Uma
resenha crítica
Dostoiévski (1821-1881). |
A
grande obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski, intitulada Os demônios, descreve a atividade de um
“círculo revolucionário” do século XIX no interior da Rússia. Ao contar a história
desta “sociedade secreta”, de orientação anarco-niilista, Dostoiévski recria um
universo de personagens extremamente vivos, complexos e comoventes, que de tão
reais, tornam-se nossos velhos conhecidos ao ponto de nos preocuparmos
intimamente com o seu destino.
Baseado
em um caso verídico – o assassinato do estudante I. Ivanov pelo grupo niilista
liderado por S.G. Nietcháiev, discípulo de Mikhail Bakunin, em 1869 –, o livro
foi lançado em 1871 e reconstrói, de forma romanceada, as consequências
políticas da atuação do referido círculo. O pensamento teórico e o espírito de
seus dirigentes nos dão algumas pistas para investigar e compreender o
surgimento do fenômeno stalinista na sociedade russa, onde pairava no ar de
quase todas as manifestações políticas, sociais e econômicas alguns elementos
que refletiam uma cultura atrasada se comparada a Europa Ocidental, cuja maior
expressão se dava na luta entre “ocidentalistas” e “eslavófilos”.
Indo
muito além disso, Dostoiévski traz reflexões geniais sobre a ética com que a
luta precisa ser conduzida, uma vez que “sem
valores elevados é incoerente professar ideais elevados”[i]; e
o resultado só pode ser o surgimento de um fanatismo nefasto, que tende a
abafar a própria “causa nobre” pela qual supostamente se luta. Falam pela boca
dos seus personagens as confusas tendências políticas presentes no movimento
revolucionário russo do século XIX, sobretudo o movimento populista narodnik, de caráter terrorista.
Tido
por muitos críticos literários como um “romance panfletário”, Os demônios lança uma importante luz
sobre o passado russo pré-1917, antevendo profeticamente o desenvolvimento do
stalinismo. Talvez isso tenha sido possível porque Dostoiévski possui grande
conhecimento acerca da alma humana e intuição sobre todas as suas contradições
inerentes, percebendo os desvios perigosos que já se expressavam na atuação
daqueles círculos – apesar do seu apreço mal contido pela aristocracia russa e
pelo próprio cristianismo, que saltam aos olhos em diversas passagens da obra.
Contudo,
o combustível principal para a criação de Os
demônios foi, sem dúvida, o ódio mesclado ao desprezo pelo assassinato do
militante dissidente I. Ivánov por ordem de S.G. Nietcháiev, a principal
liderança da organização chamada de Justiça
Sumária do Povo, que seguia os preceitos políticos e ideológicos de um
“Catecismo do Revolucionário”, elaborado pelo próprio Nietcháiev.
Os personagens
Um
romance permite determinadas reflexões que textos de análise política e
filosófica não se permitem, acabando, muitas vezes, por enredarem-se em apreciações
que não penetram as obscuridades da alma
humana. Um romancista, como Dostoiévski, lança sua rede de pescador nas
profundezas do lado sombrio humano, contrastando-o com outros discursos e
tendências políticas que apenas aparecem na superficialidade.
Um
texto político ou filosófico busca uma análise sem contradições, que explique o
mais claramente possível suas concepções. Ainda que, até certo ponto, seja
inevitável e necessário tais explicações, a sua narrativa segue um curso monofônico, enquanto que um romance –
sobretudo os dostoievskianos – são de
caráter polifônicos, possuindo
diversas vozes entrecruzadas e contra argumentando-se. Tal quadro nos possibilita
perceber contradições flagrantes que um texto “técnico” de análise filosófica
ou política geralmente não permite.
A
construção da história dos personagens está intimamente ligada à história da
Rússia. E por mais problemas que haja na concepção política dostoievskiana – dado, como foi dito,
sua preferência política pelo cristianismo, pelo eslavofilismo e pela
aristocracia, tal como a maioria dos grandes escritores russos – sua atenção
está voltada para os eventos do cotidiano, da micro história e das pequenas
relações entre o povo, que são minimizadas ou mesmo ignoradas pelas análises
“técnicas” dos grandes teóricos marxistas, por exemplo – o que inclui, também,
a psicologia do povo. Se Dostoiévski
tira conclusões questionáveis de sua própria narrativa, em contrapartida nos
permite olhar a relação do povo entre si por outros ângulos e perspectivas
menos enrijecidas e formais.
Para
a construção dos personagens do romance, Dostoiévski investigou os dados
fornecidos pela imprensa da época sobre o assassinato do estudante, dissecando
o perfil de cada um dos seus integrantes e dando destaque especial à figura de
Nietcháiev (que lhe serviu de protótipo para o personagem Piotr Stiepánovitch
Vierkhoviénski); também presta atenção aos mínimos detalhes da organização Justiça Sumária do Povo[ii].
A
história se inicia com a descrição da vida e do pensamento de Stiepan
Trofímovitch Vierkhoviénski, pai de Piotr. Um intelectual que vive à sombra da
viúva, herdeira de grandes propriedades de terra, Várvara Pietrovna
Stavróguina, mãe de Nikolai Vsievolódovitch Stavróguin, personagem
multifacetado e contraditório, outro líder do “círculo revolucionário”, que
mantém algumas relações com os emigrados russos e com a própria Internacional.
Stavróguin expressa bem a profundida das construções psicológicas dos
personagens dostoievskianos, dado que
traz à luz todas as suas sombras mais recônditas, confrontando-as com o alto
ideal – a chamada “causa comum” – que diz professar.
Ao
contrário de Piotr Stiepánovitch, Stavróguin demonstra um certo lampejo de
desconforto com a condução da luta do círculo secreto e mostra algum tipo de
remorso pelo seu desdobramento, bem como por suas ações pessoais do passado,
marcadas por um grande apetite sexual, práticas de duelos e um escabroso caso
de pedofilia. Os protótipos de “revolucionários” usados como parâmetro por
Dostoiévski nesta obra não são marcados pela coerência e não se assemelhavam em
nada – ou quase nada – a lideranças como Lenin e Trotski, por exemplo.
Grande
parte da “militância revolucionária” e da intelligentsia
daquele período era oriunda da aristocracia, da qual não se desvencilhava
completamente. Piotr Stiepánovitch e Stavróguin não eram exceções. Por isso
Dostoiévski inicia sua narrativa pela descrição da vida, dos modos e do
pensamento desta aristocracia, destacando a relação conflituosa, repleta de um
amor reprimido entre a fria Varvara Pietrovna – mãe de Stavróguin – e Stiepan
Trofímovitch – pai de Piotr Stiepánovitch.
Segundo
Dostoiévski, “Stiepan Trofímovitch é uma
figura de importância superficial – o romance não irá, em verdade, lidar com
sua figura em profundidade; mas, sua história é de tal modo próxima aos eventos
do livro, que me senti obrigado a tomá-lo como elemento central para todo o
resto”[iii].
Stiepan Trofímovitch é um intelectual francófilo e ocidentalista, sustentado
por Varvara Pietrovna, que educou toda uma geração de personagens do livro,
dentre os quais, seu próprio filho, Piotr Stiepánovitch, e Nikolai Stavróguin.
Como membro consciente de uma aristocracia em decadência, Stiepan Trofímovitch
vê com certo desdém as ideias revolucionárias europeias, as reformas que vão
abolir a servidão feudal e a abertura da Rússia ao capitalismo, embora aprecie,
sem sombra de dúvidas, a influência Ocidental sobre o país.
Todos
os principais “dirigentes” do círculo revolucionário provêm da aristocracia,
ainda que a rechacem formalmente – uns mais, como Stavróguin; outros menos,
como Piotr Stiepánovitch. Tal como a “esquerda” atual, eles pregam ideais
“revolucionários” e transformadores, mas os negam na prática cotidiana, em suas
motivações e atitudes reais, vontades e convicções recônditas[iv],
de olhos sempre abertos para toda a espécie de benesses. Por este e outros
motivos, Piotr Stiepánovitch estabelece relações com a alta sociedade daquela
cidadezinha de interior: passa a influenciar diretamente a governadora local,
Yulia Mikhailovna, que possui total controle sobre o seu marido, o governador,
Andriêi Antonovitch von Lembke. Durante grande parte do livro Piotr
Stiepánovitch orbita o casal, preparando a “grande ação” do círculo
revolucionário que dá o eixo do romance – ao mesmo tempo que tira todo o
proveito material possível da intimidade daquela relação.
Envoltos
em uma aura de santidade por serem os principais dirigentes do círculo
revolucionário, Piotr Stiepánovitch e Stavróguin se relacionam utilitariamente com
os militantes “de base” que, em sua maioria, são parte da classe trabalhadora:
operários, funcionários públicos de baixa patente, estudantes. Dentre estes,
cabem destacar Chátov – o protótipo romanceado de I. I. Ivanov, o estudante
assassinado pela organização de Nietcháiev –, Kiríllov, Lipútin, Liámchin,
Virguinski, Arina Prókhorovna e o jovem Erkel, pupilo cego de admiração por
Piotr Stiepánovitch.
O apogeu do enredo da obra e o
método terrorista
A
atuação do “círculo revolucionário” tinha como ponto culminante uma ação
secreta intercalada com a participação nas altas esferas sociais, usada como
despiste para a primeira. A grande “ação revolucionária” foi planejada para
acontecer durante um baile oficial patrocinado pelo governador da província,
Andriêi Antonovitch von Lembke, e sua esposa, Yulia Mikhailovna, até então
manipulada pelo jogo duplo de Piotr Stiepánovitch. O evento deveria reunir toda
a cidade para um sarau literário – bastante comum na época –, seguido por um
baile, momento no qual membros do “círculo revolucionário” deveriam agir.
Tal
ação foi precedida por uma série de panfletos publicados anonimamente, que
traziam conteúdos “revolucionários” e de questionamento da velha ordem,
sobretudo lançados na fábrica Chpigúlin, onde os operários passavam inúmeras
necessidades e já haviam expressado seu descontentamento pelas condições de
trabalho e de vida. Esta agitação clandestina expressava, de fato, o
descontentamento geral do povo russo, que só crescia sob a autocracia czarista
– incapaz de encontrar ou propor qualquer solução, a não ser proibir a simples
publicação de textos críticos à estrutura social. Foi refletindo essa situação
e percebendo determinados ventos de mudança que Dostoiévski colocou nesta obra
o romancista Karmazínov – um protótipo do escritor russo Turguêniev, de quem
não esconde o seu desapreço através de ironias desconcertantes. Atribui ao seu protótipo
na obra a seguinte “esperança”: “o grande
escritor tinha estremecimentos mórbidos diante dos modernos jovens
revolucionários, e imaginando, por desconhecer o assunto, que nas mãos deles
estavam as chaves do futuro da Rússia”[v].
De fato, essa “imaginação” se mostrou verdadeira, embora com a evidente
esperança de Dostoiévski de que não fosse.
O
governador von Lembke, por sua vez, tentava encontrar, sem sucesso, os
responsáveis por redigir aqueles panfletos – muitos dos quais, disseminavam
apenas poesias revolucionárias que questionavam os valores morais e sociais
daquela época. Piotr Stiepánovitch, por sua vez, fazia jogo duplo com von
Lembke, dizendo saber quem seriam os seus redatores, tanto como forma de manter
a sua influência sobre o governador, quanto sobre os “militantes de base” do
círculo revolucionário; ao mesmo tempo em que impulsionava clandestinamente a
sua divulgação como forma de preparar a “grande ação”.
No
apogeu do baile da elite local chegou a notícia de um incêndio no bairro
operário. Imediatamente se levantou a suspeita de que todos foram reunidos
naquela festa de caso pensado para que “alguém” pudesse provocar o incêndio. Uma
vez que eram conhecidos pela agitação permanente de suas péssimas condições de
vida, os primeiros suspeitos foram os operários da fábrica Chpigúlin – e eles
ficariam por um bom tempo nesta condição até que se encontrassem os verdadeiros
responsáveis.
***
Durante
muito tempo o movimento revolucionário russo se resumiu aos círculos
clandestinos, fazendo um trabalho “artesanal” – para usar uma expressão célebre
–, que descambava para o terrorismo na tentativa de derrubar o czarismo e
instaurar uma nova ordem social. O movimento camponês, conhecido como narodnik (também conhecido como Narodnaia Volia, que, do russo,
significa, “a vontade do povo”;
futuramente ele se transformará nos SRs, dividindo o poder com os mencheviques
e a burguesia “liberal” em fevereiro de 1917), foi o principal impulsionador
deste “método de luta”. Ele sofreu grande influência do movimento anarquista
russo, para quem Bakunin era uma das principais referências.
À
pergunta feita por vozes adeptas ao regime czarista de “por que tantos assassinatos, escândalos e torpezas?”, Piotr
Stiepánovitch respondeu: “para provocar
um abalo sistemático das bases da sociedade, para a desintegração sistemática
da sociedade e de todos os princípios; para deixar todo mundo em desalento e
transformar tudo numa barafunda e, uma vez assim abalada a sociedade,
esmorecida e doente, cínica e descrente, mas com uma sede infinita de alguma
ideia diretora e de autopreservação, tomar tudo de repente em suas mãos,
erguendo a bandeira da rebelião e apoiando-se em toda uma rede de quintetos,
que entrementes agiam, recrutavam gente e procuravam na prática todos os
procedimentos e todos os pontos frágeis aos quais podiam agarrar-se”[vi].
Este
era o programa político do “círculo revolucionário” de Os demônios. Como se fosse possível que atos isolados da massa,
feitos através do método terrorista de alguns poucos, pudessem “abalar a
sociedade” e possibilitar que o povo tomasse “tudo de repente nas suas mãos”.
Em nenhum dos diversos atos de terrorismo praticados pelos narodniks ao longo da história russa foi possível realizar este
“programa”. Todos serviram para que a autocracia czarista reprimisse impiedosa
e indistintamente todo o movimento de massas – em 1914, por exemplo, o
assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, na Europa Oriental, foi o
pretexto utilizado pelas potências imperialistas para desencadear a 1ª Guerra
Mundial; sem falar nas infiltrações policiais que abusavam do método terrorista
para facilitar o trabalho da repressão estatal (mesmo erro cometido pelos black blocks em 2013, no Brasil[vii]).
O
chamado marxismo russo, por sua vez, foi fundado na polêmica contra o
terrorismo narodnik. Plekhanov, Lenin
e Trotski redigiram diversos artigos criticando a concepção terrorista, muito
incentivada, como já foi dito, pelo anarquismo russo, que a chamava de
“propaganda pelos fatos”. Embora Dostoiévski fosse, de certa forma,
contemporâneo de Plekhanov, ele não vivenciou o período das grandes polêmicas
entre a social-democracia russa (o futuro partido socialista que dará origem
aos agrupamentos bolcheviques e mencheviques) e os narodniks. Portanto, suas críticas vorazes ao método terrorista e
de organização presentes na sua obra são direcionadas aos últimos, principalmente
porque naquela época a social-democracia dava apenas os seus primeiros passos.
De qualquer forma, grande parte da atuação política clandestina era comum tanto
aos narodniks quanto à
social-democracia, o que certamente gerou certas semelhanças de funcionamento e
mesmo alguns desvios como resultado da opressão e obscurantismo que reinava
naquela realidade histórica.
Sobre
estes temas, assim Dostoiévski se expressou respondendo às críticas de que seu
livro seria panfletário: “quero enunciar
algumas ideias, ainda que isso redunde na ruína de minha condição artística. Contudo,
sinto-me envolvido pelo que tenho acumulado na mente e no coração; que isso
acabe em panfleto, mas hei de me manifestar (...). Os niilistas e ocidentalistas exigem a chicotada definitiva”[viii].
Ele ainda prevê que estes o chamarão de “retrógrado”, mas não importava,
contanto que conseguisse dizer tudo até a “última palavra”[ix]. E
ele o disse, embora sem levar em consideração a posição “marxista” que se
gestava no mesmo momento em que redigia sua crítica literária ao terrorismo narodnik.
Trotski
tentou procurar explicações para o fenômeno do terrorismo na vida política
russa e chegou a algumas conclusões semelhantes: “Devem existir profundas razões para isso. Devemos busca-la primeiro,
na natureza da autocracia russa, e depois, na natureza da intelectualidade
russa. Para que a própria ideia de destruir o absolutismo por meios mecânicos
pudesse difundir-se, o aparato estatal teve de aparecer como simples órgão de
coerção externo, sem raízes na organização social. E essa é, precisamente, a
forma que a autocracia russa assumiu aos olhos da intelectualidade
revolucionária. Esta ilusão possuía um fundamento histórico próprio. O czarismo
formou-se sob a pressão dos estados culturalmente mais adiantados do Ocidente.
Para poder competir, devia tirar o sangue das massas populares e assim
possibilitar a ascensão das próprias classes privilegiadas. Estas classes não
puderam alcançar o nível político das suas similares no Ocidente. A isso se
agregou, no século XIX, a forte pressão da bolsa de comércio europeia. Quanto maiores
eram as somas que esta emprestava ao regime czarista, menos este dependia das
relações internas. O capital europeu permitiu ao czarismo armar-se de
tecnologia europeia, convertendo-o assim em uma organização (relativamente,
desde logo) ‘autosuficiente’, situada acima de todas as classes sociais”[x].
Dostoiévski
conhece muito bem, como sabemos, a alma humana e a sua psicologia
contraditória. Deste ponto de vista, o livro Os demônios é impecável e traz reflexões fundamentais para a
esquerda e o movimento socialista. Contudo, entende pouco e faz muita confusão
sobre a teoria socialista (talvez fruto
das insuficiências de sua época). Além disso, pouco se preocupa com a “natureza
da autocracia russa”, parecendo que, às vezes, lhe dá suporte indireto.
Dostoiévski combate a intelectualidade russa “de esquerda” sem levar em
consideração estas análises fundamentais sobre a formação histórica da
autocracia czarista.
Partindo
desta análise, Trotski conclui o raciocínio: “semelhante situação podia
dar surgimento à ideia de fazer voar esta superestrutura estrangeira com
dinamite. A intelectualidade se sentiu chamada a realizar esta tarefa. Assim
como o Estado, a intelectualidade havia se desenvolvido sobre a pressão direta
e imediata do Ocidente; da mesma forma que seu inimigo, o Estado, se adiantou
ao nível de desenvolvimento econômico do país: o Estado, tecnologicamente; a
intelectualidade, ideologicamente. Enquanto que nas velhas sociedades burguesas
europeias as ideias revolucionárias se desenvolviam mais ou menos em conjunto
com as grandes forças revolucionárias, na Rússia os intelectuais tiveram acesso
à cultura e política pré-fabricadas do Ocidente; seu pensamento sofreu uma
revolução antes que o desenvolvimento econômico do país tivesse dado surgimento
a classes revolucionárias sérias nas quais apoiar-se. Nestas circunstâncias,
nada restava aos intelectuais senão multiplicar seu ardor revolucionário com o
poder explosivo da nitroglicerina. Assim surgiu o terrorismo clássico de
Narodnaia Volia [narodnik]”[xi].
***
Já
em relação às polêmicas dos sociais-democratas contra a utilização do método
terrorista, os futuros bolcheviques assim se manifestaram: “que um atentado terrorista, inclusive um ‘exitoso’, crie confusão na
classe dominante, depende da situação política concreta. Seja como for, a
confusão terá vida curta; o Estado capitalista não se baseia em ministros de
estado e não é eliminado com a desaparição destes. As classes a que servem encontrarão
sempre pessoas para a substituição; o mecanismo permanece intacto e em
funcionamento. Porém, a desordem que produz o atentado terrorista nas fileiras
da classe operária é muito mais profunda”[xii].
E
concluem: “Para nós, o terror individual
é inadmissível, precisamente porque torna pequeno o papel das massas em sua
própria consciência, fazendo-as aceitar sua impotência, voltando seus olhos e
esperanças para o grande vingador e libertador que algum dia virá cumprir a sua
missão. Os profetas anarquistas da ‘propaganda pelos fatos’ podem falar até
pelos cotovelos sobre a influência estimulante que exercem os atos terroristas
sobre as massas. As considerações teóricas e a experiência política demonstram
o contrário. Quanto mais ‘efetivos’ sejam os atos terroristas, quanto maior
seja seu impacto, quanto mais se concentrar as atenções das massas neles, mais
se reduz o interesse das massas em organizar-se e educar-se”[xiii].
Lenin,
por sua vez, elabora uma crítica radical aos métodos do terrorismo individual,
partindo sempre do pressuposto de sua ineficiência política para despertar a
consciência de classe e a própria ação independente do proletariado. Nunca
combateu o terrorismo sob a ótica da moral burguesa, nem de “éticas” abstratas,
mas sim pela pouca ou nenhuma função política (às vezes servindo de pretexto
para repressões brutais por parte da classe dominante). No seu livro Que fazer?, de 1902, ele afirma que “os economicistas e os terroristas
contemporâneos têm uma raiz comum, a saber: o culto da espontaneidade”[xiv].
Como
foi dito: o ponto forte de Dostoiévski é o seu conhecimento acerca da alma
humana; o seu ponto fraco, por outro lado, é a pouca atenção dada à história
política e do movimento operário russo, que é justamente o ponto forte dos
bolcheviques. Agora inverteremos a balança para ver o avesso da moeda. O que
passa despercebido por Dostoiévski, não passa pelos bolcheviques; o que passa
despercebido pelos bolcheviques, não passa por Dostoiévski: as questões
subjetivas, que, se não observadas com o máximo de acuidade possível, tornam-se
determinantes.
Dito
de outra forma: Dostoiévski se atenta para as questões fundamentais da psicologia de massas – ainda que em sua
época este conceito não existisse.
A assustadora previsão do fenômeno
do stalinismo
A
ação terrorista incendiária, que é o ápice do enredo do livro, gera suas
contradições inevitáveis. Alguns militantes de base do “círculo revolucionário”
terminam tendo uma aguda crise de consciência – o que é o caso do estudante
Chátov –, ameaçando delatar a ação secreta. Neste momento, entram em cena os
dilemas éticos e os inevitáveis conflitos com as “teorias revolucionárias” da
época, fazendo emergir as limitações dos personagens, que traduz muito
acuradamente os problemas da atuação política dos militantes naquele contexto.
Diversas
críticas de Dostoiévski à organização e à atuação do “círculo revolucionário”
de Os demônios servem também para as
futuras organizações políticas russas, dentre as quais, os próprios bolcheviques.
Indo mais além: servem às organizações de esquerda da atualidade. De certa
forma, Dostoiévski percebeu algumas tendências presentes nas organizações
revolucionárias que refletiam, de uma forma ou de outra, os problemas
universais traduzidos para a realidade russa. Nesse sentido, intuiu de forma
genial o que viria a ser o stalinismo.
Isso
se expressa no fanatismo das “teorias revolucionárias”, criticadas a partir das
contradições presentes no pensamento do personagem Chigáliov. Para Piotr
Stiepánovitch, Chigáliov era um homem genial, a quem comparava com Fourier.
Segundo Piotr Stiepánovitch, Chigáliov “inventou
a ‘igualdade’! No esquema dele cada membro da sociedade vigia o outro e é
obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são
escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao
assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é
rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das
ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos
superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e
foram déspotas, sempre trouxeram mais depravação do que utilidade. Eles serão
executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um
Shakespeare mata-se a pedradas – eis o chigaliovismo. Ah, ah, ah, está achando
estranho? Sou a favor do chigaliovismo!”[xv].
As
semelhanças com o stalinismo não se resumem a essa descrição quase perfeita do
futuro fenômeno político russo do século XX. Segundo Paulo Bezerra – tradutor
de Dostoiévski e profundo conhecedor da realidade russa –, foi justamente nessa
“semiciência” que o marxismo se transformou na URSS, e diante dele tudo tremeu
e prosternou-se. Na organização de Piotr Stiepánovitch todos eram obrigados a
manter uma disciplina férrea e espionavam uns aos outros. Já há aí uma grande
dose de stalinismo.
Em
muitas passagens do livro, Dostoiévski ignora as contradições resultantes da sociedade
czarista – ainda que a critique em muitos aspectos. Grande parte da ação
clandestina destas sociedades secretas se dava desta forma em razão da censura,
da repressão, prisão, deportação e mesmo execução de qualquer tipo de oposição
política (o stalinismo também reflete essas condições anteriores ao seu
surgimento, bem como as reproduz – isso é sempre capciosamente ignorado pela
intelectualidade de direita).
As
descrições dostoievskianas acerca da
teoria socialista se caracterizam mais por serem um imbróglio de ideias
incoerentes para fanatizar, deixando de analisar outros tantos de seus
elementos positivos. Mesmo a sua narrativa sobre a exploração dos operários da
fábrica Chpigúlin carece de maiores conclusões e mesmo de profundidade. Se por
um lado as teorias socialistas estavam recém se formando em sua época e,
portanto, apresentavam muitas características do chamado “socialismo utópico”,
sem a maior parte da teoria que conhecemos hoje; por outro, Dostoiévski intuiu de
forma genial determinadas tendências políticas presentes nas organizações
revolucionárias daquele período. Futuramente, tais tendências se tornariam centrais para a formação do fenômeno
stalinista.
Na
construção desta crítica fundamental à atuação das organizações revolucionárias
secretas daquela época, Dostoiévski mostra como grandes e generosas ideias, uma
vez manipuladas por indivíduos desprovidos de consistência cultural e
princípios éticos, podem se transformar na sua negação, assim como a utopia da
liberdade e da felicidade do ser humano pode degenerar na sua negação, no
horror, na morte, na mentira. Grandes ideias, quando geridas por tipos
intelectualmente toscos, acabam em farsa ou paródia. Assim tem sido a história
humana, dada o baixo interesse em aprender com as trágicas lições do passado[xvi].
Para
Dostoiévski é impossível alguém liderar uma grande causa sem compreender a
essência profunda da natureza humana; alguém que faz das ideias objeto de
compra e venda com oportunistas degenerados. Sem valores elevados é incoerente
professar ideais elevados. Desse jeito, passam a segundo plano as diferenças
políticas e ideológicas e os que ontem pareciam como inimigos irreconciliáveis,
hoje se entendem e até fazem alianças “táticas”. E isso parece ser pouco
importante por parte da “esquerda”, mais preocupada em reproduzir consignas
abstratas do que compreender a essência das experiências históricas.
No
posfácio escrito por Paulo Bezerra, podemos ler que Dostoiévski não censurava os
revolucionários em si, mas sim o inacabamento de suas teorias pelas lacunas aí
deixadas, que acabaram degenerando na sua negação, no simulacro, na impostura.
Nesse caminho, eles criam uma engrenagem que transforma em “salvadores” e “vanguarda”
da humanidade indivíduos sem consistência moral e ideológica nem condição
cultural para tais papéis – e aqui, novamente, a “esquerda” pouco se preocupa
com tais problemas. Estes “salvadores”, para manter seu poder, apelam para dois
procedimentos: cercam-se de elementos incondicionalmente submissos, cegos às
questões ético-ideológicas, mas de olhos bem abertos para toda espécie de
benesses; e criam em torno de si a aura mítica de sábios, profetas e heróis
infalíveis[xvii].
Reforçam, portanto, o malfadado espírito
de rebanho[xviii].
Esta
importância fundamental dada por Dostoiévski à natureza humana para qualquer
tentativa de se mudar a sociedade, dado que a esquerda ainda hoje não tem a
menor preocupação em relação às questões relacionadas à psicologia de massas, não encontra um paralelo numa explicação
acerca das questões sociais e econômicas da Rússia. Se o autoritarismo das
organizações russas se repete tanto, para além das questões relacionadas à
natureza humana, deve haver causas materiais que as façam se repetir com tanta
insistência (devemos admitir que há uma propensão à esta repetição na maioria
dos países do mundo, pois as vemos, também, no Brasil, embora apenas na Rússia
tenha assumido contornos como os
narrados por Dostoiévski).
Na
busca por este tipo de explicação, Isaac Deutscher aponta que “em todas as partes, o passado e o presente,
a tradição e a revolução, o marxismo e as ideologias nativas, eslavófilas e
populistas, ideias socialistas e aspirações messiânicas russas se interpenetram
e se fundem, até formar um curioso amálgama no stalinismo e no socialismo num
só país. Ora, essa tensão entre a mudança e a continuidade ou entre a revolução
e a tradição, impregna indiscutivelmente toda a história recente da Rússia”[xix].
Era
este o caldeirão histórico onde fervilhava a “natureza humana russa”. Não é
possível entender a atuação revolucionária na Rússia sem compreender este
caldeirão. Ele é composto pela repressão, censura, perseguição e deportação por
parte do governo autocrático e, portanto, pelo medo permanente de ser delatado por
qualquer coisa, bem como pelo fanatismo religioso, social e político, gerados
por uma profunda ignorância e um preconceito arraigado. Todos estes
ingredientes contribuíram decisivamente não apenas para a atuação do “círculo
revolucionário” secreto de Os demônios,
como também para a gestação do stalinismo.
Somado
à falta de ética, caráter e amplidão cultural dos militantes do círculo secreto,
vemos o surgimento de aberrações políticas como o assassinato do ex-militante
Chátov, que tornou-se um dissidente que ameaçava delatar a organização inteira
pelo incêndio terrorista. Tais assassinatos serão corriqueiros em toda a
história do stalinismo. Aliás, ele é fundado no assassinato, na dissimulação e
na mentira.
Após
cometer o brutal assassinato de Chátov, Piotr Stiepánovitch declara que “sem dúvida os senhores devem estar sentido
o orgulho livre que acompanha o cumprimento de um dever livre”[xx].
Ou seja, esta manipulação do discurso político “revolucionário”, associando
atrocidades resultantes da própria contradição da política equivocada dos
círculos revolucionários populistas com o “dever livre”, é a própria essência
do stalinismo. Centenas de milhares de militantes foram formados (e ainda são)
dentro desta cultura política absurda. Nada de “novo” e “emancipado” pode
surgir deste tipo de “organização revolucionária”; apenas a reprodução de novas
formas de opressão.
Após
o assassinato de Chátov, Piotr Stiepánovitch se lança contra Kiríllov,
obrigando-o a se suicidar e assumir a responsabilidade pelo assassinato de
Chátov para descriminar os militantes da organização secreta e retirar-lhes
toda a suspeita. Quem não se lembra aqui dos Processos de Moscou forjados por
Stalin? O que são estes processos senão a dramatização – como farsa – de toda a
história de Os demônios, só que agora
em escala nacional? Tais processos, ocorridos na “tardia” década de 1930,
confirmam tristemente as previsões de Dostoiévski.
Antes
de assassinar Chátov, na tentativa de convencer a militância do “círculo
revolucionário” a executar tal ação, Piotr Stiepánovitch ainda argumenta que “até o último instante” teve “a esperança de aproveitá-lo para a causa
comum e usá-lo como homem exasperado”[xxi].
A prática do stalinismo (e de quase toda a esquerda atual) é, declaradamente ou
não, a de “aproveitar” as pessoas para “a causa comum”, ignorando totalmente
seus sentimentos e consentimentos. Ou seja, trata-se de um utilitarismo
político que nada possui de revolucionário (basta olhar os sindicatos de hoje
em dia).
O
jovem militante do “círculo revolucionário” Erkel, que ama e admira Piotr
Stiepánovitch, devotando-lhe uma submissão incondicional, não compreende uma
ideia ou a “causa comum” sem a sua fusão com a pessoa que, para ele, a
representa: Piotr Stiepánovitch. Nesse caso, sua adesão às “ideias
revolucionárias” é apenas emocional, e não racional e intelectual. Não
compreende o programa revolucionário senão como a expressão dada pelos “guias
geniais” – geralmente vistos inconscientemente como sucedâneos dos pais. Paulo
Bezerra aponta que “durante décadas a
ideia do socialismo foi indissociável da pessoa de Stálin, assim como a ideia
do nacional-socialismo foi indissociável do Führer”[xxii].
Na
despedida entre Erkel e Piotr Stiepánovitch na estação de trem, quando o último
prepara secretamente a sua fuga da Rússia, surge uma espécie de prostração e
melancolia no primeiro por perceber que, sem o chefe, o “círculo
revolucionário” não poderia funcionar, por isso exclama: “o melhor seria você não partir!”[xxiii].
Como sempre, as lideranças sem escrúpulos e sem caráter tergiversam, afirmando
qualquer coisa para se livrar de suas
reais responsabilidades. Piotr Stiepánovitch responde, cinicamente, que sua
partida para São Petersburgo é “pela causa comum” e não uma “simples
escapulida”, como outros membros do círculo supunham.
A
isto, Erkel responde servilmente: “Piotr
Stiepánovitch, mesmo que você esteja indo para o estrangeiro, eu vou
compreender; vou compreender e você precisa preservar sua própria pessoa porque
você é tudo e nós não somos nada”[xxiv].
Eis aí a previsão profética e assustadora da noção de “socialismo” pelo
stalinismo, que foi disseminada pelo mundo todo pela III Internacional já
controlada por Stalin. Trata-se, como vimos, de algumas tendências bem
presentes nos movimentos sociais russos, que terminaram por tragar o Estado
soviético na luta ininterrupta entre “a revolução e a tradição”.
Associações impróprias com o
socialismo e o que a teoria socialista precisa aprender com Dostoiévski
Como
foi dito, Dostoiévski confunde certas noções e ideias do socialismo utópico como sendo o próprio socialismo (a começar pelo
método do terrorismo). Isso provavelmente
ocorreu porque ele não teve tempo e possibilidade de conhecer – ou pelo menos
condições de refletir sobre – a crítica marxista das teorias socialistas que
foram classificadas como “utópicas” ou como “socialismo burguês”[xxv].
Apesar da responsabilidade por esta debilidade não ser inteiramente sua,
Dostoiévski não poupa tintas na crítica ao socialismo “em geral”, ao quê, por
isso mesmo, é necessário fazer algumas ponderações.
Nas
obras de Dostoiévski há uma certa preferência e naturalização da estrutura
social da autocracia czarista. Na conclusão do livro ele escreveu: “Hoje, três meses depois daqueles
acontecimentos, a nossa sociedade está em paz, recuperou-se da doença...”[xxvi].
Da mesma forma podemos considerar a busca cristã de muitos de seus personagens,
que vivem, geralmente, em um profundo conflito entre o ateísmo e a existência
de deus. A redenção de muitos deles vem com a descoberta de alguma influência
divina que lhes “abre os olhos” e, então, passa a viver dentro de um novo tipo
de ética e de visão de mundo. Ainda que a narrativa desses conflitos seja
extremamente enriquecedora, o regime autocrático czarista só poderia se
beneficiar de tais conclusões. Que tipos de seres humanos podem nascer “na paz”
do servilismo, da censura e da crueldade militar do czarismo?
Parte
desta naturalização surge do fato de Dostoiévski ter um discurso narrativo
polifônico, isto é, que escuta e dá projeção a diversas vozes. Esta preocupação
de ouvir outras vozes falta à esquerda, que sempre fala, propõe e impõe muito
mais do que está aberta a saber interpretar e buscar discursos polifônicos
(quando supostamente o faz, tipo PT,
simplesmente dá mais voz aos setores burgueses que lhe são aliados). Se por um
lado isso é um reflexo inevitável da sua importante busca por dar uma direção
política, por outro, tende a se degenerar quando só impõe e não está aberta a
nenhum tipo de reflexão nova trazida pelas várias vozes. E, no caso, os maiores
partidos e correntes políticas da “esquerda” agem assim.
Mesmo
os grandes teóricos do socialismo traduziram os anseios e os sofrimentos
econômicos da classe trabalhadora, falando desde cima e trazendo programas e
reflexões, de certa forma, “prontos”. Dostoiévski critica corretamente esta
postura em Os demônios, ao colocar na
boca de um dos seus personagens que frequentava o círculo revolucionário
secreto a seguinte fala: “as conversas e
juízos sobre a organização social do futuro são quase uma necessidade premente
de todos os homens pensantes da atualidade. Foi só com isso que Herzen se
preocupou a vida inteira. Bielínski, como sei de fonte fidedigna, passava
tardes inteiras com seus amigos debatendo e resolvendo de antemão os detalhes
mais ínfimos, de cozinha, por assim dizer, da futura organização social”[xxvii].
Dostoiévski
tem a grande vantagem sobre as organizações de esquerda de dar voz e ouvidos
aos discursos e sofrimentos que vem de baixo, da maneira autêntica como
emergem: confusos, contraditórios, iludidos, inflamados, humilhados, perversos.
Levá-los em consideração é importantíssimo e pode ajudar na conformação de
relações com a classe trabalhadora de forma muito mais honesta do que as que
têm sido construídas até então, que são baseadas numa espécie de conveniências burguesas.
Paulo
Bezerra, no seu posfácio do livro, aponta que “a reação imediata da crítica à publicação de Os demônios é praticamente unânime em classificá-lo como
um panfleto contra o movimento revolucionário das décadas de 1860 e 1870. N. Mikháilovski,
crítico de esquerda e autor de Um talento cruel, livro notável sobre Dostoiévski, classifica o caso Nietcháiev de
‘exceção triste, equivocada e criminosa’ no meio revolucionário russo,
afirmando que o autor de Os demônios concentrou
sua atenção ‘num punhado insignificante de loucos e canalhas’ que só serve para
um ‘episódio de terceira categoria’. Essa opinião foi praticamente unânime
entre os críticos liberais e de esquerda daqueles idos. Mas Dostoiévski, para
quem os atos políticos do homem são produto de um processo histórico, não vê
aquele episódio como algo isolado nem único, e sim como um elo na cadeia dos
movimentos revolucionários russos, e afirma: ‘os principais propagadores da
nossa falta de originalidade nacional seriam os primeiros a se afastar
horrorizados no caso Nietcháiev [isto é, do assassinato do estudante I.
Ivanov]. Nossos Bielínskis e Granóvskis
não acreditariam se lhes dissessem que eles são os pais diretos de Nietcháiev.
Portanto, foram essa afinidade e essa sucessão do pensamento, que evoluíram dos
pais para os filhos, que procurei expressar em minha obra’”[xxviii].
Parte
da crítica de “esquerda” tende a resumir o livro ao caso do terrorismo e dos
assassinatos de Chátov e Kiríllov. De fato, suas narrativas são impactantes e o
momento dramático do livro gira em torno deste enredo, bem como do incêndio
terrorista (desconsiderando-se outros momentos dramáticos por parte do regime
czarista). Há, também, uma leviandade flagrante e exagerada nas ações de Piotr
Stiepánovitch, um dos principais personagens da obra, tratado como um patife
sem maiores atributos humanos.
Foi
por isso, talvez, que Isaac Deutscher escreveu em sua breve biografia sobre
Plekhanov o que segue: “não há dúvida de
que, em sua sátira selvagem, Dostoiévski apanhou algumas reais fraquezas e
vícios do movimento populista, mas desprezou suas virtudes. (...) Foi sobre o terrorismo e a arrogante
autossuficiência dos revolucionários que Dostoiévski também se demorou tão
penetrante, obsessiva e distorcidamente. Mas onde Dostoiévski culpava a ideia
revolucionária pelos defeitos dos revolucionários, Plekhanov criticava estes
pelo amor da ideia revolucionária. Dostoiévski convocou os revolucionários a
redimirem sua alma pecadora pela religião e pelo misticismo; Plekhanov achou
uma resposta para os seus problemas críticos no marxismo. Dostoiévski viu a
salvação da Rússia na sua urodivyie,
seus sagrados lunáticos e mutilados, capazes de viver em completa abnegação e
verdadeiro cristianismo. O próprio jovem Plekhanov se posta como uma refutação
viva de Os demônios; simboliza a auto
regeneração do movimento revolucionário, sua metamorfose moral e política, sua
passagem do populismo e do terrorismo para o marxismo”[xxix].
Contudo,
a grande sacada dostoievskiana não
está na condenação do incêndio e dos assassinatos dos “lunáticos e mutilados”,
mas em tudo aquilo que está por trás deles – isto é, as causas que levaram os
militantes a tornarem-se “lunáticos”. Sobretudo no que Dostoiévski classificou
como “sucessão de pensamentos que evolui de pai para filho” (faz esse trabalho
de analisar as contradições da alma humana muito bem em diversas obras, com
destaque para Memórias do subsolo).
Sacou tão bem este espírito presente na realidade social russa que acabou por
prever o stalinismo, ao contrário de quase toda a esquerda, que foi “pega de
surpresa”. Isso significa que é fundamental prestarmos atenção às sutilezas da psicologia de massas, da literatura e da
cultura em geral, relegadas, muitas vezes, a “crimes do velho mundo” ou a
simples “diletância”.
***
Dostoiévski
ainda nos provoca trazendo uma polêmica com diversos autores de sua época sobre
se a arte era mais importante que as condições de vida do povo – e, portanto,
mais importante que o “socialismo”. Ele coloca na boca de Stiepan Trofímovitch
o seguinte discurso: “toda a dúvida está
apenas em saber o que é mais belo? Shakespeare ou um par de botas, Rafael ou o
petróleo? (...) proclamo que
Shakespeare e Rafael estão acima da libertação dos camponeses, acima da
nacionalidade, acima do socialismo, acima da nova geração, acima da química,
acima de quase toda a humanidade, porque são o fruto, o verdadeiro fruto de
toda a humanidade e, talvez o fruto supremo, o único que pode existir!”[xxx].
Ainda
que dê voz a esta polêmica a partir do seu personagem, para Dostoiévski podemos
passar sem Púchkin, mas não sem botas[xxxi].
Mesmo resolvendo a polêmica de forma materialista, sabemos que para o grande
escritor russo a arte cumpria um papel determinante. Quando afirmou ter medo de
comprometer a sua obra transformando o romance em um panfleto político contra o
“movimento revolucionário”, na realidade Dostoiévski demonstrou como as
sutilezas da arte podem contribuir decisivamente para abrir-nos os olhos em
intrincadas questões políticas que, sem a arte, tendem a passar despercebidas.
Talvez o poeta brasileiro, Ferreira Gullar, “resolva” a polêmica de forma mais elegante do que Stiepan Trofímovitch “resolveu”, com a sua poesia Não há vagas:
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Seja
como for, se ficamos do lado de Rafael ou do petróleo, Os demônios não denuncia apenas as atrocidades políticas de um
círculo revolucionário secreto que sofre de fanatismo: procura examinar, tirar
lições e apontar as principais tendências do movimento revolucionário russo. Em
síntese: a obra, mesmo com todas as suas limitações e contradições, conseguiu
meritória e assombrosamente prenunciar o stalinismo a partir de um olhar
sensível sobre as contradições do espírito humano – qualidade que tem ficado definitivamente
fora das perspectivas de análise da “esquerda” até os dias de hoje, preocupada
unicamente com o petróleo.
[i]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São
Paulo: Editora 34, 2018 (página 695).
[ii]
Idem (página 690).
[iii]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Correspondências
1838-1880. Editora 8Inverso, Porto Alegre, 2009 (página 191).
[iv]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São
Paulo: Editora 34, 2018 (página 695).
[v]
Idem (página 215).
[vi]
Idem (página 646).
[viii]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São
Paulo: Editora 34, 2018 (página 691).
[ix]
Idem.
[x]
TROTSKI, Leon. Marxismo e terrorismo. Publicações LBI, São Paulo, 2007 (página
15)
[xi]
Idem (páginas 15 e 16).
[xii] Idem
(página 11). O mesmo poderia ser dito sobre o “Fora Bolsonaro” ou “fora este ou
aquele”, guardadas as proporções.
[xiii]
Idem.
[xiv]
LENIN, Vladmir Ilitch. Obras escolhidas, 1º tomo. Edições Progresso, Moscou,
1984 (página 132).
[xv]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São
Paulo: Editora 34, 2018 (contra-capas).
[xvii]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São
Paulo: Editora 34, 2018 (página 695).
[xix]
DEUTSCHER, Isaac. Ironias da história – ensaios sobre o comunismo
contemporâneo. Editoria Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968 (página
277).
[xx]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São
Paulo: Editora 34, 2018 (página 588).
[xxi]
Idem (página 582).
[xxii]
Idem (página 696).
[xxiii]
Idem (página 606).
[xxiv]
Idem.
[xxvi]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São
Paulo: Editora 34, 2018 (página 649).
[xxvii]
Idem (página 395).
[xxviii]
Idem (página 694).
[xxix]
DEUTSCHER, Isaac. Ironias da história – ensaios sobre o comunismo
contemporâneo. Editoria Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968 (páginas
246, 247 e 248).
[xxx]
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São
Paulo: Editora 34, 2018 (página 472).
[xxxi]
Idem (nota de rodapé).