quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O "multiculturalismo" conservador do Canadá


A primeira coisa que fiz quando aportei no Canadá em pleno inverno foi atolar o meu pé na neve acumulada nos canteiros do estacionamento do pequeno aeroporto de Kingston. Nunca tinha vivenciado a neve, por isso reagi assim.
        Chegamos no Canadá no final de janeiro de 2017. Lá se vão 2 longos anos, embora as memórias estejam ainda bem gravadas na minha mente e registradas em muitas fotos. Fomos visitar o meu irmão, que morava lá com a sua família há 7 ou 8 meses. Trouxe desta viagem um livro grosso, de 596 páginas, intitulado The penguin history of Canada, do professor “liberal” da Universidade de Toronto, Robert Bothwell. Após levar todos estes 2 longos anos o lendo, resolvi dedilhar estas linhas para ajudar na compreensão desta esfinge do norte, que até eu tocar o seu solo quase nada tinha chamado a minha atenção.

De São Paulo ao Canadá
        Partimos de São Paulo eu, Thaís e minha irmã Joana, em um voo direto para Toronto, exatamente nos últimos dias de janeiro de 2017. O Boeing da Air Canada que nos levou era enorme, com 3 colunas de poltronas e diversas classes. Estávamos, obviamente, ansiosos e com grandes expectativas. Joana ia ficar no Canadá para passar 6 meses com meu irmão, Danilo. Eu e Thaís seríamos os guardiães dela durante o cruzamento da América de ponta a ponta.
        Mesmo muito cansado não preguei os olhos. Ficava controlando o flight map por cada região que sobrevoávamos. Lembro-me de ficar observando as pequenas luzes que despontavam da janela escura em plena noite da América Central. Provavelmente eram ilhas como Trinidad Y Tobago; sem falar o sobrevoo de raspão sobre Cuba.
        O Canadá é um país multicultural, conforme eles mesmos se definem, que é “vítima de ter muita geografia”[i]. Um lugar de paradoxos que goza de um espaço ilimitado, constituindo-se no segundo maior país do mundo em território, embora seja quase despovoado. Cerca de 30 milhões de habitantes vivem lá, sendo que destes, uma grande parcela é de imigrantes de diversas nacionalidades. É um país com um gigantesco norte que se estende do Alaska até o círculo glacial do polo norte, quase tocando a Groelândia, e do oceano Atlântico ao Pacífico; embora a maioria esmagadora da sua população se concentre no sul, ao longo da fronteira com os EUA.
        Foi deslizando por esta fronteira, entrecortada pela região dos grandes lagos, como o Lake Ontario, que desbravamos estas terras inóspitas para brasileiros.

Da cidade proibida da China imperial ao país proibido para o “terceiro mundo”!
        Nas vésperas da viagem ao Canadá – mais precisamente em dezembro de 2016 – eu e Thaís fomos à São Paulo tentar um visto estadunidense. Como já tínhamos o canadense, pensamos que conseguiríamos a benção do Tio Sam também. Uma vez que andaríamos por Ontario e Quebec, por que não dar uma escapadinha para Nova York também? Seria uma oportunidade ímpar.
        Então, nos lançamos nessa aventura pela maior cidade da América Latina. Desembarcamos em uma estação do metrô Morumbi, da linha esmeralda, que costeia a Marginal Pinheiros. O bairro, com seus prédios chiques, espelhados e arranha-céus, deu a tônica do que nos aguardava. A embaixada dos EUA no Morumbi é quase uma fortaleza militar. Você não pode sequer entrar com o próprio celular, sendo uma construção totalmente cercada e controlada; e dentro você é tratado como gado. O clima de submissão e humilhação ocorre desde quando você entra e é colocado em diversas linhas de fila, onde aguarda pela autorização dos funcionários e vigilantes.
        Mil câmeras lhe filmam durante todo o percurso. Em pequenas TVs de tela plana aparecem imagens deste “maravilhoso” país: desde o Monte Rushmore e New Orleans, até a estátua da liberdade e as praias californianas! E breves informes: mantenha seus documentos à mão; seja ágil!
Quando finalmente nos aproximamos de um dos vários guichês de um oficial consular percebi que se trata de uma encenação para mexer com o psicológico dos “candidatos” a visto. Os oficiais, ora falando em inglês, ora falando com o seu português cheio de sotaque, bradam “você conseguiu o visto, parabéns”; ou então, simplesmente: “lamento, o senhor foi considerado inelegível para obter um visto de não-imigrante”. Lembro-me perfeitamente de ver uma senhora negra, humilde, resignada, falando baixinho com o senhor oficial consular, que lhe negou taxativamente o visto, o que fez com que ela juntasse seus papéis e pequenos pertences de cima do guichê e saísse chorando pela lateral.
Quanto mais ia se aproximando a nossa vez, mais nervosos ficávamos; e isso era inevitável em razão da criação deste clima psicológico opressivo. O que me levou a batizar, carinhosamente, todo este processo de “entrevista de emprego do terceiro mundo”. Uma menina que falava inglês fluentemente conseguiu o seu, um pouco antes da nossa vez.
Por fim, antes do último a nossa frente ser chamado, já bem cansados por ter suportado mais de 2h em pé por, pelo menos, 3 filas diferentes, juntamos os nossos papéis: passaportes, passagens, hospedagens, comprovantes de renda... pra quê tanta humilhação?
“Por que querem ir para os EUA?”, nos perguntou a voz inquisitória do senhor oficial consular no seu português tortuoso.
“Bem”, comecei eu, “é que vamos visitar meu irmão que está morando no Canadá e gostaríamos de ir até Nova York...”.
“Um momento, por favor”, ele pediu, enquanto olhava nossos papéis e digitava algo no seu computador. Em seguida nos perguntou, um tanto desajeitado e nervoso, se iríamos à Flórida; talvez porque viu que estive lá em viagem familiar no ano de 1999. Respondi que não, pois dessa vez iria até o Canadá e, portanto, gostaria de “descer” até Nova York, dada a proximidade geográfica – ou seja, a verdade mais verdadeira do mundo! Seria tão difícil para um país armado até os dentes, cheio da mais alta tecnologia de espionagem, que hospeda todos os maiores provedores de internet do mundo e é campeão na escuta e no grampo ilegal, descobrir que mentíamos? Depois perguntou se eu e a Thaís éramos casados; ao que eu, hesitante, respondi que não. Muitas explicações terceiro-mundistas nos foram dadas por outros e até por nós mesmos tentando justificar o injustificável: “eles pensaram que vocês eram um casal de fachada”; “acharam que vocês iam fazer imigração ilegal”. Ou seja: todas essas explicações tentam atribuir a culpa a nós mesmos e não a este sistema absurdo de imigração; uma verdadeira censura!
Vivíamos, então, a transição do governo democrata de Barack Obama para o republicano de Donald Trump. Pensei que não haveria maiores problemas, uma vez que o neofascista subiria ao poder apenas no mês seguinte. Mal sabia eu que janeiro traria à Nova York massivos protestos contra o republicano fundamentalista. Não que isso tenha alguma coisa a ver – provavelmente não! –, mas, se pudesse, certamente passaria lá para conferir.
Então, o senhor oficial consular ordenou que eu pegasse o telefoninho grudado a minha esquerda, bem na frente do vidro do guichê. Por ali ele me disse, de forma abrupta e um tanto intempestiva, que “lamentava me informar, mas o nosso visto não seria aceito” (por que não o fez abertamente para todos?). Dobrou febrilmente um papelzinho rosa – que só fui ler depois, no banco do metrô –, colocou dentro do meu passaporte e me passou pelo buraquinho do vidro do guichê. O papel continha os seguintes dizeres:

U.S. CONSULATE GENERAL SÃO PAULO – Rua Henri Dunant, 500. Seguia o CEP e a data, que ficou em branco (até hoje!).
“Caro solicitante, informamos que o(a) senhor(a) foi considerado(a) inelegível para obter um visto de não-imigrante, segundo a Seção 214(b) da Lei de Imigração e Nacionalidade dos Estados Unidos. Uma recusa com base na Seção 214(b) significa que o(a) senhor(a) não conseguiu demonstrar que as suas atividades nos Estados Unidos seriam consistentes com a classificação do visto de não-imigrante solicitado.
Enquanto cada classificação de visto de não-imigrante possui requerimentos próprios e únicos, um dos requerimentos comuns entre as várias categorias de vistos de não imigrantes é que cada solicitante demonstre que tem uma residência fixa fora dos Estados Unidos e que não há intenção de abandoná-la. Os solicitantes normalmente atendem a este requerimento demonstrando que possuem fortes vínculos no país de origem os quais indicam que retornarão dos EUA ao fim da estada temporária autorizada. Tais vínculos podem ser: profissionais, um trabalho fixo, escola, família, vínculos sociais com o país de origem. O(A) senhor(a) não demonstrou que tem os vínculos suficientes que obriguem o seu retorno ao seu país de origem após sua viagem aos Estados Unidos.
A decisão de hoje não pode ser reconsiderada. Entretanto, o(a) senhor(a) poderá fazer uma nova solicitação a qualquer momento. Se decidir solicitar o visto novamente deverá preencher um novo formulário DS-160 e foto, pagar uma nova taxa de solicitação de visto e fazer um novo agendamento para ser entrevistado por um oficial consular. Se o(a) senhor(a) decidir solicitar o visto novamente deverá estar preparado(a) para providenciar informações que não foram apresentadas em sua solicitação original, ou demonstrar que suas circunstâncias tenham mudado desde a solicitação anterior.
Atenciosamente,
Oficial Consular.

        Pode parecer, caros amigos, uma cena de Admirável Mundo Novo, mas é a relação entre o Brasil e os EUA no final de 2016! Tratava-se de uma folhinha padrão entregue a todos os reprovados na entrevista de terceiro mundo: nós éramos pobres demais para entrar no país proibido!
        Confuso e ao mesmo tempo furioso peguei meus documentos e, fuzilando o senhor oficial consular, disparei sem pensar: “depois vocês dizem que Cuba é uma ditadura!”. E lhe dei as costas, orgulhoso de mim mesmo e decidido a nunca mais colocar os pés naquele lugar horroroso pra não passar novamente por tamanha humilhação.
Provavelmente o senhor oficial consular tomou nota do ocorrido e também fará questão de que eu nunca mais ponha meus pés lá novamente.
***
        O “liberal” Alexis de Tocqueville – grande admirador dos EUA – analisou os documentos da nobreza francesa às vésperas da Revolução de 1789 e pôde constatar algumas reivindicações daquele período que ajudam a lançar luz ao problema atual da imigração. “Liberdade da pessoa: (...) que cada qual possa livremente viajar ou estabelecer residência onde quiser, seja dentro ou fora do reino, sem o risco de ser detido arbitrariamente”[ii]. Como se pode ver, a atual política de imigração dos países imperialistas – e, em particular, a dos EUA – volta para antes de 1789.
        O Canadá é um pouco melhor e mais receptivo neste quesito; embora seja apenas isso: um pouco melhor... Ao meu irmão mais velho, Bernardo, por exemplo, sem nenhuma justificativa plausível, foi negado visto não apenas aos EUA, mas, também, ao Canadá. A “globalização” e a liberdade criada pelo mercado são apenas para as mercadorias e os ricos. Para a maioria das pessoas ele criou barreiras intransponíveis dentro das fronteiras nacionais.
***
        Cabe perguntar agora, o que seria “não conseguir demonstrar que minhas atividades nos EUA não seriam consistentes com um visto de não-imigrante, uma vez que nada além da questão de renda foi justificada? Os EUA não seriam o país mais democrático do mundo? A terra das oportunidades? Reparem que nós apresentávamos todos os requisitos exigidos: trabalho fixo, escola, família, vínculos sociais com o país de origem (a Thaís não tinha trabalho fixo naquele momento, mas estava no último semestre da faculdade – tudo isso foi inutilmente apresentado lá).
        Assim, nosso destino foi selado autoritariamente. Tínhamos em mente, inclusive, uma passagem aérea que previa uma escala em aeroportos estadunidenses. Esta atitude autoritária e arbitrária quase comprometeu toda nossa viagem ao Canadá. Por sorte, encontramos passagens acessíveis pela Air Canada que não necessitavam de escalas nos EUA.
        Assim, voamos direto de São Paulo para Toronto. Desembarcamos nessa cidade numa madrugada fria, onde já despontavam os primeiros raios de Sol. A nevasca tinha dado trégua há semanas e apenas um frio cortante se mantinha entrando pelas frestas das portas que levavam ao pátio do aeroporto, de onde decolaria o teco-teco que nos levaria para Kingston, a cidade onde meu irmão morava e, também, a primeira capital do Canadá.

Da ignorância a um pouco de conhecimento I
        Até tudo se definir para a nossa viagem eu não sabia nada sobre o Canadá, apenas que se localizava no extremo norte do nosso continente. Fui pesquisar, então, um pouco sobre esse país inóspito. Todas as informações na internet eram superficiais e insuficientes, beirando à frieza. Pude me munir de respostas apenas direto na fonte, de onde retornei, como já foi dito, com alguns livros de História.
        Entre 1500 e 1501 – mesmo período que o Brasil estava entrando para a História de Portugal – o navegador português Gaspar Corte Real contornou Newfoundland e Labrador, um grande conjunto de ilhas ao nordeste de Quebec. Porém, isso foi apenas um episódio passageiro. Em 1535, outro explorador europeu, o navegador francês Jacques Cartier, entrou em contato com tribos nativas e navegou por baías e rios do Canadá, abrindo caminho para os futuros assentamentos coloniais.
A História do Canadá é marcada pela disputa territorial entre ingleses e franceses; por isso mesmo, se confunde com a colonização dos EUA. Os britânicos desembarcaram na América do Norte em 1607, praticamente um século depois dos portugueses e espanhóis, onde fundaram a primeira das futuras 13 colônias: Virgínia. Dali, se espraiaram pelo nordeste e sudeste do território atual dos EUA. Em 1605, Samuel de Champlain, outro explorador francês, fundou o primeiro assentamento da França em Port Royal (futuro território conhecido como Nova Escotia – região no extremo ocidente do Canadá que se encontra na foz do grande rio Saint Lawrence). Depois de Port Royal, Champlain fundou Quebec em 1608. A partir daí estava dada a largada para a disputa colonial entre franceses e ingleses, que teria o seu principal desfecho na Guerra dos 7 anos (1756-1763). Os anos seguintes aos do estabelecimento dos colonos europeus foi a fundação de inúmeros fortes militares por todo o território norte-americano e a guerra sem trégua contra os índios, que terminou num genocídio.
Tivemos a oportunidade de viajar de Ontario até Quebec ao longo do Saint Lawrence. O clima frio e o inverno rigoroso criam as condições para que no degelo se formem gigantescos rios entrecortados por ilhas, tal como as Thousand Islands que pipocam aqui e acolá ao longo do grande rio que divide o Canadá dos EUA.

De Toronto à Kingston
Quando chegamos em Kingston fomos recebidos pelo meu irmão, que nos levou para conhecer a sua nova cidade – a primeira capital do Canadá. Kingston localiza-se no Estado de Ontario, que seria parte do Canadá inglês (ou, como eles chamam: upper Canada – o “alto Canadá”). É uma cidadezinha pequena e agradável, de cerca de 28 mil habitantes, localizada às margens do Lake Ontario, que naqueles dias se encontrava parcialmente congelado. Pra onde quer que olhássemos, só víamos branco cobrindo todo e qualquer resquício de verde.
Ainda nos primeiros dias meu irmão nos apresentou as lojas clássicas do Canadá, bem ao estilo norte-americano, como a Dollarama (uma espécie de loja de R$1,99, só que com mercadorias de maior qualidade); a rede de cafeterias Tim Hortons, especializada em donuts, rosquinhas, cafés, chás e sanduíches (a qual passamos a ser frequentadores assíduos durante a nossa estada lá); e a LCBO (a sigla de Liquor Control Board of Ontario – ou em português: “Conselho de Controle de Álcool de Ontário” – e é um dos locais aonde você pode comprar bebidas alcóolicas na província de Ontario; depois descobriríamos que existe um correlato dessa loja em Quebec). Ou seja, o Estado canadense mantém o monopólio do lucro do álcool para si, uma vez que não é permitido vender bebida alcoólica nos grandes supermercados (com algumas exceções).
No primeiro dia, querendo degustar um vinho no almoço, adentramos uma grande loja da LCBO no downtown de Kingston, que é uma espécie de paraíso dos alcoólatras, uma vez que concentra e vende todo o tipo de bebidas. Vinhos e cervejas de diversas nacionalidades, separados nas prateleiras e refrigeradores com a bandeira do seu país de origem; whiskies, vodcas, licores, conhaques, etc. Embora não muito acessível para brasileiros pobres, era razoavelmente barato em dólar canadense, que, aliás, é uma moeda um tanto estranha, uma vez que o papel-moeda de lá é impresso em uma espécie de plástico de diversas cores de acordo com seu valor, contendo uma, inclusive, a figura da rainha Elizabeth II.
Cabe aqui uma nota sobre o hábito alcoólico dos canadenses de uma faixa econômica superior: não bebem apenas um tipo de bebida durante um jantar. Iniciam com cerveja, partem para o vinho e concluem com uísque. Não é preciso ser médico para compreender que a resistência é grande, bem como o alcoolismo.
Saindo da LCBO, partimos para outra breve city tour por Kingston, costeando o Lake Ontario para conhecer as baías que sediaram parte das provas aquáticas e de embarcações das Olimpíadas de Montreal, em 1976. Passamos também pela “famosa” prisão da cidade, que causa uma espécie de opressão ao ver seus gigantescos muros e grades, também na beira do mesmo lago. Kingston encontra-se no início do desaguadouro do Rio Saint Lawrence no lago, exatamente onde se iniciam as Thousand Islands. Do outro lado do lago e do rio, exatamente na altura da cidade, estão os EUA.
Meu irmão se mudou para Kingston para trabalhar na Queen’s University – um famoso polo universitário do país que atrai estudantes e professores do mundo todo. Podíamos dizer que, apesar de ser uma cidade pequena, ela era internacional, uma vez que tinha estudantes de diversas nacionalidades andando pelas ruas e frequentado seus restaurantes e cafés. Era esta universidade que dava a forte dinâmica econômica da cidade. Além de trabalhar na Queen’s University, meu irmão ainda atendia no Kingston General Hospital, que também tivemos a oportunidade de conhecer e poder comparar com os hospitais e o atendimento da saúde pública brasileira.
Há na cultura canadense um grande culto da monarquia, como se pode ver não apenas pelo nome da sua primeira capital – que muito fala sobre a História do Canadá –, mas também na universidade, nas ruas e avenidas. Em Kingston temos a Princess Street e a Queen Street. Em Toronto, a famosa King Street. O culto não se dá apenas em ruas ou universidades, mas na visão política e na concepção sobre a qual o país foi fundado e edificado. Inclusive o velho hábito aristocrático inglês de tomar chá com pingos de leite à tarde foi mantido.

Da ignorância a um pouco de conhecimento II
        A presença dos ingleses no Canadá se deu, inicialmente, a partir da busca pelo comércio de peles e pelo estabelecimento de entrepostos comerciais ao longo da Baía de Hudson, no norte de Ontario, local de onde começaram a colonizar a região. Ao mesmo tempo, entraram em confronto com os franceses de Quebec, que já estavam assentados nas proximidades.
Durante a guerra civil revolucionária de 1774-1776 que preparou as bases da independência dos EUA, grande parte dos colonos que se mantiveram fiéis à coroa inglesa – os chamados Loyalists – migrou para o norte, na região que hoje é o Canadá. Antes disso, durante a Guerra dos 7 anos (chamado por Bothwell de “A guerra pela América”) os ingleses tomaram dos franceses o Fort Frontenac, que está situado na cidade de Kingston. Portanto, a região é estratégica, uma vez que faz a ligação entre o Canadá inglês e o Canadá francês.
Ao longo do Lago Ontário se pode ver uma série de construções militares da época da independência estadunidense que foram erguidas para a proteção da cidade e do “novo país”, mas que não chegaram a ser usadas porque a guerra não se consumou. Os Loyalists esperavam um ataque do exército de George Washington, mas não precisaram desembainhar a espada. Após estes fatos, houve a culminação de um complicado rearranjo de fronteiras que refletiam o desenvolvimento econômico e demográfico de 1780. Muitas negociações com a população francesa de Quebec, que, em razão da derrota da França na Guerra dos 7 anos, foram obrigadas a se submeter a uma administração colonial britânica, mesmo mantendo o francês como língua oficial.
A partir de 1783, com a consolidação da república estadunidense, os Loyalists mantiveram os laços com a Inglaterra e fundaram, com as bênçãos do parlamento inglês, a América do Norte Britânica, que, conjuntamente com os assentamentos coloniais de língua francesa em Quebec, futuramente se tornariam o Canadá.

De Kingston à Kingston
        Para mim, Kingston tinha algo de Springfield, com suas calçadas de concreto riscadas ao meio, seguida por um pequeno gramado que se estende até as casas de madeira, bem ao estilo dos Simpsons, sempre com belos jardins e um padrão de espaço entre as residências. Como já foi dito, apesar de pequena, a cidade era cosmopolita: possui estudantes de vários lugares do mundo, bem como os restaurantes tradicionais de fast food, sejam canadenses ou estadunidenses. Acredito se tratar de um modelo muito comum de cidade na América do Norte Anglo-Saxã, com seus estilos tradicionais de casas de tijolos vermelhos mesclados com partes de madeira macias e modelos pré-fabricados.
        A casa de meu irmão ficava na charmosa e pacata Traymor Street, uma zona residencial a algumas quadras do Lake Ontario e do campus universitário. Apesar de possuir tijolos vermelhos à vista, mantinha alguma coisa da arquitetura da casa dos Simpsons. A maioria das residências canadenses possui calefação, o que torna o rigoroso inverno suportável. O inverno gaúcho, comparado ao de lá, se torna absurdamente mais sofrível porque as casas daqui não possuem esse sistema de aquecimento, o que deixa as pessoas muito mais vulneráveis e suscetíveis ao frio.
Uma das principais tarefas do inverno na América do Norte é fazer o shoveling; isto é: tirar a neve da calçada e das garagens, jogando-a para a parte do quintal ou da calçada que possui grama. Como o inverno canadense é bastante rigoroso, fazer o shoveling é um trabalho muitas vezes penoso, mas tido como parte das “atribuições cidadãs” de cada morador. Montanhas de neve se formam na entrada das casas, propícias para se fazer bonecos de neve. Caso o shoveling não seja feito, pode redundar em neve congelada, o que certamente abre precedentes para os escorregões brutos. Há no Canadá um hábito muito interessante de se deixar as botas de neve na porta de entrada e andar em casa apenas de meias, chinelos ou pantufas, o que, segundo a tradição local, conservaria o lar da sujeira das ruas. As botas e os calçados de neve realmente trazem muita sujeira, transformando a entrada e a saída de casa quase que em um ritual.
***
Não muito distante da Traymor Street se encontrava a Winston Churchill Public School, onde meus sobrinhos estudavam e a minha irmã passaria a estudar também. Apenas uma breve olhada por fora já demonstra o abismo que separa a escola pública canadense da brasileira. Em Toronto conseguiria observar a entrada dos alunos em outra escola pública, percebendo que há um alto padrão de qualidade que é mantido ao longo do país (pelo menos ao longo da província de Ontário), enquanto que no Brasil há uma padronização e um nivelamento por baixo da rede escolar pública.
A Winston Churchill Public School é bem conservada e aconchegante, revestida de tijolos avermelhadas por fora, conserva uma boa aparência, procurando manter um contato regular com os pais. Provavelmente recebe os recursos governamentais em dia. Possui grandes quadres esportivas e salas de aula bem aparelhadas (embora não tenha entrado nas salas, pude observá-las das janelas da rua) e calefação. Na saída, os pais se aglomeram nos portões e no pátio para aguardar a saída dos filhos. A cada quinze dias, na sexta feira, os alunos são dispensados para que os professores possam realizar reuniões pedagógicas, o que, sem dúvida, é um grande progresso inexistente no Brasil (no qual a escola pública é vista como depósito de crianças, tal como se fosse uma creche). Na escola são ensinadas as duas línguas oficiais do país: o inglês e o francês. Além do ensino na escola pública, todas as embalagens, rótulos e bulas fabricados no Canadá devem ser bilíngues por força de lei.
Apesar das profundas diferenças existentes entre a escola pública canadense e brasileira, podemos observar muitos dos mesmos problemas, como o formalismo de determinadas práticas de ensino. Na aula de francês, por exemplo, minha irmã me contou que a maioria dos alunos usa o google tradutor para realizar a tradução para o inglês. Por outro lado, as professoras parecem estar muito mais atentas e engajadas na preservação dos alunos. Quando tirei fotos da fachada da escola, uma delas pensou que eu estava os fotografando e, por isso, veio me questionar e pediu pra olhar o que eu havia fotografado. Algo muito distante da realidade brasileira.
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        Desbravando a pequena cidade com Thaís e minha irmã, ainda nos nossos primeiros dias, passeamos a pé pelo downtown, onde conhecemos a famosa rede de fast food especializada em pizza, a Pizza Pizza. Todos os estabelecimentos mantêm o mesmo padrão e o mesmo sabor. Não apenas degustamos saborosas pizzas de peperoni, como também tivemos a chance de apreciar melhor o refrigerante símbolo do país, feito à base de gengibre: o Canada Dry, que é muito semelhante à Sprite ou a uma Soda Limonada, embora mais saborosa. Foi numa dessas visitas que conversei com um simpático balconista, que usava o uniforme da Pizza Pizza, composto por um chapeuzinho típico e um avental salientando um emblema da rede de restaurantes. Era um homem na sua meia-idade, magro, esbanjando um espesso bigode negro entrecortado por fios brancos e algumas pontas de barbas por fazer no seu queixo.
Percebendo que falávamos outra língua, perguntou de onde éramos. Ao saber que vínhamos do Brasil ele sorriu e prontamente puxou assunto. Queria saber o que estávamos achando do Canadá. Respondemos prontamente que tinha nos agradado bastante. Ele disse que aquele inverno estava brando demais: era algo parecido com março, quando a neve se aproximava do degelo. Infelizmente, sem poder debater mais em razão da limitação do meu inglês, pegamos nossos pedidos e fomos almoçar. Também conhecemos um simpático garçom numa hamburgueria gourmet de Kingston que nos entreteve bastante fazendo mágicas visando ganhar uma gorjeta.
Ainda naquela primeira semana, eu e Thaís nos preparávamos para viajar por Toronto e Montreal. Estávamos ansiosos esperando o momento em que iríamos de ônibus desbravar as grandes cidades do país e conhecer a província francesa. Numa sexta feira fomos levados por meu irmão até a bus station de Kingston, de onde partimos com destino à Toronto.

De Kingston à Toronto
        O nosso ônibus chegou à capital da província de Ontario no início da tarde. Fazia frio, mas não nevava. Já na entrada de Toronto despontam enormes prédios residenciais e comerciais, cenário bem diferente de Kingston. Durante toda a viagem pudemos ver grandes campos de neve e árvores desfolhadas. É a paisagem de viagem neste período do ano, sem nenhuma trégua.
        Acompanhou-nos neste ônibus um homem vestido à moda muçulmana, com uma túnica lilás e um turbante. Com uma grande barba branca e possuindo um tom de pele tipicamente mouro, ele sentou alguns bancos a nossa frente, na fileira do lado. Há aqueles que ficariam com medo e receio, esperando algum tipo de atentado terrorista. Mas aquele homem era tão pacífico e de tão boa fé que passou quase a maior parte do tempo no celular, lendo ou dormindo. Em contrapartida, um dia antes de chegarmos ao Canadá, ocorrera um atentado terrorista de “supremacistas brancos”, que são verdadeiros fundamentalistas cristãos.
A recente eleição de Donald Trump tinha aberto as portas do inferno e muitos desses indivíduos sentiram-se “empoderados” para saírem do armário e apresentarem seu ódio segregacionista contra os “terroristas muçulmanos”; quando, na verdade, os piores terroristas são eles próprios. O ato do supremacista branco consistiu em entrar em uma Mesquita na cidade de Quebec, atirando contra os muçulmanos reunidos para rezar naquela ocasião. O resultado foi um saldo de 6 mortos e 19 feridos, num total de 53 pessoas. O atirador branco se entregou para a polícia local logo depois do atentado. Confessou, orgulhosamente, suas ideologias de extrema-direita, islamofóbicas e de apoio a Trump. As autoridades canadenses pediram desculpas à comunidade muçulmana pelo ocorrido, prometeram redobrar a segurança e ajudaram a abafar as consequências daquela ação. No Canadá, ao contrário do nosso acompanhante muçulmano representar uma ameaça terrorista, ele próprio era um alvo em potencial. Assim como o caso deste “supremacista branco” canadense, é comum vermos o mesmo nos EUA. Portanto, não se tratam apenas de “casos isolados” ou de “pessoas com problemas mentais”, tal como alegou em algumas ocasiões Donald Trump; mas o resultado nefasto das ideologias de direita.
***
        De ônibus de Kingston até Toronto, a viagem dura cerca de 2 horas. Ela seguiu tranquila, sem maiores sobressaltos. Fizemos algumas fotos de registro e acompanhamos a paisagem branca, ora dormindo, ora acordados, até a entrada da maior cidade do país. Ao desembarcarmos do ônibus no Toronto Coach Terminal, caminhamos até o nosso hostel, que se localizava em China Town, o bairro chinês que existe em praticamente todas as grandes cidades da América do Norte. Toronto é muito diferente de Kingston, com um alto nível de urbanização, prédios gigantes, arranha-céus, avenidas largas e um trânsito febril. O nosso hostel era uma casa adaptada, tipicamente inglesa, numa pacata rua de China Town. No nosso primeiro dia em Toronto não nevou. Havia neve apenas nos canteiros das calçadas – certamente o resultado de alguns shovelings de dias anteriores –, mas em quantidade muito menor do que havíamos visto em Kingston até então.
        O primeiro passeio que fizemos foi visitar a CN Tower – o principal ponto turístico de Toronto. Chegamos lá caminhando e subimos nos seus grandes elevadores acompanhados de vários turistas de todo o mundo e de alguns guias. Em formato oval, a vista panorâmica é deslumbrante, apesar do frio que fazia e do clima um pouco nublado. De cima da torre se pode ter uma breve noção do tamanho da cidade, do Lake Ontario e das inúmeras avenidas e viadutos que cortam a cidade de ponta a ponta, com um trânsito frenético. Kingston se encontra na ponta leste do lago; Toronto quase no extremo oeste. De cima da torre se pode ter uma ideia das dimensões desse lago. Há uma parte com um chão de vidro que causa pavor a todos os turistas que se atrevem a pisar sobre ele. Lá embaixo, vislumbram-se formiguinhas humanas e muitos prédios.
A parte externa seria fantástica caso não estivesse com temperaturas negativas. Conseguimos suportar pouco tempo do lado de fora. Voltando pra dentro, vimos o sol se por, fazendo despontar algumas tonalidades alaranjadas no horizonte, e algumas luzes dos prédios ao redor se acenderem. Saía fumaça de muitos deles, formando um cenário perfeito para as grandes histórias em quadrinho do Batman ou do Homem Aranha. Algumas pessoas, inclusive, veem Toronto como a Nova York canadense, o que, de fato, é bastante plausível.
Descemos da torre e naquela noite jantamos numa pizzaria típica das grandes cidades norte-americanas: adaptadas para comer 1 ou 2 pedaços de pizza, bastante aconchegantes (dado o frio), com wi-fi, e geralmente atendidas por algum indiano. Há, em Toronto – bem como em outras cidades canadenses – redes de restaurantes de vários lugares do mundo: hamburguerias, pizzarias; restaurantes chineses, indianos, árabes; entrecortados pelas redes tipicamente canadenses, como Tim Hortons, Pizza Pizza, LCBOs, etc. Infelizmente não tivemos dinheiro nem oportunidade de poder conhecê-los todos.
***
Durante a nossa estada em Toronto visitamos muitas lojas, cafés, livrarias e parques. No geral, eram multinacionais que existem em todos os lugares do mundo. As lojas de China Town, no entanto, merecem uma atenção especial. São constituídas, em sua maioria, por pequenas mercearias ou por lojinhas de produtos de turismo (camisetas, luvas, tocas, souvenires, etc.). Em alguns pequenos supermercados vemos uma grande quantidade de frutas, grãos e verduras, vendidos a quilo e acumuladas em grandes cestos. Num desses pequenos supermarkets compramos água e pudemos sentir um pouco do mau humor chinês. A atendente do caixa, uma senhora baixinha e enfezada, perdeu a paciência com a minha demora em contar as moedinhas de dólar canadense.
No segundo dia em Toronto presenciamos a nossa primeira “chuva de neve”, que caiu bem no aconchego do nosso lar, quando tínhamos chegado de uma de nossas incursões pelo centro da cidade. Somos viajantes a pé! Foram várias quadras desde o China Town até as docas no Lake Ontario, de onde se pode vislumbrar um lindo cenário e um belo trapiche de madeira, cercado por árvores típicas (naquela época do ano, totalmente desfolhadas) e algumas estátuas de “grandes nomes” do país. Ainda que em menor quantidade do que na França, na Itália e, obviamente, no Brasil, pudemos perceber um aumento considerável de mendigos nas ruas de Toronto; diferentemente de Kingston e outras regiões do Canadá.
Alguns ficam sentados simplesmente, sem falar nada; apenas com uma plaquinha pedindo alguma ajuda. Ao sairmos de uma LCBO próximo a China Town, um mendigo idoso, de espessas barbas grisalhas, usando tocas, luvas e paletó rasgado, se impressionou com a beleza da Thaís e disparou, de forma amável: “Do you love me?”. Ao que foi correspondido: “yes, I do”, para regozijo do velho mendigo. Há no Canadá uma política de silêncio em relação ao aumento da pobreza, tal como em todos os cantos do mundo. Como o número de pobres em relação à população total é proporcionalmente muito menor do que no Brasil, por exemplo, este fato lamentável consegue ser mais bem escondido do que em outros países, mas ele existe e é latente.
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Numa bela manhã dominical de Toronto saímos a caminhar do nosso hostel no China Town e chegamos até o grande cruzamento da University Avenue com a Queen Street, onde se localiza um grande palacete cercado por belas árvores e um imenso jardim (naqueles dias tudo coberto por uma neve fininha). Ali se encontra o Osgoode Hall, uma enorme biblioteca pública que faz parte de um complexo de prédios históricos, onde se encontra também a prefeitura de Toronto. Para chegar até aquele cruzamento movimentado, passamos por um pista de patinação de esqui, onde dezenas de pessoas deslizavam no gelo com crianças, namorados e amigos, usando tocas e cachecóis. Muitos arranha-céus espelhados compõe o cenário no entorno.
Caminhamos muitas quadras em Toronto, passando por diversos prédios e ruas. Fomos de cabo a rabo em diversas avenidas importantes, como nas longas e movimentadas Younge e a Dundas Street, mas, também, na King Street, que possui belíssimas construções históricas. Todas essas vias se encontram no movimentado centro comercial e financeiro de Toronto. Nas nossas caminhadas podíamos vislumbrar enormes vãos de entrada em prédios luxuosos, de onde despontavam outdoors animados em telas de TV (algumas ficavam na rua ou na porta de entrada). Nelas podíamos ver a cotação financeira de inúmeras moedas ou simplesmente propagandas. A luminosidade não apenas deste centro, mas de toda a cidade, é ofuscante – senti a grande diferença da iluminação pública urbana do Canadá e do Brasil. Se compararmos a iluminação de Toronto com a de Porto Alegre, por exemplo, perceberemos que estamos nas trevas!
Numa de nossas caminhadas noturnas, num frio congelante de aproximadamente -2ºC, chegamos na Younge-Dundas Square; isto é, a praça que se localiza no famoso cruzamento das duas grandes “ruas”. Esta praça possui grandes telas que anunciam propagandas, investidores, notícias; enfim, projetam uma grande iluminação sobre todos os transeuntes, transformando o cenário numa cópia da Times Square de Nova York. Chegamos lá por caminhos tortuosos: adentramos um gigantesco shopping que foi nos levando por muitos andares e lojas (e, sobretudo, nos dando calor, pois caminhar muito tempo na rua é bastante complicado e nos faz perder muita energia); quando saímos do shopping sem querer demos de cara com a praça. Tido como o local onde a cidade se torna viva, é conhecida também por ser um entroncamento secular e histórico, onde Toronto se torna vibrante e o caminho para destinos ecléticos[iii].
Muita gente entrava e saía pelas portas do shopping; e outras tantas transitavam pelas ruas. Nos chamou a atenção um ativista negro que se encontrava bem na porta de saída, quase no meio da rua, falando em um megafone e oferecendo um Fanzine que abordava as questões do movimento negro. Aquilo me chamou muita atenção, por isso nos aproximamos dele e pedimos um exemplar. Ele falou muitas coisas em inglês que eu só consegui entender a metade, mas compreendi que o Fanzine era vendido e que se tratava do movimento negro. Perguntei o valor e ele disse que vendia por um “preço solidário”. Juntei o que pude (5 dólares canadenses) e paguei o rapaz, que não se sentiu muito contente com o valor recebido. Com o meu mau inglês, lamentei e expliquei que vínhamos do Brasil, onde as condições econômicas não eram as melhores; pedi compreensão, pois era o valor que eu realmente poderia dar. Ele se resignou, falou mais algumas coisas e depois nos despedimos.
Lendo o seu Fanzine alguns dias mais tarde, achei-o bastante fraco de conteúdo, embora progressivo para as condições do Canadá – um país que parece não ter movimentos sociais. Existiam alguns artigos interessantes que abordavam a exploração dos negros a partir da escravidão e da desigualdade resultante disso; porém, havia outros bastante confusos que pareciam cultuar algo místico ou mesmo um tanto monárquico. Durante a nossa estada em Toronto, este ativista do movimento negro e uma pequena manifestação contra o uso de peles de animais em roupas de grife na frente de um shopping foram as únicas manifestações sociais que vimos. Também presenciamos um breve protesto – talvez de funcionários públicos – em frente ao fogo do parlamento canadense, em Ottawa, cujo frio insuportável o manteve firme apenas por 1h.
Cabe uma nota importante aqui: Toronto é a cidade da poetiza feminista indiana Rupi Kaur, que escreveu belíssimas obras com uma nova estética, inovadora e moderna, despertando para a poesia novos contingentes de seres-humanos; em especial, de mulheres (algumas alunas da escola pública brasileira leem suas obras). Infelizmente não a encontramos em nenhuma esquina ou escrevendo em um café.
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Nos nossos últimos dias na maior cidade do Canadá fomos visitar o bairro conhecido como Old Toronto, onde abundam prédios históricos e grandes edifícios de tijolos vermelhos ao estilo de Nova York ou Chicago dos anos 1940. De lá é possível ver muitos arranha-céus e, como não poderia deixar de ser, a CN Tower. No meio deste cenário despontam igrejas antigas e de arquitetura única, como a catedral anglicana de Saint James. Há uma visível disputa entre as igrejas protestantes e católicas no Canadá (assim como na Inglaterra também). Cada igreja ou catedral possui uma descrição sobre a sua orientação religiosa. A catedral de Saint James é muito bonita esteticamente. Com tijolos amarelos, alaranjados e marrons, e uma torre vastíssima, que supera a altura de muitos edifícios do entorno, traz ares medievais ao bairro antigo de Toronto. Pudemos visitá-la por dentro e pegamos seus folhetins; um deles é uma espécie de jornal mensal da igreja, batizado de The Cathedral Newsletter.
No outro folheto que apresenta a sua história, podemos ler que “há 272 igrejas em 217 paróquias da diocese, sendo que mais de 100 dessas estão dentro dos limites da cidade de Toronto (...) Em 1791, o parlamento britânico aprovou o The Constitutional Act, separando o Canadá em duas partes a partir do Rio Ottawa: o Baixo Canadá, majoritariamente francês; e o Alto Canadá, que deveria seguir o modelo inglês. John Graves Simcoe foi indicado como o governador do Alto Canadá e um dos responsáveis por achar um local adequado e estável para a sua capital. O local que é hoje a cidade de Toronto foi o escolhido e ele chegou aqui com sua família em 1793”[iv].
Com poucos habitantes e muito trabalho a fazer, Simcoe escreveu no seu diário em 1797 sobre a chegada do primeiro padre residente e como as necessidades de colonização daquela terra colocou de lado as tarefas de organização da congregação religiosa. O parlamento local e o forte militar seriam os primeiros edifícios a serem construídos; o parlamento serviu de sede para a Igreja durante 10 anos antes da primeira igreja ser construída na região, cujas portas só foram abertas na páscoa de 1807. Sob o bispado de John Strachan foi construída uma igreja ainda bastante rudimentar, criticada por ser muito feia e desprovida de uma torre. A construção deste período sobreviveu à guerra de 1812 e a um incêndio em janeiro de 1839, quando foi reconstruída, aí sim, com uma torre central. Porém, não escapou de um novo incêndio em 1849, o que possibilitou sua reconstrução com uma torre ainda maior, podendo refletir o crescimento da cidade. A partir daí, a reconstrução foi projetada no estilo gótico que conserva até hoje, com tijolos da indústria local e pedras de Ohio. A Catedral de Saint James está aberta na sua forma atual desde 1859 e possibilita a reunião de até 2 mil pessoas, realizando missas e rituais religiosos tanto no espaço interno quanto nos seus grandes jardins externos, muito utilizados durante o verão.
O folheto conclui a apresentação da igreja com uma declaração do reverendo responsável pelo templo, afirmando que lá é um lugar “para o diálogo e ação em questões sociais e políticas”. Contudo, o Canadá não é um país apenas católico, anglicano ou muçulmano. Operam lá outras “religiões” um tanto exóticas.
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        Querendo chegar a pé até o bairro conhecido como Little Italy – empreitada que não conseguimos realizar –, partimos de China Town por uma grande avenida e desembocamos em uma esquina repleta de lojas comerciais, onde despontava um pequeno estabelecimento que tinha uma banca com livros em exposição. Ao lado, podíamos ler: Free Books! Paramos repentinamente para observar do que se tratava. Percebemos que existia apenas um único livro grátis, intitulado The laws of the sun – one source, one planet, one people. Este livro era, na verdade, o porta-voz de uma espécie de igreja de uma nova religião, chamada curiosa e contraditoriamente de Happy Science, e dirigida por um guru japonês de nome Ryuho Okawa, apresentado como “autor de mais de 100 milhões de livros vendidos (ou dados?) no mundo inteiro”. A banca com os livros estava totalmente ao léu, embora estivesse junto um pequeno panfleto que apresentava a nova seita e convidava a entrar para conhecer a Happy Science Toronto. Quando percebermos que poderia se tratar de uma dessas igrejas que logo nos colocaria em contato com um “missionário catequizador”, pegamos mais que depressa um exemplar e nos pusemos em marcha (por que somos, na verdade, um pouco bichos-do-mato).
        A leitura do livro foi, contudo, bastante acessível e agradável para mim, pois está escrito em um inglês simples e claro. Ele apresenta uma nova e curiosa religião que mistura elementos do budismo, hinduísmo e do espiritismo. Um sincretismo religioso que reflete bem não apenas o Canadá, uma vez que lá é o lar de muitos imigrantes chineses, indianos árabes e europeus; mas, também, os tempos modernos. Como toda religião tenta modelar o mundo de acordo com seus princípios, a Happy Science procura recontar a história humana a partir de muitas eras perdidas e reinstaura uma série de práticas muito semelhantes às do budismo, falando até mesmo em “verdade de Buda” e “caminho óctuplo para a iluminação”. Possui uma curiosa divindade – provavelmente o sucedâneo de deus – que é um grande espírito benévolo que atende pelo nome de El Cantare. Seria interessante participar de um culto e um debate sem compromisso para conhecer melhor a doutrina. Porém, o tempo era escasso e o território canadense gigantesco.
        Numa segunda feira gelada, fizemos nossas malas e fomos até o terminal de ônibus de Toronto, de onde embarcamos direto para Montreal.

De Ontario à Quebec
        Esta foi, seguramente, a nossa maior viagem no território canadense. Passamos quase o dia todo dentro daquele ônibus que nos levou de Ontario (Alto Canadá) até Quebec (Baixo Canadá). Quando passa por Kingston, a autoestrada começa a costear o Saint Lawrence, proporcionando belas cenas brancas do inverno canadense. Chegamos no fim da tarde em Montreal, quando o sol já tinha se posto e o frio aumentado assustadoramente, prenunciando uma nova tempestade de gelo.
        Tocqueville, que visitou a América do Norte durante o século XIX, afirma que “é nas colônias que melhor se pode examinar a fisionomia do governo da metrópole, porque é nelas que geralmente todos os traços que a caracterizam se reforçam e se tornam mais visíveis (...) No Canadá, uma infinidade de obstáculos que os fatos anteriores ou o antigo estado social opunham, aberta ou veladamente, ao livre desenvolvimento do espírito do governo, não existiam. A nobreza quase não se fazia presente ou pelo menos havia perdido quase todas suas raízes; a Igreja não tinha mais sua posição dominante; as tradições feudais estavam perdidas ou obscurecidas; o poder judiciário já não estava enraizado em antigas instituições e antigos costumes. Nada impedia o poder central de entregar-se a todas suas inclinações naturais e de moldar todas as leis de acordo com o espírito que o animava. (...) De fato o Canadá é a imagem do que sempre se viu lá. Dos dois lados estamos em presença dessa administração quase tão numerosa quanto a população, preponderante, atuante, regulamentadora, coercitiva, querendo prever tudo, incessantemente ativa e estéril. (...) Nas duas colônias [i.e., a francesa e a inglesa] chega-se ao estabelecimento de uma sociedade inteiramente democrática; mas aqui [França], a igualdade mistura-se com o governo absoluto; lá ela se combina com a liberdade. E, quanto às consequências materiais dos dois métodos coloniais, sabe-se que em 1763, época da conquista [por parte da Inglaterra], a população do [Baixo] Canadá era de 60 mil pessoas e a das províncias inglesas era de 3 milhões”[v].
        Ainda que haja trechos exagerados, Tocqueville dá uma ideia geral das diferenças políticas e sociais na formação do país. A chave para compreender o Canadá é esta divisão entre as províncias inglesa e francesa, que marca toda a sua História e fornece a sua principal característica civilizacional. Mesmo com a “conquista” da província francesa em 1763 pela Inglaterra, a população não deixou-se colonizar culturalmente, o que gerou um grande problema que se estende até a sua resolução provisória do final do século 20, quando foi promulgada uma nova constituição; isto é, pelo reconhecimento de “um país, duas línguas”. Até lá existiu muito conflito político e físico, o que resultou na expressão conhecida como “dois nacionalismos” e no surgimento de um Partido de Quebec. O nacionalismo do Canadá francês sempre foi uma força cultural, social e, em alguns momentos históricos, também política[vi]. Segundo Bothwell, apesar do francês dominar a política municipal e provincial em Quebec, o inglês dirigia a economia. Até 1940 era uma tradição que o secretário das finanças de Quebec – o ministro da economia provincial – fosse inglês porque, “afinal de contas, é a língua dos negócios”[vii]. Apesar disso, houveram tentativas de tornar Quebec independente do Canadá, chegando até mesmo a envolver personalidades mundiais, como Charles De Gaulle.
        Pudemos comprovar que muitas pessoas em Montreal – sobretudo das classes mais baixas – realmente não falam inglês, apenas francês. Foi o caso da camareira do nosso hotel, que demonstrou certo pavor ao ser questionada se falava inglês. O balconista, por sua vez, falava inglês com um forte sotaque, o que me ajudava bastante na comunicação (ele brincava com o sobrenome brasileiro da Thaís sempre que nos via). Apesar de tudo, pela convivência, grande parte da população é tencionada a imiscuir-se na língua da província vizinha, o que proporciona um enriquecimento cultural de todo o país.
        Foi desembarcando na rodoviária de Montreal e pegando nosso primeiro taxi que descobrimos que o taxímetro canadense corre mesmo quando o carro está parado. Chegamos ao nosso hotel no Quartier des Spetacles, na Rue Sainte-Catherine com a noite fechada e fria. O nosso bairro e a nossa rua eram bastante ricos em atrações culturais e comerciais: o quarteirão possuía museus e casas de show; enquanto que a rua abrigava inúmeras lojas, shoppings e unidades da Dollarama, da Tim Hortons e outras redes.
        Não perdemos tempo! Largamos as coisas no hotel e fomos conhecer a noite de Montreal, que estava congelante, porém muito bela. Havia nas proximidades do nosso hotel muitas igrejas impressionantes, construídas com pedras e ostentando arcos em estilo ogival. Sem dúvida, de todas as cidades canadenses que conheci, Montreal foi a que mais me agradou pelo charme e pela beleza peculiar (desconte-se o fato de que não conhecemos Quebec City, Vancouver, nem outras cidades menores). Montreal se iniciou a partir de três grandes montes – sendo o maior deles o “Mont Royal”, que deu o nome à cidade – localizados numa grande ilha do Rio Saint Lawrence. Com o tempo ela se espalhou para as margens externas e foi crescendo, até se tornar o maior centro urbano da província de Quebec, chegando a sediar as Olimpíadas de 1976.
Muitos dos seus bairros já foram cidades independentes, com estilos que variam do francês colonial, presente no bairro Vieux-Montréal, com ruas pavimentadas à base de pedras arredondadas e abrigando a gótica Basílica de Notre-Dame no centro – uma reprodução quase exata da Notre-Dame de Paris –, ao boêmio Plateau. Pelo tempo que ficamos só pudemos conhecer a Vieux-Montréal e o seu porto velho, que conservam os típicos traços das comunas francesas. Passeamos mais de uma vez pelos arredores da Notre Dame, onde caminhamos na sua praça central pisando em uma camada de neve fininha.
        Na nossa primeira noite em Montreal vimos uma freezing rain violenta, que lançou grandes flocos de neve sobre as nossas cabeças, levando os transeuntes a correrem pra casa ou para algum abrigo buscando aquecimento. Tudo isso nos propiciou belas fotos. O nível de neve que caiu naquela noite acumulou grandes crostas que chegaram a tapar a superfície de todas as praças das redondezas.
        Um dos passeios mais bonitos que fizemos foi numa bela manhã de sol, após a tempestade de neve, em que o céu estava num azul cristalino e pudemos, então, caminhar pelas margens do Rio Saint Lawrence, atraídos pelos belíssimos cenários dos quais não esquecemos até hoje. Nesta mesma manhã visitamos lojas e livrarias na Rue Saint-Catherine, onde vislumbramos um pouco da vida diária montrealense. Fizemos algumas compras, tomamos vinho de Quebec e depois terminamos o percurso no parlamento de Montreal, que está sediado em um grande e belo edifício construído com elementos de arquitetura moderna; como, aliás, observamos em vários museus e teatros da cidade.
        Por fim, após um breve tempo de desfrute de Montreal, fomos até a sua rodoviária, de onde embarcamos para Kingston. Lá nos aguardava outra parte da minha família que tinha recém chegado do Brasil.

De Montreal à Kingston
        De volta a Kingston pudemos realizar outras atividades culturais e desportivas, tipicamente canadenses, como participar de uma aula na Queen’s University e assistir a um jogo de hóquei no gelo. E, conjuntamente com novos membros da família recém chegados – como o meu pai e o meu irmão mais novo, Mateus –, preparamos uma visita à capital do país, Ottawa.
        Meu irmão passava a maior parte do tempo atendendo no hospital ou, então, na universidade. Ele podia se inscrever em algumas disciplinas de cursos específicos. Passou a frequentar uma cujo nome era “Managing presentation anxiety”; isto é, Gerenciando a ansiedade em apresentações públicas. Quem ministrava as aulas era uma senhora, magra e alta, de cabelos grisalhos, que se vestia de forma social, mas que falava desenvoltamente. Foi muito interessante a experiência, não apenas por propiciar o contato com os estudantes e as classes da universidade, mas por demonstrar quais as preocupações do ensino universitário do país. Pela minha experiência acadêmica brasileira, nunca vi uma disciplina como essa: te ensinar a relaxar e a ter um bom desempenho em apresentações públicas; trocando em miúdos, isso socializa a capacidade oratória e de convencimento social, treinando o nosso controle emocional.
        Alguns trechos do polígrafo que trouxe comigo desta aula atestam partes da lição: “pense em conexão, não em perfeição”; “o que a audiência precisa ouvir de mim hoje?”; “estratégias para reduzir a ansiedade nas apresentações públicas”; “relação corpo-mente na estratégia de superação da ansiedade”. Seguia uma lista de exercícios de meditação, concentração, auto-declarações (eu sei, eu treinei, eu posso, eu vou conseguir...) e relaxamento a partir da respiração.
        Depois daquela aula fomos pra casa. Estávamos cansados! Além do frio ser extremamente desgastante, havia também o fato de termos ouvido uma aula em inglês por mais de 1 hora.
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        Naquela mesma semana assistimos com a minha cunhada e os meus sobrinhos um jogo de hóquei no ringue de patinação de Kingston: um verdadeiro clássico entre o time da Queen’s university e uma cidade vizinha. Realizado num grande ginásio do centro da cidade que possuía um “campo” de gelo ao centro, onde uma máquina de “encerar” passava de tempos em tempos para conservar o gelo do chão. Acima, havia letreiros de placar suspensos bem no meio e, nas laterais, 4 arquibancadas com torcidas bastante animadas. Como não poderia deixar de ser, lá também existia o famoso órgão musical que toca a sua clássica escala para animar o time da casa.
        Não assistimos ao jogo sozinhos, mas com vários regimentos do exército canadense que, ao que tudo indica, tinha ganhado um dia de folga. Vestidos com suas roupas camufladas, a maior parte dos soldados era bastante jovem e possuía, também, mulheres entre os recrutas. Demonstravam bastante animação, sendo que alguns bebiam cerveja e conversavam animadamente em francês. Duas ou três estudantes da universidade aumentavam o tom de sua histeria para chamar não apenas a atenção dos jogadores, mas, também, de alguns soldados (seria o fetiche do uniforme militar?).
        Cabe algumas observações sobre o exército canadense. Como parte fiel do império britânico, ele sempre serviu como “aliado” nas guerras travadas pela Inglaterra. Foi assim nas guerras mundiais; foi assim na sua adesão à OTAN e em muitas intervenções militares na África. No final da 1ª Guerra Mundial as tropas canadenses ocuparam Vladivostok e Murmansk como parte da intervenção militar britânica contra a Revolução Russa[viii]. Durante a “guerra fria” o Canadá esteve todo o tempo alinhado servilmente não apenas à Inglaterra, mas também aos EUA.
        Como se pode ver, eu fiquei mais atento ao que acontecia nas arquibancadas do que no ringue de patinação. No entanto, me lembro mais ou menos bem que o jogo terminou empatado em 2 x 2.

De Kingston à Ottawa
        Uma das principais vantagens da localização de Kingston é a sua proximidade com a capital do Canadá. A cerca de 1h30min de carro, é uma viagem absolutamente tranquila. Ao longo da semana combinamos o que faríamos lá, como visitar o festival de inverno da cidade. Para isso, reservamos nossos hotéis e hostels pela internet e alugamos um carro (meu irmão já possuía o dele). Partimos numa sexta feira fria, embora de céu azul, em um comboio de 2 carros com destino à capital do país.
        Ao longo da estrada, paramos para comer numa espécie de paradeiro de viajantes e caminhoneiros. Era um grande complexo comercial, repleto de restaurantes. Perto das grandes mesas do estabelecimento haviam telas digitais onde se podia consultar um mapa e verificar as rodovias. Quando fomos voltar aos automóveis para seguir viagem, meu pai pensou ter perdido a chave do nosso carro por um momento, o que causou uma comoção generalizada e o pensamento negativo de que a viagem terminaria ali. Porém, para nossa sorte, a chave apenas caiu em um das costuras abertas do seu casaco de neve.
        Chegamos em Ottawa no início da tarde daquele mesmo dia. Eu e Thaís ficamos num hostel de “mochileiros”, enquanto que o resto do pessoal ficou num hotel próximo à avenida central. Ottawa é uma cidade muito bonita, embora pequena para ser a capital de um país tão grande como o Canadá. Ela se constitui de grandes construções modernas e antigas, sendo que algumas são semelhantes a imponentes castelos medievais. Em muitos destes edifícios históricos funcionam embaixadas de outros países, como a dos EUA, que fica próxima a uma escadaria que leva à uma praça na lateral do parlamento canadense.
        O parlamento do Canadá se localiza na Wellington Street; uma rua que perpassa por todo o Parliament Hill. Com uma grande torre central de mais de 110 metros, que ostenta um relógio no meio e um telhado longo e pontiagudo onde tremula uma bandeira do Canadá, o prédio do Parlamento é histórico, repleto de frisos e detalhes arquitetônicos – uma verdadeira obra de arte! É ali que funciona a “câmara dos comuns” e o Senado, além de abrigar a grande biblioteca do parlamento. Ele possui um imenso pátio de frente, bem cuidado, com uma tocha acesa no caminho de entrada, quase lembrando uma pira olímpica. Ao lado direito se encontra uma bela igreja gótica, com pedras talhadas, frisos em tom marrom acinzentado, arcos ogivais e um telhado verde claro com pequenas janelas triangulares. Foi neste espaço que presenciamos um protesto contra o governo, embora não tenhamos conseguido levantar mais detalhes em razão do frio, que nos obrigou a desistir de explorar todo o Parliament Hill. Em todas estas construções há uma inegável influência da arquitetura londrina. Ao fundo do parlamento está o admirável Rio Ottawa, que divide as províncias de Ontario e Quebec.
        Nas noites de verão é projetado sobre as paredes do prédio do parlamento um show de luzes que conta a história do Canadá com uma narração bilíngue. Ocorrem também festivais de música, com apresentação de bandas e orquestras. No inverno acontece o show de luzes de natal e o festival de inverno no Rideau Canal, que é congelado artificialmente (ou naturalmente, dependendo das temperaturas) para que a população possa esquiar nele e apreciem shows, apresentações musicais e artísticas[ix]. Canadenses e turistas do mundo todo afluem à Ottawa para participar deste famoso festival, como foi o nosso caso. Eu e Thaís preferimos visitar o parlamento – onde passamos um dos maiores frios da nossa vida, com a ponta dos dedos do pé chegando quase a congelar – e uma livraria num centro comercial nas proximidades, onde adquiri o livro de Robert Bothwell.
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        Foi em 1867 que Ottawa se tornou a capital do Canadá, desbancando Kingston. No Wikipédia podemos ler que “O Canadá é uma federação composta por dez províncias e três territórios, uma democracia parlamentar e uma monarquia constitucional, com a rainha Isabel [Elizabeth] II como chefe de Estado — um símbolo dos laços históricos do Canadá com o Reino Unido – sendo o governo dirigido por um primeiro-ministro, cargo ocupado atualmente (2019) por Justin Trudeau. É um país bilíngue e multicultural, com o inglês e o francês como línguas oficiais. Um dos países mais desenvolvidos do mundo, o Canadá tem uma economia diversificada, dependente dos seus abundantes recursos naturais e do comércio, particularmente com os Estados Unidos, país com o qual o Canadá tem um relacionamento longo e complexo (este relacionamento certamente obrigou o Canadá a se especializar não apenas no comércio, mas na sua própria produção de mercadorias). É um membro do G7, do G20, da OTAN, da OCDE, da OMC, da Comunidade das Nações, da Francofonia, da OEA, da APEC e das Nações Unidas”.
        Excetuando em certo ufanismo, essa descrição define genericamente bem o país que procurei apresentar nesse texto. Herdeiro da mentalidade e dos costumes britânicos, pode-se dizer, seguramente, que o Canadá é um país conservador e crente nos benefícios miraculosos do “livre mercado”. Isso perpassa toda a obra de Robert Bothwell. Justin Trudeau, por exemplo, é representante do Partido Liberal. A estrutura política do Canadá segue a mesma lógica do Reino Unido, numa disputa eterna entre conservadores e liberais. Por outro lado, o aspecto positivo do multiculturalismo canadense tende a ser ceifado pelo conservadorismo herdado da mentalidade comercial britânica, uma vez que o mercado padroniza tudo. Em todos os órgãos internacionais que participa – como a ONU, OTAN e OEA – age mais ou menos como um subordinado da Inglaterra e dos EUA.
        Segundo Bothwell, a forma da História do Canadá tem sido sempre relacionada com as ideias e políticas que cruzam a fronteira sul do país, assim como o fluxo e o refluxo do liberalismo e do conservadorismo durante o século XX, sem exceção[x]. Este liberalismo é bastante questionável, uma vez que impera, na prática, uma submissão aos interesses e desmandos do mercado mundial, o que gera, inevitavelmente, um novo tipo de conservadorismo – sem falar na sua posição política de submissão e reverência à monarquia inglesa. Isso se traduz, na prática, pela submissão aos EUA na política internacional. Parte disso é o resultado da pressão exercida pelos estadunidenses sobre as reservas naturais do Canadá, que são tencionadas a se tornar parte do mercado de energia dos EUA. Em termos de renda dos trabalhadores, o Canadá sempre foi, em muitos sentidos, uma réplica menor do capitalismo estadunidense – incluindo a relação com as centrais sindicais e os sindicatos mafiosos que organizam o trabalho e a produção nas grandes fábricas de automóveis.
        Fazendo fronteira com os EUA, os canadenses têm estado sempre em uma excelente posição para absorver e ser influenciado pelo que acontece no país vizinho. A cultura norte-americana, seus presidentes e a sua política interna, muitas vezes, tornam-se extremamente populares no Canadá. Isso é facilitado pelo fato das principais cidades canadenses estarem situadas ao sul, literalmente coladas à fronteira com os EUA. No seu livro, Robert Bothwell demonstra claramente que alguns ideólogos estadunidenses tentam forçar uma diferença econômica entre o Canadá e os EUA, como se o primeiro fosse uma sociedade monárquica, totalmente orientada pelo governo e pela intervenção estatal, além de supostamente subordinar o indivíduo à comunidade; enquanto que o segundo seria uma república de liberdade de comércio e individual. Como “liberal” que é, Bothwell não pode deixar de se sentir ofendido. Porém, afirma, categoricamente, que os estadunidenses também subsidiam estradas de ferro, assistências técnicas de todo o tipo, pequenos e grandes fazendeiros, além de outras práticas e formas de intervenção do governo na economia[xi].
        Apenas a estúpida elite brasileira e dos demais países semicoloniais se submetem a este dogma liberal de “não intervenção do Estado na economia” que não é praticado por quem o prega. O Canadá, conforme atesta Bothwell, também não pratica tal dogma. Basta olhar para a disputa pelo mercado de aviação que a canadense Bombardier trava com a brasileira Embraer. Enquanto os governos brasileiros trabalham para entrega-la de bandeja ao amo imperialista, privatizando-a totalmente, a Bombardier é subsidiada e conservada pelo Estado canadense – portanto, não cumpre os dogmas neoliberais que aparentemente sustenta[xii]. Além disso, pude ver um telejornal em Montreal abordar publicamente este assunto, tratado como prioridade nacional, enquanto que no Brasil fica restrito apenas aos setores empresariais e às quatro paredes dos gabinetes de governo.
        O mesmo poderia ser dito da relação de “livre comércio” entre EUA e Canadá. Enquanto o Canadá repetidamente assegura o livre acesso dos EUA ao seu mercado de madeira macia (um dos grandes produtos de exportação do Canadá, graças às suas conservadas florestas do norte); os EUA, por sua vez, dificultam o acesso do Canadá ao mercado interno estadunidense ou sobretaxam seus produtos a partir de um poderoso truste da indústria da madeira, que obviamente exerce lobby sobre o governo e o congresso de Washington. Bothwell classifica este monopólio como um bizantino sistema legal, que obviamente significa uma brutal intervenção política e governamental na economia[xiii].
Estes fatos demonstram claramente que não existe mais “livre comércio” ou “livre mercado”; e os países periféricos – como o Brasil – são os que mais sofrem com estas ideologias de direita e com as arbitrariedades do poderio econômico (embora suas elites jamais abrirão mão de ser suas sócias menores nas economias periféricas). O Canadá, por sua vez, não pode ser considerado um país imperialista, ainda que se esforce para isso. Está numa escala intermediária entre os países imperialistas e os periféricos, que são dependentes e semicoloniais.

De Ottawa à Kingston
        Voltamos à Kingston para desfrutar os nossos últimos dias no Canadá. Tivemos que apressar a volta de Ottawa em razão da previsão de uma forte nevasca que se avizinhava. No meio do caminho de volta a freezing rain começou, espalhando grandes flocos de neve e tornando toda a superfície da pista branca, apagando perigosamente os traços da autoestrada. Mais do que de pressa caminhões passavam por ela largando sal e fazendo shoveling para facilitar a vida dos motoristas. Neste retorno acompanhamos um desses caminhões trabalhando.
Nos nossos últimos dias em Kingston fomos à LCBO, revisitamos o centro comercial da cidade para fazer algumas compras e, para aproveitar o aluguel do carro, preparamos uma excursão às ilhas do Rio Saint Lawrence, chamadas de Thousand Islands, que ficam próximas ao desaguadouro do rio no Lake Ontario. São regiões belíssimas, repletas de casas de veraneio, que naquela época do ano tornam-se semi desertas. O dia estava radiante, com um céu azul resplandecente. Pudemos chegar até elas atravessando algumas pontes e vencendo pequenos e grandes montes de neve acumulada. A visão do rio parcialmente congelado e de algumas casas na sua beira forma um cenário perfeito para a pintura de um quadro. Chegamos a nos arriscar caminhando sobre algumas partes congeladas do rio junto a um grupo de aves. O rio demarca a fronteira com os EUA. Do outro lado dele podia-se vislumbrar algumas casas do país vizinho. Quando voltávamos para Kingston, pegamos uma via errada que nos levou até um posto de migração estadunidense, o que, obviamente, impedia a nossa passagem, já que autoritariamente o nosso visto havia sido negado.

De Kingston à Toronto II
        Passados estes dias agradáveis e peculiares no Canadá, cumprimos nossa missão – que era levar minha irmã até o seu destino final e decifrar um pouco esta esfinge do norte; assim, estava na hora de voltar à pátria amada para sentir um pouco de calor tropical, humano e linguístico. Meu irmão nos encarregou de trazer de volta 2 grandes malas cheias de pertences, objetos e roupas supérfluos, o que praticamente dobrou o nosso peso e o nosso trabalho para a volta.
        Chegamos no aeroporto de Kingston para viajarmos até Toronto, de onde partem a maioria dos aviões para as viagens internacionais. Depois de esperarmos muitas horas e o meu irmão e o meu pai já terem ido embora, uma atendente da Air Canada nos disse que os voos para Toronto haviam sido cancelados, o que nos obrigava a ir de trem até Toronto. Além de já não termos mais nenhum tostão furado de dólar canadense, tínhamos que ir até a estação de trem de Kingston, local que desconhecíamos por completo. Graças a uma generosa canadense que virou nossa amiga, Denise S., que, estando na nossa frente na fila, percebeu o drama e nos acolheu, pudemos ir até lá. Ela ia para Alemanha, e ficou inteiramente curiosa para saber o que dois brasileiros estavam fazendo em Kingston durante o auge do inverno.
        Apesar da grande correria que isso nos causou, a viagem de trem foi tranquila e confortável. Conversamos um pouco com Denise, que também trabalhava na Queen’s University. Comentei a ela que estávamos visitando meu irmão, que havia se mudado ao Canadá para trabalhar na sua universidade. Rapidamente ela olhou no seu tablet e me mostrou a foto do meu irmão com os seus dados pessoais e profissionais. Todo esse trajeto nos foi muito custoso porque tínhamos cerca de 5 grandes malas para cuidar, mas com a ajuda de Denise chegamos até a estação de trem de Toronto, onde ela também nos ajudou a encontrar o transfer que conduz ao aeroporto internacional Lester B. Pearson. Nos despedimos nos portões de embarque que inevitavelmente dividiam os nossos destinos. Nos adicionamos no facebook e eventualmente trocamos mensagens e acenos.

Do Canadá ao Brasil: da ignorância a um pouco de conhecimento!
        Voltar ao país de origem é como voltar a falar a língua mãe: proporciona uma certa comodidade e tranquilidade. Por outro lado, viajar ao exterior não apenas expande nossos horizontes – quando estamos imbuídos de um espírito aventureiro, de espantosa curiosidade infantil e de abertura ao diálogo cultural –, nos enriquecendo em todos os sentidos, mas também nos faz olhar de forma diferente para o nosso próprio país e para a nossa própria cultura. Voltei transformado do Canadá! A partir dessa experiência, novas portas e curiosidades pessoais se abriram.
        O “norte verdadeiro, forte e livre”, também é “gigante pela própria natureza” e certamente ficará cada vez mais “em guarda” para ocupar o seu lugar no mundo – infelizmente, para reforçar os dogmas neoliberais de mercado e o conservadorismo britânico...



NOTAS


[i] BOTHWELL, Robert. The penguin history of Canada. Penguin Canada, Toronto, 2007.
[ii] TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção Folha Grandes Nomes do Pensamento (número 11) – Editora da Folha de São Paulo, 2015.
[iii] Official Toronto Visitor Guide 2016; neighbourhoods, maps, attractions & more.
[iv] Folheto recolhido no local, intitulado: “The Cathedral Church of St. James – Diocese of Toronto – Anglican Church of Canada”.
[v] TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção Folha Grandes Nomes do Pensamento (número 11) – Editora da Folha de São Paulo, 2015.
[vi] BOTHWELL, Robert. The penguin history of Canada. Penguin Canada, Toronto, 2007.
[vii] Idem.
[viii] Idem.
[ix] Ottawa visitor guide 2016-2017; #MyOttawa; www.ottawatourism.ca
[x] Idem (página 534)
[xi] Idem (página 234)
[xiii] BOTHWELL, Robert. The penguin history of Canada. Penguin Canada, Toronto, 2007 (página 525).

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