sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A autoestima do povo brasileiro e a estratégia revolucionária

 

Quando lemos as declarações e manifestos da esquerda brasileira – o que inclui este blog – percebemos uma certa tendência para a apresentação de estratégias mirabolantes e megalomaníacas. Até certo ponto é compreensível, dado que a tarefa de revolucionar um país do tamanho do Brasil é, de fato, um desafio gigante.

         Por este e outros motivos, a esquerda revolucionária lembra sempre das “grandes coisas” e esquece de observar com atenção as pequenas, como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra. Fala em macroestruturas, em frentes políticas “anticapitalistas”, “antiimperialistas” e “antifascistas”; clama por reforma agrária, expropriação econômica, e um longo etc. Todos estes pontos são realmente muito importantes e devem entrar no vocabulário do povo pela insistência pedagógica da repetição. Porém, ela esquece de observar os sentimentos e a conduta do povo no cotidiano, como, por exemplo, o problema de sua autoestima.

Se ignorarmos certas carências subjetivas disseminadas em larga escala, como a da autoestima, o discurso padrão de “frentes” e de “expropriações” soará muitas vezes como frases ao vento, gritadas por carros de som e megafones, mas que não encontrarão ouvidos receptivos, porque serão detidos por pequenos bloqueios psicológicos sumariamente ignorados.

         O campo da psicologia de massas na formação, agitação e propaganda continua inexplorado. Só a grande burguesia neofascista aposta suas fichas nisso – com grande êxito, diga-se de passagem. Há um trabalho de propaganda para a reconstrução da autoestima do povo brasileiro, que não acredita no país e, consequentemente, em si mesmo. Pode parecer bobagem para os “marxistas ortodoxos”, mas essa é uma das questões subjetivas da psicologia de massas que têm sido decisiva.

         Desde as salas de aulas das escolas públicas, até os botequins de esquina, passando por inúmeros locais de trabalho e reuniões familiares país afora, pode-se perceber a mão pesada da ideologia burguesa, propagada, sobretudo, a partir da classe média, de que “o Brasil não tem jeito” e de que nada de bom pode nascer dele, a não ser corrupção, exploração, miséria, violência e roubo. Trabalhado cuidadosamente desde a grande mídia e por meio de muitos autores da “intelectualidade nacional”, esta noção é disseminada subliminarmente com diversas doses de veneno ideológico, até transformar-se em senso comum, passando de pai para filho, de irmão para irmão, vizinho para vizinho, colega para colega.

         A dissociação entre a economia voltada para o mercado internacional às custas de uma exploração predatória – praticamente desde 1500 – e a corrupção dos políticos, “do Estado”, do mercado e do setor privado (que corrompe os primeiros) é completamente apagada e escondida. A confusão veiculada todos os dias pelos noticiários neoliberais da grande mídia faz terra arrasada do debate público e do imaginário popular, deixando espaço apenas para os interesses empresariais privados – em especial o do agronegócio, o dos bancos e das transnacionais, que são vendidos mentirosamente como a salvação do país, quando são a real causa de seu atraso.

         Esta ideia de dependência e da inviabilidade do país está tão presente no imaginário popular que foi caçoada por Lima Barreto no seu conto Miss Edith e seu tio, onde é elucidada de forma bem humorada este culto quase religioso à tudo o que vem dos países do norte – neste caso, o respeito submisso dos residentes de uma pensão carioca a dois hóspedes da Inglaterra, pelo simples fato de serem ingleses. Lima descreve: “Os hóspedes acharam neles não sei o quê de superior, de superterrestre. Deslumbraram-se e encheram-se de um respeito religioso diante daquelas banalíssimas criaturas nascidas numa ilha da Europa ocidental”[i]. E, mais adiante, afirma que Miss Edith e seu tio – os hóspedes ingleses – “não se ligaram a ninguém na pensão e todos suportavam aquele desprezo como justo e digno de entes tão superiores”[ii].

         Mais tardiamente, celebrando o movimento popular de resistência cultural na década de 1980, Jorge Aragão comporia um samba que afirmará: “sabemos agora, nem tudo o que é bom vem de fora”[iii]. Apesar do esforço de Jorge Aragão para expressar um pouco mais de consciência da necessidade de superar este espírito de “vira-lata”, o povo brasileiro – e em especial sua classe média – ainda sustenta que tudo o que é bom vem de fora.

Uma vez que o povo abrace a ideia de que é inferior em todas as dimensões importantes da vida, não é necessário se preocupar com a resistência popular, dado que a guerra já está ganha de antemão e qualquer forma de mobilização se tornará muito mais difícil, sempre com o mesmo discurso de que “o Brasil não vale a pena”. É justamente assim que a grande burguesia brasileira deseja que o povo pense: é ela que cria esta realidade de miséria e submissão às potências estrangeiras, cultivando sutilmente a mentalidade correspondente. Existe um trabalho de base anterior, longo e extenuante, que precisa ser feito, com dedicação e afinco – e é justamente por aí que as organizações da esquerda revolucionária deveriam investir sua agitação e propaganda, para limpar este meio de campo.

         À esquerda revolucionária cabe o papel – dentre outros – de ser uma espécie de psicanalista social da psicologia de massas; isto é: usar sua propaganda para tornar consciente o estrago ideológico que foi plantado no inconsciente coletivo do país. O Brasil “tem solução” desde que supere e vença a sua classe dominante – a elite do atraso –, bem como supere o capitalismo, com sua economia totalmente dependente da tecnologia estrangeira e das suas finanças – e isso precisa ser dito diariamente, com todas as letras! Como se sabe, um trabalho pedagógico e psicanalítico leva tempo, e precisa pautar-se por uma longa repetição de temas e pautas. E o mais importante: é preciso ser coerente!

         De nada adianta continuarmos gritando palavras de ordem ao vento e, no geral, desconexas, desconsiderando a experiência e a realidade psicológica da massa, submetida e adestrada através da “ética do mercado”, com pitadas maquiavélicas da propaganda da grande mídia e da sua intelectualidade, que destrói completamente qualquer autoestima popular. Sem plantar uma nova semente, poderemos morrer propondo e clamando por frentes anticapitalistas, antiimperialistas e antifascista, mas nenhuma mudança substancial ocorrerá.

         Para isso acontecer, evidentemente, um passo importante a ser dado é que a esquerda revolucionária aprenda a ouvir, tentando entender a natureza contraditória do povo, sobretudo a partir dos subterrâneos das paixões, dos medos e das suas falas e compreensões cotidianas. Daí, então, poderá elaborar um programa e uma atuação prática que leve estes medos e confusões inconscientes em severa consideração, intervindo sobre eles para superá-los.

         Cai de maduro que para o povo se mobilizar visando uma revolução é necessário que supere essa mentalidade de baixa autoestima, de descrença nas possibilidades do país e nas suas próprias forças – isto é, que arranque estas ervas daninhas plantadas tão cuidadosamente pela elite nacional ao longo da história do país. A propaganda petista começou a trabalhar pontualmente certas questões relacionadas a isso, mas não foi além de uma visão “liberal de esquerda”, que é até onde vai o seu programa. À esquerda revolucionária cabe trabalhar cotidianamente esta baixa autoestima através de diálogos, formações, agitações e propagandas didáticas e pedagógicas permanentes.

Sem fazer o povo acreditar em si mesmo, no país e nas suas forças, não há revolução possível.

 


Referências


[i] BARRETO, Lima.  Miss Edith e seu tio in O homem que sabia javanês e outros contos. Ediouro, Rio de Janeiro, 1996 (páginas 74 e 75).

[ii] Idem.

[iii] Trecho do samba “Coisa de pele”, de Jorge Aragão e Acyr Marques.

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