terça-feira, 24 de dezembro de 2019

A Palerma

Texto de Anton Tchékhov (1860 - 1904); escritor e dramaturgo russo.

Dias atrás mandei chamar a governanta dos meus filhos, Iúlia Vassílievna, ao meu gabinete. Precisávamos acertar contas.
 Sente-se, Iúlia Vassílievna.!  eu disse. 
 Vamos acertar nossas contas. A senhora provavelmente necessita de dinheiro, mas tem cerimônia demais para pedir... Vamos lá... Nós combinamos trinta rublos por mês...
 Quarenta...
 Não, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta para as governantas... Então, a senhora ficou aqui dois meses...
 Dois meses e cinco dias...
 Dois meses exatos... Eu tenho aqui anotado. Portanto, a senhora tem a receber sessenta rublos... Temos que descontar nove domingos... pois a senhora não estudou com Kólia nos domingos, somente passearam... e houve ainda três feriados...

Iúlia Vassílievna ficou vermelha e começou a repuxar os babadinhos de sua roupa, mas não disse uma só palavra...


 Três feriados... Consequentemente, vamos tirar doze rublos... Durante quatro dias Kólia ficou doente e não teve aulas... A senhora estudou só com Vária... Três dias a senhora teve dor de dente e minha esposa permitiu que a senhora não desse aula depois do almoço... Doze mais sete  dezenove. Subtraindo, restam... hum... 41 rublos. Certo?

O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou vermelho e cheio d´água. Seu queixo tremeu. Ela deu uma tossida nervosa, assoou o nariz, mas 
 nem uma palavra!

 Na véspera de ano-novo a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. Vamos tirar dois rublos... A xícara custa mais do que isso, era herança de família, mas... deixa pra lá! Não vamos fazer questão disso! Adiante: devido à sua falta de atenção, Kólia subiu numa árvore e rasgou seu casaquinho. Vamos tirar dez... A arrumadeira, também devido à sua falta de atenção, roubou umas botinas de Vária. A senhora deveria cuidar de tudo. É para isso que recebe salário. Então, vamos tirar mais cinco... No dia sete de janeiro a senhora pegou adiantado comigo dez rublos...
 Eu não peguei!  sussurrou Iúlia Vassílievna.
 Mas eu tenho aqui anotado!
 Então, está bem... Que seja.
 De 41 vamos subtrair 27  restam catorze.

Os dois olhos de Iúlia Vassílievna encheram-se de lágrimas... No seu belo e alongado narizinho apareceram gotas de suor. Pobre menina!
 Eu só peguei uma vez  disse ela com voz trêmula.  Peguei com a sua esposa três rublos... Não peguei mais...
 É mesmo? Ora, isso não está anotado! Tirando três de catorze, sobram onze... Aqui está o seu dinheiro, caríssima! Três... três... três... um... um... Tenha a bondade de receber!
E lhe entreguei onze rublos... Ela pegou o dinheiro e com os dedinhos tremendo meteu-o no bolso.
 Merci  sussurrou ela.

Levantei-me de um salto e comecei a caminhar pelo gabinete. Estava indignado.

 Merci por quê?  perguntei.
 Pelo dinheiro...
 Mas eu a roubei, com os diabos, eu a assaltei! Acabei de roubá-la! Por que merci?
 Nos outros lugares eles não pagavam nada...
 Não pagavam? Então não é de se estranhar! Eu estava brincando com a senhora, estava lhe dando uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os oitenta rublos! Estão aqui preparados, neste envelope! Mas é possível ser assim tão pateta? Por que a senhora não protesta? Por que fica calada? Será que neste mundo é possível não ser atrevido? É possível ser tão palerma?

Ela deu um sorriso azedo e eu li no seu rosto: "É possível!"
Pedi desculpas pela cruel lição e, para sua grande surpresa, entreguei-lhe todos os oitenta rublos. Ela disse um merci tímido e saiu... Fiquei olhando quando ela se afastava e pensei: "Como é fácil ser poderoso neste mundo!".

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