domingo, 20 de março de 2022

Rússia e China cumprem um papel antiimperialista contra os EUA?

 


A atual conjuntura, marcada pela guerra entre Rússia, secundada por China – de um lado –, e Ucrânia e OTAN/EUA – de outro –, divide as posições da esquerda e cria a possibilidade para uma reflexão coletiva.

         O centro das polêmicas, que termina por se reduzir a duas posições principais, é o seguinte: um lado apoia direta ou indiretamente a manipulação da OTAN-EUA sobre a Ucrânia, ignorando esse fato decisivo e condenando as correntes políticas ou militantes que compreendem o direito da Rússia de se defender do cerco militar e das provocações que vem sofrendo; o outro setor apoia a Rússia acriticamente, depositando consciente ou inconscientemente esperanças de que ela destrua ou, pelo menos limite, o poder do odiado imperialismo estadunidense (em alguns casos negando que a Rússia seja ou cumpra um papel imperialista), apontando para a criação de um “mundo novo”, multipolar.

 

Nota sobre o nível do debate nas redes sociais

         Como em todo o debate, há grãos de verdade em ambas posições, mas é necessário observá-los com cuidado e contrastá-los com o quadro mais amplo. Sabemos que uma posição que ignora fatos importantes da conjuntura e se coloca como independente de ambos os campos imperialistas, sendo muito minoritário por entre a classe trabalhadora, pode cair numa espécie de abstração ou de purismo, mas isso precisa também ser pontuado e especificado em cada texto e análise concretamente – isto é, precisam ser destacados e apontados trechos que denotem esta abstração.

         As correntes de esquerda que se digladiam nas redes sociais não possuem representação na Ucrânia ou na Rússia, fazendo, portanto, no geral, análises de fora da realidade onde estes fatos desenrolam-se. Daí provém as mais variadas formas de acusação de abstração e cumplicidade com um ou outro lado da guerra. Porém, mesmo que não haja representação direta, a interpretação mais fidedigna dos fatos e do papel cumprido por cada país – sem dogmas ou delírios – tem papel decisivo sobre a elaboração de uma política de independência de classe e, certamente, pode e deve ser feita, mas com a devida humildade.

         Por outro lado, o que vemos nestes debates é uma reprodução de políticas dos teóricos marxistas do século XX, transplantadas mecanicamente para o presente, sem nenhum tipo de independência ou criatividade intelectual que leve de fato em consideração a conjuntura atual. Poderia uma realidade ou um fenômeno social se reproduzir na história exatamente igual? Não! Por este motivo, o importante resgate dos teóricos marxista se faz necessário como referência e ponta pé inicial de qualquer análise, mas evitando a reprodução canônica.

 

Nota sobre a conjuntura

         A “guerra” é resultado, sem sombra de dúvidas, das provocações estadunidenses feitas através da OTAN, que vinha cercando a Rússia de diferentes formas. O imperialismo ianque está em declínio histórico, por isso suas ações contra os imperialismos concorrentes se intensificam, obrigando-lhe a ir para a ofensiva, na maioria das vezes, de forma camuflada.

         A burguesia norte-americana – sobretudo aquela que dirige o deep state – manteve sua hegemonia mundial baseada nos mais diversos níveis de invasão, agressão e controle militar. Rapinaram países através de golpes de estado em “defesa da democracia”; derrubaram presidentes “democraticamente eleitos” que lhes eram inconvenientes; espionaram e espionam governos, empresas e pessoas comuns; financiam e sustentam ditadores e monarquias arquireacionárias com uma mão, enquanto pregam democracia e direitos humanos contra os inimigos – geralmente taxando-os de “comunistas” e “terroristas” (quando os principais terroristas são eles) – com a outra mão; manipulam meios de comunicação e redes sociais, instigando, destilando e manipulando o ódio humano mais rasteiro. Está fora de dúvida o papel nefasto cumprido pelo imperialismo estadunidense no mundo: é um câncer em metástase, cuja manutenção implica em dor e sofrimento para a maior parte dos países do mundo.

O ódio de largas parcelas da população latino-americana e do Oriente Médio contra o império estadunidense, portanto, é compreensível e, até mesmo, justificável, dadas as agressões e violações que sofreram e sofrem como condição de existência deste imperialismo. Este ódio, no entanto, tende a levar setores da esquerda a apoiar qualquer “saída” que o debilite ou supostamente o derrote, sem se preocupar com o que vem em seu lugar – inclusive que sobrevenha um outro tipo de imperialismo. A lógica é a mesma do imediatismo economicista, que tende apoiar qualquer movimento que ocorra por quebrar a “mesmice”, independentemente da direção, das bandeiras e do seu possível desfecho.

***

         Do outro lado desta disputa encontram-se China e Rússia – as candidatas a novo imperialismo hegemônico com discursos de “mundo multipolar”. A postura chinesa – não belicista atualmente, tolerante com empréstimos financeiros internacionais e supostamente não interventora nos assuntos internos de cada país –, bem como a russa, que não demonstra intenções expansionistas e manipuladoras para além do seu entorno, parecem demonstrar a superação de um passado imperialista da história, apontando para uma outra perspectiva, multipolar, mais “democrática” e “inclusiva”.

         Realmente há diferenças pontuais importantes entre o agressivo imperialismo estadunidense – que mesmo hoje continua manipulando países, patrocinando e terceirizando guerras e golpes – e o nascente imperialismo sino-russo, que, para se firmar, precisa justamente aparecer com uma “nova” imagem para sustentar suas pretensões à potência hegemônica. Um movimento revolucionário não deve se furtar a apontar essas diferenças entre os imperialismos e a conclamar a classe trabalhadora mundial a se aproveitar destas diferenças. Contudo, ao contrário do que acredita e prega grande parte da esquerda, ainda tratamos de campos imperialistas em disputa.

         A dinâmica histórica coloca tarefas distintas para cada um dos campos imperialistas: o imperialismo estadunidense depende da dominação agressiva, interventora, intimidadora – tipicamente Ocidental; o imperialismo sino-russo (sobretudo o chinês) se caracteriza por ser silencioso, “propositivo”, não-interventor, supostamente “preocupado” com “soberanias nacionais”. Isso se dá desta forma não apenas pela condição econômica mundial, que favorece o a ascensão chinesa, já que atualmente “todos os caminhos” e “todas as rotas da seda” levam à China. A Rússia, após décadas mendigando compreensão e apoio por parte da Europa e dos EUA – inclusive solicitando ingresso na OTAN –, voltou-se para a China e terminou por se beneficiar amplamente de sua dinâmica capitalista, que resultou da reincorporação do gigante asiático ao mercado mundial.

Em síntese, o movimento econômico mundial atualmente é favorável ao desenvolvimento chinês e russo, em detrimento do imperialismo Ocidental – sobretudo o representado pelo EUA, que está em declínio (a balança comercial pendendo para e a reserva de dólares da China que o digam![1]); por isso, ela pode se dar ao luxo de prescindir de guerras ou intervenções. Isso impõe tarefas e estabelece parâmetros políticos para ambos os lados, que se expressam em narrativas ideológicas, apresentadas, sobretudo, através da grande mídia (seja a mídia Ocidental; seja a CGTN, Sputnik, etc.) – daí advém o discurso chinês de “um mundo multipolar”. No entanto, a unidade do bloco sino-russo é imprescindível para ascensão mundial de ambos os países, dado que se enfraquecem separados frente ao imperialismo estadunidense – por isto este último tenta quebrar o bloco rival de diferentes maneiras.

 

Rússia e China lutam contra o imperialismo capitalista ou se beneficiam dele?

Neste ponto do debate devemos nos perguntar: o que Rússia e China pretendem colocar no lugar do imperialismo estadunidense em declínio? O socialismo? Para alguns setores da esquerda parece que sim; para outros, trata-se de governos reacionários, mas ainda assim, preferíveis ao odioso imperialismo estadunidense. Isto é, dão um cheque em branco para Rússia e China, aos quais não atribuem papel ou mesmo qualquer interesse imperialista.

Para muitos ativistas e organizações de esquerda o reconhecimento de uma nação como “imperialista” deve seguir o estrito modelo apresentado por Lenin no início do século XX. É evidente que este modelo, quase um check-list, é muito importante e continua sendo uma referência, mas ele não pode substituir uma lúcida análise da realidade atual.

Vejamos alguns exemplos extraídos das redes sociais que atestam uma posição inconsciente de que a Rússia promoveria uma política antiimperialista: “percebam que o movimento na Rússia já promoveu mudanças drásticas na geopolítica, como forçar os ianques a fazer concessões à Venezuela”[2]. Não há aqui uma explicação séria sobre que mudança drástica seria essa, mas o espírito da citação é claramente favorável ao papel cumprido pela Rússia. Qualquer arremedo de “mudança” na conjuntura é usado como pretexto para reforçar a sua política de apoio a um dos dois blocos em disputa – neste caso, de apoio ao bloco sino-russo.

Outro ativista, mais conscientemente ufanista do “antiimperialismo” russo e chinês, anuncia solenemente ao mundo nas suas redes sociais: “torceremos diuturnamente pela Rússia. O mundo precisa dessa fragorosa derrota americana na Ucrânia. E precisa que os nazistas sejam desmobilizados”[3]; a seguir ele posta um artigo cujo título é Para um mundo multipolar, é melhor que a Rússia vença[4]. Eis o resumo da ópera! Frente a este tipo de ilusão, é pertinente perguntar: que espécie de “mundo multipolar” a Rússia irá promover ou já promoveu no leste europeu?

Outro exemplo das complicações em que a esquerda está enredada pode ser lido no relato a seguir: “é complicado optar sobre essa guerra, principalmente se o parâmetro for as informações falsas da imprensa do Ocidente. Por outro lado, não existe uma posição unânime na esquerda brasileira sobre os fatores econômicos, estratégicos e étnicos que motivaram a operação da Rússia na Ucrânia. Enquanto as avaliações forem feitas com base nas informações da imprensa do Ocidente, vai sempre prevalecer a narrativa do império americano e a posição ideológica do princípio da soberania nacional, ou seja, vai prevalecer o senso comum da narrativa predominante no Ocidente”[5].

Aqui já se delineia a “impossibilidade de se tomar posição”, apontando para o problema de repetir acriticamente a mídia burguesa Ocidental e, portanto, o imperialismo ianque. É possível sim tomar posição sem repetir a grande mídia burguesa, nem reproduzir dogmaticamente os clássicos marxistas.

 

O derrotismo revolucionário se aplica às condições atuais da “guerra” na Ucrânia?

         Outras organizações da esquerda, que defendem o “derrotismo revolucionário”, explicam que “consideramos o conflito entre estas potências – respectivamente entre seus procuradores na Ucrânia – como profundamente reacionário. Consequentemente, os socialistas se opõem a ambos os lados neste conflito. Eles precisam defender um programa de derrotismo revolucionário, ou seja, trabalhar para a derrota dos respectivos governos e pela transformação deste conflito em uma crise revolucionária doméstica”[6].

         O derrotismo revolucionário foi uma política proposta por Lenin e os bolcheviques durante a Primeira Guerra Mundial, quando as nações do continente europeu promoveram uma carnificina humana para disputar a hegemonia mundial sobre as colônias de então. As agressões eram recíprocas e partiam ininterruptamente de ambos os lados – bem como a finalidade era explícita: tomar as colônias e a influência do imperialismo que se combatia de armas na mão no campo de batalha. Se aplicarmos mecanicamente o “derrotismo revolucionário” ao caso da “guerra” da Ucrânia, esquecendo-nos do contexto do início do século XX e a diferença em relação a este século que se inicia, então, estaremos sendo coniventes com as provocações do imperialismo decadente – o norte-americano –, que não pode agir de outra forma.

         O mesmo vale para o erro oposto, que dá total apoio político ao governo Putin, muito além do reconhecimento ao direito de se defender, tal como qualquer nação que é atacada por outra. Há preponderância na argumentação de Putin sobre Biden, quando o primeiro afirma que não posiciona mísseis de longo alcance no território do México, nem manda porta-aviões para o Atlântico norte. Tampouco a Rússia sabota militarmente os mercados dominados pelo imperialismo ianque, ainda que utilize outros métodos de sabotagem, como utilização de mecanismos econômicos para desvalorizar o preço do barril de petróleo visando atingir a indústria petrolífera estadunidense[7].

         Para nos pautarmos pela independência de classe nesta análise, não podemos esquecer que a Rússia tem total interesse em manter a dominação e a influência nas regiões do seu entorno, que se estende da Ucrânia até os países do leste europeu – se pudesse, certamente engoliria toda a Europa, mas não o fez e não se utilizou de provocações e sabotagens militares para tanto, tal como fez os EUA em um continente alheio; por esses e outros motivos, a Rússia usa historicamente o leste europeu como seu “escudo”. Não foi casual que Putin tenha feito referência ao México, pois sabe que ali, bem como em toda a América Latina, trata-se de uma esfera de influência ianque; isto é, de um “quintal dos EUA”, ainda que Putin também não se furte a “auxiliar” em ocasiões específicas o governo venezuelano contra o “grande irmão” do norte, utilizando-se de um discurso de “soberania nacional”.

         Da mesma forma, a posição política que sustenta a “imediata saída das tropas russas da Ucrânia” defende, na prática, as provocações imperialistas dos EUA e da OTAN, menosprezando o direito à defesa frente a tais provocações. São como palavras soltas, mais voltadas a causar um “impacto estético revolucionário” altissonante em quem as escuta do que ajudar a elucidar a complexidade do contexto histórico em que vivemos. Tampouco ajuda na conscientização e na organização da classe trabalhadora mundial e brasileira. Não é muito melhor a posição que coloca a Rússia e a China como expoentes da “luta anti-imperialista” e da construção de um “mundo novo, livre e socialista”.

         Uma política elaborada e aplicada mecanicamente tende a nos afastar da realidade e a embaçá-la. Por tudo o que se sustentou neste artigo, não restam dúvidas de que se trata de uma disputa interimperialista por hegemonia, e que vença quem vencer, o imperialismo capitalista seguirá o seu curso, de forma mais branda ou agressiva, mas, ainda assim, será um tipo de disputa por mercados e controle econômico, com semicolônias exploradas e marginalizadas, exploração de classe, miséria, crises e conflitos. Contudo, esta disputa interimperialista precisa ser analisada nas suas relações concretas e, principalmente, ser explicada e debatida com a classe trabalhadora por uma perspectiva de independência de classe, fato que só pode se tornar efetivo se não estiver baseado em dogmas e receitas pré-fabricadas.

 

Referências


[1] Ver: http://portuguese.news.cn/2022-03/15/c_1310515004.htm (este texto traz de forma sucinta informações acerca das atuais relações entre EUA e China – ainda que pareça que o governo Biden está preocupado com as boas relações com o gigante asiático, na verdade ganha tempo, enquanto a China procura garantir suas pautas e reforçar sua política de “neutralidade” e “não violência” – ao mesmo tempo em que o governo Biden condena e luta contra a Rússia).

[2] Extraído do grupo de Whatsapp “Revolução Socialista”, no dia 9 de março de 2022.

[3] Extraído do grupo de Whatsapp “Revolução Socialista”, no dia 13 de março de 2022. A seguir o mesmo ativista posta o seguinte texto para dar “embasamento” aos seus argumentos: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/melhor-que-a-russia-venca/

[4] Além do referido artigo: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/melhor-que-a-russia-venca/ ; ver também: https://vozoperariarj.com/2022/03/07/suposto-imperialismo-russo-nunca-existiu-russia-e-anti-imperialista-e-contra-um-governo-global-parte-1/

[5] Extraído do grupo de Whatsapp “Dialética da natureza”, no dia 10 de março de 2022.

[6] https://www.thecommunists.net/worldwide/global/critical-remarks-on-lit-ci-statement-on-the-current-nato-russia-conflict/#anker_1

[7] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/03/coronavirus-crise-capitalista-e-o.html

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