sexta-feira, 30 de julho de 2021

“Os demônios”, de Dostoiévski, prenunciou o stalinismo

Uma resenha crítica

Dostoiévski (1821-1881).

A grande obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski, intitulada Os demônios, descreve a atividade de um “círculo revolucionário” do século XIX no interior da Rússia. Ao contar a história desta “sociedade secreta”, de orientação anarco-niilista, Dostoiévski recria um universo de personagens extremamente vivos, complexos e comoventes, que de tão reais, tornam-se nossos velhos conhecidos ao ponto de nos preocuparmos intimamente com o seu destino.

Baseado em um caso verídico – o assassinato do estudante I. Ivanov pelo grupo niilista liderado por S.G. Nietcháiev, discípulo de Mikhail Bakunin, em 1869 –, o livro foi lançado em 1871 e reconstrói, de forma romanceada, as consequências políticas da atuação do referido círculo. O pensamento teórico e o espírito de seus dirigentes nos dão algumas pistas para investigar e compreender o surgimento do fenômeno stalinista na sociedade russa, onde pairava no ar de quase todas as manifestações políticas, sociais e econômicas alguns elementos que refletiam uma cultura atrasada se comparada a Europa Ocidental, cuja maior expressão se dava na luta entre “ocidentalistas” e “eslavófilos”.

Indo muito além disso, Dostoiévski traz reflexões geniais sobre a ética com que a luta precisa ser conduzida, uma vez que “sem valores elevados é incoerente professar ideais elevados”[i]; e o resultado só pode ser o surgimento de um fanatismo nefasto, que tende a abafar a própria “causa nobre” pela qual supostamente se luta. Falam pela boca dos seus personagens as confusas tendências políticas presentes no movimento revolucionário russo do século XIX, sobretudo o movimento populista narodnik, de caráter terrorista.

Tido por muitos críticos literários como um “romance panfletário”, Os demônios lança uma importante luz sobre o passado russo pré-1917, antevendo profeticamente o desenvolvimento do stalinismo. Talvez isso tenha sido possível porque Dostoiévski possui grande conhecimento acerca da alma humana e intuição sobre todas as suas contradições inerentes, percebendo os desvios perigosos que já se expressavam na atuação daqueles círculos – apesar do seu apreço mal contido pela aristocracia russa e pelo próprio cristianismo, que saltam aos olhos em diversas passagens da obra.

Contudo, o combustível principal para a criação de Os demônios foi, sem dúvida, o ódio mesclado ao desprezo pelo assassinato do militante dissidente I. Ivánov por ordem de S.G. Nietcháiev, a principal liderança da organização chamada de Justiça Sumária do Povo, que seguia os preceitos políticos e ideológicos de um “Catecismo do Revolucionário”, elaborado pelo próprio Nietcháiev.

 

Os personagens

Um romance permite determinadas reflexões que textos de análise política e filosófica não se permitem, acabando, muitas vezes, por enredarem-se em apreciações que não penetram as obscuridades da alma humana. Um romancista, como Dostoiévski, lança sua rede de pescador nas profundezas do lado sombrio humano, contrastando-o com outros discursos e tendências políticas que apenas aparecem na superficialidade.

Um texto político ou filosófico busca uma análise sem contradições, que explique o mais claramente possível suas concepções. Ainda que, até certo ponto, seja inevitável e necessário tais explicações, a sua narrativa segue um curso monofônico, enquanto que um romance – sobretudo os dostoievskianos – são de caráter polifônicos, possuindo diversas vozes entrecruzadas e contra argumentando-se. Tal quadro nos possibilita perceber contradições flagrantes que um texto “técnico” de análise filosófica ou política geralmente não permite.

A construção da história dos personagens está intimamente ligada à história da Rússia. E por mais problemas que haja na concepção política dostoievskiana – dado, como foi dito, sua preferência política pelo cristianismo, pelo eslavofilismo e pela aristocracia, tal como a maioria dos grandes escritores russos – sua atenção está voltada para os eventos do cotidiano, da micro história e das pequenas relações entre o povo, que são minimizadas ou mesmo ignoradas pelas análises “técnicas” dos grandes teóricos marxistas, por exemplo – o que inclui, também, a psicologia do povo. Se Dostoiévski tira conclusões questionáveis de sua própria narrativa, em contrapartida nos permite olhar a relação do povo entre si por outros ângulos e perspectivas menos enrijecidas e formais.

Para a construção dos personagens do romance, Dostoiévski investigou os dados fornecidos pela imprensa da época sobre o assassinato do estudante, dissecando o perfil de cada um dos seus integrantes e dando destaque especial à figura de Nietcháiev (que lhe serviu de protótipo para o personagem Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski); também presta atenção aos mínimos detalhes da organização Justiça Sumária do Povo[ii].

A história se inicia com a descrição da vida e do pensamento de Stiepan Trofímovitch Vierkhoviénski, pai de Piotr. Um intelectual que vive à sombra da viúva, herdeira de grandes propriedades de terra, Várvara Pietrovna Stavróguina, mãe de Nikolai Vsievolódovitch Stavróguin, personagem multifacetado e contraditório, outro líder do “círculo revolucionário”, que mantém algumas relações com os emigrados russos e com a própria Internacional. Stavróguin expressa bem a profundida das construções psicológicas dos personagens dostoievskianos, dado que traz à luz todas as suas sombras mais recônditas, confrontando-as com o alto ideal – a chamada “causa comum” – que diz professar.

Ao contrário de Piotr Stiepánovitch, Stavróguin demonstra um certo lampejo de desconforto com a condução da luta do círculo secreto e mostra algum tipo de remorso pelo seu desdobramento, bem como por suas ações pessoais do passado, marcadas por um grande apetite sexual, práticas de duelos e um escabroso caso de pedofilia. Os protótipos de “revolucionários” usados como parâmetro por Dostoiévski nesta obra não são marcados pela coerência e não se assemelhavam em nada – ou quase nada – a lideranças como Lenin e Trotski, por exemplo.

Grande parte da “militância revolucionária” e da intelligentsia daquele período era oriunda da aristocracia, da qual não se desvencilhava completamente. Piotr Stiepánovitch e Stavróguin não eram exceções. Por isso Dostoiévski inicia sua narrativa pela descrição da vida, dos modos e do pensamento desta aristocracia, destacando a relação conflituosa, repleta de um amor reprimido entre a fria Varvara Pietrovna – mãe de Stavróguin – e Stiepan Trofímovitch – pai de Piotr Stiepánovitch.

Segundo Dostoiévski, “Stiepan Trofímovitch é uma figura de importância superficial – o romance não irá, em verdade, lidar com sua figura em profundidade; mas, sua história é de tal modo próxima aos eventos do livro, que me senti obrigado a tomá-lo como elemento central para todo o resto”[iii]. Stiepan Trofímovitch é um intelectual francófilo e ocidentalista, sustentado por Varvara Pietrovna, que educou toda uma geração de personagens do livro, dentre os quais, seu próprio filho, Piotr Stiepánovitch, e Nikolai Stavróguin. Como membro consciente de uma aristocracia em decadência, Stiepan Trofímovitch vê com certo desdém as ideias revolucionárias europeias, as reformas que vão abolir a servidão feudal e a abertura da Rússia ao capitalismo, embora aprecie, sem sombra de dúvidas, a influência Ocidental sobre o país.

Todos os principais “dirigentes” do círculo revolucionário provêm da aristocracia, ainda que a rechacem formalmente – uns mais, como Stavróguin; outros menos, como Piotr Stiepánovitch. Tal como a “esquerda” atual, eles pregam ideais “revolucionários” e transformadores, mas os negam na prática cotidiana, em suas motivações e atitudes reais, vontades e convicções recônditas[iv], de olhos sempre abertos para toda a espécie de benesses. Por este e outros motivos, Piotr Stiepánovitch estabelece relações com a alta sociedade daquela cidadezinha de interior: passa a influenciar diretamente a governadora local, Yulia Mikhailovna, que possui total controle sobre o seu marido, o governador, Andriêi Antonovitch von Lembke. Durante grande parte do livro Piotr Stiepánovitch orbita o casal, preparando a “grande ação” do círculo revolucionário que dá o eixo do romance – ao mesmo tempo que tira todo o proveito material possível da intimidade daquela relação.

Envoltos em uma aura de santidade por serem os principais dirigentes do círculo revolucionário, Piotr Stiepánovitch e Stavróguin se relacionam utilitariamente com os militantes “de base” que, em sua maioria, são parte da classe trabalhadora: operários, funcionários públicos de baixa patente, estudantes. Dentre estes, cabem destacar Chátov – o protótipo romanceado de I. I. Ivanov, o estudante assassinado pela organização de Nietcháiev –, Kiríllov, Lipútin, Liámchin, Virguinski, Arina Prókhorovna e o jovem Erkel, pupilo cego de admiração por Piotr Stiepánovitch.

 

O apogeu do enredo da obra e o método terrorista

A atuação do “círculo revolucionário” tinha como ponto culminante uma ação secreta intercalada com a participação nas altas esferas sociais, usada como despiste para a primeira. A grande “ação revolucionária” foi planejada para acontecer durante um baile oficial patrocinado pelo governador da província, Andriêi Antonovitch von Lembke, e sua esposa, Yulia Mikhailovna, até então manipulada pelo jogo duplo de Piotr Stiepánovitch. O evento deveria reunir toda a cidade para um sarau literário – bastante comum na época –, seguido por um baile, momento no qual membros do “círculo revolucionário” deveriam agir.

Tal ação foi precedida por uma série de panfletos publicados anonimamente, que traziam conteúdos “revolucionários” e de questionamento da velha ordem, sobretudo lançados na fábrica Chpigúlin, onde os operários passavam inúmeras necessidades e já haviam expressado seu descontentamento pelas condições de trabalho e de vida. Esta agitação clandestina expressava, de fato, o descontentamento geral do povo russo, que só crescia sob a autocracia czarista – incapaz de encontrar ou propor qualquer solução, a não ser proibir a simples publicação de textos críticos à estrutura social. Foi refletindo essa situação e percebendo determinados ventos de mudança que Dostoiévski colocou nesta obra o romancista Karmazínov – um protótipo do escritor russo Turguêniev, de quem não esconde o seu desapreço através de ironias desconcertantes. Atribui ao seu protótipo na obra a seguinte “esperança”: “o grande escritor tinha estremecimentos mórbidos diante dos modernos jovens revolucionários, e imaginando, por desconhecer o assunto, que nas mãos deles estavam as chaves do futuro da Rússia”[v]. De fato, essa “imaginação” se mostrou verdadeira, embora com a evidente esperança de Dostoiévski de que não fosse.

O governador von Lembke, por sua vez, tentava encontrar, sem sucesso, os responsáveis por redigir aqueles panfletos – muitos dos quais, disseminavam apenas poesias revolucionárias que questionavam os valores morais e sociais daquela época. Piotr Stiepánovitch, por sua vez, fazia jogo duplo com von Lembke, dizendo saber quem seriam os seus redatores, tanto como forma de manter a sua influência sobre o governador, quanto sobre os “militantes de base” do círculo revolucionário; ao mesmo tempo em que impulsionava clandestinamente a sua divulgação como forma de preparar a “grande ação”.

No apogeu do baile da elite local chegou a notícia de um incêndio no bairro operário. Imediatamente se levantou a suspeita de que todos foram reunidos naquela festa de caso pensado para que “alguém” pudesse provocar o incêndio. Uma vez que eram conhecidos pela agitação permanente de suas péssimas condições de vida, os primeiros suspeitos foram os operários da fábrica Chpigúlin – e eles ficariam por um bom tempo nesta condição até que se encontrassem os verdadeiros responsáveis.

***

Durante muito tempo o movimento revolucionário russo se resumiu aos círculos clandestinos, fazendo um trabalho “artesanal” – para usar uma expressão célebre –, que descambava para o terrorismo na tentativa de derrubar o czarismo e instaurar uma nova ordem social. O movimento camponês, conhecido como narodnik (também conhecido como Narodnaia Volia, que, do russo, significa, “a vontade do povo”; futuramente ele se transformará nos SRs, dividindo o poder com os mencheviques e a burguesia “liberal” em fevereiro de 1917), foi o principal impulsionador deste “método de luta”. Ele sofreu grande influência do movimento anarquista russo, para quem Bakunin era uma das principais referências.

À pergunta feita por vozes adeptas ao regime czarista de “por que tantos assassinatos, escândalos e torpezas?”, Piotr Stiepánovitch respondeu: “para provocar um abalo sistemático das bases da sociedade, para a desintegração sistemática da sociedade e de todos os princípios; para deixar todo mundo em desalento e transformar tudo numa barafunda e, uma vez assim abalada a sociedade, esmorecida e doente, cínica e descrente, mas com uma sede infinita de alguma ideia diretora e de autopreservação, tomar tudo de repente em suas mãos, erguendo a bandeira da rebelião e apoiando-se em toda uma rede de quintetos, que entrementes agiam, recrutavam gente e procuravam na prática todos os procedimentos e todos os pontos frágeis aos quais podiam agarrar-se”[vi].

Este era o programa político do “círculo revolucionário” de Os demônios. Como se fosse possível que atos isolados da massa, feitos através do método terrorista de alguns poucos, pudessem “abalar a sociedade” e possibilitar que o povo tomasse “tudo de repente nas suas mãos”. Em nenhum dos diversos atos de terrorismo praticados pelos narodniks ao longo da história russa foi possível realizar este “programa”. Todos serviram para que a autocracia czarista reprimisse impiedosa e indistintamente todo o movimento de massas – em 1914, por exemplo, o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, na Europa Oriental, foi o pretexto utilizado pelas potências imperialistas para desencadear a 1ª Guerra Mundial; sem falar nas infiltrações policiais que abusavam do método terrorista para facilitar o trabalho da repressão estatal (mesmo erro cometido pelos black blocks em 2013, no Brasil[vii]).

O chamado marxismo russo, por sua vez, foi fundado na polêmica contra o terrorismo narodnik. Plekhanov, Lenin e Trotski redigiram diversos artigos criticando a concepção terrorista, muito incentivada, como já foi dito, pelo anarquismo russo, que a chamava de “propaganda pelos fatos”. Embora Dostoiévski fosse, de certa forma, contemporâneo de Plekhanov, ele não vivenciou o período das grandes polêmicas entre a social-democracia russa (o futuro partido socialista que dará origem aos agrupamentos bolcheviques e mencheviques) e os narodniks. Portanto, suas críticas vorazes ao método terrorista e de organização presentes na sua obra são direcionadas aos últimos, principalmente porque naquela época a social-democracia dava apenas os seus primeiros passos. De qualquer forma, grande parte da atuação política clandestina era comum tanto aos narodniks quanto à social-democracia, o que certamente gerou certas semelhanças de funcionamento e mesmo alguns desvios como resultado da opressão e obscurantismo que reinava naquela realidade histórica.

Sobre estes temas, assim Dostoiévski se expressou respondendo às críticas de que seu livro seria panfletário: “quero enunciar algumas ideias, ainda que isso redunde na ruína de minha condição artística. Contudo, sinto-me envolvido pelo que tenho acumulado na mente e no coração; que isso acabe em panfleto, mas hei de me manifestar (...). Os niilistas e ocidentalistas exigem a chicotada definitiva”[viii]. Ele ainda prevê que estes o chamarão de “retrógrado”, mas não importava, contanto que conseguisse dizer tudo até a “última palavra”[ix]. E ele o disse, embora sem levar em consideração a posição “marxista” que se gestava no mesmo momento em que redigia sua crítica literária ao terrorismo narodnik.

Trotski tentou procurar explicações para o fenômeno do terrorismo na vida política russa e chegou a algumas conclusões semelhantes: “Devem existir profundas razões para isso. Devemos busca-la primeiro, na natureza da autocracia russa, e depois, na natureza da intelectualidade russa. Para que a própria ideia de destruir o absolutismo por meios mecânicos pudesse difundir-se, o aparato estatal teve de aparecer como simples órgão de coerção externo, sem raízes na organização social. E essa é, precisamente, a forma que a autocracia russa assumiu aos olhos da intelectualidade revolucionária. Esta ilusão possuía um fundamento histórico próprio. O czarismo formou-se sob a pressão dos estados culturalmente mais adiantados do Ocidente. Para poder competir, devia tirar o sangue das massas populares e assim possibilitar a ascensão das próprias classes privilegiadas. Estas classes não puderam alcançar o nível político das suas similares no Ocidente. A isso se agregou, no século XIX, a forte pressão da bolsa de comércio europeia. Quanto maiores eram as somas que esta emprestava ao regime czarista, menos este dependia das relações internas. O capital europeu permitiu ao czarismo armar-se de tecnologia europeia, convertendo-o assim em uma organização (relativamente, desde logo) ‘autosuficiente’, situada acima de todas as classes sociais”[x].

Dostoiévski conhece muito bem, como sabemos, a alma humana e a sua psicologia contraditória. Deste ponto de vista, o livro Os demônios é impecável e traz reflexões fundamentais para a esquerda e o movimento socialista. Contudo, entende pouco e faz muita confusão sobre a teoria socialista (talvez fruto das insuficiências de sua época). Além disso, pouco se preocupa com a “natureza da autocracia russa”, parecendo que, às vezes, lhe dá suporte indireto. Dostoiévski combate a intelectualidade russa “de esquerda” sem levar em consideração estas análises fundamentais sobre a formação histórica da autocracia czarista.

Partindo desta análise, Trotski conclui o raciocínio: “semelhante situação podia dar surgimento à ideia de fazer voar esta superestrutura estrangeira com dinamite. A intelectualidade se sentiu chamada a realizar esta tarefa. Assim como o Estado, a intelectualidade havia se desenvolvido sobre a pressão direta e imediata do Ocidente; da mesma forma que seu inimigo, o Estado, se adiantou ao nível de desenvolvimento econômico do país: o Estado, tecnologicamente; a intelectualidade, ideologicamente. Enquanto que nas velhas sociedades burguesas europeias as ideias revolucionárias se desenvolviam mais ou menos em conjunto com as grandes forças revolucionárias, na Rússia os intelectuais tiveram acesso à cultura e política pré-fabricadas do Ocidente; seu pensamento sofreu uma revolução antes que o desenvolvimento econômico do país tivesse dado surgimento a classes revolucionárias sérias nas quais apoiar-se. Nestas circunstâncias, nada restava aos intelectuais senão multiplicar seu ardor revolucionário com o poder explosivo da nitroglicerina. Assim surgiu o terrorismo clássico de Narodnaia Volia [narodnik][xi].

***

Já em relação às polêmicas dos sociais-democratas contra a utilização do método terrorista, os futuros bolcheviques assim se manifestaram: “que um atentado terrorista, inclusive um ‘exitoso’, crie confusão na classe dominante, depende da situação política concreta. Seja como for, a confusão terá vida curta; o Estado capitalista não se baseia em ministros de estado e não é eliminado com a desaparição destes. As classes a que servem encontrarão sempre pessoas para a substituição; o mecanismo permanece intacto e em funcionamento. Porém, a desordem que produz o atentado terrorista nas fileiras da classe operária é muito mais profunda”[xii].

E concluem: “Para nós, o terror individual é inadmissível, precisamente porque torna pequeno o papel das massas em sua própria consciência, fazendo-as aceitar sua impotência, voltando seus olhos e esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir a sua missão. Os profetas anarquistas da ‘propaganda pelos fatos’ podem falar até pelos cotovelos sobre a influência estimulante que exercem os atos terroristas sobre as massas. As considerações teóricas e a experiência política demonstram o contrário. Quanto mais ‘efetivos’ sejam os atos terroristas, quanto maior seja seu impacto, quanto mais se concentrar as atenções das massas neles, mais se reduz o interesse das massas em organizar-se e educar-se”[xiii].

Lenin, por sua vez, elabora uma crítica radical aos métodos do terrorismo individual, partindo sempre do pressuposto de sua ineficiência política para despertar a consciência de classe e a própria ação independente do proletariado. Nunca combateu o terrorismo sob a ótica da moral burguesa, nem de “éticas” abstratas, mas sim pela pouca ou nenhuma função política (às vezes servindo de pretexto para repressões brutais por parte da classe dominante). No seu livro Que fazer?, de 1902, ele afirma que “os economicistas e os terroristas contemporâneos têm uma raiz comum, a saber: o culto da espontaneidade”[xiv].

Como foi dito: o ponto forte de Dostoiévski é o seu conhecimento acerca da alma humana; o seu ponto fraco, por outro lado, é a pouca atenção dada à história política e do movimento operário russo, que é justamente o ponto forte dos bolcheviques. Agora inverteremos a balança para ver o avesso da moeda. O que passa despercebido por Dostoiévski, não passa pelos bolcheviques; o que passa despercebido pelos bolcheviques, não passa por Dostoiévski: as questões subjetivas, que, se não observadas com o máximo de acuidade possível, tornam-se determinantes.

Dito de outra forma: Dostoiévski se atenta para as questões fundamentais da psicologia de massas – ainda que em sua época este conceito não existisse.

 

A assustadora previsão do fenômeno do stalinismo

A ação terrorista incendiária, que é o ápice do enredo do livro, gera suas contradições inevitáveis. Alguns militantes de base do “círculo revolucionário” terminam tendo uma aguda crise de consciência – o que é o caso do estudante Chátov –, ameaçando delatar a ação secreta. Neste momento, entram em cena os dilemas éticos e os inevitáveis conflitos com as “teorias revolucionárias” da época, fazendo emergir as limitações dos personagens, que traduz muito acuradamente os problemas da atuação política dos militantes naquele contexto.

Diversas críticas de Dostoiévski à organização e à atuação do “círculo revolucionário” de Os demônios servem também para as futuras organizações políticas russas, dentre as quais, os próprios bolcheviques. Indo mais além: servem às organizações de esquerda da atualidade. De certa forma, Dostoiévski percebeu algumas tendências presentes nas organizações revolucionárias que refletiam, de uma forma ou de outra, os problemas universais traduzidos para a realidade russa. Nesse sentido, intuiu de forma genial o que viria a ser o stalinismo.

Isso se expressa no fanatismo das “teorias revolucionárias”, criticadas a partir das contradições presentes no pensamento do personagem Chigáliov. Para Piotr Stiepánovitch, Chigáliov era um homem genial, a quem comparava com Fourier. Segundo Piotr Stiepánovitch, Chigáliov “inventou a ‘igualdade’! No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas, sempre trouxeram mais depravação do que utilidade. Eles serão executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis o chigaliovismo. Ah, ah, ah, está achando estranho? Sou a favor do chigaliovismo!”[xv].

As semelhanças com o stalinismo não se resumem a essa descrição quase perfeita do futuro fenômeno político russo do século XX. Segundo Paulo Bezerra – tradutor de Dostoiévski e profundo conhecedor da realidade russa –, foi justamente nessa “semiciência” que o marxismo se transformou na URSS, e diante dele tudo tremeu e prosternou-se. Na organização de Piotr Stiepánovitch todos eram obrigados a manter uma disciplina férrea e espionavam uns aos outros. Já há aí uma grande dose de stalinismo.

Em muitas passagens do livro, Dostoiévski ignora as contradições resultantes da sociedade czarista – ainda que a critique em muitos aspectos. Grande parte da ação clandestina destas sociedades secretas se dava desta forma em razão da censura, da repressão, prisão, deportação e mesmo execução de qualquer tipo de oposição política (o stalinismo também reflete essas condições anteriores ao seu surgimento, bem como as reproduz – isso é sempre capciosamente ignorado pela intelectualidade de direita).

As descrições dostoievskianas acerca da teoria socialista se caracterizam mais por serem um imbróglio de ideias incoerentes para fanatizar, deixando de analisar outros tantos de seus elementos positivos. Mesmo a sua narrativa sobre a exploração dos operários da fábrica Chpigúlin carece de maiores conclusões e mesmo de profundidade. Se por um lado as teorias socialistas estavam recém se formando em sua época e, portanto, apresentavam muitas características do chamado “socialismo utópico”, sem a maior parte da teoria que conhecemos hoje; por outro, Dostoiévski intuiu de forma genial determinadas tendências políticas presentes nas organizações revolucionárias daquele período. Futuramente, tais tendências se tornariam centrais para a formação do fenômeno stalinista.

Na construção desta crítica fundamental à atuação das organizações revolucionárias secretas daquela época, Dostoiévski mostra como grandes e generosas ideias, uma vez manipuladas por indivíduos desprovidos de consistência cultural e princípios éticos, podem se transformar na sua negação, assim como a utopia da liberdade e da felicidade do ser humano pode degenerar na sua negação, no horror, na morte, na mentira. Grandes ideias, quando geridas por tipos intelectualmente toscos, acabam em farsa ou paródia. Assim tem sido a história humana, dada o baixo interesse em aprender com as trágicas lições do passado[xvi].

Para Dostoiévski é impossível alguém liderar uma grande causa sem compreender a essência profunda da natureza humana; alguém que faz das ideias objeto de compra e venda com oportunistas degenerados. Sem valores elevados é incoerente professar ideais elevados. Desse jeito, passam a segundo plano as diferenças políticas e ideológicas e os que ontem pareciam como inimigos irreconciliáveis, hoje se entendem e até fazem alianças “táticas”. E isso parece ser pouco importante por parte da “esquerda”, mais preocupada em reproduzir consignas abstratas do que compreender a essência das experiências históricas.

No posfácio escrito por Paulo Bezerra, podemos ler que Dostoiévski não censurava os revolucionários em si, mas sim o inacabamento de suas teorias pelas lacunas aí deixadas, que acabaram degenerando na sua negação, no simulacro, na impostura. Nesse caminho, eles criam uma engrenagem que transforma em “salvadores” e “vanguarda” da humanidade indivíduos sem consistência moral e ideológica nem condição cultural para tais papéis – e aqui, novamente, a “esquerda” pouco se preocupa com tais problemas. Estes “salvadores”, para manter seu poder, apelam para dois procedimentos: cercam-se de elementos incondicionalmente submissos, cegos às questões ético-ideológicas, mas de olhos bem abertos para toda espécie de benesses; e criam em torno de si a aura mítica de sábios, profetas e heróis infalíveis[xvii]. Reforçam, portanto, o malfadado espírito de rebanho[xviii].

Esta importância fundamental dada por Dostoiévski à natureza humana para qualquer tentativa de se mudar a sociedade, dado que a esquerda ainda hoje não tem a menor preocupação em relação às questões relacionadas à psicologia de massas, não encontra um paralelo numa explicação acerca das questões sociais e econômicas da Rússia. Se o autoritarismo das organizações russas se repete tanto, para além das questões relacionadas à natureza humana, deve haver causas materiais que as façam se repetir com tanta insistência (devemos admitir que há uma propensão à esta repetição na maioria dos países do mundo, pois as vemos, também, no Brasil, embora apenas na Rússia tenha assumido contornos como os narrados por Dostoiévski).

Na busca por este tipo de explicação, Isaac Deutscher aponta que “em todas as partes, o passado e o presente, a tradição e a revolução, o marxismo e as ideologias nativas, eslavófilas e populistas, ideias socialistas e aspirações messiânicas russas se interpenetram e se fundem, até formar um curioso amálgama no stalinismo e no socialismo num só país. Ora, essa tensão entre a mudança e a continuidade ou entre a revolução e a tradição, impregna indiscutivelmente toda a história recente da Rússia”[xix].

Era este o caldeirão histórico onde fervilhava a “natureza humana russa”. Não é possível entender a atuação revolucionária na Rússia sem compreender este caldeirão. Ele é composto pela repressão, censura, perseguição e deportação por parte do governo autocrático e, portanto, pelo medo permanente de ser delatado por qualquer coisa, bem como pelo fanatismo religioso, social e político, gerados por uma profunda ignorância e um preconceito arraigado. Todos estes ingredientes contribuíram decisivamente não apenas para a atuação do “círculo revolucionário” secreto de Os demônios, como também para a gestação do stalinismo.

Somado à falta de ética, caráter e amplidão cultural dos militantes do círculo secreto, vemos o surgimento de aberrações políticas como o assassinato do ex-militante Chátov, que tornou-se um dissidente que ameaçava delatar a organização inteira pelo incêndio terrorista. Tais assassinatos serão corriqueiros em toda a história do stalinismo. Aliás, ele é fundado no assassinato, na dissimulação e na mentira.

Após cometer o brutal assassinato de Chátov, Piotr Stiepánovitch declara que “sem dúvida os senhores devem estar sentido o orgulho livre que acompanha o cumprimento de um dever livre”[xx]. Ou seja, esta manipulação do discurso político “revolucionário”, associando atrocidades resultantes da própria contradição da política equivocada dos círculos revolucionários populistas com o “dever livre”, é a própria essência do stalinismo. Centenas de milhares de militantes foram formados (e ainda são) dentro desta cultura política absurda. Nada de “novo” e “emancipado” pode surgir deste tipo de “organização revolucionária”; apenas a reprodução de novas formas de opressão.

Após o assassinato de Chátov, Piotr Stiepánovitch se lança contra Kiríllov, obrigando-o a se suicidar e assumir a responsabilidade pelo assassinato de Chátov para descriminar os militantes da organização secreta e retirar-lhes toda a suspeita. Quem não se lembra aqui dos Processos de Moscou forjados por Stalin? O que são estes processos senão a dramatização – como farsa – de toda a história de Os demônios, só que agora em escala nacional? Tais processos, ocorridos na “tardia” década de 1930, confirmam tristemente as previsões de Dostoiévski.

Antes de assassinar Chátov, na tentativa de convencer a militância do “círculo revolucionário” a executar tal ação, Piotr Stiepánovitch ainda argumenta que “até o último instante” teve “a esperança de aproveitá-lo para a causa comum e usá-lo como homem exasperado”[xxi]. A prática do stalinismo (e de quase toda a esquerda atual) é, declaradamente ou não, a de “aproveitar” as pessoas para “a causa comum”, ignorando totalmente seus sentimentos e consentimentos. Ou seja, trata-se de um utilitarismo político que nada possui de revolucionário (basta olhar os sindicatos de hoje em dia).

O jovem militante do “círculo revolucionário” Erkel, que ama e admira Piotr Stiepánovitch, devotando-lhe uma submissão incondicional, não compreende uma ideia ou a “causa comum” sem a sua fusão com a pessoa que, para ele, a representa: Piotr Stiepánovitch. Nesse caso, sua adesão às “ideias revolucionárias” é apenas emocional, e não racional e intelectual. Não compreende o programa revolucionário senão como a expressão dada pelos “guias geniais” – geralmente vistos inconscientemente como sucedâneos dos pais. Paulo Bezerra aponta que “durante décadas a ideia do socialismo foi indissociável da pessoa de Stálin, assim como a ideia do nacional-socialismo foi indissociável do Führer”[xxii].

Na despedida entre Erkel e Piotr Stiepánovitch na estação de trem, quando o último prepara secretamente a sua fuga da Rússia, surge uma espécie de prostração e melancolia no primeiro por perceber que, sem o chefe, o “círculo revolucionário” não poderia funcionar, por isso exclama: “o melhor seria você não partir!”[xxiii]. Como sempre, as lideranças sem escrúpulos e sem caráter tergiversam, afirmando qualquer coisa para se livrar de suas reais responsabilidades. Piotr Stiepánovitch responde, cinicamente, que sua partida para São Petersburgo é “pela causa comum” e não uma “simples escapulida”, como outros membros do círculo supunham.

A isto, Erkel responde servilmente: “Piotr Stiepánovitch, mesmo que você esteja indo para o estrangeiro, eu vou compreender; vou compreender e você precisa preservar sua própria pessoa porque você é tudo e nós não somos nada”[xxiv]. Eis aí a previsão profética e assustadora da noção de “socialismo” pelo stalinismo, que foi disseminada pelo mundo todo pela III Internacional já controlada por Stalin. Trata-se, como vimos, de algumas tendências bem presentes nos movimentos sociais russos, que terminaram por tragar o Estado soviético na luta ininterrupta entre “a revolução e a tradição”.

 

Associações impróprias com o socialismo e o que a teoria socialista precisa aprender com Dostoiévski

Como foi dito, Dostoiévski confunde certas noções e ideias do socialismo utópico como sendo o próprio socialismo (a começar pelo método do terrorismo). Isso provavelmente ocorreu porque ele não teve tempo e possibilidade de conhecer – ou pelo menos condições de refletir sobre – a crítica marxista das teorias socialistas que foram classificadas como “utópicas” ou como “socialismo burguês”[xxv]. Apesar da responsabilidade por esta debilidade não ser inteiramente sua, Dostoiévski não poupa tintas na crítica ao socialismo “em geral”, ao quê, por isso mesmo, é necessário fazer algumas ponderações.

Nas obras de Dostoiévski há uma certa preferência e naturalização da estrutura social da autocracia czarista. Na conclusão do livro ele escreveu: “Hoje, três meses depois daqueles acontecimentos, a nossa sociedade está em paz, recuperou-se da doença...”[xxvi]. Da mesma forma podemos considerar a busca cristã de muitos de seus personagens, que vivem, geralmente, em um profundo conflito entre o ateísmo e a existência de deus. A redenção de muitos deles vem com a descoberta de alguma influência divina que lhes “abre os olhos” e, então, passa a viver dentro de um novo tipo de ética e de visão de mundo. Ainda que a narrativa desses conflitos seja extremamente enriquecedora, o regime autocrático czarista só poderia se beneficiar de tais conclusões. Que tipos de seres humanos podem nascer “na paz” do servilismo, da censura e da crueldade militar do czarismo?

Parte desta naturalização surge do fato de Dostoiévski ter um discurso narrativo polifônico, isto é, que escuta e dá projeção a diversas vozes. Esta preocupação de ouvir outras vozes falta à esquerda, que sempre fala, propõe e impõe muito mais do que está aberta a saber interpretar e buscar discursos polifônicos (quando supostamente o faz, tipo PT, simplesmente dá mais voz aos setores burgueses que lhe são aliados). Se por um lado isso é um reflexo inevitável da sua importante busca por dar uma direção política, por outro, tende a se degenerar quando só impõe e não está aberta a nenhum tipo de reflexão nova trazida pelas várias vozes. E, no caso, os maiores partidos e correntes políticas da “esquerda” agem assim.

Mesmo os grandes teóricos do socialismo traduziram os anseios e os sofrimentos econômicos da classe trabalhadora, falando desde cima e trazendo programas e reflexões, de certa forma, “prontos”. Dostoiévski critica corretamente esta postura em Os demônios, ao colocar na boca de um dos seus personagens que frequentava o círculo revolucionário secreto a seguinte fala: “as conversas e juízos sobre a organização social do futuro são quase uma necessidade premente de todos os homens pensantes da atualidade. Foi só com isso que Herzen se preocupou a vida inteira. Bielínski, como sei de fonte fidedigna, passava tardes inteiras com seus amigos debatendo e resolvendo de antemão os detalhes mais ínfimos, de cozinha, por assim dizer, da futura organização social”[xxvii].

Dostoiévski tem a grande vantagem sobre as organizações de esquerda de dar voz e ouvidos aos discursos e sofrimentos que vem de baixo, da maneira autêntica como emergem: confusos, contraditórios, iludidos, inflamados, humilhados, perversos. Levá-los em consideração é importantíssimo e pode ajudar na conformação de relações com a classe trabalhadora de forma muito mais honesta do que as que têm sido construídas até então, que são baseadas numa espécie de conveniências burguesas.

Paulo Bezerra, no seu posfácio do livro, aponta que “a reação imediata da crítica à publicação de Os demônios é praticamente unânime em classificá-lo como um panfleto contra o movimento revolucionário das décadas de 1860 e 1870. N. Mikháilovski, crítico de esquerda e autor de Um talento cruel, livro notável sobre Dostoiévski, classifica o caso Nietcháiev de ‘exceção triste, equivocada e criminosa’ no meio revolucionário russo, afirmando que o autor de Os demônios concentrou sua atenção ‘num punhado insignificante de loucos e canalhas’ que só serve para um ‘episódio de terceira categoria’. Essa opinião foi praticamente unânime entre os críticos liberais e de esquerda daqueles idos. Mas Dostoiévski, para quem os atos políticos do homem são produto de um processo histórico, não vê aquele episódio como algo isolado nem único, e sim como um elo na cadeia dos movimentos revolucionários russos, e afirma: ‘os principais propagadores da nossa falta de originalidade nacional seriam os primeiros a se afastar horrorizados no caso Nietcháiev [isto é, do assassinato do estudante I. Ivanov]. Nossos Bielínskis e Granóvskis não acreditariam se lhes dissessem que eles são os pais diretos de Nietcháiev. Portanto, foram essa afinidade e essa sucessão do pensamento, que evoluíram dos pais para os filhos, que procurei expressar em minha obra’”[xxviii].

Parte da crítica de “esquerda” tende a resumir o livro ao caso do terrorismo e dos assassinatos de Chátov e Kiríllov. De fato, suas narrativas são impactantes e o momento dramático do livro gira em torno deste enredo, bem como do incêndio terrorista (desconsiderando-se outros momentos dramáticos por parte do regime czarista). Há, também, uma leviandade flagrante e exagerada nas ações de Piotr Stiepánovitch, um dos principais personagens da obra, tratado como um patife sem maiores atributos humanos.

Foi por isso, talvez, que Isaac Deutscher escreveu em sua breve biografia sobre Plekhanov o que segue: “não há dúvida de que, em sua sátira selvagem, Dostoiévski apanhou algumas reais fraquezas e vícios do movimento populista, mas desprezou suas virtudes. (...) Foi sobre o terrorismo e a arrogante autossuficiência dos revolucionários que Dostoiévski também se demorou tão penetrante, obsessiva e distorcidamente. Mas onde Dostoiévski culpava a ideia revolucionária pelos defeitos dos revolucionários, Plekhanov criticava estes pelo amor da ideia revolucionária. Dostoiévski convocou os revolucionários a redimirem sua alma pecadora pela religião e pelo misticismo; Plekhanov achou uma resposta para os seus problemas críticos no marxismo. Dostoiévski viu a salvação da Rússia na sua urodivyie, seus sagrados lunáticos e mutilados, capazes de viver em completa abnegação e verdadeiro cristianismo. O próprio jovem Plekhanov se posta como uma refutação viva de Os demônios; simboliza a auto regeneração do movimento revolucionário, sua metamorfose moral e política, sua passagem do populismo e do terrorismo para o marxismo”[xxix].

Contudo, a grande sacada dostoievskiana não está na condenação do incêndio e dos assassinatos dos “lunáticos e mutilados”, mas em tudo aquilo que está por trás deles – isto é, as causas que levaram os militantes a tornarem-se “lunáticos”. Sobretudo no que Dostoiévski classificou como “sucessão de pensamentos que evolui de pai para filho” (faz esse trabalho de analisar as contradições da alma humana muito bem em diversas obras, com destaque para Memórias do subsolo). Sacou tão bem este espírito presente na realidade social russa que acabou por prever o stalinismo, ao contrário de quase toda a esquerda, que foi “pega de surpresa”. Isso significa que é fundamental prestarmos atenção às sutilezas da psicologia de massas, da literatura e da cultura em geral, relegadas, muitas vezes, a “crimes do velho mundo” ou a simples “diletância”.

***

Dostoiévski ainda nos provoca trazendo uma polêmica com diversos autores de sua época sobre se a arte era mais importante que as condições de vida do povo – e, portanto, mais importante que o “socialismo”. Ele coloca na boca de Stiepan Trofímovitch o seguinte discurso: “toda a dúvida está apenas em saber o que é mais belo? Shakespeare ou um par de botas, Rafael ou o petróleo? (...) proclamo que Shakespeare e Rafael estão acima da libertação dos camponeses, acima da nacionalidade, acima do socialismo, acima da nova geração, acima da química, acima de quase toda a humanidade, porque são o fruto, o verdadeiro fruto de toda a humanidade e, talvez o fruto supremo, o único que pode existir!”[xxx].

Ainda que dê voz a esta polêmica a partir do seu personagem, para Dostoiévski podemos passar sem Púchkin, mas não sem botas[xxxi]. Mesmo resolvendo a polêmica de forma materialista, sabemos que para o grande escritor russo a arte cumpria um papel determinante. Quando afirmou ter medo de comprometer a sua obra transformando o romance em um panfleto político contra o “movimento revolucionário”, na realidade Dostoiévski demonstrou como as sutilezas da arte podem contribuir decisivamente para abrir-nos os olhos em intrincadas questões políticas que, sem a arte, tendem a passar despercebidas.

Talvez o poeta brasileiro, Ferreira Gullar, “resolva” a polêmica de forma mais elegante do que Stiepan Trofímovitch “resolveu”, com a sua poesia Não há vagas:


O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Seja como for, se ficamos do lado de Rafael ou do petróleo, Os demônios não denuncia apenas as atrocidades políticas de um círculo revolucionário secreto que sofre de fanatismo: procura examinar, tirar lições e apontar as principais tendências do movimento revolucionário russo. Em síntese: a obra, mesmo com todas as suas limitações e contradições, conseguiu meritória e assombrosamente prenunciar o stalinismo a partir de um olhar sensível sobre as contradições do espírito humano – qualidade que tem ficado definitivamente fora das perspectivas de análise da “esquerda” até os dias de hoje, preocupada unicamente com o petróleo.




Referências

[i] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2018 (página 695).

[ii] Idem (página 690).

[iii] DOSTOIÉVSKI, Fiódor.  Correspondências 1838-1880. Editora 8Inverso, Porto Alegre, 2009 (página 191).

[iv] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2018 (página 695).

[v] Idem (página 215).

[vi] Idem (página 646).

[viii] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2018 (página 691).

[ix] Idem.

[x] TROTSKI, Leon. Marxismo e terrorismo. Publicações LBI, São Paulo, 2007 (página 15)

[xi] Idem (páginas 15 e 16).

[xii] Idem (página 11). O mesmo poderia ser dito sobre o “Fora Bolsonaro” ou “fora este ou aquele”, guardadas as proporções.

[xiii] Idem.

[xiv] LENIN, Vladmir Ilitch. Obras escolhidas, 1º tomo. Edições Progresso, Moscou, 1984 (página 132).

[xv] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2018 (contra-capas).

[xvii] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2018 (página 695).

[xix] DEUTSCHER, Isaac. Ironias da história – ensaios sobre o comunismo contemporâneo. Editoria Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968 (página 277).

[xx] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2018 (página 588).

[xxi] Idem (página 582).

[xxii] Idem (página 696).

[xxiii] Idem (página 606).

[xxiv] Idem.

[xxvi] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2018 (página 649).

[xxvii] Idem (página 395).

[xxviii] Idem (página 694).

[xxix] DEUTSCHER, Isaac. Ironias da história – ensaios sobre o comunismo contemporâneo. Editoria Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968 (páginas 246, 247 e 248).

[xxx] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2018 (página 472).

[xxxi] Idem (nota de rodapé).

terça-feira, 20 de julho de 2021

Por que Cuba incomoda tanto os EUA e a direita?

Uma análise sobre os protestos cubanos 

Cuba passou recentemente por uma série de manifestações populares – já chamadas por alguns de “jornadas de julho de 2021” – que refletem o aprofundamento de uma nova crise econômica. Imediatamente a grande mídia associou a crise à pandemia de covid-19 e ao “regime”. Segundo o G1, por exemplo, que critica ininterruptamente a ausência de “liberdade de expressão” e de internet na ilha, foram justamente as redes sociais as responsáveis pela convocação e divulgação dos protestos[1].

         A grande mídia burguesa, como sempre, vende a ideia de que se trata de uma luta social pelo “fim da ditadura comunista”, aproveitando-se para reforçar todo o tipo de preconceitos ideológicos contra o “comunismo”. Foi por isso que Bolsonaro, dando sequência à “guerra fria” fake desencadeada pelo neofascista Donald Trump, anunciou que: “No momento em que a ditadura comunista cubana ataca duramente o seu povo que pede o fim do regime que o mantém na miséria, no atraso e até hoje sufoca sua liberdade, o ditador Maduro promove ataque armado ao PR Juan Guaidó. Que Deus proteja nossos irmãos cubanos e venezuelanos!”[2].

         Os regimes neofascistas encabeçados por Bolsonaro e Trump estão pouco se lixando para os “irmãos cubanos e venezuelanos” – e mesmo para o povo pobre dos EUA e do Brasil. Querem aproveitar-se da crise econômica mundial, que se intensificou como resultado das medidas restritivas relacionadas à pandemia, para asfixiar e derrubar o regime cubano e voltar a colocar suas garras sobre o país, sepultando definitivamente a maior derrota política dos EUA no continente.

 

Como compreender os protestos contra o governo cubano?

         Há, tal como nos protestos de Hong Kong em 2019, na primavera árabe em 2011-2013 e mesmo no Brasil entre 2015-2016, fortes indícios de que estas manifestações possuem componentes de manipulação estadunidense, bem aos moldes das chamadas “revoluções coloridas”. Toda a movimentação política dos EUA sob o governo Trump foi cercar Cuba e Venezuela: golpe no Brasil em 2016, golpe na Bolívia, eleição de presidentes abertamente de direita no Equador, Peru, Argentina, Paraguai, Uruguai e tentativa de golpe na Venezuela. Expulsão de quase todas as missões médicas cubanas da América Latina, que eram uma fonte de renda para o governo de Cuba[3].

         A crise econômica do país caribenho, que já sofria com o mais longo bloqueio econômico da história humana, se agravou, como já foi apontado, pelos reflexos da crise mundial ocasionada pela pandemia, mas também pela retomada de medidas muito mais restritivas contra Cuba por parte do governo Trump. Há um plano para gerar fome, conflitos e sabotagens, visando acelerar a queda do governo. Aí se somam as declarações de Bolsonaro e da grande mídia.

         Biden segue a cartilha de Trump: não mexeu em nenhuma das restrições reeditadas pelo neofascista e trabalha “democraticamente” para concluir o que o seu antecessor iniciou contra Cuba. O escritor cubano Leonardo Padura aponta que estamos vendo em Cuba – assim como vimos no Brasil, nos EUA, na Bolívia, etc. – o aumento do discurso de ódio[4]. Como se sabe, esta é a tática preferencial do neofascismo para manipular a psicologia de massas[5]. Se Bolsonaro, Trump e Biden (e a “cobertura imparcial” da grande mídia) estivessem verdadeiramente preocupados com uma possível “ajuda humanitária” à Cuba, deveriam condenar como primeiro problema o bloqueio econômico imposto pelos EUA. Toda a farsa das suas declarações políticas começam aí!

         Parte da “esquerda” denuncia corretamente que o centro da crise em Cuba se deve ao bloqueio econômico, mas não vê nenhum problema no regime cubano; a outra parte da “esquerda” (formado pela maioria do Psol, o PSTU e correntes satélites), como já era de se esperar, apoia acriticamente o “povo” cubano nas suas “reivindicações” contra a “burocracia”. Repetem o mesmo erro cometido em relação à Hong Kong[6], à primavera árabe e ao “fora Dilma” no Brasil. Ignoram a correlação de forças em jogo e são incapazes de aprender com a experiência.

         Por certo, existe muito descontentamento em relação ao governo cubano, dado que já são outras gerações que não passaram pela experiência revolucionária de 1959 e que vivem sob o bombardeio da internet e das redes sociais, que tem sido o principal instrumento para a confrontação ao governo. O primeiro setor da “esquerda” acerta ao condenar o bloqueio e ao se colocar ao lado do governo cubano contra uma manipulação dos protestos que, inclusive, exigem, tal como em Hong Kong, a intervenção militar dos EUA. Erra ao divinizar o governo cubano e a não reconhecer os graves problemas de burocratização política. Olha apenas para o bloqueio econômico e atribui mecanicamente toda a insatisfação do povo a ele, o que é equivocado. Já Psol, PSTU e afins, cometem o erro oposto.

         Padura sustenta, corretamente, que “as autoridades cubanas não deveriam responder [os protestos manipulados] com as consignas habituais, repetidas durante anos”[7]. Ainda que acertem ao denunciar a intensificação dos bloqueios e das maquinações criminosas do imperialismo estadunidense contra Cuba (coisa que os covardes governos latino americanos nunca fizeram), aqueles setores da “esquerda” não querem perceber que há uma nova realidade desconsiderada por estas autoridades que ainda reproduzem a velha tradição stalinista – a despeito de que elas reconheceram a validade de algumas críticas, especialmente sobre os apagões observados em estados como Artemisa[8]. Porém, é exatamente nessas respostas mecânicas apontadas por Padura que se baseia a atuação e as táticas do neofascismo. Por isso suas financiadas “revoluções coloridas” tem obtido algum sucesso.

         A mesma declaração de Padura sobre as autoridades cubanas vale para a “esquerda” latino americana e mundial: parem de reproduzir consignas! Pensem e olhem a realidade em todos os seus nuances! Trabalhem a longo prazo, lutando contra a hipocrisia e os problemas cotidianos, não com fórmulas genéricas no momento que a crise inevitável estoura!

         Não é casual que Biden se utilize de certas polêmicas entre a “esquerda” para conseguir embaçar ainda mais a realidade cubana. Ele pede que Cuba “escute a população” e, como não poderia deixar de ser, declara apoio aos protestos. O chefe da Casa Branca pede ao governo que, “em vez de se enriquecer, atenda às necessidades da população”[9]. É sabido que a burocracia stalinista enriqueceu às custas da população. No entanto, que autoridade haveria nesta declaração do governo dos EUA, que está totalmente interessado na derrubada do governo de Cuba para justamente enriquecer o seu próprio governo e a classe dominante de seu país? O ponto central aqui é que, enquanto os republicanos agem com o porrete, os democratas sabem intervir nas polêmicas da “esquerda” e tirar vantagem de suas contradições.

 

Afinal, qual é a natureza do regime cubano?

         A realidade é sempre mais complexa e rica do que esquemas teóricos, por isso o posicionamento político e teórico torna-se bastante difícil. A realidade de Cuba, por ter passado por uma revolução socialista, revela-se ainda mais difícil, dado que foge aos esquemas comuns. Uma nova esquerda precisa aprender a se posicionar diante das realidades complexas, e não simplesmente reproduzir consignas e discursos.

         A simplificação da realidade é sempre muito perigosa. É nisso que a direita aposta, não apenas classificando Cuba de “regime comunista”, mas também a Venezuela, o PT ou qualquer coisa que cheire à “movimentos sociais” – vide os aborrecedores e repetitivos discursos bolsonaristas, bem como os da grande mídia, que lhe fazem eco de forma mais “educada”.

         A teoria marxista nos deixou um norte importante, que aponta o comunismo como a fase superior do socialismo, e este como “a fase inferior do comunismo”. É consenso entre a esquerda revolucionária e os intelectuais honestos que nunca existiu socialismo sobre a face da Terra, justamente porque o mercado mundial sempre foi dominado pelos países imperialistas e o capitalismo nunca teve sua espinha dorsal quebrada. Um país solitariamente não pode atingir o socialismo – esta foi uma das principais conclusões das polêmicas entre o stalinismo e o trotskismo no seio da União Soviética (URSS), comprovadas pela história[10].

         Com mais razão ainda podemos afirmar que jamais existiu comunismo, pois este é caracterizado por dar fim às classes sociais e ao Estado. Este seria o norte máximo do sistema comunista. Para atingi-lo, seria necessário passar por sua “fase inferior”, o socialismo, levando à emancipação da classe trabalhadora e a construção das condições materiais desta emancipação a partir do controle operário da produção e de um governo revolucionário que prepararia sua própria dissolução. Entre o capitalismo – isto é, a sociedade atual, com suas distintas realidades nacionais – e o comunismo, existe um emaranhado de incertezas e confusões que, nas palavras de Lenin, exigirá uma série de formações econômicas mistas. No percurso desse processo histórico as forças produtivas devem se desenvolver, superando o atual estágio do seu desenvolvimento[11].

         Há uma tendência no pensamento socialista, refém das polêmicas do século XX, que reconhece o socialismo como “sinônimo” do que foi o modelo soviético. Isto é: o pensamento corrente entre a esquerda brasileira e de grande parte dos intelectuais burgueses é de que o “socialismo” é sinônimo exclusivo de planos quinquenais controlados pelo Estado. Dito de outra forma: para ser “socialista”, a economia deve ser exclusivamente planificada, suprimindo totalmente o mercado e o setor privado.

         A construção do socialismo não se dá com um material humano fantástico, nem especialmente criado pelos partidos comunistas através da aplicação de uma receita de bolo (no caso, de um modelo soviético), mas com o que nos foi deixado de herança pelo capitalismo. Não é necessário dizer que isso é muito “difícil”; mas, segundo Lenin, qualquer outro modo de abordar o problema “é tão pouco sério que não deve nem ser mencionado”.

         Diferentemente da URSS, Cuba seguiu o modelo de reabertura econômica da China. Isto é: legalizou a propriedade privada e a reabertura ao mercado sem que o partido comunista perdesse o monopólio do poder[12], nem legalizasse instituições burguesas, como um parlamento repleto de partidos burgueses. Na URSS, a restauração do capitalismo, chamada de perestroika, levou à destruição das instituições soviéticas e ao esfacelamento do seu partido comunista, substituído por uma miríade de partidos burgueses que se assenhoraram do poder, solapando os comunistas. A economia foi inundada de fora para dentro, sendo despedaçada pela ganância dos investidores estrangeiros e a clara conivência da burocracia soviética.

         O mesmo não aconteceu na China e em Cuba, onde as burocracias dos PCs não perderam o controle do processo. O principal foco do programa do imperialismo estadunidense tanto para Cuba, quanto para China, é derrubar os PCs para instituir a democracia burguesa e, assim, chegar ao poder político visando retomar o pleno controle da economia. Quase o mesmo se passa na Venezuela, embora neste país seja mais nítido o seu caráter burguês, dado que convive com instituições burguesas, como um parlamento, justiça e partidos burgueses de oposição que são legalizados[13].

         O que há em Cuba, portanto, é uma forma de capitalismo de Estado, controlado por um regime político híbrido, assentado numa tradição política stalinista. Este regime é intolerável para o tipo de capitalismo defendido pelos EUA porque pressupõe a formação de semicolônias abertas às imposições do mercado controlado pelos seus interesses.

         O capitalismo de Estado cubano sofre com o bloqueio econômico ianque, por isso vive em crises econômicas permanentes, vendidas pela grande mídia burguesa, pelos governos imperialistas e seus vassalos como a “demonstração da ineficiência do comunismo” – o que, como vimos, não passa de distorção ideológica. Já a China, vive em um capitalismo de Estado pujante, dado que é impossível para os EUA bloquear o seu mercado interno, o maior do mundo, do qual diversos setores do imperialismo são dependentes.

 

Por que, então, Cuba incomoda tanto os EUA e a direita?

         Devemos responder agora a pergunta do título deste artigo: por que Cuba incomoda tanto os EUA e a direita? Ora, porque o capitalismo não pode aceitar nada que subverta a ordem do tipo de mercado imposto pelos EUA, do seu senso comum que padroniza o consumismo, a autoridade, o controle, os seus centros financeiros. A revolução cubana, com todos os seus problemas e contradições, representou uma ruptura inicial com esta submissão cega sem a qual o sistema econômico, cujo centro é o imperialismo ianque, não pode se manter. Reparem que os demais governos latino americanos (com exceção da Venezuela) sequer responde nos discursos as brutais intervenções estadunidenses nos mercados e nos outros países por medo de “abalar o mercado” e “perder investimentos”. Esta é a “democracia” do grande capital!

         Avançando para o modelo soviético, Cuba conseguiu manter sua população num nível de vida estável, ainda que abaixo das condições de vida do centro do capitalismo mundial (isto é, dos países imperialistas), mas melhores que os países de terceiro mundo. Daí advém o maior bloqueio econômico da história, que impede o desenvolvimento de um mercado interno. Isto é: ao não conseguir derrotar o processo revolucionário de 1959, bem como a consciência que dele surgiu, os EUA precisam sufocar a economia cubana visando destruir as bases do regime político cubano.

 

Gritar velhas consignas ou formular uma nova política para uma nova realidade?

         O capitalismo de Estado controlado pelos PCs cubano e chinês impede a “livre exploração” por parte do imperialismo dos recursos naturais de um país, do seu povo, bem como as imposições do sistema financeiro internacional e das megacorporações. Isso não quer dizer que os povos cubano e chinês estejam satisfeitos e sejam livres. São disputados permanentemente pelas correntes políticas e ideológicas do mercado mundial, em especial, pelo imperialismo estadunidense.

         Sofrem, também, com as contradições do “modelo soviético”, que traz de contrabando o partido stalinista, sem órgãos de representação de massas e de independência de classe, além das crises econômicas periódicas (não casualmente, as obras de Trotski foram proibidas em Cuba por longos anos e o seu assassino foi acolhido na ilha). Por isso Cuba e China nunca conheceram conselhos populares livres, nem nunca tiveram condições de trabalhar nesse sentido. As debilidades políticas e econômicas cubanas e chinesas, contudo, são o resultado de vários fatores, muito além das imposições autoritárias das concepções stalinistas.

         Ainda que seja importante combater a burocracia castrista no que tem de pior – a saber: a reprodução da tradição stalinista –, reivindicar uma “revolução política” para já, como faz a maior parte do movimento “trotskista” (com especial destaque para Psol e PSTU, que entendem as mobilizações atuais como o início destas “revoluções políticas”) é uma ilusão que ou apoia abertamente a reação imperialista, ou ignora a ausência de correlação de forças reais, bem como a mudança da realidade da ilha e do mundo.

         Esta visão, um tanto dogmática, é refém exclusiva do reconhecimento que o “socialismo” é o modelo soviético, portanto, deve-se derrubar a burocracia castrista para por o que no seu lugar? Quem sempre está pronto para assumir o poder são os movimentos impulsionados e financiados pelo imperialismo.

         A política de grande parte das correntes ditas “trotskistas” está em perfeita sintonia com os “dogmas canônicos” do trotskismo. Contudo, quanto mais se invoca a “revolução política”, mais afastados ficamos de cumpri-la. Ela paira no ar, dado que não há mais conexão entre as palavras e os fatos, conforme existiam na época de Trotski – nem Cuba é a URSS. A “esquerda” no geral, e a “trotskista” em particular, não se preocupam com as questões relativas à psicologia de massas, nem com os problemas relacionados à ausência de iniciativa das massas.

         Existem dois campos em Cuba com certa base de massas: o campo que apoia acriticamente a burocracia castrista, e o que se manifesta “exigindo mudanças”, no geral, dentro das vias da “democracia” burguesa que deseja o imperialismo estadunidense. O tipo de propaganda da “esquerda” trotskista atual não tem apelo de massas nem para um, nem para outro campo. Tem servido, no concreto, para apoiar um dos dois campos.

         Reconhecer a falta de apelo da propaganda do movimento trotskista atual e a sua recusa em levar em consideração o debate sobre psicologia de massas nada tem a ver com ignorar a importância de disputar as narrativas e explicar para as grandes massas cubanas e do mundo o que está em disputa. É fundamental levar em consideração, tal como o neofascismo leva, a psicologia de massas: reforçar a propaganda que aponte para a construção de organismos populares de decisão política (tipo conselhos populares como existiram na Comuna de Paris e nos primeiros anos da URSS); questionar o porquê de não haver a entrega da gestão das empresas aos órgãos eleitos em assembleias de trabalhadores (iniciando com as empresas estatais e na medida do crescimento da consciência de classe, das empresas privadas, de turismo e dos oligopólios imperialistas que lá operam); eleição para todos os cargos públicos, sujeita a destituição em qualquer momento por simples votação dos eleitores; legalização de sindicatos e organizações operárias independentes do partido comunista cubano. Ou seja, apontar para o problema de quais instituições políticas são necessárias para se avançar do capitalismo de Estado para o socialismo. Estudar e diferenciar as tendências do capitalismo de Estado que favorecem o desenvolvimento do socialismo, daquelas que favorecem a manutenção do capitalismo.

        Cabe ressaltar a legalização apenas de organizações operárias que, sob nenhuma forma, pode tolerar o ressurgimento dos partidos burgueses, que não podem ter outros interesses que não recolonizar Cuba e destruir a sua (relativa) independência política. Certamente a burguesia tentará infiltrar-se e utilizar-se das organizações operárias para derrubar o atual governo cubano. Aí entra o papel fundamental da crítica com independência de classe e da vigilância permanente.

         Para atingir o fim de emancipação da classe trabalhadora cubana é necessário um longo trabalho político de base que desenvolva responsabilidade social e consciência de classe – isto é, uma nova psicologia de massas para que eles possam assumir seus postos nos organismos coletivos, como sovietes, comunas, cooperativas, associações, órgãos de governo, etc. De nada adianta apresentar um programa mirabolante para Cuba sem que sua classe trabalhadora tenha as mínimas condições psicológicas de executá-lo. Portanto, a “revolução política” em Cuba, para ser realmente popular, precisa ser o resultado do crescimento deste tipo de movimento consciente.

         No entanto, o que vemos com as “jornadas de julho” em Cuba é apenas parte das mesmas contradições da ilha, ainda que devamos acompanhar com atenção os seus desdobramentos. Pode representar para a esquerda honesta o momento de vermos com novas lentes proletárias não apenas os velhos problemas cubanos, mas também as questões relacionadas à transição socialista.

 

 

Referências


[1] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/07/12/protestos-em-cuba-entenda-em-3-pontos-por-que-milhares-sairam-as-ruas.ghtml

[2] https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/07/4937320-bolsonaro-que-deus-proteja-nossos-irmaos-cubanos-e-venezuelanos.html

[3] https://www.youtube.com/watch?v=_pNBp0n08ak&ab_channel=BellyofTheBeastCuba

[4] Ver: https://jovencuba.com/alarido/

[5] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/02/a-repressao-moral-da-sexualidade-e-uma.html

[6] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/os-protestos-de-hong-kong-defendem.html

[7] Ver: https://jovencuba.com/alarido/

[8] https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2021/07/cuba-por-tras-protestos/

[9] https://www.poder360.com.br/internacional/biden-pede-que-cuba-escute-a-populacao-e-declara-apoio-aos-protestos/ e https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2021/07/4937134-ouca-seu-povo-diz-biden-a-diaz-canel-que-atribuiu-crise-de-cuba-aos-eua.html

[10] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/socialismo-com-caracteristicas-chinesas.html

[11] Idem.

[12] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/17/internacional/1531858538_862054.html

[13] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/09/afinal-o-que-e-venezuela.html