente as responsabilidades
da catástrofe. E o mais grave, para a burguesia francesa, era nítido o
deslocamento para a esquerda, que, no curso da luta contra o ocupante, se opera
entre o proletariado e outras camadas sociais, reflexo de uma tomada de
consciência das causas e das responsabilidades da crise. Apesar da sua
desorientada política entre 1939-1941, as massas se direcionam rapidamente para
o PCF, e este conquista posições hegemônicas na Resistência, porque as camadas
sociais mais ativas e avançadas, expressando a tendência ainda confusa das
massas, buscavam uma saída radical para a crise do regime burguês. O processo
italiano era análogo. (...) Na
história dos países, jamais o movimento real, de modo tão conclusivo, pusera
objetivamente em questão o regime burguês; jamais as massas trabalhadoras, as
camadas intelectuais, a sociedade em seu conjunto vivera uma experiência tão
rica, demonstrativa da necessidade de uma nova economia, um novo Estado, uma
nova classe social dirigente. Sem perder a razão de ser, podia o partido
comunista deixar de propor a alternativa socialista?”[xxvi].
A esta pergunta de Claudín os PCs francês
e italiano responderam com um sonoro sim! Pois foi justamente o que fizeram:
seguindo as orientações traiçoeiras do COMINFORM, os PCs da França e da Itália
não propuseram a alternativa socialista às massas, buscando conformar governos
de conciliação de classe com suas respectivas burguesias em nome de uma
mentirosa “reconstrução nacional”. E esta reconstrução estaria baseada na
teoria da burocracia stalinista que ficou conhecida como “democracia popular”
(também repetida pelo reformismo petista no Brasil e pelo eurocomunismo).
Claudín explica que “reduzida à essência,
a teoria da ‘democracia popular’ fundava-se na seguinte hipótese: uma vez
destruído, no curso da libertação, o poder político da oligarquia financeira e
latifundiária, privada da sua base econômica mediante as expropriações e as
nacionalizações subsequentes, seria possível a colaboração duradoura entre a
classe operária, os pequenos camponeses proprietários e a média burguesia –
industrial, comercial e agrária – numa perspectiva de evolução gradual para o
socialismo”.
Estas camadas “progressistas” da burguesia,
segundo os teóricos soviéticos e os chefes comunistas das “democracias
populares” seriam parte da “frente nacional” e do governo
“democrático-popular”. Esta foi, segundo Claudín, a “concepção vigente em 1945 e 1946, enquanto perdurou a esperança de um
entendimento global entre a URSS e os EUA”. Segundo esta teoria oportunista
– uma readaptação do menchevismo russo às condições da época – “o Estado deixaria de estar a serviço da oligarquia
capitalista, transformando-se em Estado da democracia popular”[xxvii].
Esta foi a política oficial apresentada pelos PCs da França e da Itália, em
nome de Moscou, à Europa Ocidental – e continua sendo defendida pela “esquerda”
de tipo social-democrata, como o PT, PCdoB, PSOL, etc. E tudo isso em um
contexto em que a situação italiana era a seguinte: “durante dez dias a classe operária e as massas populares do norte da
Itália tiveram o poder em suas mãos, controlaram as principais empresas
industriais do país, contaram com 300 mil combatentes organizados (que poderiam
ser rapidamente multiplicados) e dispuseram de considerável armamento tomado
dos alemães. Na fronteira leste, tinham o exército revolucionário da
Iugoslávia, dono do poder. Na fronteira austríaca, o exército soviético. Mas
havia o ‘protocolo de Roma’, a política de união nacional e... Ialta”[xxviii].
Em total consonância com os acordos
espúrios de Ialta-Potsdam, feitos pelas costas do proletariado internacional e
que colocaram o imperialismo estadunidense no centro e na liderança do mercado
mundial com a conivência acrítica da URSS, Stalin teve outra postura em relação
ao Leste europeu – região geograficamente sensível à ele por ter uma longa
fronteira com a URSS. O grande “regulador” da transformação do Leste europeu –
que “implantou o socialismo” não por uma revolução nascida do seio do próprio
povo dos países daquela região, mas imposto pela ocupação das tropas militares
soviéticas – foi a política stalinista, orientada para articular todos os países
dessa zona num “sistema político-militar
protetor das fronteiras ocidentais da URSS, bem como para ampliar o espaço
econômico do que em Moscou se entendia por construção do socialismo. Isso
implicava a criação de regimes que oferecessem suficientes garantias políticas
ao Kremlin”. Durante esta fase, “Stalin
tratou de conciliar a construção de tais regimes com a tentativa de chegar a um
acordo mundial, duradouro com os Estados Unidos”[xxix].
Com efeito, no final da Segunda Guerra
Mundial a “grande aliança” tornava-se desnecessária ao imperialismo Ocidental,
que decidira-se resolutamente a instaurar a sua dominação mundial. Oferece à
burguesia europeia, em troca de sua liderança, “o maná dos seus dólares”, na expressão de Claudín, garantindo
ainda proteção militar contra o “perigo vermelho”. “Em troca do maná [de dólares] que
se chamará Plano Marshall, a burguesia francesa abandona suas ‘reivindicações
alemãs’ e se orienta decididamente para a integração no bloco americano. Mas
para soltar os dólares, Washington exige que os PCs despareçam dos governos
burgueses da Europa. E, realmente, a operação se leva a cabo com rapidez e sem
dificuldades”[xxx].
Claudín ainda aponta que “no verão de 1947, tanto a evolução na área
de projeção soviética quanto na Europa ocidental e a orientação francamente
antissoviética adotada por Washington, exigiam do Kremlin a drástica revisão da
política até então implementada – quer a política externa soviética, quer a
política dos PCs no Leste e no Oeste. Em todas as frentes se impunha um ‘aperto
nos parafusos’. Essa necessidade ditou a criação do COMINFORM”[xxxi]
frente à vergonhosa e submissa dissolução da IC em 1943. E o motivo disso tudo,
conforme aponta Claudín ao longo de várias páginas de seu livro, foi a política
oportunista da URSS sob o tacão de Stalin. Em síntese: querendo selar os
acordos de Ialta-Potsdam com o imperialismo estadunidense, a burocracia
soviética enforcou a revolução na Europa Ocidental, sendo traída posteriormente
pelo próprio imperialismo que julgava tão confiável quanto Hitler em 1941 (e
tudo isso em menos de uma década!).
4.
A
“fratura iugoslava” e a “alternativa Oriental”
Diferentemente da Europa Ocidental, o
stalinismo tinha total interesse no controle geopolítico do leste europeu,
justamente em razão da extensa fronteira com a URSS. Contudo, esperto e
ardiloso, o imperialismo estadunidense e inglês, ao contrário da diplomacia
soviética (que estava pronta a fazer “qualquer negócio”), não abriu mão tão
facilmente de determinadas regiões, como a Iugoslávia, Grécia e Alemanha,
corretamente consideradas como estratégicas. Assim, o serviço diplomático de
Churchill exigiu que se construíssem governos de “união nacional” nestes países
– no que foi prontamente atendido por Stalin – para solapar a influência
conquistada pelos comunistas na luta de resistência anti-fascista, abrindo
caminho para, posteriormente, exigir sua expulsão dos governos tal como fizera
com grande êxito na França e na Itália.
Os países fronteiriços à URSS – Polônia,
Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, etc. – foram rifados pelo imperialismo anglo-saxão
porque possuíam pouco peso econômico, não importando muito para a costura
daquela nova correlação de forças. Nesta região, Claudín nos afirma
corretamente que “o exército soviético
substituiu a vontade das massas”[xxxii].
Já nos países de maior peso, como a Alemanha, o imperialismo anglo-americano
bateu pé. Assim, Stalin vergonhosamente dividiu a Alemanha, construindo o nefasto
muro de Berlim; o que nos leva à conclusão de que além da teoria do “socialismo
em um só país”, a cúpula da burocracia soviética defendia também o “socialismo
em meio país”[xxxiii].
Os casos mais escandalosos foram, sem
dúvida, na Grécia (onde uma nova revolução foi traída pelo stalinismo), na
Iugoslávia e na China (que triunfaram apesar da orientação política e da
sabotagem do stalinismo).
***
O coroamento das traições stalinistas
aos processos revolucionários se deu na Iugoslávia e na Grécia. Ali, qualquer
militante que tiver o menor indício de honestidade perceberá a desfaçatez, o
caráter burguês e anti-socialista do stalinismo. Senão vejamos o que nos diz
Claudín: “Churchill e Stalin, cada qual
por um lado, intensificaram a pressão política e diplomática para que os
comunistas e o governo [burguês-monarquista] exilado chegassem a um compromisso. (...) Diante dessa pressão anglo-soviética, a direção comunista iugoslava
manobrou: em agosto de 1944, Tito concluiu um acordo com Subachitch, pelo qual
se estabelecia uma colaboração entre o governo exilado e o governo do interior
do país, com a perspectiva de chegar a um ‘governo misto’. Ele diria mais
tarde: ‘aceitamos esse acordo porque conhecíamos a nossa força, sabíamos que a
grande maioria do povo estava conosco (...) Ademais, tínhamos um forte exército, cuja importância era desconhecida
por nossos rivais!’. Em fins de setembro, Stalin se encontra com Tito e o
pressiona novamente para que aceite a restauração da monarquia do rei Pedro e
faça concessões à burguesia sérvia – mas não consegue alterar a disposição do
chefe iugoslavo. ‘E o que vocês farão no caso de um desembarque inglês na Iugoslávia?
– indaga Stalin. Tito responde: ‘resistiremos por todos os meios’. Stalin ouve
a réplica num silêncio glacial. Dias depois tem lugar a famosa entrevista
Churchill-Stalin, na qual se realiza a cínica divisão das ‘influências’ nos Balcãs. Sem ter dito uma só
palavra a Tito, Stalin acerta com o primeiro-ministro de Sua Majestade a
divisão ao meio da ‘influência’ sobre a Iugoslávia. Em Ialta essa ‘divisão’ foi
revalidada e concretizada”[xxxiv].
A insubordinação de Tito aos ditames tirânicos do burocrata mor de Moscou levou
ao triunfo da revolução iugoslava.
Mas já era muito tarde para que o
imperialismo anglo-esdadunidense pudesse “aplicar o remédio grego” à
Iugoslávia. O que era esse “remédio grego”? Claudín nos responde afirmando que
a resistência ao nazi-fascismo na Grécia “teve
o mesmo caráter revolucionário da iugoslava e adquiriu um vigor comparável ao
desta. Em finais de 1944, era praticamente a senhora do país. A direção do PC
grego, porém, não soube ter a mesma firmeza, diante das pressões de Moscou, dos
iugoslavos. Fez graves concessões à política de ‘união nacional’ e aceitou
compromissos com os aliados que facilitaram o êxito da intervenção armada
inglesa contra a revolução grega. O acordo Churchill-Stalin, de outubro de
1944, encarregou-se do resto. (...) Em
22 de dezembro, Churchill, protegido pelos tanques ingleses, pôde entrar em
Atenas e, numa entrevista com os chefes da resistência, a fim de levá-los à
capitulação, declarou que ‘os britânicos chegaram à Grécia com a aprovação do
presidente Roosevelt e do marechal Stalin’. O chefe da missão militar soviética
(que, enquanto o povo de Atenas se batia com as tropas inglesas, permaneceu no
quartel-general britânico, cercado pelos guerrilheiros) assistia a entrevista e
confirmou a declaração de Churchill. Dois dias depois, suspensas as negociações
entre a resistência e o governo monárquico, enquanto os aviões ingleses
metralhavam a população ateniense, o governo soviético nomeava um embaixador junto
ao governo monárquico grego. E, na conferência de Ialta, mal terminado o
combate entre os intervencionistas e os resistentes, Stalin declarava: ‘confio
na política do governo britânico na Grécia”[xxxv].
Onde estavam os trotskistas que não
desencadearam uma grande campanha internacional de denúncia dos crimes do
stalinismo na Grécia, na Iugoslávia e em toda a Europa? Ao contrário disso,
muitas vezes perderam-se na escolástica de um debate fechado em si mesmo sobre
se eram ou não Estados Operários (degenerados ou não degenerados). Na Grécia os
acordos espúrios entre o stalinismo e o imperialismo anglo-estadunidense
levaram ao estrangulamento da revolução; na Iugoslávia, a política de Tito foi
bem sucedida graças à ruptura com a política oficial imposta por Moscou – ainda
que ele não tenha tirado todas as conclusões dessa ruptura e tenha mantido uma
atitude teórica passiva diante do stalinismo (o que não impediu que este o
chamasse de “trotskista”, como já era praxe).
Pior do que o estrangulamento – ou a
tentativa de estrangulamento – dessas revoluções, Claudín nos alerta que “por volta de 1949, as democracias
populares, seguindo o exemplo soviético, praticamente haviam suspendido todo o
comércio com a Iugoslávia. À Revolução Iugoslava só restou um caminho, igual ao
trilhado pela Revolução de Outubro quando se encontrou isolada e cercada pelo
mundo capitalista: comerciar com este, buscar empréstimos e ajuda técnica”[xxxvi].
Aqui, novamente os “trotskistas” se calaram e não amplificaram a denúncia de
mais esta vergonhosa sabotagem do stalinismo contra a emancipação de um povo.
Percebe-se que o método autoritário do embargo econômico não foi utilizado
apenas pelos EUA contra Cuba, mas pela própria URSS contra os Estados
insubordinados do Leste europeu. Esta foi a forma da burocracia stalinista
“construir o socialismo no mundo”.
***
Já a “alternativa Oriental” foi
representada pela “ruptura pragmática do comunismo chinês” com a linha oficial
da IC e de Moscou. Esta ruptura possibilitou a tomada do poder pelos comunistas
em 1949, contra as intenções de Stalin, que costurou com o imperialismo
estadunidense um acordo para tentar impor um governo de conciliação de classes
e de “união nacional” entre o Kuomitang e o PCC[xxxvii].
Aqui, contudo, ele sofreu uma nova derrota por uma direção mais ou menos
independente – tal como a iugoslava –, que rechaçou a “linha oficial” de
Moscou, mas não tirou nenhuma conclusão teórica dessa ruptura prática.
Claudín ainda aponta que a “habilidade tática de Mao foi favorecida,
sem dúvida, porque, durante a guerra antijaponesa e a Segunda Guerra Mundial,
as contradições entre a política maoísta e a staliniana não afetavam de modo
grave os interesses soviéticos. Tais contradições poderiam tomar dimensões de
antagonismo, no período seguinte à capitulação do Japão, se o espírito de Ialta
perdurasse entre Washington e Moscou – mas a rápida deterioração das relações
entre as duas superpotências diminui a relevância das divergências entre Mao e
Stalin”[xxxviii].
Podemos acrescentar, ainda, a distância geográfica, o tamanho do país asiático
e o eurocentrismo da política da burocracia soviética como motivadores da
trégua com a China pós 1949 – diferentemente do ataque quase permanente contra
Tito na Iugoslávia. Não havia força para dois embates desse tipo. Centrou-se,
assim, na área de interesse direto de Stalin. A ruptura, contudo, não tardaria,
efetuando-se entre Kruschev e Mao, em 1960, quando Stalin já estava morto.
5.
Os
erros burocráticos cometidos pelos comunistas – ainda hoje!
Uma das grandes preocupações de Claudín
ao longo de seu livro é demonstrar como o movimento comunista sofreu com a
burocratização, o dogmatismo e o burocratismo (isto é, um reconhecimento tardio
de muitas das contribuições teóricas e dos alertas de Trotsky). Claudín passa a
limpo os principais erros organizativos que reproduzem uma burocracia
autoritária e asfixiante. Ele conclui que a história se repete: “recém-nascida, a Terceira Internacional [IC] reincide, depois da morte de Lenin, no
mesmo pecado que a Segunda Internacional, depois da morte de Marx e Engels – a
canonização do seu pensamento”[xxxix].
Dentro desse contexto, Claudín cita o
filósofo espanhol Manuel Sacristán: “Os
clássicos do movimento operário definiram, mais que algumas motivações
intelectuais básicas, os fundamentos da prática daquele movimento, seus
objetivos gerais. Os clássicos do marxismo o são de uma concepção do mundo, não
de uma teoria científico-positivista especial. Isso tem como consequência uma
relação de adesão militante entre o movimento operário e seus clássicos. Dada
essa relação necessária, é bastante natural que a preguiçosa tendência a não
ser crítico, a não se preocupar mais que com a própria segurança moral,
prática, frequentemente se imponha na leitura dos clássicos, consagrando
injustamente qualquer estado histórico da sua teoria com a mesma
intangibilidade que possuem, para um movimento político-social, os objetivos
programáticos que o definem”.
Em cima deste raciocínio de Sacristán,
Claudín conclui: “Depois da morte de
Lenin, a IC não só não combateu a ‘preguiçosa tendência’, mas a estimulou,
justificando-a com todo o gênero de razões práticas e políticas, quando não
‘teóricas’”[xl].
“Esse processo de dogmatização e estreitamento
cada vez mais acentuado dos fundamentos teóricos da IC se reflete nitidamente
nos partidos comunistas. Aqueles que, ao se constituírem, careciam de qualquer
herança teórica nacional (como, por exemplo, o PCE), vegetam no praticismo mais
rotineiro”[xli].
É dentro desse contexto reducionista e
idiotizante que surgem as máximas reproduzidas até hoje por determinados tipos
de “comunistas”, como: “o partido sempre está certo”; ou ainda: “melhor errar
com o partido do que contra ele”. Nada é mais distinto do pensamento de Lenin
(para quem realmente o conhece) do que máximas como essa. Nos momentos
decisivos da Revolução Russa de 1917 Lenin não apenas defendeu romper com a
disciplina partidária, como a rompeu efetivamente alegando se colocar contra o
“acentuado conservadorismo de alguns bolcheviques”.
Frente a isso, Claudín traz uma particular
citação de Trotsky, que afirma o seguinte: “Essa
unidade é apresentada como um sinal particular de força do partido. Onde e
quando, na história do movimento operário, houve um ‘monolitismo’ absurdo
semelhante? (...) Toda a história do
bolchevismo é a história de lutas internas intensas, nas quais o partido
adquire suas opiniões e forja seus métodos. As crônicas de 1917, o ano mais
importante na história do partido, estão cheias de lutas intestinas imensas,
tanto quanto as dos cinco anos posteriores à tomada do poder. E isso sem
divisão, sem uma só exclusão importante por motivos políticos”[xlii].
Ainda que Trotsky reconheça,
corretamente, a história da luta interna do partido bolchevique, repetiu alguns
dos erros de ultracentralismo que foram criticados por ele mesmo na condução da
IV Internacional. Em especial no caso da polêmica com o trotskista brasileiro,
Mario Pedrosa[xliii].
Este exigia uma certa atenção à forma como a polêmica contra a sessão
norte-americana estava sendo conduzida por Trotsky. Ainda que houvesse problema
no conteúdo apresentado por Pedrosa, ele demonstrou uma preocupação absolutamente
correta e necessária, que foi desdenhada pelo velho revolucionário. Diz Pedrosa:
“os camaradas cresceram politicamente com
o hábito de olhar sempre para o lado à procura de inspiração e de uma palavra
orientadora. O medo de errar paralisou a ação de nossos melhores camaradas
internacionais; para muitos, isso era uma verdadeira inibição. Hoje, os
acontecimentos internacionais lhes impõem outras responsabilidades. É preciso
conceder a esses camaradas a possibilidade de assumir essas responsabilidades”.
Ao que, Trotsky respondeu, chamando
Pedrosa de “um tipo curioso”: “essa gente
crê que hoje, na época da agonia do capitalismo, nas condições de guerra e
clandestinidade que se aproxima, seria preciso abandonar o centralismo
bolchevique em benefício de uma democracia ilimitada”; sendo que Pedrosa
não propôs exatamente, como vimos, uma “democracia ilimitada”.
***
Claudín também aponta que “em radical contradição com a concepção que
Marx e Engels tinham do que devia ser o partido revolucionário, tanto em escala
nacional quanto internacional, a IC entroniza cada vez mais – seguindo a
inspiração de Stalin – uma concepção burocrática do funcionamento e da unidade
do partido, quer de sua unidade política e organizacional, quer da sua unidade
teórica. A unidade é identificada com a unanimidade, com o monolitismo.
(...) Para que essas soluções possam se
impor, há que converter a ‘unidade do partido’ em mito. O mito, nesse caso, é a
transformação da ‘unidade do partido’ no bem supremo, que deve ser tratado como
‘a menina dos olhos’. A justificação ideológica é simples e de grande efeito,
porque apela ao senso comum: com o partido envolvido numa luta difícil, contra
um inimigo poderoso, é possível vencer se não se está ‘ferreamente’ unido?
(...) Não basta que a minoria acate a lei
da maioria – é preciso que não haja minoria (...) é necessário que pensem como maioria. Assim se alcança a perfeição
monolítica. Toda divergência aparece não só como ato, mas como pensamento”[xliv].
Esta busca pela “unanimidade” como
sinônimo de “unidade” está presente não apenas no partido stalinista, mas nos
partidos de “esquerda” atuais e nos sindicatos dirigidos por estes (basta olhar
o CPERS, por exemplo), mesmo que se digam críticos das experiências stalinistas
e se vendam como “democráticos”. Tais formas de encarar as divergências
reproduzem quase exatamente os dogmas religiosos medievais como “lei divina”. Essa
crítica, contudo, não deve nos levar a ignorar a importância das experiências
históricas das organizações partidárias dos trabalhadores – sobretudo a rica
experiência da IC e do partido bolchevique –, nem a subestimar o poder
destrutivo do espontaneísmo – que é geralmente o erro oposto em que caem os
críticos à organização política dos trabalhadores e ao seu excessivo
centralismo.
Por outro lado, há inúmeros
“revolucionários” hoje que julgam que basta proclamar o centralismo leninista
para se criar “partidos bolcheviques
quimicamente puros da noite para o dia”. Nesse caso, cometem um triste erro
oposto, inclusive não compreendendo o próprio método marxista que entendem ser
os portadores. Na verdade, eles são aqueles a quem Marx definiu como “os alquimistas da revolução, compartilhando
com os antigos alquimistas a confusão de representações e a nebulosidade das
ideias obsessivas”[xlv].
Claudín ironiza, de forma mordaz, que grande parte do movimento comunista ficou
marcado por “um espírito sectário e
dogmatizante, embalado num verbalismo revolucionário que dissimulava a perda de
noção da realidade. Acreditava-se aplicar o modelo bolchevique, mas, na
realidade, falseava-se totalmente a sua inspiração”. Pois “o partido bolchevique se constituíra no
curso de um longo e complexo processo, por meio de uma luta política e
ideológica com mencheviques e social-revolucionários conduzida em conexão íntima
com os problemas vivos da vida social e política russa”[xlvi].
Para atuar sobre “problemas vivos” é necessário, como exigiu Pedrosa a Trotsky,
“superar a inibição, o medo de errar e a imperiosa obrigação de assumir
responsabilidades”. Sem isso jamais teremos renovação do movimento comunista e,
tampouco, revolução socialista! Apenas veremos ininterruptas destruições
burocráticas das boas e poucas iniciativas das massas.
Ao contrário disso, o movimento
comunista hegemonizado pelo stalinismo, criou hábitos políticos assentados em
uma mentalidade de rigidez sectária a partir de décadas de expurgos de quem
pensa diferente e de um agravamento contínuo do centralismo burocrático[xlvii].
Os amplos poderes concedidos aos organismos de cúpula eram executados
despoticamente de cima para baixo, numa estrutura política em que “cada comitê é onipotente diante dos comitês
inferiores e impotente diante dos superiores”; e onde “suas diretivas têm ‘força de lei’ imediata para todas as seções
nacionais”[xlviii].
É dentro deste contexto em que o
stalinismo, já hegemonizando a URSS e a IC, formulava novas táticas e
estratégias “sem realizar um verdadeiro exame crítico das experiências anteriores”
e, geralmente, eximindo Stalin das suas responsabilidades, bem como dos órgãos
dirigentes superiores, as repassando para os órgãos inferiores. Assim se
formou, dentre outras aberrações teóricas, a ideia de que o “socialismo”
significa a fusão do partido com o Estado e a existência e funcionamento de um
partido único. Esta é, precisamente, a teoria stalinista de “socialismo”,
“marxismo” e de “partido leninista”. Grande parte da “esquerda” ainda reproduz
tais concepções, mesmo que algumas organizações se digam anti-stalinista, o que
é um verdadeiro presente para a burguesia e a sua grande mídia comercial, que
usam tais práticas como a confirmação de suas afirmações ideológicas.
6.
O
triste fim político de Claudín
A obra de Fernando Claudín elucida
grande parte do fenômeno da crise do movimento comunista, a qual já havia sido
abordada por Trotsky entre 1925 e 1940. Tais contribuições ajudam a desmascarar
a ideologia disseminada na grande mídia burguesa, bem como pelos seus
mercenários (jornalistas, colunistas, escritores, professores, intelectuais...),
de que “o socialismo não deu certo”, “o leninismo é a mesma coisa que o
stalinismo”, dentre outras distorções grosseiras e sutis. Sua leitura é
indispensável para qualquer militante honesto ou para qualquer indivíduo que
gostaria de ter uma opinião sobre “socialismo”, “comunismo” ou a URSS. Lê-lo
faz parte do contraponto de quem só vê o lado da grande mídia burguesa e das
universidades atuais. A finalidade de encontrar a raiz da crise do movimento
comunista é lançar as bases de uma nova luta pelo socialismo (e aí reside a
principal força da obra analisada). Para Claudín “o que fracassou historicamente não foi o marxismo, mas uma determinada
dogmatização e perversão do pensamento marxiano”[xlix].
Contudo, apesar da riqueza de detalhes e
da indispensável contribuição à explicação das causas da crise do movimento
comunista, Claudín deixa a desejar em distintos momentos, quando não apresenta
e nem se preocupa com uma análise embasada na psicologia de massas; isto é, quando não olha esta crise pelo
prisma da psicanálise e das suas distintas vertentes – em especial pela ótica
da “economia sexual” de Wilhelm Reich. É como se todo um campo ficasse em
aberto, deixando um flanco perigoso desprotegido. Tal flanco pode constituir-se
num princípio de superação da crise do movimento comunista, embora Claudín o
tenha ignorado. É claro que, provavelmente, outros campos também
fiquem em aberto e a psicologia de massas e a economia sexual não consigam
suprir todas as demandas indispensáveis para a regeneração do movimento
comunista internacional. Esboçamos aqui apenas alguns dos primeiros passos
nesse sentido.
Em diversas passagens de sua obra – bem
como na de Trotsky – há uma lacuna que se faz sentir; qual seja: a necessidade
psicológica humana de estar e sentir-se dentro de um rebanho, de reproduzir
dogmas, como se fossem forças mágicas
que nos garantiriam a imunidade contra erros, degenerações, etc. Os comunistas
passaram a reproduzir dogmas tal como fazem os católicos e religiosos de toda a
espécie. E uma atmosfera como esta tende a produzir e reproduzir dependências
de vários tipos: paterna, materna, emocional; fuga das responsabilidades; a
“tendência perigosa de não ser crítico” e a “preguiça intelectual”; a espera
por um líder ou pela “lei” vinda de cima; em síntese: ocorre a reprodução de um
espírito de rebanho que tende a criar mentes tacanhas, dogmáticas e sectárias
contra tudo aquilo que não se enquadre no que o rebanho entende como “certo”.
Com tal disposição de espírito não apenas é impossível construir o socialismo e
o comunismo (o fim das classes sociais e do Estado); como se tende à reproduzir
o que Wilhelm Reich chamou de “fascismo vermelho” (usamos o termo com bastante
cuidado, diferenciando suas consequências ideológicas no campo psicológico,
social e político do campo econômico).
Esta lacuna também foi um limitador da
análise teórica de Claudín, o que não deixou de impactar suas conclusões e a
sua futura opção política pelo eurocomunismo.
No final de sua vida, reproduzindo a lógica do PC chinês contra o PC soviético
em 1960, Claudín rompe totalmente com a URSS e passa a negar qualquer conteúdo
progressista (e, menos ainda, socialista) ao “socialismo real”, que qualifica
de “poder totalitário” e uma ameaça à paz mundial. Afirma ainda que “diante do imperialismo capitalista, com
centro em Washington, nasceu um novo tipo de imperialismo, com sede em Moscou”[l].
Tal visão, severíssima e problemática, nas palavras de José Paulo Netto, é
idêntica a expressa por Mao Tsé-tung.
A partir daí, passa a considerar o
eurocomunismo um saudável esforço de ruptura com o stalinismo, mesmo que isso
contradiga frontalmente as valiosas conclusões do seu livro, que afirmam ser a “tendência ao neorreformismo comunista” uma
redução das distâncias que inicialmente separavam o comunismo revolucionário do
“reformismo tradicional” de tipo social-democrata, o que representaria a “tendência a uma das expressões globais mais
significativas da crise do movimento comunista”[li].
É precisamente quando os PCs da Europa rompem com Moscou e abraçam o reformismo
eleitoral que nasce o movimento conhecido como eurocomunismo. Assim, ao invés de superarem a crise do movimento
comunista, apenas regridem acriticamente à etapa reformista da
social-democracia e da 2ª Internacional. Os PCs, além de não representarem mais
nenhum perigo à ordem burguesa estabelecida, foram assimilados por ela através
das eleições e do legalismo institucional (fenômeno semelhante ao que ocorreu
com o PT no Brasil).
Então, somando-se à visão reformista do eurocomunismo, Claudín solidariza-se com
as teses gramscianas do PC italiano segundo a qual “a via democrática ao socialismo é a única possível nos países de
capitalismo desenvolvido”, mas adverte, contra si mesmo, que “o eurocomunismo contém a possibilidade e a
esperança de uma superação – no capitalismo maduro – da crise geral do
movimento comunista. Mas pode ser, também, o seu canto de cisne”[lii].
A adesão dos PCs ao eurocomunismo significou a busca pelo caminho mais fácil,
adaptando-se suavemente à nova etapa de desenvolvimento do capitalismo europeu
no final do século XX. Representou, de fato, o canto de cisne do movimento
comunista hegemonizado pelo stalinismo – sobretudo após a restauração do
capitalismo realizada através da Perestroika[liii]
– e do próprio Claudín, que ingressa formalmente, em 1988, no PSOE (Partido
Operário Socialista Espanhol) – partido de tipo social-democrata, liderado por
Felipe González[liv]
–, que futuramente governará a Espanha sem nenhuma ruptura essencial com a
ordem burguesa. Desde sua adesão ao reformismo, Claudín não produziria mais
nenhuma análise política e filosófica tão profunda quanto a expressa em “A crise do movimento comunista”.
REFERÊNCIAS
[i] CLAUDÍN,
Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo,
2013 (página 15 e 31).
[vi]
Idem (páginas 709, 711 e 712).
[ix]
Idem (página 136 e 137 – nota de rodapé).
[xi] CLAUDÍN,
Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo,
2013 (página 283).
[xiv]
Idem. (página 286).
[xxii]
TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? Editora desafio, São Paulo, 1994 (páginas 64
e 65).
[xxiv]
CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular,
São Paulo, 2013 (página 195).
[xxvi]
CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular,
São Paulo, 2013 (página 516 e 517).
[xxix]
Idem (páginas 535 e 536).
[xxxv]
CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular,
São Paulo, 2013 (página 455).
[xxxviii]
CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular,
São Paulo, 2013 (página 653 – nota 37).
[xl]
Idem (nota de rodapé).
[xliii]
Ver: Na contra-corrente da história: documentos do trotskismo brasileiro
1930-1940; Fulvio Abramo e Dainis Karepovs (orgs.) da Editora Fundação José
Luis e Rosa Sundermann (páginas 471 a 474).
[xliv]
CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular,
São Paulo, 2013 (página 141).