domingo, 29 de dezembro de 2019

Dicionário do "pensamento" bolsonarista

Depois do Dicionário do Pensamento Marxista, finalmente saiu o Dicionário do Pensamento Bolsonarista. A criatividade de quem o fez é sublime. Circula nas redes sociais sem autoria definida, mas é um primor de rigor analítico, chegando às vezes a ser hilário, mas nem por isso menos verdadeiro.

PATRIOTA. Aquele que apoia a privatização ou a venda de empresas estatais e de riquezas naturais para grupos estrangeiros.

CIDADÃO DE BEM. Homem branco, hétero e de classe média que defende o porte de armas e a sonegação de impostos. 

ESTUDANTE. Jovem maconheiro facilmente influenciável por ideias de esquerda. 

PROFESSOR. Doutrinador comunista que promove greves e surubas em horário de trabalho.

UNIVERSIDADE PÚBLICA. Local de balbúrdia onde as pessoas andam nuas, consomem drogas e se deixam manipular por doutrinadores de esquerda.

CIENTISTA. Pessoa que recebe dinheiro público para promover pesquisas sem importância que não geram retorno financeiro.

EMPRESÁRIO. Único profissional responsável pelo desenvolvimento do país, apesar de massacrado pelos impostos do Estado e tolhido pelos direitos trabalhistas.  

POBRE. Pessoa que não se esforçou o bastante; vagabundo; procrastinador. 

GAY. Pederasta depravado; bicha louca; pedófilo; indivíduo pervertido que ainda não aceitou Jesus. 

FEMINISTA. Mulher que não gosta de homem e não depila as axilas. 

INDÍGENA. Pessoa que ocupa grandes porções de terra sem pagar impostos, sem trabalhar e sem gerar receita ao Estado. Diz-se também do brasileiro que se aproveita de sua aparência física para requisitar o direito a territórios que, por direito, deveriam pertencer ao agronegócio.

IMIGRANTE. Pessoa estrangeira de má índole, proveniente de países do Terceiro Mundo, que vem ao Brasil para tirar o emprego de brasileiros e estuprar as mulheres (OBS: Não se enquadram nessa classificação imigrantes de pele clara e olhos azuis provenientes de países europeus como Itália e Alemanha).

MOVIMENTO NEGRO. Organização formada por pessoas (de cor) ressentidas que se dedicam a promover o racismo reverso na sociedade; grupo de pessoas (de cor) que não se colocam em seu devido lugar. 

MACUMBEIRO. Pessoa adepta de seitas como candomblé e umbanda, que cultuam demônios e praticam a magia negra e o sacrifício de animais e seres humanos.

NORDESTINO. Brasileiro nascido ou residente na região nordeste do país e dotado de pouca inteligência, bem como de pouca inclinação ao trabalho. Não obstante, apresenta tendências esquerdistas na política.

DITADURA MILITAR. Suposto período histórico que teria vigorado no Brasil de 1964 a 1985. O mito da ditadura foi inventado por professores de esquerda com o objetivo de desqualificar o governo de militares abnegados e honestos que livraram o Brasil do comunismo. 

DEMOCRACIA. Regime de governo corrupto que só beneficia a classe política em detrimento da família, da tradição e da propriedade.

DIREITOS HUMANOS. Organização de esquerda criada para defender criminosos e vagabundos de toda sorte. 

DESEMPREGO. Opção de quem não gosta de trabalhar ou não possui a competência e a qualificação exigidas pelo mercado.

MANIFESTAÇÃO POLÍTICA. O mesmo que baderna (OBS: A exceção fica por conta das manifestações de classe média que pedem intervenção militar, feitas geralmente aos domingos e compostas por famílias vestidas em camisas amarelas e portando bandeirinhas do Brasil como prova inequívoca de seu patriotismo). 

VENEZUELA. O inferno na Terra. Uma espécie de Cuba com petróleo. Uma Coreia do Norte com belas candidatas a Miss Universo. República de bananas comandada por uma ditadura sanguinária financiada pela União Soviética e pelas verbas do BNDES durante o regime lulopetista. 

ESTADOS UNIDOS. País exemplar para onde todos os brasileiros querem se mudar um dia. Terra da liberdade em que as leis funcionam e a segurança impera porque os cidadãos de bem podem andar armados.

BRASIL. País desprezível formado majoritariamente por gente pobre, ignorante e preguiçosa. Nação historicamente fadada ao atraso e ao subdesenvolvimento devida a pouca capacidade empreendedora de sua população. 

BRASILEIRO. Adjetivo pejorativo usado para desqualificar o que quer que seja (um filme, um escritor, um destino turístico etc). Sinônimo de pobreza, falta de caráter e indolência. "Só podia ser brasileiro mesmo".

FILÓSOFO. Tipo de pensador inexistente no Brasil, dada a nossa incapacidade de produzir reflexões profundas (OBS: Olavo de Carvalho é uma exceção, podendo ser considerado o único filósofo brasileiro, entre vivos e mortos).

ARTE. Suposta atividade criativa humana que só interessa a uma pequena elite intelectual de esquerdistas pernósticos. 

ARTISTA. Indivíduo que se dedica à vadiagem, usando a arte como justificativa para sua condição de sanguessuga do dinheiro público. 

CULTURA POPULAR. Arte de pouca ou nenhuma qualidade e importância; coisa de pobre.  

MUSEU. Local geralmente público e entulhado de velharias inúteis que não interessam a ninguém. 

POLITICAMENTE CORRETO. Designa a conduta criada pela patrulha de esquerda para coagir e constranger pessoas espontâneas que falam o que todo mundo pensa mas não têm coragem de verbalizar.  

EDUCAÇÃO SEXUAL. Disciplina escolar criada por professores esquerdistas para ensinar pornografia às crianças, minando assim os valores da família cristã. Tal disciplina estava contida no famigerado kit gay (que o educador Paulo Freire escreveu a pedido do ministro Fernando Haddad durante o governo Lula e que vinha sendo distribuído nas escolas brasileiras). 

TRABALHO ESCRAVO. Lenda urbana inventada pela esquerda com o intuito de prejudicar a imagem de empresários sérios e honestos; todo tipo de trabalho que um esquerdista se recusa a fazer. 

SINDICATO. Grupelho de pessoas desocupadas que usa os trabalhadores como massa de manobra para beneficiar eleitoralmente os partidos de esquerda. 

IMPRENSA. Designação coletiva dos veículos de comunicação controlados pela União Soviética e dominados pela ideologia marxista-leninista de seus funcionários. 

FUNCIONÁRIO PÚBLICO. Pessoa ociosa sustentada pelo dinheiro dos nossos impostos para jogar paciência ou tomar cafezinho em repartições públicas decrépitas e sem muita utilidade. 

PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT). Organização criminosa criada exclusivamente para dilapidar os cofres públicos e instaurar o socialismo no Brasil.

SOCIALISMO. O mesmo que comunismo.

COMUNISMO. Regime totalitário de esquerda implantado no Brasil em 2003 e que vigorou até 2016. Historiadores monarquistas  sustentam, no entanto, que o comunismo teria sido implantado em 1889, com a Proclamação da República.

ESQUERDISTA. O mesmo que petista. 

PETISTA. O mesmo que comunista.

COMUNISTA. Pessoa que não trabalha ou que vive exclusivamente de cargos públicos e boquinhas; indivíduo pervertido que defende a educação sexual para crianças, a ditadura gay e o aborto; ateu de esquerda que se dedica a difamar a Bíblia e a destruir os valores da família cristã.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Sobre o sentimento religioso

Se for interpretado um registro fiel das ideias do Homem sobre a Divindade, ele será obrigado a reconhecer que, na maioria das vezes, a palavra "deuses" foi utilizada para expressar as causas ocultas remotas, desconhecidas de efeitos testemunhados por ele; que ele aplica este termo quando a origem do natural, a fonte das causas conhecidas, cessa de ser visível: assim que perde o fio de continuidade das causas, ou logo que a sua mente não consegue mais seguir a cadeia, ele resolve a dificuldade, termina a sua busca, atribuindo-a aos seus deuses... Quando, portanto, imputa a seus deuses a produção de algum fenômeno... não estará ele fazendo nada além de substituir a limitação da sua própria mente por um som que está acostumado a ouvir com respeito e temor?

(Paul Heinrich Dietrich, Barão von Holbach, Sistema da Natureza, Londres, 1770, in "Cosmos", de Carl Sagan).

***

Numa vida curta e incerta, parece cruel fazer qualquer coisa que possa privar as pessoas do consolo da fé, quando a ciência não pode remediar a sua angústia. Aqueles que não conseguem suportar o peso da ciência têm a liberdade de ignorar os seus preceitos. Mas não podemos fazer ciência aos pedacinhos, aplicando-a quando nos sentimos seguros e ignorando-a quando nos sentimos ameaçados. A não ser dividindo a mente em compartimentos herméticos separados, como é possível voar em aeroportos, escutar rádio ou tomar antibióticos, sustentando ao mesmo tempo que a Terra tem 10 mil anos ou que todos os sagitarianos são gregários e afáveis?

(Carl Sagan - O mundo assombrado pelos demônios).

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

A Palerma

Texto de Anton Tchékhov (1860 - 1904); escritor e dramaturgo russo.

Dias atrás mandei chamar a governanta dos meus filhos, Iúlia Vassílievna, ao meu gabinete. Precisávamos acertar contas.
 Sente-se, Iúlia Vassílievna.!  eu disse. 
 Vamos acertar nossas contas. A senhora provavelmente necessita de dinheiro, mas tem cerimônia demais para pedir... Vamos lá... Nós combinamos trinta rublos por mês...
 Quarenta...
 Não, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta para as governantas... Então, a senhora ficou aqui dois meses...
 Dois meses e cinco dias...
 Dois meses exatos... Eu tenho aqui anotado. Portanto, a senhora tem a receber sessenta rublos... Temos que descontar nove domingos... pois a senhora não estudou com Kólia nos domingos, somente passearam... e houve ainda três feriados...

Iúlia Vassílievna ficou vermelha e começou a repuxar os babadinhos de sua roupa, mas não disse uma só palavra...


 Três feriados... Consequentemente, vamos tirar doze rublos... Durante quatro dias Kólia ficou doente e não teve aulas... A senhora estudou só com Vária... Três dias a senhora teve dor de dente e minha esposa permitiu que a senhora não desse aula depois do almoço... Doze mais sete  dezenove. Subtraindo, restam... hum... 41 rublos. Certo?

O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou vermelho e cheio d´água. Seu queixo tremeu. Ela deu uma tossida nervosa, assoou o nariz, mas 
 nem uma palavra!

 Na véspera de ano-novo a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. Vamos tirar dois rublos... A xícara custa mais do que isso, era herança de família, mas... deixa pra lá! Não vamos fazer questão disso! Adiante: devido à sua falta de atenção, Kólia subiu numa árvore e rasgou seu casaquinho. Vamos tirar dez... A arrumadeira, também devido à sua falta de atenção, roubou umas botinas de Vária. A senhora deveria cuidar de tudo. É para isso que recebe salário. Então, vamos tirar mais cinco... No dia sete de janeiro a senhora pegou adiantado comigo dez rublos...
 Eu não peguei!  sussurrou Iúlia Vassílievna.
 Mas eu tenho aqui anotado!
 Então, está bem... Que seja.
 De 41 vamos subtrair 27  restam catorze.

Os dois olhos de Iúlia Vassílievna encheram-se de lágrimas... No seu belo e alongado narizinho apareceram gotas de suor. Pobre menina!
 Eu só peguei uma vez  disse ela com voz trêmula.  Peguei com a sua esposa três rublos... Não peguei mais...
 É mesmo? Ora, isso não está anotado! Tirando três de catorze, sobram onze... Aqui está o seu dinheiro, caríssima! Três... três... três... um... um... Tenha a bondade de receber!
E lhe entreguei onze rublos... Ela pegou o dinheiro e com os dedinhos tremendo meteu-o no bolso.
 Merci  sussurrou ela.

Levantei-me de um salto e comecei a caminhar pelo gabinete. Estava indignado.

 Merci por quê?  perguntei.
 Pelo dinheiro...
 Mas eu a roubei, com os diabos, eu a assaltei! Acabei de roubá-la! Por que merci?
 Nos outros lugares eles não pagavam nada...
 Não pagavam? Então não é de se estranhar! Eu estava brincando com a senhora, estava lhe dando uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os oitenta rublos! Estão aqui preparados, neste envelope! Mas é possível ser assim tão pateta? Por que a senhora não protesta? Por que fica calada? Será que neste mundo é possível não ser atrevido? É possível ser tão palerma?

Ela deu um sorriso azedo e eu li no seu rosto: "É possível!"
Pedi desculpas pela cruel lição e, para sua grande surpresa, entreguei-lhe todos os oitenta rublos. Ela disse um merci tímido e saiu... Fiquei olhando quando ela se afastava e pensei: "Como é fácil ser poderoso neste mundo!".

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O espontaneísmo na luta de classes da América Latina



A recente onda de golpes reacionários e rebeliões de resistência na América Latina traz novamente à tona o problema do espontaneísmo na luta de classes. Antes de tudo, há que se conceituar o que é o espontaneísmo. Trata-se de um desvio crônico da esquerda latino-americana e mundial, também chamado de economicismo, que se caracteriza por restringir o movimento dos trabalhadores à luta econômica, pois se opõe à luta de classes no seu sentido revolucionário. Trocando em miúdos, significa dizer que os trabalhadores devem se limitar às aspirações imediatas, como, por exemplo, reivindicações salariais ou exigências práticas quaisquer que se mantenham inconscientes dentro dos limites do capitalismo.
         A luta econômica, as greves e as explosões populares devem ser apenas o ponto de partida para a verdadeira luta de classes. Mas vemos que a esquerda cronicamente se mantém refém dos limites economicistas, escondendo-se atrás de uma fraseologia revolucionária, enquanto mantém uma prática espontaneísta. A tradição marxista afirma “que os atuais movimentos que reivindicam exclusivamente melhores salários e menos horas de trabalho se envolvem num círculo vicioso sem saída; que não são os baixos salários, mas o salário em si mesmo que constitui o mal fundamental do sistema. (...) que se aproxima a hora em que a classe operária, tendo compreendido que a luta por melhores salários e encurtamento da jornada de trabalho, assim como o conjunto das ações atuais dos sindicatos, não é um fim em si, mas um meio, um meio necessário e eficaz, mas somente um entre muitos outros, para atingir um objetivo mais elevado: a abolição do próprio trabalho assalariado” (artigo de Engels no Labour Standard).
         O espontaneísmo contemporâneo assumiu características peculiares, embora continue impedindo que os trabalhadores atinjam, ou pelo menos, se proponham “objetivos mais elevados”. O horror à ideia de se propor a perspectiva socialista, que surge como um reflexo das experiências com o stalinismo (chamado pelos ideólogos burgueses de “socialismo real”), conduz a repulsa aos partidos e a qualquer forma de organização, fazendo com que se desenvolva uma forma de purismo estéril que se transforma em reformismo passivo ou em alguns tipos de romantismo puritano[i]. A própria burguesia já se apercebeu deste “poder ideológico” e é a que mais dissemina o ódio aos partidos em geral (enquanto conserva a totalidade dos seus, é claro), além das diversas formas de preconceitos anti-socialistas que servem perfeitamente para manter as rebeliões populares dentro de estreitos e controlados limites políticos do capitalismo.
         Combater o espontaneísmo não significa negar e controlar todas as iniciativas espontâneas da massa. Estas foram e continuam sendo importantes termômetros, mas sem uma orientação decidida e conquistada a partir do debate e do convencimento político, todo movimento termina como espoleta sem pólvora. Diversas vertentes da esquerda – desde o reformismo até o anarquismo – cultuam a massa tal como ela é, ignorando os perigos de sua consciência entorpecida pelas ideologias burguesas, bem como suas ações limitadas por essa mesma consciência. Outros, mais refinadamente, tentam passar o seu espontaneísmo como política revolucionária e “marxista”, mas não fazem nada além de cultuar o espontâneo.
         Para os anarquistas (e para muitos setores da esquerda), a proposta marxista de partido revolucionário ou direção revolucionária do movimento dos trabalhadores significaria somente tratar a massa humana como uma matéria bruta privada de vontade, de iniciativa e de consciência, além de julgá-la incapaz de dirigir a si mesma. Se por um lado é importante reconhecer que existem sim dirigentes ditos “marxistas” e, até mesmo, partidos “marxistas”, que usam o discurso de direção revolucionária para manipular, oprimir, abafar e controlar iniciativas da massa humana; por outro, desprovidos de uma compreensão de que esta mesma massa humana é um corpo multiforme, repleto de contradições, sentimentos e ideologias reacionárias, prontas a cair em contos paternalistas e a reproduzir ideologias burguesas, ficamos reféns do espontaneísmo e condenamos qualquer saída revolucionária; ou pior, acabamos cultuando o espontaneísmo e idealizando uma massa humana que não existe, a não ser, é claro, nos nossos sonhos idílicos. Bem entendido: “dirigir” uma massa humana jamais pode ser sinônimo de imposição ou controle, mas apenas de convencimento através do debate das melhores ideias, táticas e estratégias. Isso não exclui o respeito e o desenvolvimento das tendências que surgem espontaneamente no seio da massa durante os processos de mobilização, porém, sem se restringir às suas limitações.
         Vemos hoje diversas organizações ditas de esquerda (incluso organizações anarquistas) que condenam a palavra “direção”, os partidos e qualquer tipo de institucionalidade, cultuarem direta ou indiretamente o espontaneísmo mais bárbaro – isto é, a massa como ela é, inclusive reproduzindo os seus piores desvios e vícios. Quando, por exemplo, vemos o espontaneísmo contemporâneo abordar temas como o apartidarismo, o “basismo” e a necessidade de repelir qualquer institucionalidade, isso não impede esta “esquerda” de, na prática, sustentar e reproduzir a política de todos os partidos burgueses e a estrutura social burguesa que jura combater, ao mesmo tempo em que acredita ser o suprassumo da independência política. Ao combater a “direção” e a apresentação de um programa político por medo de serem “autoritários”, estão abraçando a massa tal como ela é e ajudando a perpetuar todos os seus vícios; o que serve muito bem para sustentar a classe dominante e toda a sua estrutura social.

Algumas notas sobre o espontaneísmo contemporâneo: o caso do Chile
         A recente rebelião popular no Chile contra o aumento do metrô e as décadas de aplicação do neoliberalismo fez vir à tona uma série de posições da esquerda acerca da natureza e da perspectiva dessas mobilizações. Algumas organizações falam que se trata do “maior levante de massas na América Latina desde a Revolução Cubana de 1959”[ii]. Não restam dúvidas quanto a importância destas mobilizações populares na América Latina, mas há que se ponderar certos exageros.
Esta explosão popular chilena foi precedida pela luta do povo equatoriano, que se levantou contra os planos de ajuste do governo Lenín Moreno. O fato de lá ela já ter refluído, mesmo que todas as palavras de ordem tradicionais e batidas – que analisaremos adiante – tenham sido levantadas febrilmente pela esquerda, não a faz tirar conclusão alguma. O mesmo poderia ser dito para os coletes amarelos na França.
As mobilizações do Chile, por sua vez, ainda continuam. Por isso, cabe o exame das palavras de ordem de 2 organizações de trabalhadores que se reivindicam “revolucionárias” e que possuem intervenção no Chile: o Movimiento Socialista de los Trabajadores (MST), ligado à UIT; e o MIT, ligado à LIT (PSTU). O MST e o MIT servem como bons exemplos porque expressam a posição do conjunto da “esquerda” latino-americana, em geral, e da brasileira, em particular, sobre o que se passa e sobre o que fazer no Chile. Em todos os seus manifestos e declarações públicas podemos ver a tendência ao culto permanente de saudar as massas nas ruas como um fim em si mesmo. O MIT defende “continuar nas ruas até que caia Piñera, todos eles e a Constituição de 80”[iii], porém, não nos diz como fazer isso; a não ser, é claro, ficando na rua.
Sem dúvida a mobilização massiva dos trabalhadores equatorianos e chilenos deve ser saudada por todos os revolucionários, mas essa saudação precisa partir da compreensão básica de que isto é apenas o primeiro passo; e que se nada for feito além disso elas tendem a refluir à situação original. Para onde caminham as mobilizações, qual é a hierarquia das suas tarefas e palavras de ordem, bem como quais são as suas reais condições de por o governo Piñera para fora, são questões analisadas precariamente ou ignoradas por completo, quando não romantizadas.
         O fenômeno mais importante das mobilizações chilenas é o da criação das Assembleas Territoriales, que surgiram e se multiplicaram nos bairros populares no calor das manifestações e da repressão do governo chileno. Estas assembleias são organismos de base que tiveram e tem papel fundamental não apenas na organização e manutenção dos protestos, mas, também, na organização de base, possuindo funções de policiamento de rua e do fluxo de pessoas nos bairros, mesmo frente ao decreto do toque de recolher do governo Piñera. A bem da verdade, são frágeis embriões de duplo poder, embora possamos ver neles uma potencialidade revolucionária.
         Em outubro deste ano, o blog Consciência Proletária publicou uma análise sobre o Equador e o Chile que afirmava o seguinte: “foi-se o tempo em que os conselhos populares surgiam espontaneamente. Provavelmente esta seja uma das principais tarefas de um partido revolucionário”[iv]. Ou seja, neste momento o que deveria estar sendo incentivado prioritariamente no Chile é o fortalecimento e a coordenação nacional dessas assembleias territoriais, para que elas sintam a sua força e possam vir a cumprir o papel de duplo poder com o governo Piñera. As massas trabalhadoras do Chile apontaram – precariamente – para estas assembleias, que estão sendo secundarizadas ou totalmente ignoradas pelas organizações de esquerda em prol de palavras de ordem e ações pseudo-radicais, que não podem ter outro desfecho a não ser o fortalecimento da institucionalidade burguesa e o cansaço das massas. Sem serem conscientemente fortalecidas, sobretudo para atingir e controlar os locais de trabalho que ainda são hegemonicamente dominados pela burguesia, estas assembleias não terão a força suficiente para se colocar como alternativa de poder. Aí está a principal tarefa de uma organização revolucionária no Chile. A “esquerda” revolucionária atual entende a crise de direção como a mera necessidade de existência física de um partido com expressão numérica entre os trabalhadores, ignorando por completo qual política e qual programa deve ser levantado no seio do movimento.
As massas estão sendo disputadas a todo o momento por centenas de propostas que tem a mesma finalidade: recompor a estrutura do Estado burguês e acalmar os protestos de rua para, no fim, conseguir aplicar o plano de reajuste e reciclar o capitalismo. Há que se separar urgentemente as palavras de ordem que levam água ao moinho da burguesia chilena e ao imperialismo daquelas que empoderam os trabalhadores e a juventude. O MST, o MIT e a maior parte da esquerda levantam prioritariamente aquelas que fortalecem o espontaneísmo e a confusão reinante.
O que sustenta o MST e o que vemos se repetir quase como um mantra são as seguintes orientações genéricas: “Fora Piñera”; “por um plano econômico operário e popular de emergência”; “punição aos militares e a Piñera pelas violações dos direitos humanos”; “por uma verdadeira assembleia constituinte livre e soberana, convocada pelo povo mobilizado”; e a mais progressiva, levantada basicamente pelo MST: “coordenar as assembleias autônomas”, embora apareça apenas uma vez, não diga nada de concreto sobre como coordená-las e, na maior parte do texto, sirva apenas para confundi-las com a assembleia constituinte. Outras organizações, dentre as quais se incluem o MIT, levantam a necessidade de uma “greve geral por tempo indeterminado para derrubar Piñera”.
Como se pode ver, todas elas colocam a carroça na frente dos bois. Tirar Piñera do poder, puni-lo pelos seus crimes, aplicar um plano econômico ou chamar uma assembleia constituinte que sirva aos interesses dos trabalhadores, como palavras de ordem para a agitação imediata, devem ser precedidas pelo fortalecimento das assembleias territoriais. Como fortalecê-las, então? Dando consciência aos trabalhadores sobre a necessidade de priorizar esta tarefa política, atingindo, sobretudo, os locais de trabalho – imunes até o momento.

Piñera só cairá se as assembleias territoriais se tornarem o poder dominante!
Os “Fora este” ou “aquele”, insistentemente levantados no Brasil – como o atual “Fora Bolsonaro” – são delirantes, pois ignoram a real correlação de forças e, na maioria das vezes, serve para ajudar a conformar outro governo burguês (como foi o caso do “Fora Dilma” apoiado pela LIT e pela UIT). No Chile, o “Fora Piñera” parece mais plausível; sendo quase possível concretizá-lo. Mas há um engano profundo! Não há poder alternativo para por em seu lugar. Na melhor das hipóteses, se Piñera caísse pela pressão popular, entraria em seu lugar um novo governo burguês que reconstituiria a estrutura do Estado burguês; o mesmo ocorreria com a concretização improvável de uma assembleia constituinte.
Devemos comparar o “Fora Piñera” com o método empregado por Lenin durante a Revolução de 1917, mais especificamente enquanto ocorriam as jornadas de julho, quando operários armados exigiam a saída dos “ministros capitalistas” e a própria derrubada do governo provisório. Nesta ocasião, Lenin disse o seguinte: “O verdadeiro governo é o Soviete de Deputados Operários... Nosso partido é uma minoria no Soviete... Isso não pode ser contornado! Cabe a nós explicar – pacientemente, persistentemente e sistematicamente – a erroneidade de suas táticas. Enquanto formos uma minoria, nossa tarefa é fazer a crítica com o objetivo de abrir os olhos das massas (...) A questão é que o proletariado não está suficientemente consciente e nem suficientemente organizado. Isso deveria ser admitido. A força material está nas mãos do proletariado, mas a burguesia está alerta e pronta”[v].
Isso foi dito na Rússia em julho de 1917, companheiros! No Chile estamos numa situação ainda pior, pois além de as organizações revolucionárias serem numericamente frágeis e levantarem palavras de ordem equivocadas – o que joga a sua realização para mais longe ainda –, as assembleias territoriais são menos organizadas e atuantes do que os sovietes; portanto, ainda estão longe de ser o “verdadeiro governo”. Há que se fortalecê-las para que venham a cumprir o mesmo papel. Estaria correto falar no “Fora Piñera” do ponto de vista da propaganda (desde que coordenada com ações práticas de fortalecimento das assembleias); como agitação direta esta consigna significa ignorar perigosamente que as condições de colocá-lo para fora ainda não estão maduras. O mesmo poderia ser dito sobre as mirabolantes propostas de assembleia constituinte.
O MST diz, num dado momento perdido do seu jornal, que “no desenvolvimento e coordenação a nível nacional das assembleias territoriais está a oportunidade de que a heroica luta de hoje seja conduzida por autênticos representantes que, democraticamente eleitos, façam ainda maior e decisiva a luta contra Piñera”[vi]. A análise está correta, mas segue em contradição com as principais palavras de ordem do MST, que pressuporiam que este estágio de desenvolvimento e coordenação nacional das assembleias já estivesse concluído, o que não é o caso. Assim, antes do “Fora Piñera”, a principal e mais importante palavra de ordem deveria ser: “fortalecer e coordenar nacionalmente as assembleias territoriais”, seguida por “organizar as assembleias territoriais por local de trabalho, estudo e moradia”. Uma vez que esta tarefa fosse concluída, poderíamos nos preparar para o estágio seguinte de “Fora Piñera”, “assembleia constituinte convocada pelo povo mobilizado”, etc., que são levantadas pelo MST para serem concretizadas hoje!
***
Examinemos, agora, o que diz o MIT e o PSTU. O MIT tem plena consciência da importância das assembleias territoriais. Tanto é assim que afirma o seguinte: “Devemos continuar impulsionando, multiplicando e coordenando as assembleias populares e operárias, sem representantes do empresariado, com total independência de classe. Essas assembleias também devem organizar a defesa das manifestações e da população, por exemplo, formar comitês de vigilância nos bairros, comitês de choque ou defesa para os protestos. (...) Hoje, essas assembleias têm coordenação regional em alguns lugares e já existe um Encontro nacional convocado. Essas coordenações mais centrais devem ser fortalecidas, as assembleias das comunas ou bairros populares devem votar democraticamente seus representantes e que seus cargos devem ser revogáveis. Esses representantes devem levar a discussão e as propostas de sua assembleia para os encontros regionais ou nacionais”[vii].
São importantes algumas delimitações e propostas do trecho acima, mas nenhuma delas se reflete como prioridade nas suas palavras de ordem concretas e, também, ignoram os conselhos de Lenin dados em julho de 1917. Conclui com as seguintes preocupações: “Para avançar, precisamos começar com coisas prévias, por exemplo, que as assembleias tenham o controle de preços contra aumentos injustificados dos comerciantes: por exemplo, em Valparaíso, em vista do aumento e especulação dos comerciantes da vizinhança, a assembleia se reuniu com eles e pediu que baixassem os preços porque, caso contrário, eles organizariam o auto abastecimento, indo em caravana para comprar em locais rurais e também ameaçaram não continuar vigiando suas instalações”[viii].
Estão, também, corretas estas observações, embora sejam insuficientes. Se é importante generalizar essa função de controle de preços, a condição para que isso ocorra é “avançar” para a organização e independência dos locais de trabalho, sem o quê não há mudança possível; tampouco revolução! Ou a greve geral deve estar imbuída desse espírito, ou então não passa de uma variante de espontaneísmo. Para isso, é evidente, deverá se desencadear uma luta implacável contra a burocracia sindical, que é guardiã da hegemonia burguesa nos locais de trabalho. Nesse sentido, as assembleias territoriais são mais progressivas porque estão livres deste empecilho (por enquanto!). Se elas puderem organizar os locais de trabalho sem greve geral, esta tornaria-se supérflua.
O PSTU, por sua vez, afirma que “no Chile, o desequilíbrio entre as classes foi o detonante para alterar o relativo equilíbrio econômico. Para restaurá-lo, a burguesia necessitará reequilibrar as relações entre as classes para o nível anterior à abertura do processo revolucionário. Em outras palavras, necessitará deter o processo de autodeterminação das massas antes que este se converta em duplo poder organizado[ix]. Só muito cuidadosamente podemos considerar as massas na rua como um duplo poder. Estas mobilizações tendem a tornarem-se reféns do espontaneísmo e, por isso mesmo, a perder força. Junto com as assembleias territoriais, são um embrião de duplo poder. Nós teremos duplo poder real apenas quando estas assembleias forem conscientemente fortalecidas e criarem raiz nos locais de trabalho e estudo. Nenhuma das palavras de ordens ou ações do MIT priorizam estas tarefas; ao contrário, andam na mesma linha do que diz o MST. Para o MIT-PSTU, por exemplo, “a primeira tarefa que temos pela frente é derrubar Piñera e, para isso, devemos continuar nas ruas mobilizadas”[x]. A primeira tarefa seria, portanto, continuar nas ruas para já derrubar Piñera (sem condições reais), e não fortalecer as assembleias territoriais. A exigência de “Fora Piñera” é totalmente desconectada do fortalecimento das assembleias territoriais e, portanto, alheia à criação de um duplo poder real. Dito de outra forma: Piñera só pode cair com a vitória das assembleias territoriais a partir do duplo poder criado por elas. Caso contrário, veremos apenas a ascensão de um novo governo burguês ou reformista que irá “reequilibrar as relações entre as classes para o nível anterior à abertura do processo revolucionário”.
Ao contrário disso, o PSTU e o MIT veem na atual situação chilena (em que as assembleias estão neste impasse embrionário) como uma revolução em curso. Dizem, textualmente: “continuar a revolução nas ruas e organizar uma greve geral que paralise o país inteiro para derrubar Piñera e conquistar o plano de emergência”[xi]. Ai daquele que confunde e ajuda a confundir os outros afirmando que a abertura de uma situação revolucionária é o mesmo que uma revolução!
***
Frente a tudo o que foi dito aqui não é consentido interpretar a proposta prioritária de consolidação das assembleias territoriais como um infalível caminho para o triunfo revolucionário. Existem muitas pedras no caminho até lá, cuja pior é a manutenção das assembleias territoriais neste estágio embrionário.
No entanto, o certo é que as análises e palavras de ordem apresentadas pelo conjunto da “esquerda” representam apenas o fortalecimento do espontaneísmo e a condenação de uma saída revolucionária.


REFERÊNCIAS


[i] Este romantismo puritano já foi analisado com detalhes no texto: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/quem-teme-frustracao-nao-pode-fazer-uma.html
[vi] Opción anticapitalista, Nº72, outubro e novembro de 2019 – jornal oficial do MST-UIT no Chile.
[viii] Idem.
[xi] Idem (grifos nossos).

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O programa político do PSDB e da direita brasileira para o país

O programa da burguesia brasileira e, em particular, do PSDB, PSL e todo o entulho da direita, está resumido na frase lapidar de FHC, escrita em 1972 e mantida por ele e pela elite nacional como o norte de sua política até hoje. Esta frase explica claramente a situação do país e todas as suas mazelas resultantes:
Eu não penso que a burguesia local, fruto de um capitalismo dependente, possa realizar uma revolução econômica no sentido forte do conceito. A sua 'revolução' consiste em integrar-se no capitalismo internacional como associada e dependente” (Cardoso, 1972, 31-49).

sábado, 14 de dezembro de 2019

A mais-valia na atualidade

Muitos intelectuais financiados pelo grande capital afirmam que o marxismo caducou e que não existe mais proletariado, classes sociais e mais-valia. Esta última é um conceito aparentemente complexo, mas que na verdade é bem simples quando analisado à luz da realidade, conforme podemos constatar observando a exploração do operariado brasileiro.
Os dados abaixo foram extraídos do livro A Embraer é nossa*, que analisa uma série de documentos da empresa de 2007 até 2009. Em 2007, o trabalhador da Embraer rendeu para a empresa, em média, US$237 mil. Sabemos que o salário de um operário da produção é de US$1.409. Multipliquemos por 13 (para contemplar o 13º salário, que o PMDB, Democratas, PSDB e os demais partidos da direita querem acabar) e teremos um gasto anual com mão de obra no valor de US$18.317. Vamos agregar 63% sobre este valor, que são os encargos trabalhistas, que fazem parte da folha de pagamento (como INSS, FGTS, PIS, férias, etc., outros direitos que o governo Temer quer retirar) e teremos um gasto anual com cada operário de US$29.856.

Como o trabalhador rende para a empresa US$ 237 mil, segundo dados da produtividade da empresa, diminuímos os US$29.856 que a Embraer "gasta" com o trabalhador e restará um saldo líquido de US$207.144. Isto quer dizer que o trabalhador rende para a empresa, por mês, US$19.750, enquanto recebe como salário apenas US$1.409; e, por hora, rende para a empresa US$113,60, enquanto ganha apenas US$8,10 (valor pago pela Embraer, muito abaixo da Boeing  US$26,2 , da Airbus  US$25,1  e Bombardier  US$20,5).

Eis aí a mais-valia.
Valor gasto na contratação do operário: US$29.856
Valor gerado pelo seu trabalho: US$237 mil
Mais-valia: US$207.144
Além desta exploração absurda, os rentistas e especuladores controlam a Embraer, demitem como bem entendem, contratam os serviços que melhor lhe aprouverem e usam matérias-primas estrangeiras, se assim o desejarem. Uma indústria estratégica para o Brasil  que ocupa o 3º lugar no mercado mundial  está nas mãos de um bando de parasitas estrangeiros e nacionais. Um dos passos fundamentais para superarmos a crise financeira que estamos vivendo no Brasil e no mundo seria a industrialização de setores da nossa economia; medida que está definitivamente fora dos planos da nossa burguesia e da sua imprensa.
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*A Embraer é nossa! Desnacionalização e reestatização da Empresa Brasileira de Aeronáutica, Nazareno Godeiro (org.), Cristiano Monteiro da Silva e Edmir Marcolino da Silva. Editora José Luís e Rosa Sundermann, São Paulo, 2009.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O "multiculturalismo" conservador do Canadá


A primeira coisa que fiz quando aportei no Canadá em pleno inverno foi atolar o meu pé na neve acumulada nos canteiros do estacionamento do pequeno aeroporto de Kingston. Nunca tinha vivenciado a neve, por isso reagi assim.
        Chegamos no Canadá no final de janeiro de 2017. Lá se vão 2 longos anos, embora as memórias estejam ainda bem gravadas na minha mente e registradas em muitas fotos. Fomos visitar o meu irmão, que morava lá com a sua família há 7 ou 8 meses. Trouxe desta viagem um livro grosso, de 596 páginas, intitulado The penguin history of Canada, do professor “liberal” da Universidade de Toronto, Robert Bothwell. Após levar todos estes 2 longos anos o lendo, resolvi dedilhar estas linhas para ajudar na compreensão desta esfinge do norte, que até eu tocar o seu solo quase nada tinha chamado a minha atenção.

De São Paulo ao Canadá
        Partimos de São Paulo eu, Thaís e minha irmã Joana, em um voo direto para Toronto, exatamente nos últimos dias de janeiro de 2017. O Boeing da Air Canada que nos levou era enorme, com 3 colunas de poltronas e diversas classes. Estávamos, obviamente, ansiosos e com grandes expectativas. Joana ia ficar no Canadá para passar 6 meses com meu irmão, Danilo. Eu e Thaís seríamos os guardiães dela durante o cruzamento da América de ponta a ponta.
        Mesmo muito cansado não preguei os olhos. Ficava controlando o flight map por cada região que sobrevoávamos. Lembro-me de ficar observando as pequenas luzes que despontavam da janela escura em plena noite da América Central. Provavelmente eram ilhas como Trinidad Y Tobago; sem falar o sobrevoo de raspão sobre Cuba.
        O Canadá é um país multicultural, conforme eles mesmos se definem, que é “vítima de ter muita geografia”[i]. Um lugar de paradoxos que goza de um espaço ilimitado, constituindo-se no segundo maior país do mundo em território, embora seja quase despovoado. Cerca de 30 milhões de habitantes vivem lá, sendo que destes, uma grande parcela é de imigrantes de diversas nacionalidades. É um país com um gigantesco norte que se estende do Alaska até o círculo glacial do polo norte, quase tocando a Groelândia, e do oceano Atlântico ao Pacífico; embora a maioria esmagadora da sua população se concentre no sul, ao longo da fronteira com os EUA.
        Foi deslizando por esta fronteira, entrecortada pela região dos grandes lagos, como o Lake Ontario, que desbravamos estas terras inóspitas para brasileiros.

Da cidade proibida da China imperial ao país proibido para o “terceiro mundo”!
        Nas vésperas da viagem ao Canadá – mais precisamente em dezembro de 2016 – eu e Thaís fomos à São Paulo tentar um visto estadunidense. Como já tínhamos o canadense, pensamos que conseguiríamos a benção do Tio Sam também. Uma vez que andaríamos por Ontario e Quebec, por que não dar uma escapadinha para Nova York também? Seria uma oportunidade ímpar.
        Então, nos lançamos nessa aventura pela maior cidade da América Latina. Desembarcamos em uma estação do metrô Morumbi, da linha esmeralda, que costeia a Marginal Pinheiros. O bairro, com seus prédios chiques, espelhados e arranha-céus, deu a tônica do que nos aguardava. A embaixada dos EUA no Morumbi é quase uma fortaleza militar. Você não pode sequer entrar com o próprio celular, sendo uma construção totalmente cercada e controlada; e dentro você é tratado como gado. O clima de submissão e humilhação ocorre desde quando você entra e é colocado em diversas linhas de fila, onde aguarda pela autorização dos funcionários e vigilantes.
        Mil câmeras lhe filmam durante todo o percurso. Em pequenas TVs de tela plana aparecem imagens deste “maravilhoso” país: desde o Monte Rushmore e New Orleans, até a estátua da liberdade e as praias californianas! E breves informes: mantenha seus documentos à mão; seja ágil!
Quando finalmente nos aproximamos de um dos vários guichês de um oficial consular percebi que se trata de uma encenação para mexer com o psicológico dos “candidatos” a visto. Os oficiais, ora falando em inglês, ora falando com o seu português cheio de sotaque, bradam “você conseguiu o visto, parabéns”; ou então, simplesmente: “lamento, o senhor foi considerado inelegível para obter um visto de não-imigrante”. Lembro-me perfeitamente de ver uma senhora negra, humilde, resignada, falando baixinho com o senhor oficial consular, que lhe negou taxativamente o visto, o que fez com que ela juntasse seus papéis e pequenos pertences de cima do guichê e saísse chorando pela lateral.
Quanto mais ia se aproximando a nossa vez, mais nervosos ficávamos; e isso era inevitável em razão da criação deste clima psicológico opressivo. O que me levou a batizar, carinhosamente, todo este processo de “entrevista de emprego do terceiro mundo”. Uma menina que falava inglês fluentemente conseguiu o seu, um pouco antes da nossa vez.
Por fim, antes do último a nossa frente ser chamado, já bem cansados por ter suportado mais de 2h em pé por, pelo menos, 3 filas diferentes, juntamos os nossos papéis: passaportes, passagens, hospedagens, comprovantes de renda... pra quê tanta humilhação?
“Por que querem ir para os EUA?”, nos perguntou a voz inquisitória do senhor oficial consular no seu português tortuoso.
“Bem”, comecei eu, “é que vamos visitar meu irmão que está morando no Canadá e gostaríamos de ir até Nova York...”.
“Um momento, por favor”, ele pediu, enquanto olhava nossos papéis e digitava algo no seu computador. Em seguida nos perguntou, um tanto desajeitado e nervoso, se iríamos à Flórida; talvez porque viu que estive lá em viagem familiar no ano de 1999. Respondi que não, pois dessa vez iria até o Canadá e, portanto, gostaria de “descer” até Nova York, dada a proximidade geográfica – ou seja, a verdade mais verdadeira do mundo! Seria tão difícil para um país armado até os dentes, cheio da mais alta tecnologia de espionagem, que hospeda todos os maiores provedores de internet do mundo e é campeão na escuta e no grampo ilegal, descobrir que mentíamos? Depois perguntou se eu e a Thaís éramos casados; ao que eu, hesitante, respondi que não. Muitas explicações terceiro-mundistas nos foram dadas por outros e até por nós mesmos tentando justificar o injustificável: “eles pensaram que vocês eram um casal de fachada”; “acharam que vocês iam fazer imigração ilegal”. Ou seja: todas essas explicações tentam atribuir a culpa a nós mesmos e não a este sistema absurdo de imigração; uma verdadeira censura!
Vivíamos, então, a transição do governo democrata de Barack Obama para o republicano de Donald Trump. Pensei que não haveria maiores problemas, uma vez que o neofascista subiria ao poder apenas no mês seguinte. Mal sabia eu que janeiro traria à Nova York massivos protestos contra o republicano fundamentalista. Não que isso tenha alguma coisa a ver – provavelmente não! –, mas, se pudesse, certamente passaria lá para conferir.
Então, o senhor oficial consular ordenou que eu pegasse o telefoninho grudado a minha esquerda, bem na frente do vidro do guichê. Por ali ele me disse, de forma abrupta e um tanto intempestiva, que “lamentava me informar, mas o nosso visto não seria aceito” (por que não o fez abertamente para todos?). Dobrou febrilmente um papelzinho rosa – que só fui ler depois, no banco do metrô –, colocou dentro do meu passaporte e me passou pelo buraquinho do vidro do guichê. O papel continha os seguintes dizeres:

U.S. CONSULATE GENERAL SÃO PAULO – Rua Henri Dunant, 500. Seguia o CEP e a data, que ficou em branco (até hoje!).
“Caro solicitante, informamos que o(a) senhor(a) foi considerado(a) inelegível para obter um visto de não-imigrante, segundo a Seção 214(b) da Lei de Imigração e Nacionalidade dos Estados Unidos. Uma recusa com base na Seção 214(b) significa que o(a) senhor(a) não conseguiu demonstrar que as suas atividades nos Estados Unidos seriam consistentes com a classificação do visto de não-imigrante solicitado.
Enquanto cada classificação de visto de não-imigrante possui requerimentos próprios e únicos, um dos requerimentos comuns entre as várias categorias de vistos de não imigrantes é que cada solicitante demonstre que tem uma residência fixa fora dos Estados Unidos e que não há intenção de abandoná-la. Os solicitantes normalmente atendem a este requerimento demonstrando que possuem fortes vínculos no país de origem os quais indicam que retornarão dos EUA ao fim da estada temporária autorizada. Tais vínculos podem ser: profissionais, um trabalho fixo, escola, família, vínculos sociais com o país de origem. O(A) senhor(a) não demonstrou que tem os vínculos suficientes que obriguem o seu retorno ao seu país de origem após sua viagem aos Estados Unidos.
A decisão de hoje não pode ser reconsiderada. Entretanto, o(a) senhor(a) poderá fazer uma nova solicitação a qualquer momento. Se decidir solicitar o visto novamente deverá preencher um novo formulário DS-160 e foto, pagar uma nova taxa de solicitação de visto e fazer um novo agendamento para ser entrevistado por um oficial consular. Se o(a) senhor(a) decidir solicitar o visto novamente deverá estar preparado(a) para providenciar informações que não foram apresentadas em sua solicitação original, ou demonstrar que suas circunstâncias tenham mudado desde a solicitação anterior.
Atenciosamente,
Oficial Consular.

        Pode parecer, caros amigos, uma cena de Admirável Mundo Novo, mas é a relação entre o Brasil e os EUA no final de 2016! Tratava-se de uma folhinha padrão entregue a todos os reprovados na entrevista de terceiro mundo: nós éramos pobres demais para entrar no país proibido!
        Confuso e ao mesmo tempo furioso peguei meus documentos e, fuzilando o senhor oficial consular, disparei sem pensar: “depois vocês dizem que Cuba é uma ditadura!”. E lhe dei as costas, orgulhoso de mim mesmo e decidido a nunca mais colocar os pés naquele lugar horroroso pra não passar novamente por tamanha humilhação.
Provavelmente o senhor oficial consular tomou nota do ocorrido e também fará questão de que eu nunca mais ponha meus pés lá novamente.
***
        O “liberal” Alexis de Tocqueville – grande admirador dos EUA – analisou os documentos da nobreza francesa às vésperas da Revolução de 1789 e pôde constatar algumas reivindicações daquele período que ajudam a lançar luz ao problema atual da imigração. “Liberdade da pessoa: (...) que cada qual possa livremente viajar ou estabelecer residência onde quiser, seja dentro ou fora do reino, sem o risco de ser detido arbitrariamente”[ii]. Como se pode ver, a atual política de imigração dos países imperialistas – e, em particular, a dos EUA – volta para antes de 1789.
        O Canadá é um pouco melhor e mais receptivo neste quesito; embora seja apenas isso: um pouco melhor... Ao meu irmão mais velho, Bernardo, por exemplo, sem nenhuma justificativa plausível, foi negado visto não apenas aos EUA, mas, também, ao Canadá. A “globalização” e a liberdade criada pelo mercado são apenas para as mercadorias e os ricos. Para a maioria das pessoas ele criou barreiras intransponíveis dentro das fronteiras nacionais.
***
        Cabe perguntar agora, o que seria “não conseguir demonstrar que minhas atividades nos EUA não seriam consistentes com um visto de não-imigrante, uma vez que nada além da questão de renda foi justificada? Os EUA não seriam o país mais democrático do mundo? A terra das oportunidades? Reparem que nós apresentávamos todos os requisitos exigidos: trabalho fixo, escola, família, vínculos sociais com o país de origem (a Thaís não tinha trabalho fixo naquele momento, mas estava no último semestre da faculdade – tudo isso foi inutilmente apresentado lá).
        Assim, nosso destino foi selado autoritariamente. Tínhamos em mente, inclusive, uma passagem aérea que previa uma escala em aeroportos estadunidenses. Esta atitude autoritária e arbitrária quase comprometeu toda nossa viagem ao Canadá. Por sorte, encontramos passagens acessíveis pela Air Canada que não necessitavam de escalas nos EUA.
        Assim, voamos direto de São Paulo para Toronto. Desembarcamos nessa cidade numa madrugada fria, onde já despontavam os primeiros raios de Sol. A nevasca tinha dado trégua há semanas e apenas um frio cortante se mantinha entrando pelas frestas das portas que levavam ao pátio do aeroporto, de onde decolaria o teco-teco que nos levaria para Kingston, a cidade onde meu irmão morava e, também, a primeira capital do Canadá.

Da ignorância a um pouco de conhecimento I
        Até tudo se definir para a nossa viagem eu não sabia nada sobre o Canadá, apenas que se localizava no extremo norte do nosso continente. Fui pesquisar, então, um pouco sobre esse país inóspito. Todas as informações na internet eram superficiais e insuficientes, beirando à frieza. Pude me munir de respostas apenas direto na fonte, de onde retornei, como já foi dito, com alguns livros de História.
        Entre 1500 e 1501 – mesmo período que o Brasil estava entrando para a História de Portugal – o navegador português Gaspar Corte Real contornou Newfoundland e Labrador, um grande conjunto de ilhas ao nordeste de Quebec. Porém, isso foi apenas um episódio passageiro. Em 1535, outro explorador europeu, o navegador francês Jacques Cartier, entrou em contato com tribos nativas e navegou por baías e rios do Canadá, abrindo caminho para os futuros assentamentos coloniais.
A História do Canadá é marcada pela disputa territorial entre ingleses e franceses; por isso mesmo, se confunde com a colonização dos EUA. Os britânicos desembarcaram na América do Norte em 1607, praticamente um século depois dos portugueses e espanhóis, onde fundaram a primeira das futuras 13 colônias: Virgínia. Dali, se espraiaram pelo nordeste e sudeste do território atual dos EUA. Em 1605, Samuel de Champlain, outro explorador francês, fundou o primeiro assentamento da França em Port Royal (futuro território conhecido como Nova Escotia – região no extremo ocidente do Canadá que se encontra na foz do grande rio Saint Lawrence). Depois de Port Royal, Champlain fundou Quebec em 1608. A partir daí estava dada a largada para a disputa colonial entre franceses e ingleses, que teria o seu principal desfecho na Guerra dos 7 anos (1756-1763). Os anos seguintes aos do estabelecimento dos colonos europeus foi a fundação de inúmeros fortes militares por todo o território norte-americano e a guerra sem trégua contra os índios, que terminou num genocídio.
Tivemos a oportunidade de viajar de Ontario até Quebec ao longo do Saint Lawrence. O clima frio e o inverno rigoroso criam as condições para que no degelo se formem gigantescos rios entrecortados por ilhas, tal como as Thousand Islands que pipocam aqui e acolá ao longo do grande rio que divide o Canadá dos EUA.

De Toronto à Kingston
Quando chegamos em Kingston fomos recebidos pelo meu irmão, que nos levou para conhecer a sua nova cidade – a primeira capital do Canadá. Kingston localiza-se no Estado de Ontario, que seria parte do Canadá inglês (ou, como eles chamam: upper Canada – o “alto Canadá”). É uma cidadezinha pequena e agradável, de cerca de 28 mil habitantes, localizada às margens do Lake Ontario, que naqueles dias se encontrava parcialmente congelado. Pra onde quer que olhássemos, só víamos branco cobrindo todo e qualquer resquício de verde.
Ainda nos primeiros dias meu irmão nos apresentou as lojas clássicas do Canadá, bem ao estilo norte-americano, como a Dollarama (uma espécie de loja de R$1,99, só que com mercadorias de maior qualidade); a rede de cafeterias Tim Hortons, especializada em donuts, rosquinhas, cafés, chás e sanduíches (a qual passamos a ser frequentadores assíduos durante a nossa estada lá); e a LCBO (a sigla de Liquor Control Board of Ontario – ou em português: “Conselho de Controle de Álcool de Ontário” – e é um dos locais aonde você pode comprar bebidas alcóolicas na província de Ontario; depois descobriríamos que existe um correlato dessa loja em Quebec). Ou seja, o Estado canadense mantém o monopólio do lucro do álcool para si, uma vez que não é permitido vender bebida alcoólica nos grandes supermercados (com algumas exceções).
No primeiro dia, querendo degustar um vinho no almoço, adentramos uma grande loja da LCBO no downtown de Kingston, que é uma espécie de paraíso dos alcoólatras, uma vez que concentra e vende todo o tipo de bebidas. Vinhos e cervejas de diversas nacionalidades, separados nas prateleiras e refrigeradores com a bandeira do seu país de origem; whiskies, vodcas, licores, conhaques, etc. Embora não muito acessível para brasileiros pobres, era razoavelmente barato em dólar canadense, que, aliás, é uma moeda um tanto estranha, uma vez que o papel-moeda de lá é impresso em uma espécie de plástico de diversas cores de acordo com seu valor, contendo uma, inclusive, a figura da rainha Elizabeth II.
Cabe aqui uma nota sobre o hábito alcoólico dos canadenses de uma faixa econômica superior: não bebem apenas um tipo de bebida durante um jantar. Iniciam com cerveja, partem para o vinho e concluem com uísque. Não é preciso ser médico para compreender que a resistência é grande, bem como o alcoolismo.
Saindo da LCBO, partimos para outra breve city tour por Kingston, costeando o Lake Ontario para conhecer as baías que sediaram parte das provas aquáticas e de embarcações das Olimpíadas de Montreal, em 1976. Passamos também pela “famosa” prisão da cidade, que causa uma espécie de opressão ao ver seus gigantescos muros e grades, também na beira do mesmo lago. Kingston encontra-se no início do desaguadouro do Rio Saint Lawrence no lago, exatamente onde se iniciam as Thousand Islands. Do outro lado do lago e do rio, exatamente na altura da cidade, estão os EUA.
Meu irmão se mudou para Kingston para trabalhar na Queen’s University – um famoso polo universitário do país que atrai estudantes e professores do mundo todo. Podíamos dizer que, apesar de ser uma cidade pequena, ela era internacional, uma vez que tinha estudantes de diversas nacionalidades andando pelas ruas e frequentado seus restaurantes e cafés. Era esta universidade que dava a forte dinâmica econômica da cidade. Além de trabalhar na Queen’s University, meu irmão ainda atendia no Kingston General Hospital, que também tivemos a oportunidade de conhecer e poder comparar com os hospitais e o atendimento da saúde pública brasileira.
Há na cultura canadense um grande culto da monarquia, como se pode ver não apenas pelo nome da sua primeira capital – que muito fala sobre a História do Canadá –, mas também na universidade, nas ruas e avenidas. Em Kingston temos a Princess Street e a Queen Street. Em Toronto, a famosa King Street. O culto não se dá apenas em ruas ou universidades, mas na visão política e na concepção sobre a qual o país foi fundado e edificado. Inclusive o velho hábito aristocrático inglês de tomar chá com pingos de leite à tarde foi mantido.

Da ignorância a um pouco de conhecimento II
        A presença dos ingleses no Canadá se deu, inicialmente, a partir da busca pelo comércio de peles e pelo estabelecimento de entrepostos comerciais ao longo da Baía de Hudson, no norte de Ontario, local de onde começaram a colonizar a região. Ao mesmo tempo, entraram em confronto com os franceses de Quebec, que já estavam assentados nas proximidades.
Durante a guerra civil revolucionária de 1774-1776 que preparou as bases da independência dos EUA, grande parte dos colonos que se mantiveram fiéis à coroa inglesa – os chamados Loyalists – migrou para o norte, na região que hoje é o Canadá. Antes disso, durante a Guerra dos 7 anos (chamado por Bothwell de “A guerra pela América”) os ingleses tomaram dos franceses o Fort Frontenac, que está situado na cidade de Kingston. Portanto, a região é estratégica, uma vez que faz a ligação entre o Canadá inglês e o Canadá francês.
Ao longo do Lago Ontário se pode ver uma série de construções militares da época da independência estadunidense que foram erguidas para a proteção da cidade e do “novo país”, mas que não chegaram a ser usadas porque a guerra não se consumou. Os Loyalists esperavam um ataque do exército de George Washington, mas não precisaram desembainhar a espada. Após estes fatos, houve a culminação de um complicado rearranjo de fronteiras que refletiam o desenvolvimento econômico e demográfico de 1780. Muitas negociações com a população francesa de Quebec, que, em razão da derrota da França na Guerra dos 7 anos, foram obrigadas a se submeter a uma administração colonial britânica, mesmo mantendo o francês como língua oficial.
A partir de 1783, com a consolidação da república estadunidense, os Loyalists mantiveram os laços com a Inglaterra e fundaram, com as bênçãos do parlamento inglês, a América do Norte Britânica, que, conjuntamente com os assentamentos coloniais de língua francesa em Quebec, futuramente se tornariam o Canadá.

De Kingston à Kingston
        Para mim, Kingston tinha algo de Springfield, com suas calçadas de concreto riscadas ao meio, seguida por um pequeno gramado que se estende até as casas de madeira, bem ao estilo dos Simpsons, sempre com belos jardins e um padrão de espaço entre as residências. Como já foi dito, apesar de pequena, a cidade era cosmopolita: possui estudantes de vários lugares do mundo, bem como os restaurantes tradicionais de fast food, sejam canadenses ou estadunidenses. Acredito se tratar de um modelo muito comum de cidade na América do Norte Anglo-Saxã, com seus estilos tradicionais de casas de tijolos vermelhos mesclados com partes de madeira macias e modelos pré-fabricados.
        A casa de meu irmão ficava na charmosa e pacata Traymor Street, uma zona residencial a algumas quadras do Lake Ontario e do campus universitário. Apesar de possuir tijolos vermelhos à vista, mantinha alguma coisa da arquitetura da casa dos Simpsons. A maioria das residências canadenses possui calefação, o que torna o rigoroso inverno suportável. O inverno gaúcho, comparado ao de lá, se torna absurdamente mais sofrível porque as casas daqui não possuem esse sistema de aquecimento, o que deixa as pessoas muito mais vulneráveis e suscetíveis ao frio.
Uma das principais tarefas do inverno na América do Norte é fazer o shoveling; isto é: tirar a neve da calçada e das garagens, jogando-a para a parte do quintal ou da calçada que possui grama. Como o inverno canadense é bastante rigoroso, fazer o shoveling é um trabalho muitas vezes penoso, mas tido como parte das “atribuições cidadãs” de cada morador. Montanhas de neve se formam na entrada das casas, propícias para se fazer bonecos de neve. Caso o shoveling não seja feito, pode redundar em neve congelada, o que certamente abre precedentes para os escorregões brutos. Há no Canadá um hábito muito interessante de se deixar as botas de neve na porta de entrada e andar em casa apenas de meias, chinelos ou pantufas, o que, segundo a tradição local, conservaria o lar da sujeira das ruas. As botas e os calçados de neve realmente trazem muita sujeira, transformando a entrada e a saída de casa quase que em um ritual.
***
Não muito distante da Traymor Street se encontrava a Winston Churchill Public School, onde meus sobrinhos estudavam e a minha irmã passaria a estudar também. Apenas uma breve olhada por fora já demonstra o abismo que separa a escola pública canadense da brasileira. Em Toronto conseguiria observar a entrada dos alunos em outra escola pública, percebendo que há um alto padrão de qualidade que é mantido ao longo do país (pelo menos ao longo da província de Ontário), enquanto que no Brasil há uma padronização e um nivelamento por baixo da rede escolar pública.
A Winston Churchill Public School é bem conservada e aconchegante, revestida de tijolos avermelhadas por fora, conserva uma boa aparência, procurando manter um contato regular com os pais. Provavelmente recebe os recursos governamentais em dia. Possui grandes quadres esportivas e salas de aula bem aparelhadas (embora não tenha entrado nas salas, pude observá-las das janelas da rua) e calefação. Na saída, os pais se aglomeram nos portões e no pátio para aguardar a saída dos filhos. A cada quinze dias, na sexta feira, os alunos são dispensados para que os professores possam realizar reuniões pedagógicas, o que, sem dúvida, é um grande progresso inexistente no Brasil (no qual a escola pública é vista como depósito de crianças, tal como se fosse uma creche). Na escola são ensinadas as duas línguas oficiais do país: o inglês e o francês. Além do ensino na escola pública, todas as embalagens, rótulos e bulas fabricados no Canadá devem ser bilíngues por força de lei.
Apesar das profundas diferenças existentes entre a escola pública canadense e brasileira, podemos observar muitos dos mesmos problemas, como o formalismo de determinadas práticas de ensino. Na aula de francês, por exemplo, minha irmã me contou que a maioria dos alunos usa o google tradutor para realizar a tradução para o inglês. Por outro lado, as professoras parecem estar muito mais atentas e engajadas na preservação dos alunos. Quando tirei fotos da fachada da escola, uma delas pensou que eu estava os fotografando e, por isso, veio me questionar e pediu pra olhar o que eu havia fotografado. Algo muito distante da realidade brasileira.
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        Desbravando a pequena cidade com Thaís e minha irmã, ainda nos nossos primeiros dias, passeamos a pé pelo downtown, onde conhecemos a famosa rede de fast food especializada em pizza, a Pizza Pizza. Todos os estabelecimentos mantêm o mesmo padrão e o mesmo sabor. Não apenas degustamos saborosas pizzas de peperoni, como também tivemos a chance de apreciar melhor o refrigerante símbolo do país, feito à base de gengibre: o Canada Dry, que é muito semelhante à Sprite ou a uma Soda Limonada, embora mais saborosa. Foi numa dessas visitas que conversei com um simpático balconista, que usava o uniforme da Pizza Pizza, composto por um chapeuzinho típico e um avental salientando um emblema da rede de restaurantes. Era um homem na sua meia-idade, magro, esbanjando um espesso bigode negro entrecortado por fios brancos e algumas pontas de barbas por fazer no seu queixo.
Percebendo que falávamos outra língua, perguntou de onde éramos. Ao saber que vínhamos do Brasil ele sorriu e prontamente puxou assunto. Queria saber o que estávamos achando do Canadá. Respondemos prontamente que tinha nos agradado bastante. Ele disse que aquele inverno estava brando demais: era algo parecido com março, quando a neve se aproximava do degelo. Infelizmente, sem poder debater mais em razão da limitação do meu inglês, pegamos nossos pedidos e fomos almoçar. Também conhecemos um simpático garçom numa hamburgueria gourmet de Kingston que nos entreteve bastante fazendo mágicas visando ganhar uma gorjeta.
Ainda naquela primeira semana, eu e Thaís nos preparávamos para viajar por Toronto e Montreal. Estávamos ansiosos esperando o momento em que iríamos de ônibus desbravar as grandes cidades do país e conhecer a província francesa. Numa sexta feira fomos levados por meu irmão até a bus station de Kingston, de onde partimos com destino à Toronto.

De Kingston à Toronto
        O nosso ônibus chegou à capital da província de Ontario no início da tarde. Fazia frio, mas não nevava. Já na entrada de Toronto despontam enormes prédios residenciais e comerciais, cenário bem diferente de Kingston. Durante toda a viagem pudemos ver grandes campos de neve e árvores desfolhadas. É a paisagem de viagem neste período do ano, sem nenhuma trégua.
        Acompanhou-nos neste ônibus um homem vestido à moda muçulmana, com uma túnica lilás e um turbante. Com uma grande barba branca e possuindo um tom de pele tipicamente mouro, ele sentou alguns bancos a nossa frente, na fileira do lado. Há aqueles que ficariam com medo e receio, esperando algum tipo de atentado terrorista. Mas aquele homem era tão pacífico e de tão boa fé que passou quase a maior parte do tempo no celular, lendo ou dormindo. Em contrapartida, um dia antes de chegarmos ao Canadá, ocorrera um atentado terrorista de “supremacistas brancos”, que são verdadeiros fundamentalistas cristãos.
A recente eleição de Donald Trump tinha aberto as portas do inferno e muitos desses indivíduos sentiram-se “empoderados” para saírem do armário e apresentarem seu ódio segregacionista contra os “terroristas muçulmanos”; quando, na verdade, os piores terroristas são eles próprios. O ato do supremacista branco consistiu em entrar em uma Mesquita na cidade de Quebec, atirando contra os muçulmanos reunidos para rezar naquela ocasião. O resultado foi um saldo de 6 mortos e 19 feridos, num total de 53 pessoas. O atirador branco se entregou para a polícia local logo depois do atentado. Confessou, orgulhosamente, suas ideologias de extrema-direita, islamofóbicas e de apoio a Trump. As autoridades canadenses pediram desculpas à comunidade muçulmana pelo ocorrido, prometeram redobrar a segurança e ajudaram a abafar as consequências daquela ação. No Canadá, ao contrário do nosso acompanhante muçulmano representar uma ameaça terrorista, ele próprio era um alvo em potencial. Assim como o caso deste “supremacista branco” canadense, é comum vermos o mesmo nos EUA. Portanto, não se tratam apenas de “casos isolados” ou de “pessoas com problemas mentais”, tal como alegou em algumas ocasiões Donald Trump; mas o resultado nefasto das ideologias de direita.
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        De ônibus de Kingston até Toronto, a viagem dura cerca de 2 horas. Ela seguiu tranquila, sem maiores sobressaltos. Fizemos algumas fotos de registro e acompanhamos a paisagem branca, ora dormindo, ora acordados, até a entrada da maior cidade do país. Ao desembarcarmos do ônibus no Toronto Coach Terminal, caminhamos até o nosso hostel, que se localizava em China Town, o bairro chinês que existe em praticamente todas as grandes cidades da América do Norte. Toronto é muito diferente de Kingston, com um alto nível de urbanização, prédios gigantes, arranha-céus, avenidas largas e um trânsito febril. O nosso hostel era uma casa adaptada, tipicamente inglesa, numa pacata rua de China Town. No nosso primeiro dia em Toronto não nevou. Havia neve apenas nos canteiros das calçadas – certamente o resultado de alguns shovelings de dias anteriores –, mas em quantidade muito menor do que havíamos visto em Kingston até então.
        O primeiro passeio que fizemos foi visitar a CN Tower – o principal ponto turístico de Toronto. Chegamos lá caminhando e subimos nos seus grandes elevadores acompanhados de vários turistas de todo o mundo e de alguns guias. Em formato oval, a vista panorâmica é deslumbrante, apesar do frio que fazia e do clima um pouco nublado. De cima da torre se pode ter uma breve noção do tamanho da cidade, do Lake Ontario e das inúmeras avenidas e viadutos que cortam a cidade de ponta a ponta, com um trânsito frenético. Kingston se encontra na ponta leste do lago; Toronto quase no extremo oeste. De cima da torre se pode ter uma ideia das dimensões desse lago. Há uma parte com um chão de vidro que causa pavor a todos os turistas que se atrevem a pisar sobre ele. Lá embaixo, vislumbram-se formiguinhas humanas e muitos prédios.
A parte externa seria fantástica caso não estivesse com temperaturas negativas. Conseguimos suportar pouco tempo do lado de fora. Voltando pra dentro, vimos o sol se por, fazendo despontar algumas tonalidades alaranjadas no horizonte, e algumas luzes dos prédios ao redor se acenderem. Saía fumaça de muitos deles, formando um cenário perfeito para as grandes histórias em quadrinho do Batman ou do Homem Aranha. Algumas pessoas, inclusive, veem Toronto como a Nova York canadense, o que, de fato, é bastante plausível.
Descemos da torre e naquela noite jantamos numa pizzaria típica das grandes cidades norte-americanas: adaptadas para comer 1 ou 2 pedaços de pizza, bastante aconchegantes (dado o frio), com wi-fi, e geralmente atendidas por algum indiano. Há, em Toronto – bem como em outras cidades canadenses – redes de restaurantes de vários lugares do mundo: hamburguerias, pizzarias; restaurantes chineses, indianos, árabes; entrecortados pelas redes tipicamente canadenses, como Tim Hortons, Pizza Pizza, LCBOs, etc. Infelizmente não tivemos dinheiro nem oportunidade de poder conhecê-los todos.
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Durante a nossa estada em Toronto visitamos muitas lojas, cafés, livrarias e parques. No geral, eram multinacionais que existem em todos os lugares do mundo. As lojas de China Town, no entanto, merecem uma atenção especial. São constituídas, em sua maioria, por pequenas mercearias ou por lojinhas de produtos de turismo (camisetas, luvas, tocas, souvenires, etc.). Em alguns pequenos supermercados vemos uma grande quantidade de frutas, grãos e verduras, vendidos a quilo e acumuladas em grandes cestos. Num desses pequenos supermarkets compramos água e pudemos sentir um pouco do mau humor chinês. A atendente do caixa, uma senhora baixinha e enfezada, perdeu a paciência com a minha demora em contar as moedinhas de dólar canadense.
No segundo dia em Toronto presenciamos a nossa primeira “chuva de neve”, que caiu bem no aconchego do nosso lar, quando tínhamos chegado de uma de nossas incursões pelo centro da cidade. Somos viajantes a pé! Foram várias quadras desde o China Town até as docas no Lake Ontario, de onde se pode vislumbrar um lindo cenário e um belo trapiche de madeira, cercado por árvores típicas (naquela época do ano, totalmente desfolhadas) e algumas estátuas de “grandes nomes” do país. Ainda que em menor quantidade do que na França, na Itália e, obviamente, no Brasil, pudemos perceber um aumento considerável de mendigos nas ruas de Toronto; diferentemente de Kingston e outras regiões do Canadá.
Alguns ficam sentados simplesmente, sem falar nada; apenas com uma plaquinha pedindo alguma ajuda. Ao sairmos de uma LCBO próximo a China Town, um mendigo idoso, de espessas barbas grisalhas, usando tocas, luvas e paletó rasgado, se impressionou com a beleza da Thaís e disparou, de forma amável: “Do you love me?”. Ao que foi correspondido: “yes, I do”, para regozijo do velho mendigo. Há no Canadá uma política de silêncio em relação ao aumento da pobreza, tal como em todos os cantos do mundo. Como o número de pobres em relação à população total é proporcionalmente muito menor do que no Brasil, por exemplo, este fato lamentável consegue ser mais bem escondido do que em outros países, mas ele existe e é latente.
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Numa bela manhã dominical de Toronto saímos a caminhar do nosso hostel no China Town e chegamos até o grande cruzamento da University Avenue com a Queen Street, onde se localiza um grande palacete cercado por belas árvores e um imenso jardim (naqueles dias tudo coberto por uma neve fininha). Ali se encontra o Osgoode Hall, uma enorme biblioteca pública que faz parte de um complexo de prédios históricos, onde se encontra também a prefeitura de Toronto. Para chegar até aquele cruzamento movimentado, passamos por um pista de patinação de esqui, onde dezenas de pessoas deslizavam no gelo com crianças, namorados e amigos, usando tocas e cachecóis. Muitos arranha-céus espelhados compõe o cenário no entorno.
Caminhamos muitas quadras em Toronto, passando por diversos prédios e ruas. Fomos de cabo a rabo em diversas avenidas importantes, como nas longas e movimentadas Younge e a Dundas Street, mas, também, na King Street, que possui belíssimas construções históricas. Todas essas vias se encontram no movimentado centro comercial e financeiro de Toronto. Nas nossas caminhadas podíamos vislumbrar enormes vãos de entrada em prédios luxuosos, de onde despontavam outdoors animados em telas de TV (algumas ficavam na rua ou na porta de entrada). Nelas podíamos ver a cotação financeira de inúmeras moedas ou simplesmente propagandas. A luminosidade não apenas deste centro, mas de toda a cidade, é ofuscante – senti a grande diferença da iluminação pública urbana do Canadá e do Brasil. Se compararmos a iluminação de Toronto com a de Porto Alegre, por exemplo, perceberemos que estamos nas trevas!
Numa de nossas caminhadas noturnas, num frio congelante de aproximadamente -2ºC, chegamos na Younge-Dundas Square; isto é, a praça que se localiza no famoso cruzamento das duas grandes “ruas”. Esta praça possui grandes telas que anunciam propagandas, investidores, notícias; enfim, projetam uma grande iluminação sobre todos os transeuntes, transformando o cenário numa cópia da Times Square de Nova York. Chegamos lá por caminhos tortuosos: adentramos um gigantesco shopping que foi nos levando por muitos andares e lojas (e, sobretudo, nos dando calor, pois caminhar muito tempo na rua é bastante complicado e nos faz perder muita energia); quando saímos do shopping sem querer demos de cara com a praça. Tido como o local onde a cidade se torna viva, é conhecida também por ser um entroncamento secular e histórico, onde Toronto se torna vibrante e o caminho para destinos ecléticos[iii].
Muita gente entrava e saía pelas portas do shopping; e outras tantas transitavam pelas ruas. Nos chamou a atenção um ativista negro que se encontrava bem na porta de saída, quase no meio da rua, falando em um megafone e oferecendo um Fanzine que abordava as questões do movimento negro. Aquilo me chamou muita atenção, por isso nos aproximamos dele e pedimos um exemplar. Ele falou muitas coisas em inglês que eu só consegui entender a metade, mas compreendi que o Fanzine era vendido e que se tratava do movimento negro. Perguntei o valor e ele disse que vendia por um “preço solidário”. Juntei o que pude (5 dólares canadenses) e paguei o rapaz, que não se sentiu muito contente com o valor recebido. Com o meu mau inglês, lamentei e expliquei que vínhamos do Brasil, onde as condições econômicas não eram as melhores; pedi compreensão, pois era o valor que eu realmente poderia dar. Ele se resignou, falou mais algumas coisas e depois nos despedimos.
Lendo o seu Fanzine alguns dias mais tarde, achei-o bastante fraco de conteúdo, embora progressivo para as condições do Canadá – um país que parece não ter movimentos sociais. Existiam alguns artigos interessantes que abordavam a exploração dos negros a partir da escravidão e da desigualdade resultante disso; porém, havia outros bastante confusos que pareciam cultuar algo místico ou mesmo um tanto monárquico. Durante a nossa estada em Toronto, este ativista do movimento negro e uma pequena manifestação contra o uso de peles de animais em roupas de grife na frente de um shopping foram as únicas manifestações sociais que vimos. Também presenciamos um breve protesto – talvez de funcionários públicos – em frente ao fogo do parlamento canadense, em Ottawa, cujo frio insuportável o manteve firme apenas por 1h.
Cabe uma nota importante aqui: Toronto é a cidade da poetiza feminista indiana Rupi Kaur, que escreveu belíssimas obras com uma nova estética, inovadora e moderna, despertando para a poesia novos contingentes de seres-humanos; em especial, de mulheres (algumas alunas da escola pública brasileira leem suas obras). Infelizmente não a encontramos em nenhuma esquina ou escrevendo em um café.
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Nos nossos últimos dias na maior cidade do Canadá fomos visitar o bairro conhecido como Old Toronto, onde abundam prédios históricos e grandes edifícios de tijolos vermelhos ao estilo de Nova York ou Chicago dos anos 1940. De lá é possível ver muitos arranha-céus e, como não poderia deixar de ser, a CN Tower. No meio deste cenário despontam igrejas antigas e de arquitetura única, como a catedral anglicana de Saint James. Há uma visível disputa entre as igrejas protestantes e católicas no Canadá (assim como na Inglaterra também). Cada igreja ou catedral possui uma descrição sobre a sua orientação religiosa. A catedral de Saint James é muito bonita esteticamente. Com tijolos amarelos, alaranjados e marrons, e uma torre vastíssima, que supera a altura de muitos edifícios do entorno, traz ares medievais ao bairro antigo de Toronto. Pudemos visitá-la por dentro e pegamos seus folhetins; um deles é uma espécie de jornal mensal da igreja, batizado de The Cathedral Newsletter.
No outro folheto que apresenta a sua história, podemos ler que “há 272 igrejas em 217 paróquias da diocese, sendo que mais de 100 dessas estão dentro dos limites da cidade de Toronto (...) Em 1791, o parlamento britânico aprovou o The Constitutional Act, separando o Canadá em duas partes a partir do Rio Ottawa: o Baixo Canadá, majoritariamente francês; e o Alto Canadá, que deveria seguir o modelo inglês. John Graves Simcoe foi indicado como o governador do Alto Canadá e um dos responsáveis por achar um local adequado e estável para a sua capital. O local que é hoje a cidade de Toronto foi o escolhido e ele chegou aqui com sua família em 1793”[iv].
Com poucos habitantes e muito trabalho a fazer, Simcoe escreveu no seu diário em 1797 sobre a chegada do primeiro padre residente e como as necessidades de colonização daquela terra colocou de lado as tarefas de organização da congregação religiosa. O parlamento local e o forte militar seriam os primeiros edifícios a serem construídos; o parlamento serviu de sede para a Igreja durante 10 anos antes da primeira igreja ser construída na região, cujas portas só foram abertas na páscoa de 1807. Sob o bispado de John Strachan foi construída uma igreja ainda bastante rudimentar, criticada por ser muito feia e desprovida de uma torre. A construção deste período sobreviveu à guerra de 1812 e a um incêndio em janeiro de 1839, quando foi reconstruída, aí sim, com uma torre central. Porém, não escapou de um novo incêndio em 1849, o que possibilitou sua reconstrução com uma torre ainda maior, podendo refletir o crescimento da cidade. A partir daí, a reconstrução foi projetada no estilo gótico que conserva até hoje, com tijolos da indústria local e pedras de Ohio. A Catedral de Saint James está aberta na sua forma atual desde 1859 e possibilita a reunião de até 2 mil pessoas, realizando missas e rituais religiosos tanto no espaço interno quanto nos seus grandes jardins externos, muito utilizados durante o verão.
O folheto conclui a apresentação da igreja com uma declaração do reverendo responsável pelo templo, afirmando que lá é um lugar “para o diálogo e ação em questões sociais e políticas”. Contudo, o Canadá não é um país apenas católico, anglicano ou muçulmano. Operam lá outras “religiões” um tanto exóticas.
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        Querendo chegar a pé até o bairro conhecido como Little Italy – empreitada que não conseguimos realizar –, partimos de China Town por uma grande avenida e desembocamos em uma esquina repleta de lojas comerciais, onde despontava um pequeno estabelecimento que tinha uma banca com livros em exposição. Ao lado, podíamos ler: Free Books! Paramos repentinamente para observar do que se tratava. Percebemos que existia apenas um único livro grátis, intitulado The laws of the sun – one source, one planet, one people. Este livro era, na verdade, o porta-voz de uma espécie de igreja de uma nova religião, chamada curiosa e contraditoriamente de Happy Science, e dirigida por um guru japonês de nome Ryuho Okawa, apresentado como “autor de mais de 100 milhões de livros vendidos (ou dados?) no mundo inteiro”. A banca com os livros estava totalmente ao léu, embora estivesse junto um pequeno panfleto que apresentava a nova seita e convidava a entrar para conhecer a Happy Science Toronto. Quando percebermos que poderia se tratar de uma dessas igrejas que logo nos colocaria em contato com um “missionário catequizador”, pegamos mais que depressa um exemplar e nos pusemos em marcha (por que somos, na verdade, um pouco bichos-do-mato).
        A leitura do livro foi, contudo, bastante acessível e agradável para mim, pois está escrito em um inglês simples e claro. Ele apresenta uma nova e curiosa religião que mistura elementos do budismo, hinduísmo e do espiritismo. Um sincretismo religioso que reflete bem não apenas o Canadá, uma vez que lá é o lar de muitos imigrantes chineses, indianos árabes e europeus; mas, também, os tempos modernos. Como toda religião tenta modelar o mundo de acordo com seus princípios, a Happy Science procura recontar a história humana a partir de muitas eras perdidas e reinstaura uma série de práticas muito semelhantes às do budismo, falando até mesmo em “verdade de Buda” e “caminho óctuplo para a iluminação”. Possui uma curiosa divindade – provavelmente o sucedâneo de deus – que é um grande espírito benévolo que atende pelo nome de El Cantare. Seria interessante participar de um culto e um debate sem compromisso para conhecer melhor a doutrina. Porém, o tempo era escasso e o território canadense gigantesco.
        Numa segunda feira gelada, fizemos nossas malas e fomos até o terminal de ônibus de Toronto, de onde embarcamos direto para Montreal.

De Ontario à Quebec
        Esta foi, seguramente, a nossa maior viagem no território canadense. Passamos quase o dia todo dentro daquele ônibus que nos levou de Ontario (Alto Canadá) até Quebec (Baixo Canadá). Quando passa por Kingston, a autoestrada começa a costear o Saint Lawrence, proporcionando belas cenas brancas do inverno canadense. Chegamos no fim da tarde em Montreal, quando o sol já tinha se posto e o frio aumentado assustadoramente, prenunciando uma nova tempestade de gelo.
        Tocqueville, que visitou a América do Norte durante o século XIX, afirma que “é nas colônias que melhor se pode examinar a fisionomia do governo da metrópole, porque é nelas que geralmente todos os traços que a caracterizam se reforçam e se tornam mais visíveis (...) No Canadá, uma infinidade de obstáculos que os fatos anteriores ou o antigo estado social opunham, aberta ou veladamente, ao livre desenvolvimento do espírito do governo, não existiam. A nobreza quase não se fazia presente ou pelo menos havia perdido quase todas suas raízes; a Igreja não tinha mais sua posição dominante; as tradições feudais estavam perdidas ou obscurecidas; o poder judiciário já não estava enraizado em antigas instituições e antigos costumes. Nada impedia o poder central de entregar-se a todas suas inclinações naturais e de moldar todas as leis de acordo com o espírito que o animava. (...) De fato o Canadá é a imagem do que sempre se viu lá. Dos dois lados estamos em presença dessa administração quase tão numerosa quanto a população, preponderante, atuante, regulamentadora, coercitiva, querendo prever tudo, incessantemente ativa e estéril. (...) Nas duas colônias [i.e., a francesa e a inglesa] chega-se ao estabelecimento de uma sociedade inteiramente democrática; mas aqui [França], a igualdade mistura-se com o governo absoluto; lá ela se combina com a liberdade. E, quanto às consequências materiais dos dois métodos coloniais, sabe-se que em 1763, época da conquista [por parte da Inglaterra], a população do [Baixo] Canadá era de 60 mil pessoas e a das províncias inglesas era de 3 milhões”[v].
        Ainda que haja trechos exagerados, Tocqueville dá uma ideia geral das diferenças políticas e sociais na formação do país. A chave para compreender o Canadá é esta divisão entre as províncias inglesa e francesa, que marca toda a sua História e fornece a sua principal característica civilizacional. Mesmo com a “conquista” da província francesa em 1763 pela Inglaterra, a população não deixou-se colonizar culturalmente, o que gerou um grande problema que se estende até a sua resolução provisória do final do século 20, quando foi promulgada uma nova constituição; isto é, pelo reconhecimento de “um país, duas línguas”. Até lá existiu muito conflito político e físico, o que resultou na expressão conhecida como “dois nacionalismos” e no surgimento de um Partido de Quebec. O nacionalismo do Canadá francês sempre foi uma força cultural, social e, em alguns momentos históricos, também política[vi]. Segundo Bothwell, apesar do francês dominar a política municipal e provincial em Quebec, o inglês dirigia a economia. Até 1940 era uma tradição que o secretário das finanças de Quebec – o ministro da economia provincial – fosse inglês porque, “afinal de contas, é a língua dos negócios”[vii]. Apesar disso, houveram tentativas de tornar Quebec independente do Canadá, chegando até mesmo a envolver personalidades mundiais, como Charles De Gaulle.
        Pudemos comprovar que muitas pessoas em Montreal – sobretudo das classes mais baixas – realmente não falam inglês, apenas francês. Foi o caso da camareira do nosso hotel, que demonstrou certo pavor ao ser questionada se falava inglês. O balconista, por sua vez, falava inglês com um forte sotaque, o que me ajudava bastante na comunicação (ele brincava com o sobrenome brasileiro da Thaís sempre que nos via). Apesar de tudo, pela convivência, grande parte da população é tencionada a imiscuir-se na língua da província vizinha, o que proporciona um enriquecimento cultural de todo o país.
        Foi desembarcando na rodoviária de Montreal e pegando nosso primeiro taxi que descobrimos que o taxímetro canadense corre mesmo quando o carro está parado. Chegamos ao nosso hotel no Quartier des Spetacles, na Rue Sainte-Catherine com a noite fechada e fria. O nosso bairro e a nossa rua eram bastante ricos em atrações culturais e comerciais: o quarteirão possuía museus e casas de show; enquanto que a rua abrigava inúmeras lojas, shoppings e unidades da Dollarama, da Tim Hortons e outras redes.
        Não perdemos tempo! Largamos as coisas no hotel e fomos conhecer a noite de Montreal, que estava congelante, porém muito bela. Havia nas proximidades do nosso hotel muitas igrejas impressionantes, construídas com pedras e ostentando arcos em estilo ogival. Sem dúvida, de todas as cidades canadenses que conheci, Montreal foi a que mais me agradou pelo charme e pela beleza peculiar (desconte-se o fato de que não conhecemos Quebec City, Vancouver, nem outras cidades menores). Montreal se iniciou a partir de três grandes montes – sendo o maior deles o “Mont Royal”, que deu o nome à cidade – localizados numa grande ilha do Rio Saint Lawrence. Com o tempo ela se espalhou para as margens externas e foi crescendo, até se tornar o maior centro urbano da província de Quebec, chegando a sediar as Olimpíadas de 1976.
Muitos dos seus bairros já foram cidades independentes, com estilos que variam do francês colonial, presente no bairro Vieux-Montréal, com ruas pavimentadas à base de pedras arredondadas e abrigando a gótica Basílica de Notre-Dame no centro – uma reprodução quase exata da Notre-Dame de Paris –, ao boêmio Plateau. Pelo tempo que ficamos só pudemos conhecer a Vieux-Montréal e o seu porto velho, que conservam os típicos traços das comunas francesas. Passeamos mais de uma vez pelos arredores da Notre Dame, onde caminhamos na sua praça central pisando em uma camada de neve fininha.
        Na nossa primeira noite em Montreal vimos uma freezing rain violenta, que lançou grandes flocos de neve sobre as nossas cabeças, levando os transeuntes a correrem pra casa ou para algum abrigo buscando aquecimento. Tudo isso nos propiciou belas fotos. O nível de neve que caiu naquela noite acumulou grandes crostas que chegaram a tapar a superfície de todas as praças das redondezas.
        Um dos passeios mais bonitos que fizemos foi numa bela manhã de sol, após a tempestade de neve, em que o céu estava num azul cristalino e pudemos, então, caminhar pelas margens do Rio Saint Lawrence, atraídos pelos belíssimos cenários dos quais não esquecemos até hoje. Nesta mesma manhã visitamos lojas e livrarias na Rue Saint-Catherine, onde vislumbramos um pouco da vida diária montrealense. Fizemos algumas compras, tomamos vinho de Quebec e depois terminamos o percurso no parlamento de Montreal, que está sediado em um grande e belo edifício construído com elementos de arquitetura moderna; como, aliás, observamos em vários museus e teatros da cidade.
        Por fim, após um breve tempo de desfrute de Montreal, fomos até a sua rodoviária, de onde embarcamos para Kingston. Lá nos aguardava outra parte da minha família que tinha recém chegado do Brasil.

De Montreal à Kingston
        De volta a Kingston pudemos realizar outras atividades culturais e desportivas, tipicamente canadenses, como participar de uma aula na Queen’s University e assistir a um jogo de hóquei no gelo. E, conjuntamente com novos membros da família recém chegados – como o meu pai e o meu irmão mais novo, Mateus –, preparamos uma visita à capital do país, Ottawa.
        Meu irmão passava a maior parte do tempo atendendo no hospital ou, então, na universidade. Ele podia se inscrever em algumas disciplinas de cursos específicos. Passou a frequentar uma cujo nome era “Managing presentation anxiety”; isto é, Gerenciando a ansiedade em apresentações públicas. Quem ministrava as aulas era uma senhora, magra e alta, de cabelos grisalhos, que se vestia de forma social, mas que falava desenvoltamente. Foi muito interessante a experiência, não apenas por propiciar o contato com os estudantes e as classes da universidade, mas por demonstrar quais as preocupações do ensino universitário do país. Pela minha experiência acadêmica brasileira, nunca vi uma disciplina como essa: te ensinar a relaxar e a ter um bom desempenho em apresentações públicas; trocando em miúdos, isso socializa a capacidade oratória e de convencimento social, treinando o nosso controle emocional.
        Alguns trechos do polígrafo que trouxe comigo desta aula atestam partes da lição: “pense em conexão, não em perfeição”; “o que a audiência precisa ouvir de mim hoje?”; “estratégias para reduzir a ansiedade nas apresentações públicas”; “relação corpo-mente na estratégia de superação da ansiedade”. Seguia uma lista de exercícios de meditação, concentração, auto-declarações (eu sei, eu treinei, eu posso, eu vou conseguir...) e relaxamento a partir da respiração.
        Depois daquela aula fomos pra casa. Estávamos cansados! Além do frio ser extremamente desgastante, havia também o fato de termos ouvido uma aula em inglês por mais de 1 hora.
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        Naquela mesma semana assistimos com a minha cunhada e os meus sobrinhos um jogo de hóquei no ringue de patinação de Kingston: um verdadeiro clássico entre o time da Queen’s university e uma cidade vizinha. Realizado num grande ginásio do centro da cidade que possuía um “campo” de gelo ao centro, onde uma máquina de “encerar” passava de tempos em tempos para conservar o gelo do chão. Acima, havia letreiros de placar suspensos bem no meio e, nas laterais, 4 arquibancadas com torcidas bastante animadas. Como não poderia deixar de ser, lá também existia o famoso órgão musical que toca a sua clássica escala para animar o time da casa.
        Não assistimos ao jogo sozinhos, mas com vários regimentos do exército canadense que, ao que tudo indica, tinha ganhado um dia de folga. Vestidos com suas roupas camufladas, a maior parte dos soldados era bastante jovem e possuía, também, mulheres entre os recrutas. Demonstravam bastante animação, sendo que alguns bebiam cerveja e conversavam animadamente em francês. Duas ou três estudantes da universidade aumentavam o tom de sua histeria para chamar não apenas a atenção dos jogadores, mas, também, de alguns soldados (seria o fetiche do uniforme militar?).
        Cabe algumas observações sobre o exército canadense. Como parte fiel do império britânico, ele sempre serviu como “aliado” nas guerras travadas pela Inglaterra. Foi assim nas guerras mundiais; foi assim na sua adesão à OTAN e em muitas intervenções militares na África. No final da 1ª Guerra Mundial as tropas canadenses ocuparam Vladivostok e Murmansk como parte da intervenção militar britânica contra a Revolução Russa[viii]. Durante a “guerra fria” o Canadá esteve todo o tempo alinhado servilmente não apenas à Inglaterra, mas também aos EUA.
        Como se pode ver, eu fiquei mais atento ao que acontecia nas arquibancadas do que no ringue de patinação. No entanto, me lembro mais ou menos bem que o jogo terminou empatado em 2 x 2.

De Kingston à Ottawa
        Uma das principais vantagens da localização de Kingston é a sua proximidade com a capital do Canadá. A cerca de 1h30min de carro, é uma viagem absolutamente tranquila. Ao longo da semana combinamos o que faríamos lá, como visitar o festival de inverno da cidade. Para isso, reservamos nossos hotéis e hostels pela internet e alugamos um carro (meu irmão já possuía o dele). Partimos numa sexta feira fria, embora de céu azul, em um comboio de 2 carros com destino à capital do país.
        Ao longo da estrada, paramos para comer numa espécie de paradeiro de viajantes e caminhoneiros. Era um grande complexo comercial, repleto de restaurantes. Perto das grandes mesas do estabelecimento haviam telas digitais onde se podia consultar um mapa e verificar as rodovias. Quando fomos voltar aos automóveis para seguir viagem, meu pai pensou ter perdido a chave do nosso carro por um momento, o que causou uma comoção generalizada e o pensamento negativo de que a viagem terminaria ali. Porém, para nossa sorte, a chave apenas caiu em um das costuras abertas do seu casaco de neve.
        Chegamos em Ottawa no início da tarde daquele mesmo dia. Eu e Thaís ficamos num hostel de “mochileiros”, enquanto que o resto do pessoal ficou num hotel próximo à avenida central. Ottawa é uma cidade muito bonita, embora pequena para ser a capital de um país tão grande como o Canadá. Ela se constitui de grandes construções modernas e antigas, sendo que algumas são semelhantes a imponentes castelos medievais. Em muitos destes edifícios históricos funcionam embaixadas de outros países, como a dos EUA, que fica próxima a uma escadaria que leva à uma praça na lateral do parlamento canadense.
        O parlamento do Canadá se localiza na Wellington Street; uma rua que perpassa por todo o Parliament Hill. Com uma grande torre central de mais de 110 metros, que ostenta um relógio no meio e um telhado longo e pontiagudo onde tremula uma bandeira do Canadá, o prédio do Parlamento é histórico, repleto de frisos e detalhes arquitetônicos – uma verdadeira obra de arte! É ali que funciona a “câmara dos comuns” e o Senado, além de abrigar a grande biblioteca do parlamento. Ele possui um imenso pátio de frente, bem cuidado, com uma tocha acesa no caminho de entrada, quase lembrando uma pira olímpica. Ao lado direito se encontra uma bela igreja gótica, com pedras talhadas, frisos em tom marrom acinzentado, arcos ogivais e um telhado verde claro com pequenas janelas triangulares. Foi neste espaço que presenciamos um protesto contra o governo, embora não tenhamos conseguido levantar mais detalhes em razão do frio, que nos obrigou a desistir de explorar todo o Parliament Hill. Em todas estas construções há uma inegável influência da arquitetura londrina. Ao fundo do parlamento está o admirável Rio Ottawa, que divide as províncias de Ontario e Quebec.
        Nas noites de verão é projetado sobre as paredes do prédio do parlamento um show de luzes que conta a história do Canadá com uma narração bilíngue. Ocorrem também festivais de música, com apresentação de bandas e orquestras. No inverno acontece o show de luzes de natal e o festival de inverno no Rideau Canal, que é congelado artificialmente (ou naturalmente, dependendo das temperaturas) para que a população possa esquiar nele e apreciem shows, apresentações musicais e artísticas[ix]. Canadenses e turistas do mundo todo afluem à Ottawa para participar deste famoso festival, como foi o nosso caso. Eu e Thaís preferimos visitar o parlamento – onde passamos um dos maiores frios da nossa vida, com a ponta dos dedos do pé chegando quase a congelar – e uma livraria num centro comercial nas proximidades, onde adquiri o livro de Robert Bothwell.
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        Foi em 1867 que Ottawa se tornou a capital do Canadá, desbancando Kingston. No Wikipédia podemos ler que “O Canadá é uma federação composta por dez províncias e três territórios, uma democracia parlamentar e uma monarquia constitucional, com a rainha Isabel [Elizabeth] II como chefe de Estado — um símbolo dos laços históricos do Canadá com o Reino Unido – sendo o governo dirigido por um primeiro-ministro, cargo ocupado atualmente (2019) por Justin Trudeau. É um país bilíngue e multicultural, com o inglês e o francês como línguas oficiais. Um dos países mais desenvolvidos do mundo, o Canadá tem uma economia diversificada, dependente dos seus abundantes recursos naturais e do comércio, particularmente com os Estados Unidos, país com o qual o Canadá tem um relacionamento longo e complexo (este relacionamento certamente obrigou o Canadá a se especializar não apenas no comércio, mas na sua própria produção de mercadorias). É um membro do G7, do G20, da OTAN, da OCDE, da OMC, da Comunidade das Nações, da Francofonia, da OEA, da APEC e das Nações Unidas”.
        Excetuando em certo ufanismo, essa descrição define genericamente bem o país que procurei apresentar nesse texto. Herdeiro da mentalidade e dos costumes britânicos, pode-se dizer, seguramente, que o Canadá é um país conservador e crente nos benefícios miraculosos do “livre mercado”. Isso perpassa toda a obra de Robert Bothwell. Justin Trudeau, por exemplo, é representante do Partido Liberal. A estrutura política do Canadá segue a mesma lógica do Reino Unido, numa disputa eterna entre conservadores e liberais. Por outro lado, o aspecto positivo do multiculturalismo canadense tende a ser ceifado pelo conservadorismo herdado da mentalidade comercial britânica, uma vez que o mercado padroniza tudo. Em todos os órgãos internacionais que participa – como a ONU, OTAN e OEA – age mais ou menos como um subordinado da Inglaterra e dos EUA.
        Segundo Bothwell, a forma da História do Canadá tem sido sempre relacionada com as ideias e políticas que cruzam a fronteira sul do país, assim como o fluxo e o refluxo do liberalismo e do conservadorismo durante o século XX, sem exceção[x]. Este liberalismo é bastante questionável, uma vez que impera, na prática, uma submissão aos interesses e desmandos do mercado mundial, o que gera, inevitavelmente, um novo tipo de conservadorismo – sem falar na sua posição política de submissão e reverência à monarquia inglesa. Isso se traduz, na prática, pela submissão aos EUA na política internacional. Parte disso é o resultado da pressão exercida pelos estadunidenses sobre as reservas naturais do Canadá, que são tencionadas a se tornar parte do mercado de energia dos EUA. Em termos de renda dos trabalhadores, o Canadá sempre foi, em muitos sentidos, uma réplica menor do capitalismo estadunidense – incluindo a relação com as centrais sindicais e os sindicatos mafiosos que organizam o trabalho e a produção nas grandes fábricas de automóveis.
        Fazendo fronteira com os EUA, os canadenses têm estado sempre em uma excelente posição para absorver e ser influenciado pelo que acontece no país vizinho. A cultura norte-americana, seus presidentes e a sua política interna, muitas vezes, tornam-se extremamente populares no Canadá. Isso é facilitado pelo fato das principais cidades canadenses estarem situadas ao sul, literalmente coladas à fronteira com os EUA. No seu livro, Robert Bothwell demonstra claramente que alguns ideólogos estadunidenses tentam forçar uma diferença econômica entre o Canadá e os EUA, como se o primeiro fosse uma sociedade monárquica, totalmente orientada pelo governo e pela intervenção estatal, além de supostamente subordinar o indivíduo à comunidade; enquanto que o segundo seria uma república de liberdade de comércio e individual. Como “liberal” que é, Bothwell não pode deixar de se sentir ofendido. Porém, afirma, categoricamente, que os estadunidenses também subsidiam estradas de ferro, assistências técnicas de todo o tipo, pequenos e grandes fazendeiros, além de outras práticas e formas de intervenção do governo na economia[xi].
        Apenas a estúpida elite brasileira e dos demais países semicoloniais se submetem a este dogma liberal de “não intervenção do Estado na economia” que não é praticado por quem o prega. O Canadá, conforme atesta Bothwell, também não pratica tal dogma. Basta olhar para a disputa pelo mercado de aviação que a canadense Bombardier trava com a brasileira Embraer. Enquanto os governos brasileiros trabalham para entrega-la de bandeja ao amo imperialista, privatizando-a totalmente, a Bombardier é subsidiada e conservada pelo Estado canadense – portanto, não cumpre os dogmas neoliberais que aparentemente sustenta[xii]. Além disso, pude ver um telejornal em Montreal abordar publicamente este assunto, tratado como prioridade nacional, enquanto que no Brasil fica restrito apenas aos setores empresariais e às quatro paredes dos gabinetes de governo.
        O mesmo poderia ser dito da relação de “livre comércio” entre EUA e Canadá. Enquanto o Canadá repetidamente assegura o livre acesso dos EUA ao seu mercado de madeira macia (um dos grandes produtos de exportação do Canadá, graças às suas conservadas florestas do norte); os EUA, por sua vez, dificultam o acesso do Canadá ao mercado interno estadunidense ou sobretaxam seus produtos a partir de um poderoso truste da indústria da madeira, que obviamente exerce lobby sobre o governo e o congresso de Washington. Bothwell classifica este monopólio como um bizantino sistema legal, que obviamente significa uma brutal intervenção política e governamental na economia[xiii].
Estes fatos demonstram claramente que não existe mais “livre comércio” ou “livre mercado”; e os países periféricos – como o Brasil – são os que mais sofrem com estas ideologias de direita e com as arbitrariedades do poderio econômico (embora suas elites jamais abrirão mão de ser suas sócias menores nas economias periféricas). O Canadá, por sua vez, não pode ser considerado um país imperialista, ainda que se esforce para isso. Está numa escala intermediária entre os países imperialistas e os periféricos, que são dependentes e semicoloniais.

De Ottawa à Kingston
        Voltamos à Kingston para desfrutar os nossos últimos dias no Canadá. Tivemos que apressar a volta de Ottawa em razão da previsão de uma forte nevasca que se avizinhava. No meio do caminho de volta a freezing rain começou, espalhando grandes flocos de neve e tornando toda a superfície da pista branca, apagando perigosamente os traços da autoestrada. Mais do que de pressa caminhões passavam por ela largando sal e fazendo shoveling para facilitar a vida dos motoristas. Neste retorno acompanhamos um desses caminhões trabalhando.
Nos nossos últimos dias em Kingston fomos à LCBO, revisitamos o centro comercial da cidade para fazer algumas compras e, para aproveitar o aluguel do carro, preparamos uma excursão às ilhas do Rio Saint Lawrence, chamadas de Thousand Islands, que ficam próximas ao desaguadouro do rio no Lake Ontario. São regiões belíssimas, repletas de casas de veraneio, que naquela época do ano tornam-se semi desertas. O dia estava radiante, com um céu azul resplandecente. Pudemos chegar até elas atravessando algumas pontes e vencendo pequenos e grandes montes de neve acumulada. A visão do rio parcialmente congelado e de algumas casas na sua beira forma um cenário perfeito para a pintura de um quadro. Chegamos a nos arriscar caminhando sobre algumas partes congeladas do rio junto a um grupo de aves. O rio demarca a fronteira com os EUA. Do outro lado dele podia-se vislumbrar algumas casas do país vizinho. Quando voltávamos para Kingston, pegamos uma via errada que nos levou até um posto de migração estadunidense, o que, obviamente, impedia a nossa passagem, já que autoritariamente o nosso visto havia sido negado.

De Kingston à Toronto II
        Passados estes dias agradáveis e peculiares no Canadá, cumprimos nossa missão – que era levar minha irmã até o seu destino final e decifrar um pouco esta esfinge do norte; assim, estava na hora de voltar à pátria amada para sentir um pouco de calor tropical, humano e linguístico. Meu irmão nos encarregou de trazer de volta 2 grandes malas cheias de pertences, objetos e roupas supérfluos, o que praticamente dobrou o nosso peso e o nosso trabalho para a volta.
        Chegamos no aeroporto de Kingston para viajarmos até Toronto, de onde partem a maioria dos aviões para as viagens internacionais. Depois de esperarmos muitas horas e o meu irmão e o meu pai já terem ido embora, uma atendente da Air Canada nos disse que os voos para Toronto haviam sido cancelados, o que nos obrigava a ir de trem até Toronto. Além de já não termos mais nenhum tostão furado de dólar canadense, tínhamos que ir até a estação de trem de Kingston, local que desconhecíamos por completo. Graças a uma generosa canadense que virou nossa amiga, Denise S., que, estando na nossa frente na fila, percebeu o drama e nos acolheu, pudemos ir até lá. Ela ia para Alemanha, e ficou inteiramente curiosa para saber o que dois brasileiros estavam fazendo em Kingston durante o auge do inverno.
        Apesar da grande correria que isso nos causou, a viagem de trem foi tranquila e confortável. Conversamos um pouco com Denise, que também trabalhava na Queen’s University. Comentei a ela que estávamos visitando meu irmão, que havia se mudado ao Canadá para trabalhar na sua universidade. Rapidamente ela olhou no seu tablet e me mostrou a foto do meu irmão com os seus dados pessoais e profissionais. Todo esse trajeto nos foi muito custoso porque tínhamos cerca de 5 grandes malas para cuidar, mas com a ajuda de Denise chegamos até a estação de trem de Toronto, onde ela também nos ajudou a encontrar o transfer que conduz ao aeroporto internacional Lester B. Pearson. Nos despedimos nos portões de embarque que inevitavelmente dividiam os nossos destinos. Nos adicionamos no facebook e eventualmente trocamos mensagens e acenos.

Do Canadá ao Brasil: da ignorância a um pouco de conhecimento!
        Voltar ao país de origem é como voltar a falar a língua mãe: proporciona uma certa comodidade e tranquilidade. Por outro lado, viajar ao exterior não apenas expande nossos horizontes – quando estamos imbuídos de um espírito aventureiro, de espantosa curiosidade infantil e de abertura ao diálogo cultural –, nos enriquecendo em todos os sentidos, mas também nos faz olhar de forma diferente para o nosso próprio país e para a nossa própria cultura. Voltei transformado do Canadá! A partir dessa experiência, novas portas e curiosidades pessoais se abriram.
        O “norte verdadeiro, forte e livre”, também é “gigante pela própria natureza” e certamente ficará cada vez mais “em guarda” para ocupar o seu lugar no mundo – infelizmente, para reforçar os dogmas neoliberais de mercado e o conservadorismo britânico...



NOTAS


[i] BOTHWELL, Robert. The penguin history of Canada. Penguin Canada, Toronto, 2007.
[ii] TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção Folha Grandes Nomes do Pensamento (número 11) – Editora da Folha de São Paulo, 2015.
[iii] Official Toronto Visitor Guide 2016; neighbourhoods, maps, attractions & more.
[iv] Folheto recolhido no local, intitulado: “The Cathedral Church of St. James – Diocese of Toronto – Anglican Church of Canada”.
[v] TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção Folha Grandes Nomes do Pensamento (número 11) – Editora da Folha de São Paulo, 2015.
[vi] BOTHWELL, Robert. The penguin history of Canada. Penguin Canada, Toronto, 2007.
[vii] Idem.
[viii] Idem.
[ix] Ottawa visitor guide 2016-2017; #MyOttawa; www.ottawatourism.ca
[x] Idem (página 534)
[xi] Idem (página 234)
[xiii] BOTHWELL, Robert. The penguin history of Canada. Penguin Canada, Toronto, 2007 (página 525).