A atual conjuntura, marcada pela guerra entre Rússia, secundada por China – de um lado –, e Ucrânia e OTAN/EUA – de outro –, divide as posições da esquerda e cria a possibilidade para uma reflexão coletiva.
O centro das polêmicas, que termina por
se reduzir a duas posições principais, é o seguinte: um lado apoia direta ou indiretamente a manipulação da
OTAN-EUA sobre a Ucrânia, ignorando esse fato decisivo e condenando as
correntes políticas ou militantes que compreendem o direito da Rússia de se
defender do cerco militar e das provocações que vem sofrendo; o outro setor
apoia a Rússia acriticamente, depositando consciente
ou inconscientemente esperanças de que ela destrua ou, pelo menos limite, o
poder do odiado imperialismo estadunidense (em alguns casos negando que a
Rússia seja ou cumpra um papel imperialista), apontando para a criação de um
“mundo novo”, multipolar.
Nota sobre o nível do debate nas
redes sociais
Como em todo o debate, há grãos de
verdade em ambas posições, mas é necessário observá-los com cuidado e
contrastá-los com o quadro mais amplo. Sabemos que uma posição que ignora fatos
importantes da conjuntura e se coloca como independente de ambos os campos
imperialistas, sendo muito minoritário por entre a classe trabalhadora, pode
cair numa espécie de abstração ou de purismo, mas isso precisa também ser
pontuado e especificado em cada texto e análise concretamente – isto é, precisam ser destacados e apontados trechos
que denotem esta abstração.
As correntes de esquerda que se digladiam
nas redes sociais não possuem representação na Ucrânia ou na Rússia, fazendo,
portanto, no geral, análises de fora da realidade onde estes fatos
desenrolam-se. Daí provém as mais variadas formas de acusação de abstração e
cumplicidade com um ou outro lado da guerra. Porém, mesmo que não haja
representação direta, a interpretação mais fidedigna dos fatos e do papel
cumprido por cada país – sem dogmas
ou delírios – tem papel decisivo sobre a elaboração de uma política de
independência de classe e, certamente, pode e deve ser feita, mas com a devida
humildade.
Por outro lado, o que vemos nestes
debates é uma reprodução de políticas dos teóricos marxistas do século XX, transplantadas mecanicamente para o presente,
sem nenhum tipo de independência ou criatividade intelectual que leve de fato
em consideração a conjuntura atual. Poderia uma realidade ou um fenômeno social
se reproduzir na história exatamente igual? Não! Por este motivo, o importante
resgate dos teóricos marxista se faz necessário como referência e ponta pé inicial
de qualquer análise, mas evitando a reprodução
canônica.
Nota sobre a conjuntura
A “guerra” é resultado, sem sombra de
dúvidas, das provocações estadunidenses feitas através da OTAN, que vinha
cercando a Rússia de diferentes formas. O imperialismo ianque está em declínio
histórico, por isso suas ações contra os imperialismos concorrentes se
intensificam, obrigando-lhe a ir para a ofensiva, na maioria das vezes, de
forma camuflada.
A burguesia norte-americana – sobretudo
aquela que dirige o deep state –
manteve sua hegemonia mundial baseada nos mais diversos níveis de invasão,
agressão e controle militar. Rapinaram países através de golpes de estado em
“defesa da democracia”; derrubaram presidentes “democraticamente eleitos” que
lhes eram inconvenientes; espionaram e espionam governos, empresas e pessoas
comuns; financiam e sustentam ditadores e monarquias arquireacionárias com uma
mão, enquanto pregam democracia e direitos humanos contra os inimigos –
geralmente taxando-os de “comunistas” e “terroristas” (quando os principais
terroristas são eles) – com a outra mão; manipulam meios de comunicação e redes
sociais, instigando, destilando e manipulando o ódio humano mais rasteiro. Está
fora de dúvida o papel nefasto cumprido pelo imperialismo estadunidense no
mundo: é um câncer em metástase, cuja manutenção implica em dor e sofrimento
para a maior parte dos países do mundo.
O
ódio de largas parcelas da população latino-americana e do Oriente Médio contra
o império estadunidense, portanto, é compreensível e, até mesmo, justificável,
dadas as agressões e violações que sofreram e sofrem como condição de
existência deste imperialismo. Este ódio, no entanto, tende a levar setores da esquerda a apoiar qualquer
“saída” que o debilite ou supostamente o derrote, sem se preocupar com o que
vem em seu lugar – inclusive que sobrevenha um outro tipo de imperialismo. A
lógica é a mesma do imediatismo economicista, que tende apoiar qualquer movimento
que ocorra por quebrar a “mesmice”, independentemente da direção, das bandeiras
e do seu possível desfecho.
***
Do outro lado desta disputa encontram-se
China e Rússia – as candidatas a novo imperialismo
hegemônico com discursos de “mundo multipolar”. A postura chinesa – não belicista
atualmente, tolerante com empréstimos
financeiros internacionais e supostamente não interventora nos assuntos
internos de cada país –, bem como a russa, que não demonstra intenções
expansionistas e manipuladoras para além do seu entorno, parecem demonstrar a
superação de um passado imperialista da história, apontando para uma outra
perspectiva, multipolar, mais “democrática” e “inclusiva”.
Realmente há diferenças pontuais importantes entre o agressivo imperialismo
estadunidense – que mesmo hoje continua manipulando países, patrocinando e
terceirizando guerras e golpes – e o nascente imperialismo sino-russo, que,
para se firmar, precisa justamente aparecer com uma “nova” imagem para
sustentar suas pretensões à potência hegemônica. Um movimento revolucionário não
deve se furtar a apontar essas diferenças entre os imperialismos e a conclamar
a classe trabalhadora mundial a se aproveitar destas diferenças. Contudo, ao
contrário do que acredita e prega grande parte da esquerda, ainda tratamos de
campos imperialistas em disputa.
A dinâmica histórica coloca tarefas
distintas para cada um dos campos imperialistas: o imperialismo estadunidense depende
da dominação agressiva, interventora, intimidadora – tipicamente Ocidental; o
imperialismo sino-russo (sobretudo o chinês) se caracteriza por ser silencioso,
“propositivo”, não-interventor, supostamente “preocupado” com “soberanias
nacionais”. Isso se dá desta forma não apenas pela condição econômica mundial,
que favorece o a ascensão chinesa, já que atualmente “todos os caminhos” e
“todas as rotas da seda” levam à China. A Rússia, após décadas mendigando
compreensão e apoio por parte da Europa e dos EUA – inclusive solicitando
ingresso na OTAN –, voltou-se para a China e terminou por se beneficiar
amplamente de sua dinâmica capitalista, que resultou da reincorporação do
gigante asiático ao mercado mundial.
Em
síntese, o movimento econômico mundial atualmente é favorável ao
desenvolvimento chinês e russo, em detrimento do imperialismo Ocidental –
sobretudo o representado pelo EUA, que está em declínio (a balança comercial
pendendo para e a reserva de dólares da China que o digam![1]);
por isso, ela pode se dar ao luxo de prescindir de guerras ou intervenções.
Isso impõe tarefas e estabelece parâmetros políticos para ambos os lados, que
se expressam em narrativas ideológicas, apresentadas, sobretudo, através da
grande mídia (seja a mídia Ocidental; seja a CGTN, Sputnik, etc.) – daí advém o discurso chinês de “um mundo
multipolar”. No entanto, a unidade do
bloco sino-russo é imprescindível para ascensão mundial de ambos os países,
dado que se enfraquecem separados frente ao imperialismo estadunidense – por
isto este último tenta quebrar o bloco rival de diferentes maneiras.
Rússia e China lutam contra o imperialismo
capitalista ou se beneficiam dele?
Neste
ponto do debate devemos nos perguntar: o que Rússia e China pretendem colocar
no lugar do imperialismo estadunidense em declínio? O socialismo? Para alguns
setores da esquerda parece que sim; para outros, trata-se de governos
reacionários, mas ainda assim, preferíveis ao odioso imperialismo
estadunidense. Isto é, dão um cheque em branco para Rússia e China, aos quais
não atribuem papel ou mesmo qualquer interesse imperialista.
Para
muitos ativistas e organizações de esquerda o reconhecimento de uma nação como
“imperialista” deve seguir o estrito modelo apresentado por Lenin no início do
século XX. É evidente que este modelo, quase um check-list, é muito importante e continua sendo uma referência, mas
ele não pode substituir uma lúcida análise da realidade atual.
Vejamos
alguns exemplos extraídos das redes sociais que atestam uma posição inconsciente de que a Rússia promoveria uma política
antiimperialista: “percebam que o
movimento na Rússia já promoveu mudanças drásticas na geopolítica, como forçar
os ianques a fazer concessões à Venezuela”[2].
Não há aqui uma explicação séria sobre que mudança drástica seria essa, mas o
espírito da citação é claramente favorável ao papel cumprido pela Rússia.
Qualquer arremedo de “mudança” na conjuntura é usado como pretexto para
reforçar a sua política de apoio a um dos dois blocos em disputa – neste caso,
de apoio ao bloco sino-russo.
Outro
ativista, mais conscientemente ufanista
do “antiimperialismo” russo e chinês, anuncia solenemente ao mundo nas suas
redes sociais: “torceremos diuturnamente
pela Rússia. O mundo precisa dessa fragorosa derrota americana na Ucrânia. E
precisa que os nazistas sejam desmobilizados”[3]; a
seguir ele posta um artigo cujo título é Para
um mundo multipolar, é melhor que a Rússia vença[4].
Eis o resumo da ópera! Frente a este tipo de ilusão, é pertinente perguntar:
que espécie de “mundo multipolar” a Rússia irá promover ou já promoveu no leste
europeu?
Outro
exemplo das complicações em que a esquerda está enredada pode ser lido no
relato a seguir: “é complicado optar
sobre essa guerra, principalmente se o parâmetro for as informações falsas da
imprensa do Ocidente. Por outro lado, não existe uma posição unânime na
esquerda brasileira sobre os fatores econômicos, estratégicos e étnicos que
motivaram a operação da Rússia na Ucrânia. Enquanto as avaliações forem feitas
com base nas informações da imprensa do Ocidente, vai sempre prevalecer a
narrativa do império americano e a posição ideológica do princípio da soberania
nacional, ou seja, vai prevalecer o senso comum da narrativa predominante no
Ocidente”[5].
Aqui
já se delineia a “impossibilidade de se tomar posição”, apontando para o
problema de repetir acriticamente a mídia burguesa Ocidental e, portanto, o
imperialismo ianque. É possível sim tomar posição sem repetir a grande mídia
burguesa, nem reproduzir dogmaticamente os clássicos marxistas.
O derrotismo revolucionário se
aplica às condições atuais da “guerra” na Ucrânia?
Outras organizações da esquerda, que defendem
o “derrotismo revolucionário”, explicam que “consideramos
o conflito entre estas potências – respectivamente entre seus procuradores na
Ucrânia – como profundamente reacionário. Consequentemente, os socialistas se
opõem a ambos os lados neste conflito. Eles precisam defender um programa de
derrotismo revolucionário, ou seja, trabalhar para a derrota dos respectivos
governos e pela transformação deste conflito em uma crise revolucionária
doméstica”[6].
O derrotismo revolucionário foi uma
política proposta por Lenin e os bolcheviques durante a Primeira Guerra
Mundial, quando as nações do continente europeu promoveram uma carnificina
humana para disputar a hegemonia mundial sobre as colônias de então. As agressões
eram recíprocas e partiam ininterruptamente de ambos os lados – bem como a
finalidade era explícita: tomar as colônias e a influência do imperialismo que
se combatia de armas na mão no campo de batalha. Se aplicarmos mecanicamente o
“derrotismo revolucionário” ao caso da “guerra” da Ucrânia, esquecendo-nos do
contexto do início do século XX e a diferença em relação a este século que se
inicia, então, estaremos sendo coniventes com as provocações do imperialismo
decadente – o norte-americano –, que não pode agir de outra forma.
O mesmo vale para o erro oposto, que dá
total apoio político ao governo Putin, muito além do reconhecimento ao direito
de se defender, tal como qualquer nação que é atacada por outra. Há
preponderância na argumentação de Putin sobre Biden, quando o primeiro afirma
que não posiciona mísseis de longo alcance no território do México, nem manda
porta-aviões para o Atlântico norte. Tampouco a Rússia sabota militarmente os mercados dominados pelo
imperialismo ianque, ainda que utilize outros métodos de sabotagem, como
utilização de mecanismos econômicos para desvalorizar o preço do barril de
petróleo visando atingir a indústria petrolífera estadunidense[7].
Para nos pautarmos pela independência de classe nesta análise, não podemos esquecer
que a Rússia tem total interesse em manter a dominação e a influência nas
regiões do seu entorno, que se estende da Ucrânia até os países do leste europeu
– se pudesse, certamente engoliria toda a Europa, mas não o fez e não se
utilizou de provocações e sabotagens militares para tanto, tal como fez os EUA
em um continente alheio; por esses e outros motivos, a Rússia usa
historicamente o leste europeu como seu “escudo”. Não foi casual que Putin
tenha feito referência ao México, pois sabe que ali, bem como em toda a América
Latina, trata-se de uma esfera de influência ianque; isto é, de um “quintal dos
EUA”, ainda que Putin também não se furte a “auxiliar” em ocasiões específicas
o governo venezuelano contra o “grande irmão” do norte, utilizando-se de um
discurso de “soberania nacional”.
Da mesma forma, a posição política que
sustenta a “imediata saída das tropas russas da Ucrânia” defende, na prática,
as provocações imperialistas dos EUA e da OTAN, menosprezando o direito à
defesa frente a tais provocações. São como palavras soltas, mais voltadas a
causar um “impacto estético revolucionário” altissonante em quem as escuta do
que ajudar a elucidar a complexidade do contexto histórico em que vivemos.
Tampouco ajuda na conscientização e na organização da classe trabalhadora
mundial e brasileira. Não é muito melhor a posição que coloca a Rússia e a
China como expoentes da “luta anti-imperialista” e da construção de um “mundo
novo, livre e socialista”.
Uma política elaborada e aplicada
mecanicamente tende a nos afastar da realidade e a embaçá-la. Por tudo o que se
sustentou neste artigo, não restam dúvidas de que se trata de uma disputa
interimperialista por hegemonia, e que vença quem vencer, o imperialismo capitalista
seguirá o seu curso, de forma mais branda ou agressiva, mas, ainda assim, será
um tipo de disputa por mercados e controle econômico, com semicolônias
exploradas e marginalizadas, exploração de classe, miséria, crises e conflitos.
Contudo, esta disputa interimperialista precisa ser analisada nas suas relações
concretas e, principalmente, ser explicada e debatida com a classe trabalhadora
por uma perspectiva de independência de
classe, fato que só pode se tornar efetivo se não estiver baseado em dogmas
e receitas pré-fabricadas.
Referências
[1]
Ver: http://portuguese.news.cn/2022-03/15/c_1310515004.htm (este texto traz de
forma sucinta informações acerca das atuais relações entre EUA e China – ainda
que pareça que o governo Biden está preocupado com as boas relações com o
gigante asiático, na verdade ganha tempo, enquanto a China procura garantir
suas pautas e reforçar sua política de “neutralidade” e “não violência” –
ao mesmo tempo em que o governo Biden condena e luta contra a Rússia).
[2]
Extraído do grupo de Whatsapp “Revolução Socialista”, no dia 9 de março de
2022.
[3]
Extraído do grupo de Whatsapp “Revolução Socialista”, no dia 13 de março de
2022. A seguir o mesmo ativista posta o seguinte texto para dar “embasamento”
aos seus argumentos: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/melhor-que-a-russia-venca/
[4]
Além do referido artigo: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/melhor-que-a-russia-venca/
; ver também: https://vozoperariarj.com/2022/03/07/suposto-imperialismo-russo-nunca-existiu-russia-e-anti-imperialista-e-contra-um-governo-global-parte-1/
[5]
Extraído do grupo de Whatsapp “Dialética da natureza”, no dia 10 de março de
2022.
[6] https://www.thecommunists.net/worldwide/global/critical-remarks-on-lit-ci-statement-on-the-current-nato-russia-conflict/#anker_1
[7]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/03/coronavirus-crise-capitalista-e-o.html
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