domingo, 4 de setembro de 2022

Na questão de Taiwan a China é imperialista?

 

Um imperialismo em decadência não pode simplesmente ruir em silêncio: ele precisa tentar se reerguer de qualquer maneira, sobretudo quando inúmeros negócios lucrativos de empresas gigantescas dependem dele. É o que se passa com os EUA na atual conjuntura histórica. No início de 2022 trabalhou incessantemente para provocar a guerra contra a Rússia através da Ucrânia e da OTAN, suas marionetes. Agora, uma vez que atingiu parcialmente os seus objetivos de sabotar o mercado de gás europeu, bem como as relações entre Europa e Rússia[1], desloca o eixo geopolítico para o estreito de Taiwan visando iniciar novas provocações contra a China. Os EUA pretendem com isso iniciar uma campanha preventiva em relação a um problema muito antigo, vendido como novidade: a questão de Taiwan!

         A cobertura jornalística Ocidental centra-se nas demonstrações militares da China e de Taiwan, com direito a lançamento de mísseis e manobras de porta-aviões. Seria tudo isso a demonstração do tão falado imperialismo chinês?

         Declarações de políticos e personalidades ocidentais, amplificadas pela grande mídia, sustentam que em relação à Taiwan, o governo chinês “copia o roteiro da Rússia na Ucrânia”[2]. Isto é, com esta narrativa procura vincular a ideia de “imperialismo” apenas à Rússia e à China, ao mesmo tempo que esconde as ações políticas provocativas do imperialismo estadunidense, relativizadas ou mesmo exaltadas pela grande mídia. Tudo se trataria, portanto, de um truque discursivo para vender a ação do governo chinês como “imperialismo” e “autoritarismo comunista” contra a pobre ilha de Taiwan, que queria apenas viver em paz na “democracia” mundial dos EUA.

         Vejamos uma declaração deste tipo, bastante ilustrativa: “O procedimento de Pequim lembra os preparativos de Vladimir Putin para a guerra de agressão contra a Ucrânia. Ao longo de semanas, o chefe do Kremlin enviou tropas para as fronteiras do país vizinho, igualmente camuflando como manobras militares os seus preparativos de guerra. (...) Pequim segue os passos neo-imperialistas de Moscou. Taiwan é uma peça decisiva para a estratégia de expansão imperialista de Xi. Porém ele não está de olho apenas na democracia insular. Paralelamente às atuais manobras militares, o Ministério da Guerra chinês anunciou que durante quatro semanas realizará exercícios semelhantes próximo às Filipinas, onde o mandatário também ambiciona territórios”[3].

         Outro veículo da grande mídia tradicional já classifica a questão de Taiwan como a nova “crise dos mísseis”[4], querendo requentar o discurso de guerra fria em pleno século XXI, transferindo sutilmente o problema para a China e não para a sua verdadeira fonte: as sabotagens do imperialismo anglo-saxão em decadência histórica.

 

Um breve apanhado histórico sobre a questão de Taiwan

         Não há dúvida de que o capitalismo estatal chinês tem se tornado imperialista, ascendendo mundialmente e transformando-se numa grande potência econômica – ainda que isso se desenvolva bem aos moldes da cultura milenar da China, isto é, “comendo quieto”. Basta olhar as estatísticas e perceber a invasão de empresas e ações governamentais chinesas na Ásia, na África e na América Latina. Entre 2000 e 2019, 82 empresas controladas pelo Estado chinês passaram a fazer parte da lista da Fortune, aparecendo no rol das 500 maiores do mundo[5]. Também não restam dúvidas de que o imperialismo chinês vem se colocando à frente de um novo bloco de países (os BRICs) e falando cada vez mais grosso contra os EUA. Em resposta à visita da presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, cinco grandes empresas da China pretendem deixar a bolsa de valores de Nova York[6].

         Contudo, não podemos considerar a ação chinesa em Taiwan como uma ação imperialista, dado que nenhum país do mundo pode ser imperialista contra si mesmo, o que seria uma estupidez ou, então, uma falsificação. É exatamente nisto que aposta o imperialismo estadunidense e a sua “liberdade de imprensa”.

         Em síntese, Taiwan se tornou o refúgio da burguesia chinesa liderada pelo Kuomitang, derrotada na revolução de 1949. Não foi casual que Chiang Kai-shek – a principal liderança do Kuomitang – tenha se deslocado exatamente para Taiwan, onde recebeu todo o suporte político e econômico dos EUA, que imediatamente reconheceram a ilha como a representação oficial da China, inclusive lhe garantindo um assento permanente na ONU em detrimento de Pequim. A partir daí, a fuga de capitais passa a ser um problema econômico central ao longo de todo o próximo período histórico[7] – só estancado e revertido pela reabertura ao capitalismo feita por Deng Xiaoping entre 1976-1986. Mao Zedong denunciava, já em 1958, que “o imperialismo norte-americano invadiu o território chinês de Taiwan e continua a ocupá-lo, já lá vão nove anos”[8].

A título de uma figura comparativa, imaginemos que o povo brasileiro realize uma revolução socialista e a sua burguesia se refugie na ilha de Santa Catarina, recebendo todo o amparo político e econômico do imperialismo anglo-saxão, dizendo que a representação oficial do Brasil não é mais Brasília, mas sim Florianópolis. Além disso, o imperialismo ainda ocuparia o Rio de Janeiro ou São Paulo afirmando se tratar de uma “zona autônoma”, tal como fez com Hong Kong.

Imaginemos que o mesmo se passe na Argentina, com a sua burguesia se refugiando nas Malvinas e recebendo todo o reconhecimento e o investimento necessário para a sua manutenção e reprodução. Como deveríamos agir frente a estes dois casos hipotéticos? Isto é: se Brasil ou Argentina quisessem retomar as suas ilhas legítimas que lhe foram arrancadas à força e utilizadas como pontos estratégicos de sabotagem e ameaça exterior, deveríamos classificar tais ações de que forma?

Ora, é evidente que se trata de uma ação legítima de reincorporação de um território que foi usurpado pelo invasor, mesmo que discordemos política ou ideologicamente do governo ou partido que executa tal ação. A China é um país agredido historicamente pelo imperialismo Ocidental, que foi dividido e humilhado em inúmeras oportunidades desde o século XIX. Tolerar tal divisão imposta pelo imperialismo anglo-saxão seria o mesmo que tolerar o retorno àquela condição.

Uma longa negociação diplomática iniciada pelo governo de Deng Xiaoping, chamada de “um país, dois sistemas”, tratou de iniciar a reincorporação pacífica de Hong Kong e Taiwan ao território chinês. Não casualmente, nos últimos anos temos visto o aumento de uma escalada de sabotagens contra a política de reincorporação de Hong Kong à China[9] – política esta que foi construída em comum acordo com o imperialismo anglo-saxão, mas sabotada por debaixo dos panos no início deste século XXI a partir do método das “revoluções coloridas”. O mesmo se passou com a ilha de Taiwan. O neofascismo trumpista modificou sutilmente a compreensão dos acordos anteriores, uma vez que o deep state norte-americano pretende deter, custe o que custar, a ascensão mundial chinesa e não pode mais contar com o teatro das leis do “livre mercado” para isso, nas quais foram ultrapassados pela economia chinesa. É por isso que procura pretextos para inventar sanções econômicas e políticas contra a China ou contra a Rússia, gerando impasses econômicos e políticos internacionais que são verdadeiras sabotagens.

A insuspeita Revista Exame, da editora abril, aponta que os EUA mudaram gradualmente a sua política em relação à Taiwan: “sob a administração de Donald Trump os EUA suspenderam as restrições aos contatos entre autoridades americanas e seus colegas taiwaneses; mudou sutilmente a formulação de sua política de ‘uma só China’, dando mais ênfase aos compromissos americanos com Taiwan, bem como transferiu sistemas avançados de armas para a ilha. Esses desafios para a China continuaram sob Biden. No ano passado, os fuzileiros navais dos EUA treinaram abertamente com os militares de Taiwan. E em maio passado, Biden sinalizou que os EUA interviriam militarmente se a China atacasse Taiwan (embora a Casa Branca rapidamente recuasse essa declaração)”[10].

 

Os EUA, na pessoa de Nancy Pelosi, ao centro, recebendo a mais alta honraria civil do governo de Taiwan

O desenvolvimento de Taiwan subsidiado pelos EUA

         Uma vez que, após o triunfo da revolução em 1949, Taiwan se tornou o refúgio da burguesia chinesa, sendo a principal responsável pela fuga de capitais do país, a ilha passou, consequentemente, a ser um ponto de apoio preferencial de ameaças e desestabilização da China. Por estes motivos, recebeu maciços investimentos norte-americanos para sustentar esta “independência”, servindo de comparativo entre a “democracia” e a “modernidade” taiwanesa e a “ditadura e o “atraso comunistas” da China. Com o desenvolvimento econômico da China, no entanto, Taiwan foi ultrapassada, mas persiste a demagogia em torno do velho discurso “democracia versus ditadura comunista”.

         Esta receita também foi aplicada na Coréia a partir de 1950-1953, subsidiando e garantindo uma série de benesses econômicas ao sul em detrimento do norte; bem como na Europa com o malfadado Plano Marshall do pós-Segunda Guerra, que significou o investimento preferencial na reconstrução da Europa Ocidental, “capitalista”, em contraposição ao bloqueio econômico à Europa Oriental, supostamente “comunista”[11].

         Durante a vigência do Plano Marshal, algo em torno de US$ 13 bilhões foram “investidos” em assistência técnica e econômica na Europa Ocidental, com baixos juros, visando a recuperação dos países europeus; enquanto que o leste europeu, a URSS e a Alemanha Oriental tiveram que tirar leite de pedra para reconstruir suas economias, sofrendo com o boicote internacional no mercado mundial e com os problemas oriundos da burocratização stalinista.

         A mesma receita foi aplicada em relação à Taiwan, que após a revolução de 1949 recebeu armas de última geração, tecnologia e benesses fiscais de toda a ordem, com a finalidade de se tornar um polo opositor à China “comunista”. Hoje é beneficiária de vultosos investimentos de uma indústria de semi-condutores de fabricantes de chips – fato utilizado como chamariz por setores da mídia Ocidental para afirmar que este seria o principal motivo da tentativa de reintegração de Taiwan à China[12]. Além disso, recentemente recebeu U$1,1 bilhão do governo dos EUA como auxílio militar para se preparar para o próximo período[13].

O resultado do subsídio norte-americano dado à Taiwan é o grande crescimento econômico da ilha, atribuído mentirosamente ao modelo da “democracia Ocidental” e à “superioridade do capitalismo”, quando, na verdade, trata-se de uma política estratégica do imperialismo anglo-saxão para a região, cuja finalidade central é desestabilizar a China e tirar do poder o Partido Comunista Chinês (PCC) para reestabelecer a democracia burguesa e, assim, poder retomar o controle econômico sobre toda a China. Vale lembrar ainda que Chiag Kai-shek governou a ilha pessoalmente através de uma brutal ditadura militar desde 1949, com total apoio e assistência estadunidense, até a sua morte em 1975, quando foi substituído pelo filho.

Uma vez que o Kuomitang foi cooptado pela política de reintegração à China do PCC, o imperialismo estadunidense ajudou a criar e a levar ao poder o Partido Democrático Progressista, que mais corretamente deveria ser chamado de partido pró-EUA, reabrindo as provocações no sentido de retomar a política de “independência” da ilha[14]. Portanto, os discursos de “democracia taiwanesa” versus “ditadura chinesa” são parte da guerra midiática, política e econômica do imperialismo Ocidental, cujo objetivo central é garantir no poder de Taiwan e, também, se possível, na China, partidos “democráticos” como este.

         Grande parte da população de Taiwan e de Hong Kong foi “ocidentalizada” através de benesses econômicas com o objetivo de opô-la à China continental. Enquanto o governo do PCC – mesmo com todos os seus graves problemas – estabeleceu uma política de reincorporação pacífica de Hong Kong e Taiwan à administração continental, o imperialismo anglo-saxão insiste nas provocações “diplomáticas” e midiáticas para desestabilizar toda a região, o que pode redundar em guerra – repetindo o que ocorreu na Ucrânia. Como é um imperialismo em decadência, os EUA não podem agir de outra forma e, portanto, suas ações traiçoeiras de rasgar acordos antigos – como o reconhecimento da política de uma “única China” – serão cada vez mais recorrentes.

         Por estes e outros motivos podemos considerar como infundado o discurso da grande mídia Ocidental de que se trata de imperialismo a legítima ação da China para reincorporar a ilha de Taiwan. No entanto, isso não deve nos fazer esquecer, nem por um segundo, que o imperialismo chinês está em franca ascensão mundial e infiltra-se em distintos continentes, não representando, portanto, a superação do capitalismo, mas, de certa forma, a sua intensificação. Esta é a principal razão da nova provocação estadunidense no estreito de Taiwan para tentar sabotar e conter o meteórico crescimento do dragão asiático, valendo-se para isso, como sempre, dos argumentos e pretextos mais baixos, cínicos e desprezíveis.


 

Referências


[8] TSÉ-TUNG, Mao. O livro vermelho – citações do comandante Mao Tsé-Tung. Martin Claret, São Paulo, 2002.

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