sábado, 28 de novembro de 2020

Notas inconformadas sobre a conduta ética dos eleitores de “esquerda” – ou: como se escreve muito para quem está pouco se lixando para argumentos; ou ainda: o desespero eleitoral cega?

A eleição em curso demonstrou um desnível preocupante de consciência e de conduta ética por parte dos eleitores de “esquerda”. Me refiro aqui não à massa de eleitores em geral, mas àquela que tem alguma atuação política nos sindicatos e nos movimentos sociais.

Não! – eu não vou defender aqui em quem cada um deve votar, se na Manuela/Boulos ou nulo (excluo a direita porque jamais votaria nela – antro de mau caráteres e exploradores; a raiz histórica da corrupção nacional e internacional; ainda mais se tratando da quadrilha do MDB/PSDB). Não aponto em quem votar porque os trabalhadores estão pouco se lixando pra mim e, sobretudo, porque a ideia aqui não é mudar o voto de ninguém, mas mexer nas certezas absolutas e abrir um novo ângulo de visão, sobretudo porque o que li nos grupos das redes sociais me fez mal, muito mal. Na verdade, me gerou profundas náuseas. E os motivos serão arrolados a seguir:

1. 
Num desses grupos que participo assiduamente, divulgando textos sobre várias temáticas – uma espécie de pregação no deserto, visto que não gera nenhum debate apaixonado como as eleições (ou o desespero eleitoral) geram –, recolhi a maior parte dos argumentos que critico aqui. A experiência eleitoral/institucional de 13 anos com PCdoB/PT pouco ou nada originou de massa crítica. Pelo contrário, hoje se esquece que o MDB governou o país junto com PCdoB/PT e que não houve, nesses 13 anos, nenhuma divergência fundamental.

Cada um vote em quem achar que deve e cultive as ilusões que quiserem cultivar, mas deveria evitar entrar no fanatismo dicotômico pré-eleitoral e descambar para uma espécie de ódio contra quem defende o voto nulo. Neste caso, temos um caso evidente daquilo que Wilhelm Reich definiu como “fascismo vermelho”. Poderemos derrotar o bolsonarismo com... o método raivoso do bolsonarismo?

Podemos considerar que há um equívoco no voto nulo neste momento, mas serão estes companheiros e companheiras que estarão conosco, ombro a ombro, quando os governos eleitos começarem a nos massacrar, de uma forma ou de outra – e não os candidatos pra quem fazemos campanha hoje. O “voto nulo” não se restringe a estes setores. Mais de 350 mil pessoas não votaram nessas eleições – cerca de 33% do eleitorado porto alegrense (a maior abstenção entre as capitais brasileiras). Xingar tais setores sobre chamar voto nulo e 33% do eleitorado por se abster resolveria algo ou denotaria apenas desespero? O que eles querem dizer e o que devemos fazer com isso? Simplesmente trazê-los de volta à disputa eleitoral e à institucionalidade burguesa que é parte fundamental da manutenção do sistema ou dialogar tentando mostrar contradições e transformar essa passividade abstencionista em algo organizativo? De uma forma ou de outra a direita não governa sempre através da institucionalidade burguesa – e reconhecer isso não seria importante?

2. 
Com os brilhantes argumentos do desespero eleitoral, descobri que o culpado principal da vitória do bolsonarismo em 2018 foram os votos nulos e não a política levada a cabo pela frente popular nos seus 13 anos de governo federal. E aprendi também que, milagrosamente, as eleições municipais podem derrotar o bolsonarismo (cuja vitória neste pleito ficou claramente nas mãos dos partidos do “centrão”; quer dizer, da direita soft, que pensa exatamente como Bolsonaro, mas não tem coragem de externar).

Obviamente sei que o voto nulo pesou na vitória do bolsonarismo e de forma alguma nego isso – tanto que eu, uma pessoa que votou nulo (como tática, não como princípio) por vários anos, fui obrigado, com lágrimas nos olhos e tremor nos dedos, a votar no PT. Contudo, não dá pra concordar com quem tenta imputar a vitória do bolsonarismo aos votos nulos e menospreza parcial ou totalmente a política levada a cabo pelo PT/PCdoB em 13 anos de governo federal, que, inclusive, fez aliança com o MDB de Temer e o PP de Bolsonaro (na época). Tal política, que fica de joelhos à institucionalidade burguesa e a reforça, preparou aberta e claramente o golpe (chamado pelo próprio petismo de “institucional”) que devorou o governo “democrático-popular”.

Nada foi feito em 13 anos para derrotar a direita ou modificar a estrutura do país (um reformismo sem reformas). O golpe é resultado das alianças espúrias, da falta de política concreta para mudar o país e combater as elites e a direita nacional. Ao contrário, além de dar “lucro recorde aos bancos”, o petismo levava a passar os caciques oficiais da direita tradicional como grandes aliados, respeitáveis e confiáveis.

Votem na Manuela ou no Boulos, denunciem Melo e Covas (e eu também estarei com vocês), mas nunca esqueçam disso e jamais minimizem tais problemas!

3. 
Companheiras e companheiros, longe de mim querer lhes tentar explicar o porquê de certas pessoas e organizações optarem pelo voto nulo: votem no PCdoB/PT e no PSOL. Acreditem! Sonhem! Mas não embelezem o que não deve ser embelezado, nem prometam o que vocês não vão cumprir, pois assim vocês se tornarão parte daquilo que criticam (isto é, comungarão da prática dos políticos burgueses). Muitos dizem: “agora é Manuela”, depois acertamos contas com ela e com o PT. Porém, falam isso após embelezar e esquecer de todo o passado e de toda a prática dos governos de PCdoB e PT (tanto antes quanto agora), incluso as suas práticas nefastas de autoritarismo puro nos sindicatos, entidades estudantis e movimentos sociais que apoiam ou dirigem. Eu não esqueço isso; nem vocês deveriam. “Agora é Manuela”, depois fazemos o que? Continuamos levando a vida como se nada precisasse de alteração – inclusive a nossa postura pessoal nos sindicatos e nos movimentos sociais? E se começar uma nova vergonhosa conciliação com a institucionalidade burguesa (judiciário, a hipocrisia do funcionamento das instituições, etc.), simplesmente ignorarão aguardando as próximas eleições?

Após a eleição tudo isso é esquecido e um silêncio sepulcral leva a uma adaptação não apenas aos governos eleitos, mas à institucionalidade burguesa, que está totalmente mancomunada com a justiça dos ricos e o legislativo que tem maioria de direita e cria mil empecilhos reais ou imaginários para qualquer mudança ou legislação que beneficie os trabalhadores. Tanto é assim que muitos esqueceram ou simplesmente ignoram (como se fosse algo digno de ser ignorado) que o PCdoB apoiou Melo no 2º turno de 2016 e estão coligados em outros 194 municípios (dados do TSE). Pode ser que os tempos hoje sejam um pouco diferentes daquele, mas o MDB e Melo mudaram sua essência de lá para cá? Ou isso é algo que pode ser simplesmente ignorado?

Aí alguns me dizem: “ninguém é inocente a ponto de não entender que a chapa da Manu não está alinhada por completo com um projeto de emancipação humana plena, mas, infelizmente, é necessário ser pragmático e votar 65. De outra forma teremos mais 4 anos com pouco espaço pra lutar”. A isso respondo que não se trata de inocência, mas de uma amnésia voluntária por parte de tais eleitores da “esquerda”. Falo isso porque os argumentos do desespero eleitoral ignoram ou ocultam todos os problemas descritos até aqui e potencializam as diferenças em relação a Melo, que no fundo são exageradas. A intensidade da argumentação de muitos desses eleitores não denota um voto crítico num “menos pior”, mas a autêntica salvação messiânica, o que é muito mais grave. E, por fim, pouco espaço pra lutar sempre teremos em governos que são reféns da institucionalidade burguesa ou onde imperem as burocracia sindicais que, ao fim e ao cabo, são o resultado das políticas de PT e PCdoB.

Em síntese: votem no menos pior (não lhes tiro a razão), mas não dourem a pílula!

4. 

Em contrapartida, eu não concordo com a agitação da Transição Socialista. Não considero que Boulos seja Igual a Covas; nem que Manuela seja igual a Melo. Tal agitação equivocada simplesmente reforça todas as ilusões que supostamente quer combater, jogando os eleitores de “esquerda” nos braços dos candidatos “reformistas” e ajudando na polarização/fanatização (o campo preferido do bolsonarismo e do neofascismo – diga-se de passagem). As ilusões são grandes e profundas, como podemos constatar e, como não existe um movimento de massas que se ponha como alternativa clara e firme neste momento, tal polarização não ajuda em nada, mas atrapalha. A unidade dos trabalhadores deve se dar com muita paciência revolucionária. Não se pula etapas apenas simplificando a realidade, que não pode ser simplificada (seja por quem defende o voto nulo, seja por quem busca qualquer pretexto e ignora a prática dos candidatos e partidos que pretendem votar agora).

5. 
O grande problema, repito, é a institucionalidade burguesa a qual os candidatos que forem eleitos terão que lidar; e o PCdoB e o PT não apenas não combatem tal institucionalidade, como a reforçam. O que fizeram em 13 anos de governo federal? Tal “vitória” contra a direita nas urnas é solapada pelo funcionamento da institucionalidade que se segue e isso não é sequer lembrado por quem hoje está numa campanha alucinada pela “vitória” da “esquerda” e pela “luz no fim do túnel” que, uma vez que nos aproximemos dela, se transformará num novo túnel, ainda maior. É esta institucionalidade que compromete toda a gestão “popular” e que fortalece a direita que supostamente foi derrotada nas urnas, que precisa ser desmascarada e explicada pacientemente aos trabalhadores e às trabalhadoras. É esta a verdadeira “unidade” que falta à “esquerda”.

O desespero eleitoral esconde, no fundo, o sonho de fazer uma “mudança” no país (e mesmo na cidade) com tranquilidade e pacificamente, sem termos que tomar nas nossas mãos as responsabilidades sociais que nos cabem (como a atuação consciente nos sindicatos, nos movimentos sociais e na própria política – ou seja, responsabilidades e “mudanças” que vão muito além do voto de 2 em 2 anos), confessando involuntariamente os interesses imediatistas de quem o expressa. O desespero eleitoral também embaça o fato de que se fará todo o possível para não se colocar o dilema de uma revolução que, ao fim e ao cabo, abre a real mudança que traz o novo e o desconhecido (pra vocês e pra mim). Uma revolução coloca, de fato, em xeque mate a hipocrisia institucional, a justiça burguesa, a rotina, as certezas de hoje. Em síntese, o dilema eleitoral se resume a isso.

Aí dizem: mas votando na Manu vamos nos aproximar da “revolução”, certo? Errado! Em 13 anos de governos petistas nos aproximamos ou nos afastamos da revolução? Derrotamos ou fortalecemos a direita? Temos que “votar na Manu e no Boulos porque as pessoas da periferia sentem fome e ninguém faz revolução de barriga vazia”. Oi? Tristes argumentos oriundos do desespero eleitoral, repleto de ilusões. Eu não quero que ninguém passe fome e essa dicotomia – digna das dicotomias bolsonaristas – não ajudam, não esclarecem e não resolvem os problemas. Ao contrário: aprofundam a confusão! Eu sou partidário do fim da fome. É por isso que milito e por isso que sou socialista. Mas reforçando a institucionalidade burguesa e as ilusões no sistema econômico e eleitoral a fome não apenas não será solucionada, como se aprofundará.

Não será num evolucionismo vulgar de “solução” da fome conjuntural das pessoas que vamos acabar com ela; tampouco reforçando as ilusões na democracia burguesa. Além do mais, as revoluções na história foram feitas porque as pessoas passavam fome e não por quem tinha a barriga cheia (ou migalhas para “distrair o estômago”). O reformismo serve, justamente, para dar algumas migalhas agora, para abrandar a fome, contribuindo para que o sistema siga funcionando normalmente. Não fui eu que fiz o mundo assim; só estou tentando observá-lo da maneira mais sóbria possível – e, sobretudo, afastando a fumaça do desespero eleitoral, que embaça a visão e o juízo.

6. 
Votem em quem vocês quiserem, mas refinem os argumentos e não joguem no lixo as experiências históricas. Cuidado com a dicotomização e o desespero eleitoral. Respeitem as opções de quem é trabalhador e tem consciência de classe. Guardem o melhor do latim de vocês para os futuros governos burgueses que serão eleitos, a mídia e a hipocrisia institucional, que certamente pesará no futuro, independente de quem vença as eleições.

Vamos desenvolver, juntos, a coragem de ir além das eleições. Tomemos nas mãos as nossas responsabilidades sociais. Questionemos a hipocrisia institucional e do sistema. Evitemos a dicotomização que descamba no “fascismo vermelho”. Tenhamos a mesma coragem de combater e desmascarar os políticos burgueses, reformistas e as burocracias sindicais como temos a coragem de xingar quem “vota nulo”, se abstém ou, tristemente, vota na direita. Nos empenhemos em lutar “certo” todo o dia, mês e ano, para além do desespero de votar “certo” de 2 em 2 anos. Rompamos com o círculo vicioso e não reforcemo-lo. Estes são os meus “votos” para achar a saída definitiva do túnel; e não apenas uma luz opaca e fugidia no seu suposto fim.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

De volta à República da Bruzundanga

Faz mais de 100 anos que Lima Barreto visitou e nos apresentou a peculiar República da Bruzundanga, da qual tomou as mais variadas e curiosas notas. Motivado por sua visita, estive lá recentemente e pude constatar algumas mudanças pra pior, que registro a seguir.

Na Bruzundanga as transformações sociais se dão pela cúpula, sem a participação organizada do povo. Primeiro uma guerra civil de elite, depois uma sangrenta ditadura militar acabaram por perverter a estrutura de governo da República da Bruzundanga, embora mantendo os mesmos problemas políticos e econômicos já descritos pelo nosso ilustre conterrâneo que lá esteve em princípios do século passado. Depois da ditadura sobreveio uma breve experiência de um governo democrático-popular que desgraçadamente não alterou nenhuma das estruturas antigas do país. Ao contrário, reforçou ilusões e deu lucros estratosféricos aos bancos e ao sistema financeiro. Terminou por sofrer um golpe de Estado, que abriu caminho para o atual governo.
 
Com o passar dos anos, o antigo cargo de Mandachuva acabou por transformar-se numa respeitosa presidência da República, tal como mandam as convenções internacionais. Contudo, ainda que o presidente seja eleito por um processo mais democrático do que a 100 anos atrás, o presidente não é eleito sem uma forte campanha financiada com rios de dinheiro e sem conformar alianças excêntricas, nem governa sem o consentimento dos grandes monopólios que controlam o mercado mundial. Portanto, sua margem de governo é muito estreita — para não dizer nula.

O mais curioso foi saber que no último processo eleitoral, ocorrido em 2018, elegeram um candidato exótico, chamado Sr. Lixo. Desde quando era vereador e deputado, Lixo defendeu todo o tipo de bandalheira reacionária, medieval, dos mais variados níveis de preconceitos; exaltando qualquer entulho, podre e decadente, religioso ou político, que expressasse ódio e raiva descontrolada e incontida. Seus apoiadores são como cães adestrados, que, por se identificarem plenamente com o Lixo, repetem tudo o que ele diz e saem entoado pelas ruas da capital da Bruzundanga, Bosomsy: Lixo é mito! Lixo é mito! Lixo é mito!

Com o apoio de muitos programas "humorísticos" que passavam em horário nobre da TV aberta da Bruzundanga, terminaram por fazer esta "máxima" entrar na mente de milhões de bruzundanguenses, sobretudo na de sua juventude. Eles diziam: "Lixo combate à corrupção e vai acabar com a mamata". Mas o que se viu após a sua eleição foi justamente o contrário: o despotismo mais desavergonhado e o poder paralelo do tráfico de drogas tomar os gabinetes dos partidários do Lixo. Não apenas ficou de joelhos aos grandes latifundiários da Bruzundanga — a principal base de sustentação política do Lixo —, como permitiu que tocassem fogo nas principais reservas florestais a fim de expandirem a fronteira agrícola do país. A antiga religião Católica oficial foi cedendo espaço para as igrejas evangélicas que, na pessoa do bispo Levir Kakedo, comanda o adestramento político em massa. Expulsa de Angola, sua igreja evangélica terminou por estabelecer-se plenamente na Bruzundanga. É preciso registrar também que o sistema financeiro e os grandes oligopólios de mercado apoiam Lixo na presidência da Bruzundanga, como lhe dão respaldo, afirmando tratar-se da "escolha democrática" do povo da Bruzundanga, apesar das inúmeras denúncias de disseminação de fake news contra adversários.

Povo, aliás, que conheci de perto quando lá estive. Durante o processo eleitoral se encontrou bastante dividido, mas graças a todo apoio da estrutura econômica ao Lixo, este conserva-se no poder e ainda mantém certo apoio popular. Numa manifestação pró-Lixo pude conversar com um apoiador do presidente e ele, apesar de não gostar muito das minhas perguntas por julgar que estava colocando em dúvida a pureza do Lixo (algo que estive longe de fazer), me dizia: "Lixo é mito! Meu peito bate pelo Lixo! Estou com o Lixo e não abro! É com Lixo que vamos consertar este país!".

Não bastasse Lixo no poder, o povo ainda cultiva esperanças eleitorais de que pode mudar a Bruzundanga pra melhor na qualidade de simples público, que apenas observa tudo passivamente e sem a menor organização. Lima Barreto, quando lá esteve, escreveu o que segue sobre as eleições: "um deputado eleito sai das urnas como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele quase sempre não tem. Os seus eleitores não sabem quem ele é, quais são os seus talentos, as suas ideias políticas, as suas vistas sociais, o grau de interesse que ele pode ter pela causa pública; é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele. (...) A superstição eleitoral é uma das nossas coisas modernas que mais há de fazer rir os nossos futuros bisnetos". Penso que, lamentavelmente, desde a época em que Lima Barreto lá esteve, nada de substancial desta análise mudou. Ao contrário, se aprofundou! 

O povo da Bruzundanga regrediu da condição de "público" para a de "torcida organizada", desconfiando da sua própria organização política e abraçando Lixo ou qualquer "salvador da pátria" como uma milagrosa solução para os seus graves problemas sociais. 

Pobre povo da Bruzundanga! Espero que o próximo viajante que por aquelas bandas passar nos traga melhores notícias do que Lima Barreto e eu fomos capazes de dar.   

domingo, 22 de novembro de 2020

Um tributo a Lima Barreto

 

Esse é o Lima Barreto (1881-1922). Um dos maiores nomes da literatura brasileira. Infelizmente apenas hoje ele tem esse reconhecimento, pois na sua época, por ser negro, recebia, em sua maioria, negativas das redações de jornais. Apenas com o surgimento dos sindicatos (antes deles serem engolidos pelo Estado) Lima Barreto pôde publicar seus principais escritos, além de outros livros que teve que pagar com o dinheiro do próprio bolso.

Segundo Carlos Nelson Coutinho, Lima Barreto "foi um dos maiores representantes da linha humanista e democrático popular na literatura brasileira", além de ter ressaltado que "a simples mudança de regime político em nada alterara os vícios fundamentais da formação histórica brasileira". E ele foi testemunha ocular de duas destas "mudanças": o fim da escravidão e a proclamação da República. Nascido no período em que vigorava a escravidão, escreveu que "em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço. Havia uma multidão ansiosa, com o olhar preso à janela do casarão". E concluiu: "como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!".

Lima Barreto foi um dos maiores críticos da estrutura política brasileira, sobretudo em Os Bruzundangas, onde denuncia as aberrações do país. Também foi impiedoso com o funcionalismo público, o qual demonstrou ser um exército de "homens que falam javanês", além, é claro, da denúncia racial, que lhe foi muito cara, em Clara dos Anjos e Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Graças a Lima sabemos que "o brasileiro é vaidoso e guloso de títulos ocos e honrarias chochas" e que "não temos povo, mas público". Lima foi excluído da crítica oficial com um "silêncio implacável" não apenas por ser negro, mas por suas "posições contundentes", que lhe custaram a marginalidade e a indiferença da elite cultural.

Foi um autêntico outsider da sociedade brasileira, a quem prestamos reverência e o devido reconhecimento. Em sua memória, devemos fazer com que o Brasil deixe de ter público e passe a ter povo!

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Um retrato das eleições municipais de 2020

O debate eleitoral dos candidatos à prefeitura de Porto Alegre foi pobre e patético. Cheio de hipocrisias, jargões vazios, meias verdades e mentiras completas (dentro das regras da mídia burguesa, que são viciadas, limitam e condicionam). Um grenal acéfalo em que a estrutura não só não é questionada, como sai fortalecida. É a velha política e a hipocrisia institucional falando pela boca de todos os candidatos. Nada de bom, honesto e sadio pode vir disso...

Vale lembrar Paulo Freire e a sua Pedagogia do Oprimido: "esteja todo o dia aberto para o mundo, esteja pronto para pensar; esteja todo dia pronto a não aceitar o que se diz, simplesmente por ser dito; esteja predisposto a reler o que foi lido; dia após dia, investigue, questione e duvide. Creio que o mais necessário é duvidar. Creio sempre necessário não ter certeza, isto é, não estar excessivamente certo de 'certezas'".

E candidatos e "apoiadores" estão lamentavelmente cheio de certezas obtusas, todos ajudando a embelezar o lixo e a hipocrisia, indo direto pro abismo da institucionalidade burguesa e gritando que "estamos certos"!

A "esquerda" entra, inclusive, no jogo viciado do tipo de debate proposto pela RBS/Band, que limita e condiciona qualquer reflexão séria. Deixam o papel de "questionar" este limites viciados pra um oportunista e carreirista incorrigível como Rodrigo Maroni (PROS), que critica a ZH no ar e a "esquerda" bem quietinha e conivente com a farsa toda.

Duas formas de manipulação eleitoral descarada, tratadas como absolutamente normal (ambas deveriam ser expressamente proibidas):
1) Pesquisa eleitoral: como isso pode ser tratado como normal (ainda mais quando levamos em consideração que houve uma CPI sobre isso abafada no Congresso Nacional)?
2) Cabos eleitorais pagos: como condescender que candidatos "comprem" militância, ignorando que eles não o fazem por consciência e convencimento, mas por necessidades materiais geradas pelo próprio sistema que os candidatos e partidos que eles fazem campanha sustentam?
PS: e a "esquerda" obviamente acha tudo isso normal...

Perguntas importantes sobre as eleições municipais:
1.
Quem ganha com as eleições municipais? Ou melhor: quem se fortalece com as ilusões oriundas das eleições municipais?
2.
Manobra interessante a do MDB. Dá pra ver que conhece bem os meandros da institucionalidade burguesa: joga com a propaganda e as pesquisas eleitorais (e, talvez, com a fraude, por que não?). O mesmo fez Eduardo Paes (MDB) no Rio. Representam o "velho" disfarçado de "novo". As ilusões eleitorais abrem tais possibilidades. A questão é: até quando vamos acompanhar esta novela?
3.
Muito "fora Marchezan" (PSDB) e "fora Crivella" (Republicanos) se gritou, mas os negociadores profissionais sempre sabem usar a institucionalidade e as suas ilusões. Aqui Marchezan "saiu", mas entrou na disputa Melo (MDB), que vai defender o mesmo programa do antecessor. Que responsabilidades há em relação a aqueles que plantaram e plantam ilusões na institucionalidade que abre a possibilidade de vender o "velho" como "novo"?
4.
Que responsabilidades há para aqueles que, ao longo dos quatro anos passados gritaram "fora Marchezan", mas silenciaram em relação aos visíveis problemas da institucionalidade burguesa? Devemos nos preparar já para o futuro "Fora Melo" caso não ganhe Manuela (PCdoB/PT)? Até quando? Nada estaria errado na nossa atuação? Basta só seguir fazendo o mesmo de sempre?
5.
Até que ponto as candidaturas de "esquerda" tem se enfrentado com o sistema? Para João Bernardo, escritor do livro, A transnacionalização do capital, torna-se cada vez mais patente o surgimento do que ele chama de um “Estado amplo”, controlado pelos monopólios e trustes internacionais, que não reconhecem os limites das fronteiras e legislações nacionais, estaduais e municipais em contraposição ao que ele chamou de “Estado restrito”, que é o Estado “tradicional”, com suas instituições políticas circunscritas ao seu território, mas subordinadas e dependentes deste poder econômico superior.
6.
Nesse caso: elegemos "representantes" e legislamos no Congresso Nacional, nas Assembleias Estaduais e nas Câmaras de Vereadores para quê, uma vez que o poder do "Estado amplo" (dos monopólios de mercado) asfixia e torna inócua toda a legislação que limite seu poder? (basta ver a situação das multinacionais frente ao governo do Estado — se falamos em cobrar os impostos devidos elas ameaçam ir embora e o governo aceita tudo quietinho).
7.
Qual dos partidos de "esquerda" que elegeram representantes se enfrentam com o poder deste "Estado amplo"? Até onde transformaram o identitarismo apenas em uma nova forma de renovar ilusões? Se "só a luta muda a vida", conforme atesta o jargão repetido quase unanimemente pela "esquerda", como e contra o quê especificamente vamos lutar? Os mandatos parlamentares conseguidos nas eleições de ontem vão combater ou reforçar a institucionalidade e as ilusões que sustentam o "Estado amplo"?
8.
Em São Paulo ocorreu um fenômeno interessante, ainda que bastante incipiente: o Psol foi ao segundo turno contra a velha elite paulistana! Boulos tem grande capacidade argumentativa, o que é, sem dúvida, importante, embora também se restrinja aos limites da institucionalidade burguesa. Fala muito, tal como Lula em 2002, de "esperança". Para o artista e apresentador Antônio Abujamra, "a esperança matou esse país". Boulos avançará contra o "Estado amplo" ou governará reforçando a esperança na institucionalidade atual?

Propriedade sagrada, natureza profana

Frente às queimadas da Amazônia e do Pantanal, que são claros crimes ambientais, algumas pessoas com o mínimo de sensatez dentro do governo (como o vice-presidente Hamilton Mourão, insuspeito de qualquer tipo de "comunismo") falaram em expropriar as terras de tais criminosos ambientais (que geralmente são latifundiários); isto é, medidas previstas pela legislação brasileira.

Isso bastou para acionar o gatilho senil e doentio de Bolsonaro, que twitou dizendo: a propriedade privada é sagrada! A propriedade privada, portanto, está acima da lei e, como podemos constatar, da natureza e da vida.
Por tudo isso, vocês que ainda pensam e sentem, parem de só olhar o lado insano e surreal das medidas do Bolsonaro e gritar como se fosse apenas surrealismo. Não é! As medidas e as declarações do governo dele estão muito bem arquitetadas e atingem suas finalidades: protegem o capital e os seus rendimentos escusos, inclusive às custas de crimes ambientais!
Aí está a fonte da sua "credibilidade" e estabilidade governamental.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

África incógnita

CNN, BBC e CGTN tem programas com foco na África. A mídia brasileira não!

Será que a elite nacional quer que pensemos que só podemos ter "trocas" comerciais, culturais e sociais com a Europa e os EUA?

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Bolsonarismo e peste emocional

Em muitas publicações deste blog demonstramos a relação do bolsonarismo e do neofascismo com a manipulação da psicologia das massas. Grande parte desta construção teórica se deveu à intuição baseada na observação do ódio sadomasoquista propagado pelos apoiadores do atual presidente. Neste texto pretendemos dar um embasamento àquelas afirmações que associam o fenômeno bolsonarista à manipulação da psicologia de massas; e desta com a peste emocional. Para isso, recorremos ao estudo do psicólogo norte-americano, Daniel Goleman, em seu célebre livro A inteligência emocional[i].

         Todas as páginas do livro são um elucidativo atestado de como funciona a nossa mente emocional e serve de base para compreender e descrever muitas das forças inconscientes que motivam a maioria dos apoiadores do bolsonarismo. Os métodos e o programa político da “esquerda” atual não são capazes de enfrentar tal fenômeno, o que exige a construção de uma nova prática.

 

Um estudo da mente emocional e da mente racional

         A questão central do livro de Goleman é demonstrar que não compreendemos a relação que existe entre as nossas emoções e a razão; ou seja, como o cérebro emocional influencia decisivamente o cérebro racional – e, sobretudo, a necessidade não apenas de compreendermos isso, mas de nos educarmos nesse sentido. Nas suas palavras: “como raiz da qual surgiu o cérebro mais novo, as áreas emocionais entrelaçam-se, através de milhares de circuitos de ligação, com todas as partes do neocórtex. Isso dá aos centros emocionais imensos poderes de influenciar o funcionamento do resto do cérebro – incluindo seus centros de pensamento”[ii].

         Eis que a psicologia de massas do neofascismo, desenvolvida pela escola de Steve Bannon e Donald Trump, especializou-se em utilizar o cérebro emocional contra o cérebro racional. Justiça seja feita: grande parte da mídia burguesa já sabia manipular tais centros nervosos; senão intencionalmente, pelo menos de forma indireta. Bannon e Trump apenas potencializaram tais métodos.

         Segundo Goleman, “a mente emocional possui uma lógica associativa; elementos que simbolizam uma realidade ou que de alguma forma lembrem essa realidade são, para a mente emocional, a própria realidade”[iii]. Tais processos podem ser associados aos “processos primários de pensamento” muito bem descritos por Freud. São justamente eles e a sua “lógica associativa” que são manipulados pelos marqueteiros do neofascismo.

         A cúpula do movimento neofascista é bastante consciente dos seus atos, mas a sua base na classe média e entre grande parte dos trabalhadores, não. Dito de outra forma: a mente racional dos primeiros manipula a mente emocional dos segundos, seja nos discursos reacionários de ódio sádico, seja nas redes sociais, através das fake news ou da espionagem dos seus movimentos na internet.

         Se baseando em Freud, Goleman aponta que “no processo primário não existe o interdito, porque tudo é possível”. Isso explica, em grande parte, o porquê dos bolsonaristas sustentarem tamanhas bizarrices sem nenhum problema. E não há argumento racional que possa convencê-lo do contrário, uma vez que “enquanto a mente racional faz conexões lógicas entre causa e efeito, a mente emocional não faz qualquer discriminação. Liga coisa com coisa que, entre si, guardam uma longínqua similaridade”.

         Tal como se fosse uma criança, o pensamento é personalizado e centrado no ego, “ou seja, os eventos são vivenciados como dirigidos à própria pessoa. (...) Esse modo infantil de pensar se autoconfirma, na medida em que descarta ou ignora lembranças que possam abalar sua crença e se agarra a tudo o que possa mantê-la”[iv]. Nesse sentido, qualquer tentativa de debate lógico termina em dicotomizações absurdas que transbordam de ódio, tal como se houvéssemos insultado pessoalmente o apoiador do governo que está na nossa frente. Então, ele transforma uma “crença”, como por exemplo, a de que o governo Bolsonaro não apenas não é corrupto, como combate a corrupção, em algo absolutamente verdadeiro a despeito de todas as contraindicações da realidade e da história.

 


A peste emocional em ação

         Dentro desta lógica bizarra que literalmente hipnotiza quem está sob sua influência, o neofascismo necessita da polarização política e social, que se transforma em uma dicotomização que simplifica a realidade com vistas a fazer cabê-la dentro do seu raciocínio estreito. Uma das formas de realizar isso é o pensamento categórico, onde as coisas só podem ser pretas ou brancas, sem qualquer tipo de coloração cinzenta intermediária.

         Ou seja, se somos contra o governo Bolsonaro, automaticamente somos petistas. A dicotomização serve, sobretudo, como combustível do fanatismo. Conforme atestou Wilhelm Reich – o descobridor da peste emocional –, a “esquerda” também sofre de distúrbio semelhante, uma vez que podemos constatar que o petismo (dentre outros) age quase da mesma maneira – às vezes até com o mesmo ódio. Tal postura não apenas finca pé em uma posição, mas é perfeita para dominar o rebanho humano, que tende a se assustar e a se localizar embaixo da asa de um ou de outro que gritar mais alto ou mais de acordo com a estreiteza do seu pensamento imediatista.

         A total desonestidade das lideranças que se utilizam inescrupulosamente da mente emocional está, sobretudo, no fato de saber explorar perfeitamente essa estreiteza do pensamento imediatista, já que tal mente tende a considerar que suas crenças são totalmente verdadeiras e, portanto, a descartar qualquer coisa que lhe contrarie. A figura de uma criança mimada serve como uma boa ilustração: se a mãe, de forma mais dura, tenta impor limites aos caprichos do filho, este busca se aninhar embaixo das asas do pai, mais frouxo e condescendente (ou vice-versa), para que continue tendo os seus interesses prontamente atendidos e não tenha que se defrontar com a realidade.

         Eis porque é tão difícil fazer com que alguém sob perturbação da peste emocional raciocine. Goleman aponta que “não importa quão válida seja a argumentação do ponto de vista lógico – nada que não esteja enquadrado nas convicções emocionais do momento pode influir”[v]. Os sentimentos se autojustificam por uma série de percepções e pseudoprovas auto “convincentes”.

         Esta “perturbação emocional” é, precisamente, o que Reich definiu como peste emocional, que é disparada uma vez que seja confrontada. Ela está presente de forma controlada ou descontrolada em todo o ser humano e possui momentos de surtos sociais que se transformam em epidemia. Segundo Reich, quanto mais reprimida sexual e moralmente a vida viva é, mais tende a desenvolver couraças musculares e emocionais por todo o corpo, que degenera em peste emocional, impondo, como vimos, uma “lógica própria” que é surda a qualquer argumento racional ou a empatia. Tais conclusões coadunam perfeitamente com análises desenvolvidas por Frantz Fanon: “no fóbico há prioridade do afeto em detrimento de todo o pensamento racional. (...) o fóbico é um indivíduo que obedece às leis da pré-lógica racional e da pré-lógica afetiva: processo de pensar e de sentir que relembra a época em que se deu o acidente causador da insegurança”[vi].

         Com efeito, se pelo processo do recalcamento a sexualidade for excluída das vias naturais de satisfação, toma os caminhos diversos da satisfação substitutiva. Assim, por exemplo, a agressividade natural amplifica-se para transformar-se em sadismo brutal que constitui uma parte essencial da base psicológica de massa do fascismo e mesmo da guerra, que repousa num mecanismo libidinal[vii] – somadas, é claro, a motivações determinantes, como a conjuntura, a economia e a política. Daí advém a política cultural e sexual do nazi-fascismo clássico e do atual neofascismo, que se expressam através das propostas nefastas da ministra Damares Alves e de grande parte da direita brasileira, calcadas na repressão sexual, na submissão religiosa e na família patriarcal.

         Já escrevemos que a sedução do neofascismo bolsonarista reside, precisamente, na manipulação do sadismo das massas, originado e fortalecido pela repressão sexual. Esta é a verdadeira finalidade da políticas públicas propostas por Damares. A força de Bolsonaro está, tal como no nazi-fascismo clássico, na legalização das descargas dos impulsos sádicos[viii]; e a peste emocional se alimenta sobretudo destes impulsos. A raiva resultante de todo o processo serve, segundo Goleman e outros autores citados por ele, para “energizar” e até mesmo “exaltar”[ix] a pessoa que sofre com sua descarga. É, portanto, um compensatório negativo para a descarga sexual contida e, até mesmo, para uma vida reprimida, deprimida e vazia, já que “as emoções descontroladas tolhem o intelecto”[x].

 

A peste emocional tem suas “razões”

         Ainda segundo Goleman, “o entendimento de que as emoções têm uma razão e uma lógica que lhe são tão peculiares”[xi] é fundamental para entendermos o fenômeno da inteligência – ou desinteligência – emocional. Ele aponta que “as ações desencadeadas pela mente emocional são prenhes de certeza, que é um subproduto de um tipo de comportamento bastante simplificado”. Este modo rápido de percepção desencadeado pela mente emocional perde em precisão, mas ganha em rapidez. Capta tudo num relance, reage e não perde tempo com uma análise minuciosa dos detalhes. Vem daí, provavelmente, a grande dificuldade de debater séria e frutiferamente com qualquer apoiador do bolsonarismo.

         Uma vez que “na mecânica da emoção, cada sentimento tem um diferente repertório de pensamentos, de reações e mesmo de memórias”[xii], os estrategistas e marqueteiros do neofascismo não querem lidar com argumentos lógicos, mas apenas com as emoções – sobretudo as emoções mal resolvidas. Esta é a chave do seu sucesso e a base da manipulação da psicologia de massas.

         Embora não utilize o termo peste emocional, Daniel Goleman fala em sequestro emocional ou inundação de ideias venenosas, o que ilustra bem a descoberta de Reich. Ou seja, o sequestro é caracterizado por um “assalto” ao cérebro racional pelo cérebro emocional, que fica tolhido de suas faculdades; a inundação, por sua vez, é uma figura de linguagem que expressa a noção de que o cérebro racional sofreu com uma espécie de rompimento de uma barragem de ideias confusas e irracionais que tolhem ou limitam a sua reflexão lógica.

         Segundo Goleman, “o momento de sequestro emocional é visível pelo ritmo cardíaco: pode subir 10, 20 ou mesmo até 30 batidas por minuto no espaço de uma única batida. Os músculos ficam tensos; a respiração opressa. Vem uma inundação de pensamentos tóxicos, uma desagradável sensação de medo e raiva. Nesse ponto – do pleno sequestro –, as emoções da pessoa são tão intensas, sua perspectiva tão estreita e seus pensamentos tão confusos, que não há a menor possibilidade de verem as coisas sob outro ângulo ou de resolver o assunto de uma maneira racional”[xiii].

         Tal narrativa serve perfeitamente para descrever a peste emocional e, ao mesmo tempo, a postura de um bolsonarista frente a um debate político da atualidade. Como seres humanos que cresceram dentro da lógica repressiva da moral familiar patriarcal, seja de classe média ou da classe trabalhadora “religiosa”, os apoiadores do governo sentem seus interesses reais ou imaginários ameaçados – geralmente mesquinhos e, muitas vezes, inexistentes – e o gatilho do sequestro e da inundação da peste emocional é acionado. Aqui cabe lembrar outra vez das contribuições de Fanon: “toda vez que há convicção delirante, há uma reprodução de si”[xiv].

         Quando o gatilho do sequestro da peste emocional é ativado, “os pensamentos e as reações (...) estarão sendo influenciados por sensações do passado, mesmo que possa parecer que a [sua] reação é devida unicamente às condições do momento presente. Nossa mente emocional aparelhará a mente racional para seus fins”[xv]. E então, a pessoa sob as chicotadas da peste emocional tentará justificar suas reações “racionalizando” pela sua ótica empesteada diante do que está acontecendo, atacando os oponentes (e o PT? E a Venezuela? Vai pra Cuba!), sem se dar conta (ou não querendo se dar conta) das influencias da memória emocional precedente. “Dessa forma”, conclui Goleman, “não temos a menor ideia do que realmente está ocorrendo, embora acreditemos piamente que sabemos. Nesses momentos a mente emocional arrebata a mente racional, colocando-a a seu serviço”[xvi].

         E quem, como Steve Bannon e os seus técnicos de manipulação a serviço do governo Trump e Bolsonaro, conseguir entender a dinâmica desta equação emocional, colocará centenas de milhões de mentes a serviço dos seus interesses políticos e econômicos. É importante salientar ainda que “na mecânica da emoção, cada sentimento tem um diferente repertório de pensamentos, de reações e mesmo de memórias. Esse repertório emocional específico se torna mais dominante nos momentos de intensa emoção. A memória seletiva é um dos sinais de que esse repertório está ativo. Parte do desempenho mental diante de uma situação emocional consiste em fustigar a memória e as opções para agir a fim de que as mais relevantes fiquem no topo da hierarquia, e desta forma, possam ser mais prontamente acionadas”[xvii].

         A memória seletiva é parte central da engenharia política do bolsonarismo e do neofascismo, que lembra seletivamente da corrupção nacional, de problemas econômicos, políticos e sociais, como a fome[xviii]. Da mesma forma funcionam em relação às “ditaduras comunistas”, mas fecham os olhos em relação às ditaduras e monarquias capitalistas, bem como às guerras patrocinadas por elas.

 

Combater o neofascismo bolsonarista requer o combate consciente à peste emocional

         Wilhelm Reich, Daniel Goleman e Frantz Fanon descreveram perfeitamente a psicologia de massas do neofascismo e do bolsonarismo, mesmo que não tenham chegado a conhecê-los. Isso porque eles perceberam determinadas tendências emocionais humanas que serviram e servem de base para regimes fascistas, neofascistas e mesmo democrático-burgueses.

         Definir com precisão o fenômeno é fundamental para combatê-lo. Desde Sun-Tzu não temos como combater um exército inimigo sem defini-lo e conhecê-lo. Apesar dessas análises com exata precisão feitas por Goleman, Reich e Fanon, quase como se tivessem sido escritas hoje, ainda não temos respostas para combater tal peste emocional, que inclusive, como foi dito, se expressa entre a “esquerda”. No entanto, o 1º passo para conseguir desenvolver um método de luta eficaz contra o bolsonarismo e o neofascismo é delimitá-lo e reconhecer a sua existência para, aí sim, poder trabalhar por respostas e “soluções”.

         Ao invés disso, a “esquerda” tem gritado “fora Bolsonaro”[xix] – ignorando correlação de forças, organização e os próprios métodos do neofascismo –, o que julga ser um facilitador político no sentido de diminuir as resistências na luta contra o governo, quando, na realidade, apenas tende a triplicá-las, gerando piores tipos de barreiras emocionais e fortalecendo o inimigo que pretende derrubar num passe de mágicas, apenas reproduzindo ad infinitum as velhas teorias e os discursos surrados que, ao fim e ao cabo, estão desconectados do sentimento de quem o escuta (e da própria realidade).

         Agitar “fora Bolsonaro” sem correlação de forças apenas ajuda a dicotomizar o debate e o pensamento, levando a luta para o campo de batalha que beneficia o inimigo e alimentando o ódio e a cegueira ocasionada pela peste emocional. Em síntese: agitar “Fora Bolsonaro” sem correlação de forças e organização real serve para dar coesão à base popular de apoio do bolsonarismo. Renovar os métodos, a prática e o nosso repertório político e teórico deve ser o primeiro passo nessa literal luta de morte.

 

REFERÊNCIAS


[i] GOLEMAN, Daniel. A inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995.
[ii] Idem, página 26.
[iii] Idem, página 308.
[iv] Idem, página 309.
[v] Idem.
[vi] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008 (página 137).
[vii] Ver: http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/02/a-repressao-moral-da-sexualidade-e-uma.html
[viii] Idem.
[ix] GOLEMAN, Daniel. A inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995, página 72.
[x] Idem, página 99.
[xi] Idem, página 305.
[xii] Idem, página 310.
[xiii] Idem, página 153.
[xiv] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008 (página 141).
[xv] GOLEMAN, Daniel. A inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995, página 310.
[xvi] Idem.
[xvii] Idem.
[xviii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/04/quem-poderia-se-utilizar-da-fome-dos.html
[xix] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/10/sobre-palavra-de-ordem-fora-bolsonaro.html

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Apontamentos sobre a utilização da violência revolucionária

Para os que julgam as coisas superficialmente destaca-se com especial relevo uma característica da revolução que se manifestou no enérgico, firme e implacável acerto de contas com os exploradores e os inimigos do povo trabalhador. Não há dúvidas de que sem esta característica sem violência revolucionária o proletariado não teria vencido, porém é indubitável, também, que a violência revolucionária só é um método necessário e legítimo da revolução em determinados momentos de seu desenvolvimento, somente quando se dão as condições especiais e determinadas, e que uma qualidade muito mais profunda e permanente desta revolução, a condição de seu triunfo, é e será sempre a organização das massas proletárias, a organização dos trabalhadores. Esta organização de milhões de trabalhadores, de fato, é a condição mais importante da revolução, a fonte mais profunda de suas vitórias.

Lenin

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Zé! Nº1

Publicamos abaixo, na íntegra, a revista de literatura e poesia Zé! (nº1), criada por Paulo Moacir Farias da Silva e Cezar Dias. A revista teve dois números, sendo a primeira publicada em maio de 2011 e a segunda em janeiro de 2012. Zé! ainda tinha um blog, cujo endereço é: http://ze-digital.blogspot.com/

“Jamais esqueça as palavras que nos tornaram importantes, embora só por um momento: Nada para nós; tudo para todos”.

Subcomandante Marcos

 

Então, este é o Zé!
E é Zé! porque somos bilhões de Zés no mundo.
Somos Zés porque nos fazem de Zés, e porque deixamos que nos façam de Zés.
Mas o lado bom disso tudo é que somos Zés.
Isto é, somos simples e humildes (às vezes até demais)
e somos a maioria. Era um ideia de muito tempo.
Podemos mudar esse jogo.
Há sempre um jogo sendo jogado, não sabiam?
E estamos perdendo.
Talvez só por enquanto. Depende de nós, os Zés.
Mas não se vira um jogo somente querendo.
É preciso muito trabalho e consciência.
É preciso agir.
Então estes Zés aqui resolveram começar.
Era uma ideia de muito tempo.
É que como bons Zés demoramos a pô-la em prática.
Mas vejam só como há esperança para tudo –
aqui está o primeiro Zé.
Ele é para todos os que aprenderam a ler e leem.
É para todos que se importam e sentem.
E especialmente para aqueles que choram.
De raiva, de tristeza, de alegria – verdadeiras.
É simples e humilde como um Zé.
Mas nem por isso carece de valor.
Leia-o, por favor.
Mas se não for lê-lo, passe-o para outro.
É importante.
Só queremos espalhar um pouco de literatura e poesia.
E de indignação e raiva também.
Por que não?
Há muito a ser feito neste mundo.
Não é um trabalho que se esgota em seis dias.
Então mãos à obra.
Talvez, todos juntos, consigamos que aqueles
que constroem belas casas tenham uma também.
Que aqueles que produzem teu alimento, possam comer à vontade.
E que a sensibilidade e o cuidado com o outro não despertem apenas quando um barranco despenque no Rio, um terremoto devaste o Japão ou um desequilibrado chacine crianças numa escola.
Acho que vale tentar.
Vamos?


Defesa dos lobos contra os cordeiros

Querem que o abutre coma miosótis?
O que exigem do chacal,
do lobo, que mude de pele? Querem
que ele mesmo extraia seus dentes?
O que é que não apreciam
nos comissários políticos e nos papas,
por que olham, feito burros,
o vídeo mentiroso?

Quem costura a faixa de sangue
nas calças do general? Quem
trincha, diante do agiota, o capão?
Quem pendura, orgulhoso, a cruz de lata
sobre o umbigo que ronca de fome? Quem
aceita a propina, a moeda de prata,
o centavo para calar-se? Há
muitos roubados, poucos ladrões; quem
os aplaude, quem
lhes põe insígnias no peito, quem
é sequioso de mentiras?

Olhem-se no espelho: covardes,
temendo a fadiga da verdade,
sem vontade de aprender, entregando
o pensar aos lobos
um anel no nariz como adorno preferido,
nenhuma ilusão burra o bastante, nenhum consolo
barato o suficiente, cada chantagem
é ainda clemente demais para vocês.

Ó cordeiros, irmãs
são as gralhas comparadas a vocês:
vocês se arrancam os olhos uns aos outros.
Fraternidade reina
entre os lobos:
andam em alcateias.

Louvado sejam os salteadores: vocês
convidam ao estupro
deitando-se no leito preguiçoso

da obediência. Mesmo gemendo
vocês mentem. Querem
ser devorados. Vocês
não mudam o mundo.

Do livro “Eu falo dos que não falam”, do poeta alemão Hans Magnus Enzensberger. Ed. Brasiliense, 1985.


***

O título já é um poema.
A capa outro.
O Livro: "Um barco remenda o mar", cujo subtítulo é "Dez poetas chineses contemporâneos".
Mais que um belo trabalho, um trabalho necessário.
O melhor da China milenar sempre foi sua cultura milenar.
Eis uma boa ocasião de entrar em contato com ela.

DEVOLVAM-ME

Devolvam-me
Devolvam-me aquela porta sem fechadura
Mesmo que já não ligue a nenhum quarto, devolvam-me
Devolvam-me o galo que me acordava todas as manhãs
Mesmo que tenha sido devorado, devolvam-me os ossos
Devolvam-me o canto do pastor que soava na encosta da
montanha
Mesmo que tenha sido gravado em cassete, devolvam-me
a flauta
Devolvam-me o espaço do sexo
Mesmo que tenha sido poluído, quero o direito à proteção
do ambiente
Devolvam-me a boa relação com os meus irmãos e as
minhas irmãs
Mesmo que só tenha meio ano de vida, devolvam-me
Devolvam-me todo o globo
Mesmo que tenha sido dividido
em mil países
em cem milhões de aldeias
ainda o quero, muito.

Yan Li
(1986)


ESSA MULHER...

Queria já ter dito algo sobre esta mulher que denunciou e enfrentou os policiais assassinos no cemitério. Mas não encontrava o texto certo que queria anexar (sempre a literatura!).

Queria dizer-lhe que esse tipo de coisa, ultimamente, só tenho visto em mulheres.
De como nos faltam homens com esta coragem.
E que prestei atenção em como ela se expressou:
claramente e com firmeza.
E de como sinto falta disso nos jornalistas.
E que, por causa dela, todos nós nos tornamos um pouco melhores.
E que minha família, desde esse dia, ficou maior.

(Paulo de Quadros)


A Arte e o Tempo

Quem são meus contemporâneos? - pergunta-se Juan Gelman
Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris, ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são os seus contemporâneos.
Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos.
E lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim:
que esse poeta, que esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos.

Eduardo Galeano, in O Livro dos Abraços.


PÃO & CIRCO
Há pouco tempo, num jogo de vôlei, uma torcida inteira urrou a homossexualidade de um jogador do time adversário, tentando desestabilizá-lo.
Era um jogo importante, se não estou enganado. Decisão de um título, acho.
Então é licito que se perca o respeito por um ser humano.
Que se jogue as favas a dignidade de alguém.
Que se apele ao mais reles preconceito. Tudo pelo nosso time!
Já se vem fazendo isso há muito tempo neste país.
Aqui não se luta por direitos, mata-se por futebol.
Não se range os dentes para a injustiça, mas para o adversário.
“Jornalistas” discutem seriamente um 0x0 medíocre entre jogadores medíocres.
Enquanto a violência e a falta de ética grassam nos gramados e mal noticiadas, homens feitos aguardam ansiosamente por uma copa do mundo.
E continuarão aguardando ansiosamente, no chão de uma sala de espera de um hospital.
E ansiosamente sairão à rua para trabalhar, temendo a falta de segurança.
- Não há dinheiro – dizem.
O que não há é vergonha na cara - digo eu.
Como ter esperanças?
Antônio Abujamra diz que a Esperança matou este país.
E não sei se cada povo tem o governo que merece...
(embora muitas vezes pareça que sim).
Panis et circenses...

(Paulo de Quadros)