segunda-feira, 13 de maio de 2024
E no sétimo dia a verdade desapareceu
quinta-feira, 9 de maio de 2024
Não foram as chuvas
quinta-feira, 4 de abril de 2024
Milei e os valores ocidentais
Javier Milei discursou no fórum econômico de Davos de 2024 afirmando que “os valores ocidentais estão ameaçados” pelo “comunismo” e por países como China e Brasil. Isto é, reforçou o discurso eleitoral que o sagrou vencedor das eleições argentinas de 2023.
Contudo, cabe
perguntar aqui o que são estes “valores ocidentais” ameaçados, bem como o que
os expoentes do neofascismo – como
Milei, Bolsonaro e Trump – entendem por “valores ocidentais”?
Tal como foi comum no passado – para
usar uma expressão célebre – “chutar Hegel como um cão morto”, no presente é
comum chutar “os valores ocidentais” e “eurocêntricos” como um cão morto!
Por certo, os europeus cumpriram um
papel cruel no processo civilizatório, do qual precisamos rever e mesmo renunciar
a uma série de heranças desses valores. No entanto, isso precisa ser feito com
lucidez; o que muitas vezes não é o caso.
Certamente os neofascistas, tendo, no momento, Milei e a presidência da Argentina
na “vanguarda” desta podridão, se referem aos valores que mais lhe são caros: a
propriedade privada e a família burguesa, que é a base de sustento da primeira.
A sua receita é simples e cruel:
jogam-se todos os valores ocidentais num balaio e tentam acionar na psique
coletiva mundial o velho “nós contra
eles”, sempre muito eficaz. Depois, relacionam o termo “propriedade” com
liberdade, o que não é, na maioria das vezes, verdade. Logo após, juntam a ela
tudo o que é emocionalmente caro a maioria das pessoas, como a família, a
religião, os valores habituais cultivados cotidianamente.
O que Milei não diz é que atrás da
propriedade privada burguesa estão inevitavelmente relacionados o colonialismo,
a exploração de povos inteiros, o rentismo do sistema financeiro, o racismo, a
xenofobia, a ambição egocêntrica desmedida e descontrolada; isto é, os pilares
centrais do capitalismo “ocidental” que servem de base para o imperialismo
estadunidense frente à ascensão meteórica do capitalismo “oriental”, tendo a
China como o carro chefe.
Ao jogar com as forças pré-conscientes
e não refletida da maioria das pessoas, Milei pretende legitimar e angariar
apoio ao seu projeto de saque do país via dívida “pública”, inflação fora de
controle, imposição de uma dolarização que beneficia apenas a elite argentina –
isto é, vai na contramão do que desejam os países do BRICS. Inclusive
inviabiliza a adesão da Argentina aos BRICS, o que é um dos principais
objetivos do seu governo, amplamente apoiado pelos governos estadunidenses –
sobretudo pelo possível futuro governo de Donald Trump.
Em sua decadência histórica, os EUA não
podem abrir mão de promover sabotagens financeiras, como criação artificial e
arbitrárias de barreiras alfandegárias e guerras comerciais no mercado mundial,
sem deixar de ter consequências que se desenrolem numa reação em cadeia, com
consequências nefastas sobre os países e pessoas mais pobres (que são mantidos
na sua área de influência a partir da manipulação
emocional feita através da identificação com os “valores Ocidentais”).
As guerras comerciais tendem a
degenerar em guerra militar aberta – seja feita através da
intervenção direta dos EUA como no caso do Iraque e do Afeganistão; seja
através de sua “terceirização” por “aliados locais”, que depois são largados à
própria sorte, como é o caso da Ucrânia e, futuramente, será de Taiwan.
Além disso, em sua decadência econômica
e política, os EUA passam a inflação monetária do dólar para os países
fantoches através da impressão de mais dólares sempre que as estratégias do seu
governo julgam necessárias. As elites locais abraçam a inflação sem titubear e
os custos, como sempre, são passados aos mais pobres.
A decadência do imperialismo
estadunidense também se traduz por uma distorção permanente do que ele vende
como “jornalismo”, que é, na realidade, uma máquina de doutrinação em massa de
seus valores e necessidades propagandísticas de guerra ou de “paz”, e de forma
alguma pode ser tratado como “informação”. As narrativas “jornalísticas” dos
EUA e dos seus aliados “ocidentais” jogam milhões de pessoas contra os inimigos
do seu império, confundindo-os como “inimigos do Ocidente” e “da liberdade”.
A “liberdade” de imprensa ocidental é
demonstrada pela perseguição implacável a jornalistas como Julian Assange, e
pessoas como Edward Snowden, que ousam enfrentar os interesses estadunidenses
em nome do acesso à verdade. Esta “liberdade” também se expressa na manipulação
descarada e sem escrúpulo da privacidade das pessoas através das redes sociais,
dos seus algoritmos, bem ao estilo do escândalo envolvendo a Cambridge Analytica.
Os valores ocidentais e
europeus são apenas negativos?
Julgamos importante encontrar uma visão
equilibrada, que saiba estabelecer um olhar crítico sobre a herança ocidental e
europeia, mas que saiba também separar o joio do trigo, o progressivo do
regressivo; aquilo que pode ajudar na emancipação proletária e humana daquilo
que serve para justificar a exploração, a colonização e a opressão.
O neofascismo
de Milei, Trump e Bolsonaro, como corrente internacional, certamente defende os
“valores ocidentais” naquilo que têm de pior, negativo, repressivo e opressor,
servindo perfeitamente para justificar a exploração e a fonte de sua riqueza.
Temem perder seus privilégios históricos e imediatos, por isso recorrem à fraude
e à distorção para sustentar a parte retrógrada desses valores, se escondendo
atrás de justificativas “nobres”, de tradição e de “alerta” em relação à
“ameaça comunista”, “oriental”, “de fora”, aos “valores ocidentais”, como a
propriedade e a família burguesa, sempre associados indiscriminada e
acriticamente à liberdade.
Ao invés de fazermos a crítica à
herança cultural do Ocidente, majoritariamente masculina e branca, a partir do
ponto de vista dos povos colonizados, explorados e assassinados, das mulheres e
dos povos africanos, indígenas e asiáticos, joga-se fora a criança com a água
suja da bacia. A equiparação cultural, muitas vezes, também não é pensada; ou
se é feita, apresenta-se de forma destrutiva, exagerada, a começar tudo do
zero, como se não houvesse nada de positivo.
O fato do neofascismo exaltar o pior da cultura ocidental – isto é, tudo
aquilo que precisamos renunciar e superar –, não exclui o fato de que ela tem
muitas contribuições que transcendem o colonialismo e a exploração, sendo parte
do tesouro cultural humano. Revisitar esses valores com o olhar crítico é parte
importante desta tarefa de renunciar ao que tem de ruim e saber superar estes
valores, incorporando seus pontos positivos.
O discurso de Milei em Davos visa,
portanto, tensionar a dicotomização do pensamento e tenta salvar os valores
ocidentais decadentes que sustentaram e ainda sustentam o imperialismo
estadunidense e europeu, do qual é um vassalo. Parte do movimento sindical e da
esquerda responde, com tonalidades identitárias não refletidas, esquecendo-se
de olhar através desta lente do “caminho do meio” para dificultar um pouco mais
a vida do neofascismo, que usa deste
estratagema da psicologia de massas do “nós contra eles”, para adquirir
vantagens política na manipulação emocional da classe trabalhadora na América e
no mundo todo.
Contudo, um dos valores ocidentais mais
cultivados pelas pessoas (incluindo militantes nos seus diferentes matizes), e
que mais contrasta com o pensamento oriental, é a ambição egocêntrica
desmedida. É bonito e louvável, segundo o Ocidente, ser ambicioso e procurar a
fama individual visando acumular riquezas. Diluir-se no todo causa um pavor
descomunal no ser humano ocidental, que não mede esforços para sobressair-se de
alguma forma. Não apenas os valores ocidentais se baseiam na ambição, mas o
próprio funcionamento do capitalismo depende dela, cultivando-a em muitas esferas.
Basta reparar o abuso das propagandas e de consumismo, ambos baseados em formas
de insuflar o egotismo.
Se é importante sabermos reconhecer a
contribuição sincera e a importância individual de cada ser humano (fatores
levados até o extremo da demência pelo neoliberalismo ocidental), é crucial
para a superação dos “valores ocidentais” trilhar um caminho da virtude que
seja natural e espontâneo; criar e não se apossar; agir e não esperar.
Como diz a sabedoria milenar oriental:
quem só vê beleza em vencer é quem se alegra em matar; e quem se alegra em
matar, não verá realizado o seu propósito no mundo; o vencedor de uma guerra
ministra um ritual fúnebre!
Milei, como um ambicioso vassalo do imperialismo ocidental, procurar reordenar o
sistema financeiro argentino para sustentar a máquina de guerra do complexo
industrial-militar dos EUA que usa da força bruta, real e simbólica, visando
perpetuar os piores valores ocidentais que, sem sombra de dúvida, devemos
renunciar. Da mesma forma, é importante relembrar os bons valores ocidentais de
luta pela liberdade e emancipação humana (sem nunca esquecer “do todo”) nesta
luta contra os supostos auto intitulados porta-vozes do “mundo Ocidental”, que
são, em essência, porta-vozes de uma nova forma de fascismo.
Este é, em síntese, o conjunto de
ideias e valores que Milei e cia. querem defender com unhas e dentes, já que,
no momento, é o neofascismo o melhor
“valor ocidental” capaz de preservar a sua fonte de riqueza.
quinta-feira, 14 de março de 2024
domingo, 25 de fevereiro de 2024
Lançamentos do nosso blog
*Por Santiago Marimbondo
Se há uma esfinge que se não decifrada ameaça nos devorar (como um dragão mítico) quando se pensam os fenômenos geopolíticos que definem o cenário internacional no século XXI certamente a questão da ascensão da China à posição de potência global nas últimas décadas é a fundamental. Se desde a expansão capitalista, primeiramente capitaneada pela Inglaterra no século XIX, a posição global do então império chinês foi rebaixada a patamares não antes conhecidos em sua milenar história (o período de submissão chinesa às potências capitalistas ocidentais é conhecido hoje na narrativa oficial da burocracia estatal que dirige o estado como “século da humilhação”) a partir da revolução vitoriosa no país em 1949, e mais centralmente a partir das reformas pró-capitalistas levadas a cabo por Deng Xiaoping, o país reconquistou uma posição e influência no cenário internacional; agora dentro do contexto da economia-mundo capitalista, que se estrutura no ocidente pelo menos desde o século XV em suas diferentes fases de expressão, e que no mundo contemporâneo se manifesta dentro das relações assimétricas e hierarquicamente organizadas entre os diferentes estados nacionais no contexto da fase imperialista do modo de produção burguês.Nesse sentido, se torna questão fundamental para todos aqueles que buscam refletir sobre as formas de estruturação atuais das relações capitalistas concretas, sua manifestação efetiva dentro das relações conflituosas entre os múltiplos capitais representados pelos diferentes estados ao redor do globo, os motivos e causas dessa nova posição global da China, que tende a ser elemento definidor, nos mais diferentes aspectos, das relações internacionais no novo século.
Para nós trabalhadores que buscamos lutar contra a reprodução de nossa condição de subalternidade, de alienação e estranhamento impostos pelas relações reificadas e fetichistas que se colocam no capitalismo, portanto, esse debate também se faz essencial. Por vezes, fruto das mais imediatas e prementes necessidades concretas que afetam nossas vidas, nós membros da classe trabalhadora somos levados a crer que as grandes questões políticas e geopolíticas, os debates sobre fatores chave que estruturam nossa realidade social, são questões a serem pensadas e debatidas apenas pelos “especialistas” autodeclarados que encontram espaço midiático nos meios de comunicação oficiais, porta-vozes bem pagos das posições da classe dominante dentro do sistema.
Faz parte da construção da hegemonia social burguesa e reprodução de nossa condição de subalternidade a reprodução dessa perspectiva; a superação dessa condição de subalternidade pressupõe que nós trabalhadores nos coloquemos a refletir, pensar de forma crítica, buscar respostas independentes, de forma coletiva, a todas as questões fundamentais que fazem parte da estruturação da realidade social onde estamos inseridos.
Assim, é preciso saudar calorosamente a iniciativa do camarada Lucas Berton, professor precário do ensino público estadual no Rio Grande do Sul, de publicar sua pesquisa e reflexão séria sobre os elementos que explicam essa rápida ascensão global chinesa, como iniciativa fundamental e exemplar de um intelectual orgânico da classe trabalhadora que visa ter não uma relação passiva e reativa com os fenômenos sociais definidores de sua época, mas uma relação ativa e militante, que entende que a reflexão teórica detida e aprofundada sobre esses fenômenos é essencial para uma ação prática e transformadora.
Leia o prefácio do livro na íntegra em:
https://quilombospartacus.wordpress.com/2023/02/14/a-ascensao-mundial-da-china-prefacio-ao-livro-de-lucas-berton/
segunda-feira, 15 de janeiro de 2024
Budismo, taoísmo e socialismo
O
budismo e o taoísmo têm muito a ensinar ao movimento socialista.
O movimento socialista tem muito a aprender
com o budismo e o taoísmo, que são tradições milenares.
Há uma tendência muito séria entre os
militantes para tornarem-se dogmáticos e mecânicos, apelando para a polarização
irrefletida. Na maioria das vezes esta polarização adquire contornos
nitidamente contraproducentes. Partem de uma análise correta acerca das classes
sociais para tensionarem os polos sociais, entrando num círculo vicioso.
Tais métodos, mais dogmáticos do que
nunca no presente, também são utilizados entre a própria esquerda, o que gera
uma verdadeira Torre de Babel. O “caminho do meio” budista é um importante
pensamento que obriga a perceber os excessos e os problemas de cada um dos
polos extremos, e busca lembrar sempre que fazemos parte, antes de mais nada,
de uma totalidade muito maior do que nós e do que qualquer movimento ou país.
Esta dose de “bom senso” acalma os
ânimos e leva a um exercício de paciência e tolerância, sem falar nos
benefícios de pararmos para pensar sobre as nossas próprias limitações e
sombras interiores. Tais práticas não fazem parte da atividade militante,
acostumada a olhar exclusivamente para o social como forma de escapar das
inevitáveis questões éticas individuais e dos próprios vazios existenciais.
O budismo é uma tradição filosófica e
religiosa extremamente maleável e não sectária, que ao longo de 25 séculos tem
se adaptado a diferentes culturas e à evolução da sociedade. Esta maleabilidade
e não-sectarismo é uma necessidade para o movimento socialista, que parece
enredado em teias dogmáticas e segregacionistas por motivos equivocados e, muitas
vezes, infantis. Nestas teias acaba-se num beco sem saída com o movimento
estagnado, perdendo-se a capacidade dialética de interpenetração.
Poucos são aqueles que se dedicam a
estudar a teoria e a história do movimento socialista. Mais restrito ainda é o
grupo que estuda outras áreas científicas, lê outras literaturas e pensa para
além de um campo apenas. Quem não sabe sustentar um argumento político sem
atacar pessoal ou pejorativamente um adversário, é porque está sendo guiado por
outras forças mais sombrias, como, talvez, o egocentrismo, e deveria, por isso
mesmo, pensar sobre sua prática, inclusive estudando, refletindo e meditando
mais para expandir a visão de mundo e a capacidade argumentativa.
***
Muitos dos princípios budistas, ainda
que possam ser contraditórios com a teoria socialista, apontam para uma
comunhão de ideias com a sociedade comunista.
Por exemplo, o budismo vê no desapego
às posses e propriedades parte fundamental de sua doutrina, o que caminha no
mesmo sentido da ideia geral de uma sociedade comunista. No capitalismo, muita
gente procura as religiões e deus como forma de ganho pessoal e prosperidade
material, inclusive “pagando promessa” – dentre outras razões, é por isso também
que as religiões evangélicas ganham tanto espaço no Brasil e na América Latina,
se tornando parte fundamental da dominação capitalista.
Grande parte da população – sobretudo a
classe média – tem verdadeiro horror ao discurso “socialista” de retribuir o
salário de todos (ou quase todos) com o salário médio de um operário (tal como
o defendido pela Comuna de Paris). Toda a condenação à “ausência de liberdade”
supostamente ocasionada pelo “socialismo” tem a ver, no fundo, com o medo do
fim da “liberdade econômica de acumular riqueza”. Como combater essa
mentalidade? Apenas pela força?
Como o budismo apresenta o desapego a
partir de uma lógica mais “espiritual”, possivelmente tenha mais apelo para as
mentes religiosas que pululam por entre a massa da classe trabalhadora. Lhes
afirmar que devem abandonar toda a crença religiosa por ser ilusória, só poderá
abrir-lhes um vácuo de desespero, que lhes jogará nos braços das classes
dominantes e das suas respectivas religiões organizadas. O budismo tem um bom
caminho não apenas para dialogar com o sentimento espiritual presente na classe
trabalhadora, como também, a depender de sua prática, pode cumprir um papel
central na mudança interior, dita “espiritual”, pois vai no sentido da
construção de um ser humano novo, mais desapegado e empático aos demais. Não
haverá socialismo e comunismo sem o cotidiano e paciente exercício da
compaixão.
A visão econômica, exclusivamente
materialista do socialismo, predominante até aqui, prende a mente a ganhos
imediatos, simplesmente materiais, de curta duração, e impede o vislumbre de
uma continuidade maior – isto é, ignora a busca inconsciente que existe na
psique humana de contato com a eternidade (características centrais do
sentimento numinoso e religioso presente nos seres humanos). Os ganhos
materiais, fruto da luta sindical, social e política, podem empolgar a classe
trabalhadora até um determinado ponto, mas não a ganha automaticamente para o
ateísmo e lhe deixa brechas de vazios existenciais inescapáveis, que podem
facilmente serem preenchidos por forças reacionárias.
Há, por entre as organizações
militantes, uma preocupação exclusiva de “se ganhar aquilo que a burguesia nos
roubou”, o que é compreensível e, até certo ponto, correto; mas que redunda e
se encerra no reforço de ganhos meramente materiais e, em última instância, individuais;
muitas e muitas vezes não são necessariamente universais – vejam o enredo sem
fim do economicismo mais rasteiro das categorias que lutam separadamente. Isto
é, por mais contraditório que parece, um ganho na luta sindical e mesmo
política geral tende a reforçar o individualismo. Ao invés de gerar desapego e
crescimento da segurança individual e coletiva, reforça o sentimento de posse –
o que é uma contradição pra quem pretende construir o comunismo.
A frase final do Manifesto Comunista “os proletários nada tem a perder com uma
revolução comunista, a não ser os seus grilhões”, exige um alto grau de
desapego, o que cria certa dificuldade em ser praticada. Ela é analisada
estritamente do ponto de vista material, o que significa dizer: a burguesia tem
toda a riqueza; nós não temos nada. Queremos partilhar a fonte de riqueza da
burguesia com toda a sociedade. Contudo, apenas alguns proletários chegam a
esta visão tão elevada. Em sua maioria, como estão condicionados pela realidade
específica das suas categorias profissionais e pela mentalidade produzida pela sociedade
capitalista, tendem a resumi-la apenas à algum tipo de ganho ou vantagem
particular para si e sua própria família.
Essa é uma das formas que o capitalismo
tem mantido sua influência sobre o proletariado, tencionando-o à direita com
bastante sucesso. Uma vez que falta uma dimensão religiosa saudável ao
pensamento socialista, a luta dos trabalhadores fica presa às questões
exclusivamente materiais, facilitando a sedução e o desvio ético de grupos de
trabalhadores ou mesmo da grande maioria da classe proletária por parte da
burguesia e suas religiões institucionalizadas.
***
Dado o profundo caráter religioso do
ser-humano, se uma sociedade socialista não apontar entre suas preocupações
para uma espécie de transcendência, a “simples” educação pública será
insuficiente, pois a crise existencial individual das pessoas não encontrará
eco para se expressar, e a compaixão, o afeto e a felicidade individuais serão
impossíveis. Nessas circunstâncias, as pessoas se voltam para o hedonismo, para
o autocentramento como fator determinante de seu interesse no mundo, de seus
relacionamentos, assim como de sua ação econômica. Reforçam, portanto, as
relações capitalistas de produção.
Que resultados pode haver se o povo for
obrigado a abandonar suas crenças religiosas – tal como ocorreu na Rússia
stalinista? O povo acabará cultuando sua religião de forma clandestina, tal
como se fosse um “contrabando de fé” – ou cultuará o líder político de forma
religiosa. Além de cultivar um ódio secreto contra o governo, tal proibição
impositiva será inútil. O melhor será tentar dialogar com este sentimento,
apresentando uma visão transcendental própria, que reforce os valores da
sociedade comunista. Tais valores parecem existir em muitas destas religiões,
ainda que de maneira mística e muitas vezes grosseiramente exageradas, como é o
caso da exploração da fé popular a partir das inúmeras igrejas evangélicas
atuais.
O budismo, ao contrário, demonstra um
caminho religioso que pode reforçar a construção de uma sociedade mais
inclusiva, integrada, igualitária e democrática, isto é, princípios importantes
para uma sociedade comunista. Não se trata de defender que seja tratado como
uma “religião oficial”, mas de estabelecer pontes possíveis, teóricas e
práticas, que consigam evoluir em direção a uma sociedade melhor e ao
autoaperfeiçoamento individual.
O taoísmo, por sua vez, busca apontar o
caminho da virtude. Na sociedade capitalista tudo é transformado em mercadoria
e “premiado”. Desde os alunos nas escolas, que buscam através das melhores
notas a aprovação; até os trabalhadores que esperam o “prêmio” – o salário – no
final do mês, se estendendo até a busca por outras formas de reconhecimentos
egocêntricos, como fama, moda, palcos e palanques.
Segundo Lao-tsé, se a virtude é
premiada, as pessoas agirão pelo prêmio e não pela virtude em si mesma. O
prêmio, a recompensa, o “estímulo-resposta” atrai as pessoas à disputa, assim
como a ostentação de riquezas atrai ladrões. Por isso, uma educação e uma
prática social voltada ao cultivo da virtude deve ser um dos objetivos de uma
sociedade comunista, e não o simples retorno material da riqueza social
produzida. Esta prática é eminentemente “espiritual”. Quando a virtude não é
mais natural, é preciso lembrar da benevolência. Quando a benevolência não é
mais natural, as pessoas fazem o bem em nome do dever. Quando as pessoas já não
sabem naturalmente o que é certo, criam-se os preceitos por meio dos ritos. Os ritos
são o verniz da lealdade e da sinceridade, e o início dos mal-entendidos, das
divisões e das discórdias.
Assim sendo, o apogeu de uma sociedade
comunista deve ser uma economia que consiga trazer benefícios aos outros por si
mesma. Tudo deve trabalhar para isso: a produção, as relações sociais, a
prática laboral, a educação pública, a grande mídia, as redes sociais. Segundo
o budismo, a essência de cada ser (ainda que a maioria não pense a respeito
disso) é a capacidade de gerar benefícios ao outro, mas isso exige a qualidade
espiritual que é a habilidade de conseguir olhar o outro ser não a partir de
seu próprio contexto, mas a partir do contexto do outro – e nos referimos aqui
às diversas esferas da realidade de cada ser.
Os princípios básicos do budismo são:
não causar sofrimento, trazer benefício aos seres e dirigir a própria mente.
São preceitos aplicáveis à qualquer âmbito e, certamente, muito importantes
para sociedades socialistas e comunistas. É a essência do processo para gerar
méritos e tem implicações diretas sobre o processo econômico e social. Se a
atividade econômica gera danos, causará entraves e inevitáveis conflitos
sociais e políticos; até mesmo guerras. Se trouxerem benefícios e soluções,
como o equilíbrio e a harmonia – o máximo que for possível –, avançaremos. Muito
da nossa dificuldade surge quando acabamos presos em armadilhas de nossa
própria ignorância, movidos por impulsos internos e externos que nos levam a
direções equivocadas. Por esta razão, meditar para dirigir a mente e guiá-la
pela virtude torna-se importante.
O economista burguês, o marxista
doutrinário preso unicamente à esfera macro econômica e os diversos tipos de
cientistas apresentam grandes dificuldades e contradições nas suas análises e
propostas, uma vez que estão intoxicados por ideias antigas e estáticas que
funcionam como um filtro para a sua visão, impedindo-os de ver o novo. Dirigir
a mente através da meditação também significa purificar a visão. Esse conselho
é inteiramente válido em qualquer sentido.
O budismo e o taoísmo podem desempenhar
um papel em todo este processo, não necessariamente como tradições religiosas,
mas com ideias que possam oferecer segurança verdadeira às pessoas. Os
pensamentos budistas e taoístas podem colaborar com os diálogos entre posições
diferentes, pois ajuda-nos a compreender muito bem a questão cognitiva e a
impermanência.
Em síntese: o socialismo e o comunismo,
para se reciclarem, precisam de uma visão e uma cultura universal mais lúcida.
Uma cultura de paz, proposto pelo budismo e pelo taoísmo, necessita de uma
economia mais humanizada, solidária, cooperativa e menos competitiva; portanto,
mais socialista!
***
O budismo e o taoísmo não estão em
frontal contradição com as conclusões científicas ocidentais. Tampouco se opõem
a elas ou tentam se adaptar a elas sutilmente, buscando legitimidade, como
fazem a maioria das religiões organizadas. Sendo tradições religiosas e
filosóficas, o budismo e o taoísmo desenvolvem uma visão aberta, reconhecidas
pelo físico Fritjof Capra como já tendo antecipado muitas das conclusões
científicas que a Física só atingiria em meados do século XX. A visão da
conexão universal e interdependência entre todas as coisas, a impermanência,
presentes no budismo e no taoísmo, enriquecem a dialética hegeliana e marxista,
lhes abrindo caminhos de maleabilidade e novas formas de adaptação não-sectária
a partir da visão do caminho do meio.
A rememoração decorada de toda a
filosofia materialista não pode resolver o problema da busca religiosa presente
no indivíduo, muito menos convertê-la. Há que se respeitar esse sentimento e
aprender a dialogar com ele.
***
O que há na mente da maioria das
pessoas nesta existência é sofrimento e incerteza, o que gera aflição e desespero,
que não são o resultado exclusivo da
sociedade capitalista, mas da própria existência humana. Vemos, então, o
surgimento de um medo, muitas vezes doentio, que se disfarça de distintas
formas – e estes medos, obviamente, são manipulados pelo sistema atual.
Para muitos cientistas e pensadores, como
Carl Sagan, a morte provavelmente é um sono profundo e sem sentido, onde tudo
acaba. Este cenário gera medo desesperador na maioria das pessoas e é parte
fundamental de suas preocupações diárias. A religião, portanto, não pode ser debatido
com rótulos ou proibições, mas com reflexão coletiva e a compreensão da
importância da psique humana se conectar com o cosmos – o que pressupõe
entendê-lo até onde nos é possível (e aí está todo o nosso problema: até onde nos é possível!).
Tanto se a visão de Sagan for correta,
como se não for, a condução budista de buscar uma mente serena e tranquila,
cultivando-a lúcida e virtuosamente frente ao samsara, que é e a roda da vida terrestre, é um caminho a ser
seguido e aperfeiçoado. As “práticas religiosas”, que na maioria das religiões
organizadas, reduz-se a criar e reforçar o espírito
de rebanho, que leva a uma profunda dependência dos pastores e gurus, no
budismo e no taoísmo se traduzem pela meditação e aperfeiçoamento do indivíduo,
cuja finalidade é o controle sobre a própria mente e sobre si mesmo. Isto é,
treinar a mente para não entrar em desespero perante um ciclo perpétuo de
incertezas, sofrimento e dor da vida terrestre.
Na natureza há processos que não podem
ser abreviados pela evolução da ciência, como, por exemplo, o germinar de um
broto que vence a semente, a quebra da crisálida pela futura borboleta, e a
evolução interior do ser humano, que não pode ser compreendida e superada por
outras pessoas, se não por nós mesmos, na solitária luta individual. Melhores
condições materiais promovidas pela sociedade socialista podem auxiliar esta
luta solitária, mas não podem resolvê-la por si mesma.
O budismo e o taoísmo buscam a
sabedoria natural, o autoaperfeiçoamento, o desapego das posses materiais, o
treinamento da mente. Assim, podem contribuir decisivamente no campo psíquico e
espiritual para o desenvolvimento de uma sociedade socialista dando paciência e
a força necessária para a superação das lutas individuais solitárias, que
ocorrem em momentos muito diferentes para cada pessoa – diferentemente de um
processo revolucionário social, que é por natureza coletivo, mas que sofre
decisivas influências individuais. Podem ser, portanto, importantes pontos de
apoio para a mudança interior.
***
Falar que o budismo tem muito a ensinar
ao socialismo não exclui o fato de se perceber que há muita contradição entre
estas duas doutrinas – algumas irreconciliáveis em um primeiro momento e talvez
insuperáveis para as mentes mais ortodoxas e petrificadas. Apesar disso, ambas
são parte de realidades e culturas humanas, compondo uma mesma totalidade, quer
gostemos ou não. Isso não significa suprimir ou ignorar as polêmicas, como
propõe certas escolas budistas, mas torná-las menos destrutivas,
contraproducentes e egocêntricas; e mais complementares.
Um aporte importante para o pensamento
socialista da parte budista e taoísta diz respeito ao combate ao egocentrismo,
muito presente no movimento socialista. Certamente ambos podem ajudar a trazer
a tona o problema do ego dos “dirigentes” marxistas, que é um tanto grande e,
por vezes, arrogante. Criar um controle operário da produção e uma autogestão
social exigem novas formas de relações humanas e, sobretudo, o controle sobre o
egocentrismo desmedido desenvolvido pelos sistemas econômicos e políticos
anteriores. Para Lao-tsé, um líder é melhor quando as pessoas mal sabem que ele
existe, pois quando seu trabalho estiver feito, seu objetivo cumprido, todos
dirão: “nós mesmos o fizemos”. Este não deve ser o espírito de uma sociedade
comunista?
Justamente neste ponto é importante
levar em consideração a interdependência da relação entre a mudança interior e
exterior. Tanto o budismo quanto o socialismo são parciais: o primeiro atribui
tudo a mudança interior; o segundo, atribui tudo à mudança exterior. Cabe aqui
procurarmos um “caminho do meio” entre ambas percepções; ou seja: uma fluidez
dialética entre as duas concepções de mudança.
O budismo busca um auto aperfeiçoamento
pessoal através da meditação e do despertar de uma vida interior. Não há como
construir o socialismo sem a busca de uma visão mais humana cultivada
pessoalmente, de mudança interior permanente, a qual a simples organização
social não pode oferecer, nem suprir. O ser humano busca o contato com o eterno
desde os primórdios, e continuará buscando, apesar de qualquer ideologia ou
regime político. É um sentimento interior extremamente forte, que será
transformado em outro, como uma ideologia política, social, filosófica,
artística ou esportiva – que por sua vez, também não o suprirá.
O socialismo de orientação marxista, no
geral, tende a atribuir a mudança interior exclusivamente a mudança exterior.
Chega ao ponto de dizer que a tentativa de mudança interior é “perda de tempo”
se o exterior não for modificado. É possível aqui encontrar uma confluência com
o budismo, que valoriza a mudança interior prioritariamente, e atribui a esta
mudança à única forma de mudar o mundo exterior, o que certamente pode ser questionado
de ambos os lados.
Seria uma via de duas mãos,
literalmente um caminho do meio: valorizar a mudança interior, o
aperfeiçoamento pessoal, a meditação, o desenvolvimento da compaixão; ao mesmo
tempo em que somente a mudança interior não pode ser nada sem uma mudança
exterior que crie uma estrutura social mais justa e igualitária que se infiltre
por todos os poros do indivíduo e ajude a consolidação da mudança interior,
criando um regime social capaz de incentivá-la, tolerá-la e sustentá-la.
É possível intervir
sobre o samsara?
A noção de samsara – isto é, a realidade que conhecemos e percebemos como o
mundo material, “terrestre” – é, sobretudo, algo assustador, que deixa uma
grande dúvida acerca da concretização do socialismo, porque para o budismo este
mundo é irreformável (ele é o que ele é! Portanto, segundo o budismo, intervir
sobre ele seria inútil e até mesmo nocivo). No samsara também estaria a parte cruel e violenta da natureza, contra
a qual nada podemos fazer, a não ser buscar o equilíbrio e compreensão para com
ela e com nós. Em muitas escolas budistas não fica claro se o nirvana seria aqui mesmo, no samsara, ou numa outra “vida” ou
“realidade superior”. Alguns mestres budistas dão a entender que sim, outros que
não. Contudo, muitos dizem que é possível atingir o nirvana aqui mesmo e que esta mente tranquila é um ponto de apoio
fundamental para as relações dentro do samsara
tal como ele é.
Esta visão budista sobre o samsara ser irreformável, talvez mais
realista e, também, mais pessimista, sobre a vida na terra, uma vez que leva em
consideração vários fatores muito além da economia, pode abrir novas
perspectivas de intervenção sobre esta “roda da vida”, que massacra e traz
grande sofrimento às pessoas que estão perdidas neste “oceano de sofrimento”. A
teoria socialista, por sua vez, possibilita contribuir muito para ajudar no
melhoramento deste mundo externo (o samsara),
sem o quê, tampouco o mundo interior pode existir sem sofrer profundas e graves
influências.
Melhorar as condições existenciais
certamente contribuiria decisivamente para a prática meditava e para a
consolidação do Dharma (o caminho) e da virtude para todos os seres sencientes.
Lao-tsé disse: “Se queres iluminar o
mundo, ilumina-te. Se queres eliminar o sofrimento do mundo, elimina a
escuridão em ti. A maior dádiva que podes dar ao mundo é a tua
autotransformação”. É o resumo do que dizem quase todas as escolas de
pensamento oriental.
Se nos empenharmos na mudança do mundo
seriamente, isso deve, necessariamente, nos transformar também. Ao vermos
organizações políticas de esquerda que geram pessoas desumanizadas,
insensíveis, arrogantes e egocêntricas, mas que “professam a mudança social”
sem a coragem de se olhar no seu próprio espelho profundo, devemos constatar
que há algo de muito errado. Em essência, esta forma viciada “de mudar o mundo”
seria parte do problema e, portanto, do próprio sistema.
Olhando o nosso planeta, a sociedade e
o ego frente à necessidade de uma revolução, como resolver esta contradição?
Provavelmente ela só pode ser enfrentada quando o “eu interior” já não faz
nenhum esforço para mudar a si mesmo, mas ele próprio faz parte daquilo que
tenta mudar. Se você está consciente de toda a sua atividade interna, seus
pensamentos, seus sentimentos e suas reações, você descobrirá por si mesmo o
quão condicionado é, o quão limitado é! Isso é parte fundamental no caminho da
autolibertação, tão importante para estimular, de fato, uma revolução social. Um
movimento socialista e comunista que desdenha da “mudança interior”, que só
reconhece o externo, o econômico, o material, será incapaz de mudar a
sociedade, gerando apenas reedições pobres e mesquinhas das sociedades de
classe que já existiram e, portanto, ajuda a perpetuar o próprio samsara.
***
Post-Scriptum:
Anexo I:
Este texto não foi o único a tentar encontrar paralelos entre o budismo e o socialismo. Um ilustre comunista alemão já havia tentado erguer algumas pontes antes:
Parábola de Buda sobre a casa incendiada
Gautama, o Buda, ensinou
A doutrina da roda da cobiça, à qual estamos atados, e aconselhou
Livrar-se de toda a cobiça e assim
Sem ambição penetrar no Nada, que ele denominou Nirvana.
Perguntaram-lhe, então, um dia seus alunos:
Como é esse Nada, mestre? Todos nós queremos
Livrar-nos de toda cobiça, como nos aconselhas, dize-nos porém
Se esse Nada, no qual então penetraremos
É talvez como o ser-um com tudo criado
Ao deitar-se alguém na água, corpo leve, ao meio-dia
Sem pensamentos quase, com preguiça deitado na água, caindo no sono
Mal sabendo então que puxa a coberta
Afundando rapidamente. Se esse nada, portanto,
É assim contente, um bom Nada, ou se esse teu Nada
é simplesmente um Nada, frio, vazio, sem sentido.
Longamente silenciou Buda, e disse, então, displicente:
Nenhuma resposta para vossa pergunta.
Mas à noite, quando haviam partido
Sentado ainda sob o pé de fruta-pão, contou o Buda aos outros
Aos que não haviam perguntado, a seguinte parábola:
Há pouco tempo vi uma casa.
Queimava.
A chama lambia o telhado.
Aproximei-me e notei que havia pessoas dentro.
Cheguei à porta e gritei-lhes que o telhado estava em fogo, incitando-as a sair rapidamente.
Mas as pessoas pareciam não ter pressa.
Uma delas me perguntou, enquanto o calor lhe chamuscava a sobrancelha.
Se não soprava o vento, se não estava confundindo com outra casa e coisa assim.
Sem responder, afastei-me novamente.
Estes, pensei, têm que queimar, até pararem de fazer perguntas.
Em verdade, amigos,
Àquele que ainda não sente o chão quente o bastante para trocá-lo por qualquer outro, em vez de lá ficar,
a este, nada tenho a dizer.
Assim fez Gautama, o Buda.
Mas também nós, não mais ocupados com a arte de suportar
Antes ocupados com a arte de não suportar, e apresentando sugestões varias de natureza terrena, e aos homens ensinando a desvencilhar-se dos tormentadores humanos,
achamos que àqueles que
À vista dos iminentes esquadrões de bombardeiros do Capital gastam tempo a perguntar
Como pensamos em fazer isto, como imaginamos aquilo
E o que será de suas economias e de seus trajes de domingo após uma reviravolta
Nada temos a dizer.
Bertold Brecht
***
Anexo II:
sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
Javier Milei eleito presidente da Argentina
sexta-feira, 3 de novembro de 2023
Uma nova tentativa de diálogo sobre o dogmatismo “religioso” do movimento socialista
Mal o texto Dogmatismo e omissões do movimento socialista em relação ao sexo e à religiosidade humana foi publicado e alguns dias depois já tinha recebido uma
pronta “resposta” do blog Coerência Marxista, que, ao que tudo indica, é um dos
poucos leitores assíduos de nosso blog.
É interessante notar como perdemos boas
oportunidades de trocas e de crescimento coletivo em nome de ataques
“teóricos”, muitas vezes de cunho pessoal, cuja finalidade maior é saciar o ego.
Apesar desse tipo de “diálogo”, digamos, um tanto viciado, vamos tentar pensar
juntos sobre o nosso texto e a resposta do blog Coerência Marxista, para ir mais
além.
Em primeiro lugar, queremos reconhecer
que o nosso texto foi, por vezes, arrogante, tal como é grande parte dos textos
“marxistas”, que usam um linguajar que pretende dar conclusivos “xeques-mates”
e coloca, às vezes, indistintamente muita gente em balaios de gato. Isso
certamente causou parte da ira e do descontentamento do Coerência Marxista.
Talvez o referido blog não veja problema nisso, tanto é que o reproduz; mas nós
vemos. Queremos ser melhores do que fomos ontem, nos aperfeiçoando e tentando
evitar a arrogância.
Ainda que a linguagem do nosso texto
tenha soado arrogante e em parte ofensiva, queremos sustentar de uma maneira
mais adequada e menos belicosa o conteúdo dele. A crítica ao nosso texto nos dá
a oportunidade de repensá-lo, é claro, desde que estejamos afim de pensar de
forma renovada.
Não conseguimos entender o porquê de
tamanha virulência contra o nosso blog, dado que a nossa influência social
sobre a classe trabalhadora – grande objetivo do blog Coerência Marxista – é
praticamente nula. Não podemos acreditar que pensem que influenciamos algum
tipo de “massas”. Por certo, tentamos, mas estamos muito longe disso. A
explicação mais plausível que encontramos para a resposta que recebemos é que,
de certa forma, o blog Coerência Marxista demonstra involuntariamente que o
nosso texto atingiu sua finalidade. Qual seja? A de demostrar como grande parte
da militância de esquerda vivencia o marxismo como um substituto para a
religião na psique humana, que ao ver parte de suas bases questionadas,
desencadeia uma série de ataques fundamentalistas visando manter a “pureza dos
seus princípios”, já que é deles que tiram um sentido para as suas vidas.
Um pequeno exemplo extraído das redes sociais
Tal tipo de “ataques fundamentalistas”
se dão desta forma porque são resultado de uma cegueira, que confunde o juízo,
movido, no mais das vezes, por uma raiva irracional que está presente dentro de
nós e que é desencadeada quando nossos valores que nos dão segurança pessoal
são questionados. A seguir vamos tentar explicar melhor algumas de nossas
conclusões ao blog Coerência Marxistas que, na sua resposta, apresentam muitas
omissões que falam muito!
1.
O blog Coerência Marxista pergunta “quem é a esquerda nova e quem é a velha?”,
dando a entender que foi um equívoco nosso blog não diferenciar, nem explicitar
a quem nos referíamos.
O texto que postamos é uma crítica
global à atual esquerda, em quase todas as suas esferas e níveis. Poucos
agrupamentos ou militantes não sofrem do mal que foi criticado. É, portanto,
uma crítica ao próprio marxismo, que é visto como perfeito (ou semiperfeito
pela maioria das organizações de esquerda – talvez Gramsci tenha sido um dos
pensadores marxistas que mais se preocupou com certas lacunas, como o problema
da religião).
Há diferenças políticas entre as
esquerdas sim. O restante dos vários artigos do nosso blog faz essa
diferenciação, porém, o que o texto que postamos no dia 13 de junho quis
criticar serve para quase toda ela, sem exceção. Se o nosso texto é severo, em
particular, para com o marxismo (e o trotskismo), isso não significa que não
reconheça nele(s) todos os seus méritos. Ao contrário, está criticando o que
considera os seus pontos fracos (ou ele está isento de pontos fracos?).
Por exemplo, no caso do nosso texto,
deu-se ênfase aos problemas teóricos negativos relacionados ao “espírito do
tempo” (existem também os positivos, que não foram abordados porque não era
esse o objetivo). Podemos destacar a excessiva ênfase no cientificismo como
“plena solução” e o completo menosprezo à intuição – algo que como falamos,
reflete bem o positivismo do século XIX (o mesmo excesso pode ser visto na
psicanálise freudiana).
As organizações menores sofrem com o
messianismo e o purismo “religioso” não declarado; já as organizações maiores,
como o PT e o PCdoB, mesclam-se oportunistamente às religiões organizadas e
surfam na sua onda, sem crítica alguma.
2.
Um problema central que apresentamos no
nosso texto e que compreendemos ser equivocado no marxismo, terminando por se
espraiar para distintas organizações de esquerda, é o caso do messianismo e da
cosmogonia.
Isso não significa que o marxismo como
teoria política e econômica deixe de ter valor. Só denota que seria
interessante depurá-lo de determinados excessos que tendem a fazê-lo exagerar – misticamente, sem o admitir! – alguns elementos
da realidade. Por exemplo, na espera pelo despertar do sujeito social, a forma
como ele se expressa e a redenção quase religiosa que “causará” – isso não é
parecido, para dizer o mínimo, à pregação pela vinda redentora de um messias?
O próprio texto de resposta do blog
Coerência Marxista é um atestado involuntário desse messianismo, reafirmado-o
inconscientemente por distintos meios. De certa forma o nosso texto foi um
pouco leviano no linguajar e ríspido demais em algumas colocações, uma vez que
questionar valores e a segurança pessoal de alguém (ou de organizações
inteiras) deve ser feito sempre de uma maneira mais refletida e serena, nunca
leviana.
3.
Um dos principais erros da resposta do
blog Coerência Marxista se dá em relação ao conceito de numinoso. Não conhecemos, nem nos referenciamos no autor que foi
citado por ele. O texto do nosso blog se baseia no conceito de Carl G. Jung, ao
qual certamente o Coerência Marxista não conhece – e, se por ventura o conhece,
provavelmente o menospreze.
O numinoso, para Jung, é um efeito que
se apodera e domina o sujeito humano, que passa a ser mais sua vítima do que
seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição
do sujeito, e é independente de sua vontade. O dado mais importante talvez seja
que o caráter numinoso consiste em que a pessoa se sinta subjugada por este
sentimento. De modo particular, o pensamento numinoso tem sua origem na
experiência vital. Assim, a imagem numinosa é muito mais uma expressão de
processos inconscientes do que o resultado de uma operação racional. Ela está
incluída na categoria das realidades
psicológicas, surgindo daí o problema relativo a seus pressupostos
psíquicos. Temos que pensar aqui num processo de formação de símbolos que se
estende por vários séculos e tende constantemente a tornar-se consciente. Todos
nós, em alguma medida, já sentimos os efeitos do numinoso.
Para o indivíduo, enquanto fenômeno
psíquico, o numinoso é sentido como objetivamente real. Nesta constatação
acham-se incluídas, naturalmente, todas as afirmações (até mesmo contrastantes)
que algum dia já foram ou ainda serão de caráter numinoso. A numinosidade do
objeto torna difícil que se lhe dê tratamento racional, pois é o caráter
afetivo que se destaca na mente.
Tudo isso não seria da mais alta
importância para militantes que se colocam como tarefa fazer uma revolução
socialista com a classe trabalhadora, hoje dominada pelos mais diversos tipos
de religiosidade com seus respectivos sentimentos numinosos? Ao que tudo
indica, para o blog Coerência Marxista a resposta é não!
Quem não tem concepções religiosas –
como é o caso do blog Coerência Marxista – não gosta de reconhecer-se como
portador de um déficit. Apela para a
sua mentalidade esclarecida. Quem se fixa nesse ponto de vista dificilmente
admite o caráter numinoso do objeto religioso, e este, não poucas vezes, o
impede de pensar criticamente, pois pode acontecer que sua fé na racionalidade
estrita, como no iluminismo, no cientificismo, no “ateísmo”, no “marxismo” –
isto é, em teorias e ideologias que podem
tomar o lugar psíquico da fé religiosa – seja abalada. Não apenas passa a
encarar a dúvida como coisa desagradável e penosa, como passará a temê-la. Se
chegar a temê-la, tenderá, então, a reforçar a sua fé inabalável nas teorias ou ideologias que podem tomar o lugar psíquico da fé religiosa com gritos e
declarações tonitruantes.
O blog Coerência Marxista ainda faz uma
pergunta sobre se a geografia seria uma ciência numinosa porque nós, seres
humanos, seríamos menores do que a Terra. O sentimento numinoso não está
relacionado apenas ou prioritariamente ao tamanho, mas, sobretudo, ao
sentimento psicológico relativo ao “sagrado”, ao transcendental. A própria
formulação da pergunta deixa evidente que o blog que nos criticou não entendeu
nada sobre o conceito de numinoso. Nesse caso, os melhores remédios seriam o
estudo dedicado e a humildade.
4.
Entender o conceito de numinoso como
Jung o entende não significa que “nada pode ser feito” ou que a ciência “para
nada serve”, mas tem a função de demonstrar certos limites do conhecimento
humano, que são visíveis a olho nu e precisam ser reconhecidos se queremos que
ele avance. Sobretudo demonstra como outras forças psíquicas entram em jogo na
formação intelectual da maioria das pessoas. Para o blog Coerência Marxista,
ainda que reconheça que existem “mistérios” que a química e a física não
explicam, isto é apenas um detalhe que não precisa causar preocupação.
No quesito da linguística e das
palavras, Coerência Marxista parece nunca ter refletido uma vírgula sobre os
limites da linguagem, pois pensa que tudo é acessível às palavras – e,
sobretudo, às explicações cartesianas baseadas em fórmulas. Bastaria o exemplo
de se tentar explicar as cores a um cego de nascença ou música a um surdo
através da fala ou mesmo da escrita para vermos as limitações das palavras.
Nestes casos, a experiência direta não pode ser substituída por uma narrativa.
Reduzir a complexidade do problema a
uma fórmula é justamente o que faz o pensamento mecânico. Grande parte da
esquerda resume tudo a fórmulas “supersimples”. Talvez este seja um dos
motivos pelo qual a influência da esquerda torna-se cada vez menor no mundo
atual.
Por mais importante que sejam as
fórmulas para o raciocínio matemático, físico e químico, elas não podem
solucionar o problema das lacunas da ciência e das questões transcendentais
(tampouco o podem nas questões da política revolucionária). A matemática é
apodítica, totalmente baseada na lei da causalidade. Esta última é questionável,
uma vez que, partindo de uma boa hipótese de David Hume, a causalidade não é
mais do que uma crença baseada na ação sobre o hábito, que deixa de perceber os fenômenos novos.
O blog Coerência Marxista afaga a doce
esperança de que com o acúmulo aleatório (ou semialeatório) de informações
científicas pela humanidade venhamos formar um dia um todo pleno de sentido – e
que explique tudo! Mas ninguém pode
ter certeza disso, uma vez que nenhum cérebro humano (nem a totalidade consciente de cérebros humanos) é capaz
de abranger a gigantesca soma final deste saber produzido em massa. Compreender
o desenvolvimento científico desta forma em nada o anula ou o menospreza, mas o
coloca sob uma perspectiva mais realista, já que problematiza os seus limites e
abre a possibilidade de se pensar em soluções e alternativas.
Os marxistas, a grosso modo,
consideram-se cientistas (o blog Coerência Marxista, por suposto, também). Um
cientista geralmente se esquece que a maneira objetiva de tratar um tema pode
ferir valores emocionais em proporções indesculpáveis (como fazendo uma análise
antropológica da religião de alguém, por exemplo, sem nenhuma preocupação com a
forma). No mais das vezes, o intelecto científico é desumano, e, com certa razão e até certo ponto, não pode permitir-se o privilégio de ser
diferente. Consequentemente, é inevitável que se torne insensível e sem
consideração, mesmo quando baseado em motivos positivos.
Muitas organizações e militantes agem
assim também nas suas vidas pessoais e no trato com o outro no dia-a-dia. A
arrogância desmedida e irrefletida rompe pontes entre nós, entre a classe
trabalhadora, entre a sociedade em geral, em prol de certezas políticas e
teóricas, no mínimo, questionáveis. Assim, erguem-se, estupidamente, barreiras
sectárias desnecessárias. As forças conservadoras da sociedade, ainda que
baseadas em interesses desprezíveis, prestam mais atenção nestes “detalhes”.
5.
Além de Jung, o blog Coerência Marxista
também ignorou o nome de Fritjof Capra, no qual grande parte das ideias do
nosso texto que foi “criticado” se baseia.
Capra dedicou sua vida à pesquisa e à
demonstração da semelhança – para não dizer plena identidade – entre as
conclusões da física moderna e do pensamento místico Oriental. As expressou em
duas obras capitais: O ponto de mutação
e O tao da física. Tirou daí conclusões
pertinentes sobre o esgotamento do tipo de evolução científica e civilizatória que
conhecemos.
Ele afirma: “No século XX os físicos penetraram a fundo no mundo submicroscópico,
em regiões da natureza muito afastados do mundo macroscópico em que vivemos. O
nosso conhecimento da matéria nesse nível já não provém da experiência
sensorial direta; em consequência, a linguagem comum já não é mais adequada
para descrever os fenômenos observados. Os físicos nucleares proporcionaram aos
cientistas os primeiros vislumbres da natureza essencial das coisas. Como os
místicos, os físicos passaram a lidar com experiências não sensoriais da
realidade e, também como eles, tiveram de enfrentar os aspectos paradoxais
dessas experiências. A partir desse momento, os modelos e as imagens da física
moderna tornaram-se vinculados aos da filosofia Oriental” (extraído de Sabedoria incomum).
Capra insiste na limitação e no
esgotamento da evolução científica baseada na visão newtoniana e cartesiana. A
ciência, em sua opinião, não deveria ficar restrita a medições e análises
quantitativas, mas basear-se, sobretudo, nos processos. Para ele, outros aspectos, como a quantificação ou o uso
da matemática, são frequentemente desejáveis, mas não fundamentais. Capra ainda
aponta que a teoria quântica mudou consideravelmente a concepção clássica de
ciência ao revelar o papel crucial da consciência do observador no processo de
observação e invalida, assim, a ideia de uma descrição objetiva da natureza.
O pensamento como processo e o papel do
observador também são características das tradições místicas do Oriente. Essa
teoria das partículas subatômicas da física quântica reflete a impossibilidade
de se separar o observador científico dos fenômenos observados. Os místicos
orientais nos afirmam e reafirmam que todas as coisas e eventos que percebemos
são construções da mente, surgindo de um estado particular de consciência e
dissolvendo-se novamente caso esse estado seja transcendido. Essas novas conclusões
trazem problemas ao debate filosófico do marxismo que precisam ser enfrentadas
seriamente, e não com citações canônicas de fragmentos de textos dos “mestres
inquestionáveis”.
No entanto, Capra não propõe que os
físicos comecem a meditar e se convertam à alguma religião, ou sequer sugere
uma síntese entre ciência e religião Oriental. Ele simplesmente advoga a ideia
de que é preciso desenvolver uma interação
dinâmica entre a intuição mística
e a análise científica. Isto é, o
mesmo que o texto do nosso blog originalmente propôs no campo da teoria
política e foi mal compreendido.
Desta conclusão difícil, mas bem
refletida, para a conclusão do blog Coerência Marxista de que a proposta para
solucionar os problemas analisados pelo nosso texto “é mais religião e mais
loucura”, ou de que tratamos o socialismo “como
artigo de luxo para servir aos seres dotados de atitudes místicas”, existe
não um fosso, mas um abismo que expressa diferenças forçadas e tolas de quem
sente medo porque os seus dogmas e suas seguranças foram questionados. Nem propusemos
que se crie qualquer tipo de religião ou solução religiosa. Quisemos apenas
destacar uma constatação de fatos observáveis em dois extremos dos movimentos
sociais, seja entre a militância de esquerda, seja na visão religiosa da maioria da
classe trabalhadora.
6.
A militância atual trata “a massa” da
classe trabalhadora como algo disforme, uma espécie de argila, em que a
vanguarda, o partido ou a teoria que estes detêm, conseguem modelar o pote ou o
artefato de cerâmica. Não há interação e compreensão numa relação nova,
recíproca, harmoniosa e criadora, mas, na prática, imposição daquilo que já se sabe,
desconsiderando uma série de fatores, tal como um lado sendo o portador da luz
da sabedoria e da “verdade plena”; e o outro, da total escuridão da ignorância.
Não há trocas, porque um lado se
superestima; enquanto o outro é desconsiderado completamente naquilo que de fato é.
Aqui não se trata de adotar um discurso
e uma prática “basista” ou espontaneísta, mas de perceber como os valores da
massa, bem como ela em si mesma, é vista como a encarnação da ingenuidade,
totalmente engada e manipulada inescrupulosamente por direções traidoras, sem
espaço algum, por menor que seja, para uma escolha livre que parta dela mesma.
Basta esperar um despertar da massa pela “política correta” das organizações de
esquerda, tal como um alinhamento dos astros, para ocorrer o terremoto
revolucionário.
Sim. Isso é o que todos nós,
socialistas, queremos: a mudança! Mas devemos reconhecer, humildemente, que
algo de errado vem sendo feito, não apenas na prática, mas também a partir das
insuficiências teóricas – incluindo a sua dogmatização pela militância de
esquerda, inconscientemente ávida por preencher o seu vazio existencial. Para
os dogmáticos não é necessário compreender a psicologia de massas. Tudo o que supostamente
precisamos saber já estão nos cânones. Bastaria, então, segui-los e não “traí-los”.
Séculos de cristianismo, com seus rituais, exegeses, heresias, excomunhões,
assassinatos, etc., não poderiam passar incólumes pelas práticas de organização
política e social.
A situação da classe trabalhadora hoje
é diferente do século XIX – é distinta ainda de país para país, de região para
região. Vivemos uma época de crises emocionais e existenciais, com altos
índices de depressão, ansiedade, suicídios, explosões de violência e de extrema
apatia. O iluminismo guilhotinou o cristianismo e a religião, deixando o espaço
psíquico humano desprovido de um substituto, obrigando-os a buscar em diversas
outras áreas, como os relacionamentos humanos, incluindo os abusivos e vazios,
as agremiações que são “maiores do que nós” (igrejas evangélicas, associações,
movimentos, partidos, sindicatos, torcidas de futebol, etc.); além das drogas,
remédios e do “recurso” ao suicídio. Dentro deste vácuo, a ciência tende a tornar-se,
de certa maneira, um substitutivo para a religião. Porém, como é muito técnica,
fria, “apolínea”, não pôde, até o momento, suprir algo que exige mais
humanidade, mais contato, que misture os limites e as fronteiras.
Assim, podemos dizer que o atual
individualismo transformou-se numa realidade subjetiva imperiosa muito maior do
que a coletividade era até então, ainda
que esta continue sendo determinante. Tanto para a construção do socialismo,
quanto para os dias atuais de capitalismo selvagem, compreender o funcionamento
da mente coletiva, consciente e inconsciente, e a que sofre individualmente, é decisivo.
O blog Coerência Marxista busca
refugiar-se nos textos clássicos, nos cânones das explicações dos grandes revolucionários
do passado. Sobre o stalinismo cita – provavelmente de cor – os livros de Trotski.
Em relação aos motivos que levaram à ascensão do stalinismo, está objetivamente
correto e bem decorado. Mas não é disso que estamos falando aqui. O pensamento
stalinista é grosso, arcaico, rígido. Para ele basta colocar em cima da entrada
das igrejas a frase “a religião é o ópio do povo” e a questão se resolve. Ou
seja, tudo o que precisamos saber já está contido na direção do partido e na
“teoria”. A religião que Stalin produziu de si mesmo endossa os argumentos do
texto que deu origem a este debate: não é possível extirpar a religiosidade da
mente humana – ela apenas mudará de forma e se infiltrará em outras esferas
psíquicas.
No caso específico da construção do
socialismo, a educação pública e a grande mídia “controlada pela classe
trabalhadora” não serão suficientes se
não dialogarem e não levarem em consideração as necessidades transcendentais da
psique humana, capaz de gerar um novo olhar de compaixão, afeto,
felicidade, integração com a natureza, com o universo e com a humanidade em
geral – isto é, uma relação com o infinito e o eterno. Sem este diálogo, as
pessoas tendem a se voltar para o hedonismo, para o autocentramento como fator
determinante de seu interesse no mundo, de seus relacionamentos fechados em si
mesmos, assim como dos seus estritos interesses econômicos pessoais e
familiares. Os interesses materiais, econômicos, são importantes, mas não podem
suprir todas as demandas subjetivas, que continuaram existentes e pulsantes.
A compaixão, como expressão de uma
mudança interior que seja ativa, não é um comportamento piedoso individual,
meramente contemplativo, mas uma inteligência lúcida e uma forma de atuação no
mundo. Falta isso à maioria dos militantes hoje em dia, que muitas vezes tratam
outros seres humanos como lixo por não conquistar sua concordância imediata; se
orgulham do seu intelecto, mas não tem a menor preocupação com a sua conduta
diária, com o respeito, a ponderação, a empatia. Pensam que se já detém a
compreensão do programa socialista, acham nisso alguma suposta razão para se julgarem
superiores.
Portanto, a preocupação em mudar o
interior das pessoas (algo subjetivo) é tão importante quanto mudar o exterior (socializar os meios de produção); e isso,
repetimos e reforçamos, é menosprezado pela militância atual, pois a mudança interior não se dá de forma
automática, sendo tratada como algo menor, sem valor, idealista, digno de
piedade e rechaço. O blog Coerência Marxista reforça a noção rasa e simplória
deste automatismo econômico: não é necessário se preocupar com as questões
subjetivas da psique humana, seus sofrimentos, que seguem caminhos tortuosos,
nem pensar soluções políticas para isso (até onde nos é possível); tudo de
fundamental ocorreria automaticamente com a expropriação dos meios de produção.
Na contramão da complexidade do
problema, o blog Coerência Marxista sugere resolver a questão da mudança
interior com palavras de ordem supersimples,
como os bolcheviques propuseram em 1917: pão, paz e terra. Isso não nos parece
uma “solução”, mas uma resposta pueril, decorada e pouco criativa. Em 1917 foi
decisivo para a mudança exterior.
Hoje não tem sido.
7.
Sobre o fato de nosso texto ter partido
de uma reflexão de Perry Anderson – e ele ser considerado um “socialista
reformista” –, parece apenas a repetição de um pensamento ortodoxo das
religiões organizadas, que na maioria das vezes manifesta rechaço e ojeriza aos
textos de outras tradições. Não sabem lidar com o diferente, nem pensar a
partir deles, a não ser rotulando-os, combatendo-os ou queimando-os na fogueira
da santa inquisição.
O fato de Perry Anderson ser reformista
não invalida partirmos de uma de suas reflexões.
8.
Outra questão abordada pelo blog
Coerência Marxista diz respeito ao sexo. Porém, a deixou reduzida apenas ao
ponto específico do relacionamento monogâmico ou “aberto”, pensando, com isso,
ter solucionado um debate extremamente complexo e inexplorado pelo marxismo.
O movimento socialista é, no geral,
omisso sobre este tema. Ou fala em linhas gerais sobre emancipação feminina,
igualdade social entre os sexos; ou se restringe a um silêncio profundo, como
se este tema fosse questão de foro íntimo, tal como a escolha religiosa de cada
pessoa.
As questões sexuais estão diretamente
relacionadas aos problemas emocionais e psicológicos da massa humana (e dos
seus indivíduos). A militância em geral – e o blog Coerência Marxista, em
particular – tende a reduzir tudo a
um debate hedonista: o sexo é para a libertação do prazer, sem fim e sem
limites. Coloca-se tudo abaixo e pronto! A questão está resolvida! Pra que
ficar “falando tanta asneira” por coisas tão simples e óbvias?
Mas a realidade insiste em ser muito
mais complexa do que quer os esquemas formais. Sexo mexe com a biologia
profunda, que desencadeia pulsões e forças psíquicas por vezes incontroláveis;
ele é considerado por pensadores ao estilo de Freud, Jung, Camille Paglia,
Erich Neumann, Willian Blake – dentre outros – como uma “força daimônica”, capaz
de reproduzir os terrores da natureza ctônica. Se esta força não for levada em
consideração, pode ser autofágica, paralisar ou destruir a sociedade,
incentivando o caos e a violência.
Segundo Camille Paglia, por exemplo, “o sexo é um poder muito mais sombrio do que
admite o feminismo. As terapias sexuais behavioristas julgam possível o sexo
sem culpa, impecável. Mas o sexo sempre foi cercado de tabu, independentemente
da cultura. O sexo é o ponto de contato entre o homem e a natureza, onde a
moralidade e as boas intenções caem diante de impulsos primitivos. (...) O erotismo é um reino tocaiado por
fantasmas. É o lugar além dos confins, ao mesmo tempo amaldiçoado e encantado.
(...) O sexo é daimônico. Este termo vem
do grego daimon, que significa um
espírito de divindade inferior à dos deuses do Olimpo. (...) O cristianismo transformou daimônico em
demoníaco. Os daimons gregos não eram maus – ou melhor, eram ao mesmo tempo
bons e maus, como a própria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud é
o domínio daimônico. De dia somos criaturas sociais, mas à noite mergulhamos no
mundo dos sonhos, onde reina a natureza, onde não existe lei, mas apenas sexo,
crueldade e metamorfose. O próprio dia é invadido pela noite daimônica.
(...). As operações do sexo são
convulsivas, do intercurso à menstruação e ao parto: tensão e distensão, espasmo,
contração, expulsão, alívio. O corpo é retorcido em inchação e abandono. Sexo
não é o princípio do prazer, mas a servidão dionisíaca do prazer-dor. Tanta
coisa é uma questão de superar resistência, no corpo ou no amado, que o estupro
será sempre um perigo presente” (Camille Paglia, Personas sexuais, Cia das
letras, páginas 15 e 37).
Reparem as contradições e complexidades
da questão sexual, reduzida à suposta liberação a partir do relacionamento
poligâmico. Que consequências podem advir de uma compreensão rasa e
reducionista do debate sexual?
Para além disso, há também a estreita
relação entre sexualidade e religiosidade, desenvolvida em uma luta permanente
de aceitação e repressão que se deu ao longo dos milênios. O livro intitulado
“A sexualidade sagrada”, de Georg Feuerstein, demonstra com argumentos eloquentes
a evolução das práticas religiosas e ritualísticas que envolviam o sexo desde a
pré-história, passando pelas civilizações antigas, medievais, até as modernas.
Este livro é recomendado porque faz um bom resumo do assunto, mas certamente
não é o único. A dissociação do sexo de sua dimensão sagrada não deixou de ter
consequências políticas, religiosas e psicológicas – em síntese, não deixou de
ter profundas consequências práticas que ainda povoam o inconsciente coletivo e
tem reflexos políticos e sociais ignorados.
9.
Na questão do casamento não monogâmico,
isto é, do “relacionamento aberto”, também é necessário pontuar grandes
diferenças.
Este caso é ilustrativo porque se trata
de um dos elementos importantes para a construção de uma nova sociedade,
evitando julgamentos destrutivos e trabalhando para a superação da moral atual.
O fato de muitas pessoas (e, principalmente, muitos militantes) propagarem e
supostamente já praticarem o “relacionamento aberto” não significa que estejam
necessariamente construindo uma nova forma de relacionamento “socialista”,
revolucionária ou, simplesmente, novas formas mais saudáveis de se relacionar. Tudo
tem que ser examinado com muito cuidado e critério, concretamente, sobretudo no
trato entre si e no grau de autonomia emocional e real que desenvolve nas
pessoas envolvidas.
Em muitos casos ocorre a infiltração de
pensamentos, sentimentos e utilitarismos burgueses, dado que vivemos no
capitalismo selvagem e bárbaro. Se não temos uma nova cultura moral tolerante e
acolhedora, na atual sociedade burguesa muito provavelmente esta modalidade de
relacionamento pode ser infiltrada por motivações narcisistas, hedonistas e
utilitaristas; muitas vezes se escondendo atrás de justificativas “modernas”, “progressistas”,
“socialistas”, “marxistas”.
Não há relacionamento aberto possível
sem se preocupar com o outro; sem ser sensível com suas demandas e tempos; sem
paciência e, sobretudo, sem que o entorno, a sociedade, a moral, o julgamento
alheio, estejam se modificando para melhor (por menor que seja este passo
adiante). É necessário, sobretudo, a autorreflexão, auto reconhecimento e
maturidade — artigos raros, em especial, a última, uma vez que a sociedade
capitalista, suas instituições, mídias e religiões organizadas, infantilizam as
massas de seres humanos, injetando-lhe incontáveis doses diárias de hedonismo e
narcisismo egocêntrico como forma de dominação e submissão.
10.
Parte fundamental da vida interior das
pessoas – sobretudo as que compõem a classe trabalhadora – diz respeito à
religiosidade, ao medo da morte, das inseguranças da vida, da visão errônea de
se sentirem sozinhas e pequeninas (o que as leva a se associarem a qualquer
coisa, incluindo às religiões organizadas, como as igrejas evangélicas, que
exploram o seu sentimento numinoso). Parte dessas inseguranças diz respeito,
sim, ao sistema econômico, ao desemprego, à miséria. A outra parte diz respeito
aos anseios congênitos da espécie, expressos nas buscas religiosas por sentido
e “contato com o eterno”, que podemos constatar em distintas épocas e
civilizações (e ainda hoje!). O debate sobre a mudança interior das pessoas pode se iniciar com a socialização dos
meios de produção, como “nos ensina” o blog Coerência Marxista, mas ele não é
automático, nem é inevitavelmente desencadeado se não for pensado, arquitetado
e estimulado conscientemente.
O “eu” (e o seu mundo interior, repleto
de “eus”) não está separado da realidade externa. Ao contrário. São partes de
um mesmo todo que se influenciam mutuamente. Ignorar este fato é mutilar a
mudança social; é condená-la a ser parcial e, portanto, ineficaz. Trata-se de
uma relação dialética entre os mundos exterior e interior que não pode ser
menosprezada.
O que se quer dizer com mudar o interior
das pessoas? Há importância alguma nisso ou se trataria apenas de mais um
discurso idealista, burguês, determinado a enrolar e a desviar o proletariado da
luta pela superação de suas direções traidoras?
Tudo o que você é, o que pensa, o que
sente, o que faz em sua vida diária, é projetado para fora, e acaba
constituindo parte do mundo a sua
volta.
Se somos infelizes, confusos,
arrogantes e intimamente caóticos, através da projeção, isso se torna o mundo e
a sociedade para nós. Se o nosso relacionamento é estreito, egocêntrico,
limitado, patriótico, preconceituoso – seja em que esfera for –, projetamos
isso para fora de nós e contribuímos com o caos no mundo. O mundo é parte do
que você vê e projeta nele, tal como nos demonstra a física quântica e o
pensamento místico Oriental. A realidade é uma coisa peculiar. Ela está aí
quando você não está olhando, mas quando você a olha com ganância, raiva ou
medo, aquilo que você capta é o sedimento de sua ganância, raiva ou medo, e não
a realidade.
A dificuldade consiste em que nunca
desejamos estar incertos e temos medo de perder tudo. A mente vendo-se incerta,
busca a certeza, criando assim o temor. Do temor nasce a imitação, o
estabelecimento da autoridade – política, teórica, religiosa, etc. – visto que a
mente exige um estado de continuidade, onde se veja e se sinta como certa. Mas a mente que corre atrás de
certezas, nunca tem espaço onde seja possível o aparecimento e o contato com o real.
Tomemos como exemplo o mal que cada um
sofre desde a infância. Você é magoado pelos próprios pais, depois na escola,
na universidade, no trabalho, através do julgamento, da comparação, da
competição. Durante toda a vida existe este processo de ser comparado, julgado,
magoado. Na maioria das vezes, de forma inconsciente.
O que se torna este “eu”, este “meu”?
Ele pode ser entendido como um nome,
uma forma, um fardo de memórias, de esperanças, frustrações, anseios,
sofrimentos, prazeres vivenciados e esperados, alegrias passageiras. Queremos
que esse “eu” evolua e veja além de si próprio; torne-se empático, sociável;
evite o egoísmo e o egocentrismo. A socialização dos meios de produção não cria
isso automaticamente.
Vendo o mundo, a sociedade e o “eu”
frente à necessidade de uma revolução, como resolver esta contradição? Provavelmente
ela só pode ser enfrentada quando o “eu interior” já não faz nenhum esforço
para mudar a si mesmo, mas ele próprio faz parte daquilo que tenta mudar. Se
você está consciente de toda a sua atividade interna, seus pensamentos, seus
sentimentos e suas reações, você descobrirá por si mesmo o quão condicionado é,
o quão limitado é! Isso é parte fundamental no caminho da autolibertação, tão
importante para estimular, de fato, uma revolução social.
Um ambiente materialmente favorável, sem
preocupações subjetivas, pode apenas fortalecer a perigosa tendência de se
esperar que tudo se origine de fora – inclusive a mudança interior que a
realidade externa não pode providenciar. Não há contradição e conflito entre o
interno e o externo. Isso precisa ser pensado desde agora, pois é necessário renovar
o arsenal teórico. Quem se nega a fazer isso contribui com a mesmície, que não
pode nos fazer sair deste mato sem cachorro em que estamos.
Não há nada de misterioso ou místico
nisso. Sabemos de tanta coisa que está se passando no mundo e tão pouco a
respeito de nós mesmos! Não comecemos pelo limite extremo do problema, que é o
fim do “eu”, mas pelas coisas pequenas, pelo dia-a-dia, pelas manifestações
miúdas do cotidiano. Deve-se tentar, em essência, observar sem um observador,
um julgador, um condenador que já tem tudo pronto de antemão. Esse é o primeiro
passo para poder se interferir nessas micro teias que ajudam a sustentar o
macro.
11.
Por acaso, para construir uma sociedade
sem Estado e sem classes sociais não é necessário desvendar o segredo do ego,
trazer à tona suas contradições, suas forças ocultas inconscientes, suas
influências egoístas e narcisistas, seus distintos medos e inseguranças?
Estimular a mudança e superação disso não é fundamental para uma sociedade
comunista? Tais mudanças, repetimos, não
chegaram nem perto de acontecer em Cuba, China ou Rússia apenas com a
socialização dos meios de produção. Ao contrário, com uma mudança inicial nos
meios de produção tudo veio de fora e o que se reforçou foi centralmente o
espírito de submissão e, portanto, de rebanho. A burocratização também é um
resultado desse processo e da ausência de tais preocupações.
Não seria muito importante que o
combate ao egocentrismo partisse das próprias organizações de esquerda, que deveriam
superar seu samba de uma nota só e buscassem novos caminhos, novas explicações,
novas relações? Sem recorrer ao processo de autoconhecimento de si mesmo, se
depurando permanentemente dos erros, dos medos, das inseguranças, dos ódios
desmedidos, da indiferença perante o outro, como poderia uma organização de
militantes adquirir as qualidades necessárias para estimular uma revolução? Nos
referimos aqui a tentar; a começar
uma caminhada que desbrave um novo roteiro, um novo caminho político, social e
psicológico! Quantos dirigentes políticos, sindicais e militantes apenas
alimentam o próprio ego e levam a “sua base” a alimentá-lo também? E para onde
isso tem nos levado?
Ao que tudo indica, para o blog
Coerência Marxista, nada disso tem relevância. Tudo já está contido nas bíblias
sagradas da esquerda e nas fogueiras das santas inquisições aos hereges. Não há
problema em sermos blogs adversários. Buscamos construir uma unidade na
diversidade cultural, de opiniões, de interpretações – desde que honestas e
comprometidas com a emancipação proletária, que ao fim e ao cabo, deve visar a
emancipação humana em geral. O blog Coerência Marxista busca a ridicularização
dos “oponentes” – de blogs como o nosso que influenciam menos de 1% da
sociedade!
O medo e a insegurança em relação às
dúvidas, ao novo, a aquilo que não conhecemos ainda, não é um bom conselheiro
para quem se pretende revolucionário, principalmente quando vemos que tudo está
estagnado e em crise. Faz parte da coragem revolucionária a capacidade de
encarar o não visto, o não vivido, o não respondido; mas, sobretudo, vale
encarar os nossos próprios medos interiores, que a gente projeta pra fora,
ofendendo e atacando os outros quase que gratuitamente, confundindo amigos com
inimigos, ao mesmo tempo em que tenta se defender destes medos escondendo-nos
atrás de imagens que fazemos de nós
mesmos como “campeões da interpretação correta da realidade externa e do
marxismo”. Não há nada de original nisso.
12.
Uma sociedade socialista mais
desenvolvida e plena não poderá solucionar todos os problemas humanos e
sociais. Isso seria irreal, dado que a natureza da vida é constituída num
equilíbrio entre prazer e dor, alegria e sofrimento, vida e morte, altos e
baixos. Portanto, não pode criar uma unidade coletiva que transporte o indivíduo
para um impossível estado de felicidade permanente, mas sim alertá-lo e
instruí-lo a adquirir firmeza e paciência diante do sofrimento e das
contradições que inevitavelmente persistirão. A vida acontece num equilíbrio
entre a alegria e a dor. Por certo que condições materiais melhores, mais
igualitárias, com garantias mínimas de dignidade, emprego, saúde, educação,
cultura, etc., fazem uma diferença considerável no sofrimento humano,
colocando-o num novo patamar, mas certamente não poderá erradicá-lo. O avanço
científico da medicina, por exemplo, ajudou a diminuir as dores do parto, mas
não a erradicou; tampouco acabou com inúmeros problemas pré e pós-parto.
É a sociedade capitalista que vende a
ideia de uma vida plenamente feliz a partir da compra da casa própria, do
último carro do ano, do emprego rentável e da ilusória imagem de “sucesso” e de
“ser alguém na vida”. Todos dão as mãos e sorriem como uma família eternamente
feliz, tal como aparecem nas propagandas de margarina. Uma sociedade
socialista, esperamos, não deve reproduzir os erros de cinismo e hipocrisia da
sociedade atual. Mais do que isso: não deve adaptar estas ilusões para ganhar
influências efêmeras sobre a classe trabalhadora com as mesmas peças
publicitárias falsas e cínicas.
A possibilidade de uma revolução
socialista depende da necessidade de que a classe trabalhadora pare de fugir de
si mesma e consiga olhar a verdade frente a frente, olho no olho. É nesse
sentido que a mudança interior é fundamental e precisa ser pensada, estudada,
estimulada pelas organizações de esquerda, sem o quê não existe revolução
possível. A busca pela plenitude da vida não se encerra na melhora das
condições materiais da sociedade, mas no aumento da liberdade de pensamento, de
segurança emocional e da capacidade de suportarmos a verdade nua e crua das
dúvidas e incertezas inevitáveis da vida, sabermos lidar com as frustrações
para pararmos de buscar desesperadamente lideranças, gurus e outros
subterfúgios que nos afastem dos nossos desafios interiores.
A rememorização decorada de toda a filosofia materialista não pode resolver o problema, que é muito mais complexo. Há que se aprender a respeitar humildemente todos os sentimentos interiores humanos e dialogar com eles, ampliando a nossa visão e a nossa lucidez. Com sua resposta, o blog Coerência Marxista julga estar “defendendo o marxismo” contra as “asneiras revisionistas, idealistas e loucas” do nosso blog.
Doce ilusão! O que está fazendo, na realidade, é empobrecendo o marxismo, as possibilidades que ele abre, e a própria capacidade reflexiva humana.