Oi, tudo bem? — diz o porteiro para a dona Maria, que chega para trabalhar num
condomínio de luxo do Rio de Janeiro.
Tudo bem! — responde mecanicamente dona Maria ao
porteiro.
Na verdade, dona Maria
vive aflita por inúmeros problemas que não ousa compartilhar com ninguém. Ao
contrário do cocheiro do conto do escritor russo, Tchekov[1], que queria falar
desesperadamente com qualquer pessoa sobre a morte do seu filho, dona Maria não
quer falar com ninguém sobre os seus problemas e aflições, a não ser com alguns
de seus familiares que a ignoram.
Não! A vida de dona
Maria não vai nada bem. O filho mais moço está metido com o tráfico de drogas;
a filha do meio perdeu o emprego e está em casa, abatida e propensa a se
entregar ao primeiro aventureiro que aparecer; e a irmã de dona Maria descobriu
que está com câncer de mama em estado avançado. Todos estes pensamentos
angustiosos lhe oprimem o peito. Mesmo assim, tal como uma fortaleza
inexpugnável, dona Maria vai trabalhar todos os dias, e passa pelo porteiro do
condomínio que sempre lhe lança um “tudo bem” matinal.
Nem dona Maria, nem o
porteiro refletem sobre como estes “tudo bens” vão criando uma crosta de gelo
nas relações humanas cotidianas. Talvez nenhum dos dois esteja realmente
interessado na história de vida e nos problemas individuais de cada um, embora
a etiqueta, a moral e os “bons costumes” obriguem que se lance um “tudo bem?”; e
a interlocutora responda: “tudo bem!”, mesmo que, na realidade, nada esteja
bem.
Por certo, dona Maria não
deveria mandar o porteiro ao diabo por lhe importunar com frases prontas para
descargo de sua própria consciência, mas também não podemos relativizar e dizer
que se trata de uma simples cordialidade, pois são práticas pré-reflexivas como
essas que transformam o nosso cotidiano em prisões mentais, convencionais e
sociais, nos familiarizando com a hipocrisia. Por que o “tudo bem?” ao
invés de aproximar os dois personagens os afasta e solidifica os problemas de
cada um tais como são, criando uma verdadeira cunha entre ambos, solidificando
aquela máxima do senso comum de “cada um com seus problemas”?
Em outras palavras: esta
cordialidade do dia-a-dia de todo mundo, baseada em um linguajar vazio, seria
algo realmente positivo ou serviria para nos mecanizar e, por isso mesmo, nos
desumanizar em dolorosas parcelas diárias?
***
Num belo edifício do
centro da cidade de São Paulo, o seu Vanderlei, dono do apartamento 804, dá de
frente com a faxineira bem no meio do saguão de entrada do prédio. Ansioso,
embora aparentando uma falsa segurança, Vanderlei dá um “oi” rápido e nervoso
para a faxineira, que encontra quase todas as quartas feiras, bem na hora que
sai para buscar a filha na faculdade. A faxineira já sabe que seu Vanderlei
gosta de um papo. Pela sua condição subalterna em relação a um proprietário do
edifício, que se julga superior e com determinados direitos — ainda que todo este pensamento seja processado
de forma inconsciente na mente de ambos —, ela
termina por se resignar, para de passar o pano no chão e devota sua atenção
para o morador.
Fruto de uma conjunção de
fatores sociais, religiosos e pessoais, seu Vanderlei possui muitos déficits
emocionais que o impelem a descarregar sua angústia e frustração em várias
pessoas no seu entorno; no caso, a vítima da vez é a faxineira, dada a sua aparente
receptividade, escondendo, atrás disso, a falsa percepção de que “gosta
dela”. Julga-se bem humorado, de bem com a vida e com a vizinhança ao proceder
desta forma, mas, na realidade, a faxineira apenas pensa: “que saco, mais
uma vez esse velho vem despejar em mim um monte de problemas, será que ele não
tem simancol?”.
Seu Vanderlei fala
recorrentemente da crise do seu casamento, contando detalhes minuciosos que
causam certos constrangimentos à sua interlocutora. Ele não se importa. Segue
narrando como a crise com sua mulher tem reflexos na sua relação com a filha.
Em nenhum momento demonstra o menor interesse sobre a vida da faxineira, seus
problemas, suas angústias. O que importa são os seus problemas, exclusivamente.
Quando a faxineira fecha
um pouco o semblante, fazendo feição de retomar a limpeza, seu Vanderlei
percebe que já está na hora de seguir. Simplesmente dá tchau e retoma seu
caminho em direção à garagem para pegar o seu carro.
***
Nos dois exemplos acima podemos
perceber como a linguagem pode ser vazia e cruel, servindo para esconder,
confundir ou dissimular sentimentos, levando-nos a uma lenta desumanização
diária. No caso da dona Maria, percebemos sua recusa em falar, por receio e
medo, ainda que seja obrigada a responder “tudo bem!” e forçar um sorriso para
retribuir o do porteiro. No caso do seu Vanderlei —
quase o exato oposto — temos uma
metralhadora giratória de palavras que, para faxineira, são vazias, uma vez que
não existe reciprocidade, mas apenas utilitarismo de ouvidos, energia emocional
e paciência alheias. A faxineira, ao invés de se abrir, fecha-se mais e cultiva
internamente um sentimento não expresso de desprezo por seu Vanderlei, que
entende exatamente o oposto.
Tais relações baseadas em
uma linguagem vazia e desprovida de vida e sentimentos reais, usada basicamente
como forma de ação prática na selva do cotidiano, pode ser reproduzida à
exaustão. Quem nunca viveu ou viu situações como estas nas mais distintas
esferas da vida social? O que tais relações, pautadas por este tipo de
linguagem convencional, representam de fato?
***
Poderíamos ainda analisar
as relações humanas expressas pelas redes sociais, em geral, e pelo whatsapp,
em particular. A empresa XD serviços possui um grupo de whatsapp
no qual participam a maioria dos seus funcionários. Com exceção de alguns
informes institucionais, a maior parte das mensagens diz respeito apenas a
"bom dias”, “boa tardes” e “ boa noites”.
Quando alguma pessoa está
de aniversário, logo os colegas mandam felicitações, acompanhadas de cartões,
fotos, emojis e memes; ou então, quando alguém perde um familiar, desaba uma
chuva de “meus sentimentos” que toma conta do grupo. Contudo, no cotidiano,
grande parte destes “colegas” sequer se falam ou se buscam para saber o que
realmente pensam e sentem. Em alguns casos, vemos até ódio e receio contido em
relação ao colega que mandamos “felicitações” ou “meus sentimentos”. Nas
reuniões de trabalho a maior parte sequer se fala honestamente, olho no olho,
e, geralmente, não se preocupam sinceramente com as limitações e os problemas
dos outros.
As reuniões presenciais ou virtuais da
empresa são, grosso modo, ambientes empesteados, onde cada participante não
apenas não fala o que realmente pensa, como não sai transformado para melhor
(ao contrário: a maior parte sai pior do que entrou). Apesar disso, a
hipocrisia da etiqueta da “boa educação linguística” não deixa de se fazer
presente nas redes sociais. E muita gente age desta forma para ficar bem com a
sua própria consciência, não se importando que haja um abismo com a prática do
dia-a-dia.
***
Um caso parecido acontece nas festas de
final de ano. Durante a maior parte do tempo a postura de um indivíduo é
medíocre e totalmente descomprometida com o outro, mas chega o Natal e ele
enche a boca pra lançar um “feliz natal” ou “feliz ano novo”, como se tivesse
realmente alguma preocupação com a vida do outro.
A tese central aqui é que essa etiqueta
linguística hipócrita funciona como parte dos mecanismos psicológicos que nos
prendem à estrutura oficial da sociedade. Além de ir nos desumanizando, vai
lenta e gradualmente nos acostumando a dissociar as palavras dos atos; o
discurso da prática; portanto, nos habitua com a hipocrisia até nos tornar
hipócritas. Isso facilita o funcionamento do sistema, que necessita desta
dissociação, desta etiqueta vazia que asfixia e mata as verdadeiras relações
pessoais e sociais.
Persona X Self: um breve paralelo com a
psicologia junguiana e a filosofia de Schopenhauer
Carl G. Jung já analisou
estas relações sociais do ponto de vista de sua psicologia. Segundo ele, nós
teríamos várias instâncias psíquicas que responderiam a determinados estímulos
da realidade. A busca de uma vida seria pela nossa individuação,
processo doloroso que leva a inúmeros conflitos, mas que proporciona o
desenvolvimento da essência da nossa psique, que seria o self — isto é, aquilo que nós somos realmente, sem nenhum
tipo de máscaras.
Já a persona,
seria exatamente aquela instância psicológica que entra em contato com a
realidade exterior e, portanto, é suscetível a todo o tipo de etiqueta social.
Em alguns casos busca por elas desesperadamente. Portanto, faz parte de nós,
mas não somos nós exatamente, já que é uma personalidade “descartável”. Quando
dona Maria responde automaticamente para o porteiro “tudo bem!”, sem refletir,
está se utilizando das diversas máscaras da persona.
Segundo
Clarissa Estés, “a persona não é apenas uma máscara atrás da qual a pessoa
se esconde, mas sim, uma presença que encobre a personalidade rotineira. Nesse
sentido, a persona ou máscara é um indutor de hierarquia, virtude, caráter e
autoridade. A persona é o significante exterior, a manifestação exterior de
comando”[2].
A
utilização desses recursos linguísticos vazios é parte essencial da persona,
que busca as mais variadas combinações para proteger as fragilidades do nosso
ego. Certamente, se algum dia uma pessoa respondesse ao porteiro que “incomoda”
dona Maria todas as manhãs de forma a lhe questionar as inseguranças e
intenções ocultas por trás dessa linguagem mecânica, o ego do porteiro poderia
desmoronar como um castelo de areia. Imaginem agora o que aconteceria se a
faxineira resolvesse questionar uma única vírgula dos argumentos sobre a crise
conjugal que sustenta toda a construção emocional de seu Vanderlei? Ele também
desabaria e provavelmente se tornaria um inimigo mortal da faxineira. Ou ainda:
se no grupo de whatsapp o colega respondesse algo como “hoje tu me dá
parabéns pelo aniversário, mas quer me ver pelas costas todos os dias” o
que aconteceria?
Parte
dessa etiqueta linguística é, portanto, necessária até certo ponto,
embora não possa se tornar um sucedâneo das relações humanas, como tem sido a
regra na sociedade capitalista, mais baseada na aparência do que na essência.
Para o bom funcionamento dessa sociedade, basta que aparentemente tudo ande
bem, não importando as consequências de ocultarmos diariamente o que realmente
sentimos e o que realmente precisamos falar. Assim, o “tudo bem!” da dona Maria
naturaliza que “está tudo bem”, quando na verdade quase nada está realmente
bem. Um singelo “oi”, como forma de reconhecimento do outro, seria um bom
primeiro passo. A grande questão, no entanto, é que somos educados para a
hipocrisia e não para compreendermos os nossos íntimos problemas emocionais e
pessoais, bem como os problemas das outras pessoas.
***
Schopenhauer
também analisou este recurso psicológico, ao qual batizou de caráter
adquirido, em contraposição ao caráter inteligível e ao caráter
empírico.
Para ele, o caráter adquirido só se “obtém no curso da vida, por meio das relações com o mundo; é dele que se fala quando se louva a alguém o ‘ter caráter’ ou quando se lamenta a sua falta. Na verdade poderia crer-se que, desde que o caráter empírico é invariável e consequente consigo mesmo como qualquer fenômeno natural, também o ser humano deveria parecer sempre semelhante a si próprio e permanecer consequente, e que não teria necessidade de criar artificialmente um novo caráter, com a experiência e com a meditação. Entretanto, não é assim, e, embora permaneçamos sempre os mesmos, nem sempre chegamos a nos compreender a nós mesmos; antes, com muita frequência nos desconhecemos até que tenhamos adquirido certo grau do verdadeiro conhecimento de nós mesmos”[3].
Obra de Susano Correa: "homem protegido debaixo de um sorriso bobo". |
As relações sociais na sociedade capitalista: o que dá liga à elas?
A plasticidade das
relações humanas na sociedade capitalista, escondida sob mil véus de hipocrisia
flagrante, não é precisamente uma novidade. Os autores do Manifesto Comunista,
por exemplo, já haviam escrito em 1848 que “a burguesia destruiu todas as
relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os
variados laços feudais que prendiam o ser humano aos seus superiores naturais e
não deixou outro laço entre os seres humanos que não o do interesse nu, o do
insensível ‘pagamento em dinheiro’. (...) A burguesia despiu da sua
aparência sagrada todas as atividades até aqui veneráveis e consideradas com
grande reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem
de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela. A burguesia arrancou à
relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação
de dinheiro”[4].
Já para o escritor francês
que descreveu como ninguém as hipócritas relações burguesas de sua época,
Honoré de Balzac, “o dinheiro só se torna alguma coisa no momento em que o
sentimento deixou de existir”[5].
Toda a relação de
confiança construída na sociedade burguesa se dá em torno do dinheiro e,
portanto, sobrepõe-se necessariamente aos sentimentos e às emoções,
manipulando-os de forma utilitária. É o dinheiro que desenvolve o poder de
definir o que é confiável ou não, bem como o que é normal e o que é anormal. Na
sociedade comandada pelo dinheiro, “a propaganda é a alma do negócio” (isto é:
a superficialidade aparente se sobrepõe à essência).
Não existem outras formas
de “criar liga” entre os seres humanos nesta sociedade. Tudo é definido por um
frio cálculo do que vamos ganhar e do que vamos perder em determinadas relações
ou ações. Temos que fazer também um breve cálculo (no mais das vezes
inconsciente) do quanto vamos gastar de energia e de dedicação, uma vez que a
nossa força de trabalho já pertence ao patrão que a comprou. O quanto perdemos
da relação para com outras pessoas, mantendo-nos em uma superficialidade
assustadora, é o que determina, na prática, as relações humanas na sociedade
capitalista.
Uma vez que a principal e
quase exclusiva relação de confiança da nossa sociedade é o dinheiro, tudo nela
se mede pelo que se tem, pelo que ganhamos ou perdemos. Assim, se lucramos com
alguma coisa, isso é bom; se perdemos e temos algum prejuízo, isso é ruim. Só
que as relações humanas autênticas não se resumem a uma questão comercial. Elas
são ricas em possibilidades para as reduzirmos a tão pouco. Já disse o poeta
Fernando Pessoa que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. A sociedade
burguesa, no entanto, obrigou as pessoas a vender a alma pelo valor monetário
mais baixo e utilitarista.
Se isso não nos mata
completamente, vai nos matando um pouquinho todos os dias. Empobrece não apenas
a sociedade, mas a riqueza de possibilidades das relações humanas. Assim, não
somos educados para desenvolvermos relações francas, sinceras, abertas, sem
nenhum tipo de máscaras ou véus. Ao contrário, somos levados a crer que agir
com máscaras e dissimuladamente é um princípio básico e elementar. Nossa persona
passa a ser a parte central de nossa psique, enquanto que o self é
relegado ao isolamento e ao esquecimento. Muita gente morre sem conhecer a si
mesmo, tão emaranhados que ficam nas cordas das máscaras que utilizam para
sobreviver.
***
Podemos fazer um paralelo
desta linguagem hipócrita cotidiana com aquela utilizada pelos economistas no
noticiário e nos jornais. O objetivo é obscurecer e não tornar acessível.
Fingir que se “cobre” algo, mas na verdade só estão trabalhando para tornar o
inaceitável “natural” por intermédio de ideologias escabrosas. Como os
jornalistas e os economistas precisam esconder o abismo existente entre a elite
burguesa nacional e internacional, de um lado, e a classe média e a classe
trabalhadora, do outro, justificando o imoral acúmulo de riquezas e de capital
num pólo, baseado no saque de rapina, falam um linguajar “próprio”, que fala,
fala, mas não diz nada e esconde tudo.
Muitas pessoas julgam-se
incapazes de entender o noticiário econômico, mas na verdade ele é feito para
confundir e justificar a desigualdade e a exploração. Daí provém aquela visão
absurda de apenas apontar como central o “crescimento do PIB”, a “alta e baixa
nas bolsas de valores do mundo”, bem como o “risco Brasil” e tantos engodos
deste gênero. Outra linguagem poderia ser utilizada se interessasse fazer o
povo compreender que a sua fome, o seu arrocho salarial e as taxas de juros
escorchantes que lhe cobram no cartão de crédito são, na realidade, reflexos de
uma política econômica deliberada pelos governos, a mando do mercado e do
sistema financeiro internacional.
Se falta verba para a
saúde, a educação e a segurança públicas, isso é resultado da forma de
funcionamento baseada na especulação financeira, no sistema da dívida “pública”
e numa total desregulamentação do mercado, que deixa o Estado, a política, as
leis e a economia completamente à mercê dos abutres da Avenida Paulista, de Wall
Street e da City londrina. Um povo sem auto estima, acostumado a
achar que o país não presta, que tudo o que é bom “vem de fora” e, ainda por
cima, que vai sendo corrompido diariamente por uma linguagem que também não lhe
diz nada, pensa que não é capaz de compreender o noticiário econômico.
A realidade, contudo, é que os
economistas e jornalistas aproveitam-se dessa institucionalização formal e
informal de uma linguagem que fala, fala, mas não diz nada. Assim, muitas
pessoas da classe trabalhadora concluem, erroneamente, que economia é coisa de
“gente intelegente”, dos políticos e dos economistas, quando, na realidade, é
assunto de todos nós — e de fundamental
importância!
***
Não é necessário comentar nada sobre a
hipocrisia do discurso eleitoral da democracia burguesa, dado que,
infelizmente, já se tornou senso comum associar os políticos com a corrupção.
Apesar do esforço de reciclar as esperanças nas eleições, levado a cabo pela
máquina propagandística e ideológica da grande mídia e do Estado, atingiu tal
ponto do senso comum que muitas pessoas se adaptaram a ele por ser uma forma cômoda
e ilusória de pensar que a vida pode mudar através do voto em eleições onde o
discurso da propaganda eleitoral jamais bate com a prática de governo.
A linguagem morta da “esquerda”
Por entre a militância de
“esquerda” o caso é mais grave, pois trata-se de uma parcela da população que
tem algum tipo de acesso à cultura e à instrução. O erro começa na ausência de
escuta e na imposição de políticas que não foram debatidas com ninguém, à
exceção dos organismos internos de cada partido ou direção política e sindical.
Uma vez que internamente eles tenham fechado uma linha, apresentam-na como se
fosse a “salvação”, à revelia de qualquer confrontação honesta que venha da
base de uma categoria ou mesmo do povo.
Grande parte desta
militância transforma a teoria e sua política em dogma religioso. Aí a
linguagem passa a ser vazia também. Ela “diz” outra coisa daquilo que
aparentemente queria passar; e no campo político diz muito menos do que
deveria. No mais das vezes, afasta ou subjuga, ao invés de emancipar. A
começar por sua total ausência de crítica e autocrítica sobre a sua prática.
Dentre vários erros
grandes e pequenos (desconsiderando-se as traições abertas), a esquerda tem
duas vertentes linguísticas bastante complicadas: 1) a linguagem branda da
“esquerda oportunista”, cuja finalidade central é adoçar a classe trabalhadora
fazendo-a esperar (seja por uma saída eleitoral, judicial, “sindical”; um
“salvador da pátria”, etc.); 2) a linguagem dogmatizada e sectária da suposta
“esquerda revolucionária”, que foi assim ironizada por Fernando Claudín: grande parte do movimento comunista ficou marcado por
“um espírito sectário e dogmatizante, embalado num verbalismo revolucionário
que dissimulava a perda de noção da realidade”[6].
No
primeiro caso se anestesia a classe trabalhadora com falsas esperanças (às
vezes com alguma base na realidade, outras tantas simples mentiras
deslavadas); no segundo caso a linguagem serve para dar uma aparência de
combatividade revolucionária, mas a essência da questão é que se perdeu
completamente a noção de realidade e apenas se “massageia” o próprio ego de que
“estamos fazendo o que é revolucionário”. Tanto num como noutro caso, a
linguagem é uma armadilha que deve ser reconhecida e evitada.
Para
evitarmos armadilhas, devemos observar o fato, a ação e o objeto em si mesmo.
Por exemplo: “consciência” e “árvore” são palavras, mas as palavras não são os
fatos, as ações e os objetos “em si mesmos”. Devemos observar tudo isso
evitando a embriaguez das palavras. O orador pode fazer uma afirmação em
palavras, mas se estas não correspondem aos fatos, à sua ação ou ao objeto,
tornam-se meras palavras vazias que não correspondem à prática. Nossas mentes
estão sujeitas a diversos tipos de pressões e preconceitos: necessidades
presentes e futuras, pressões psicológicas, morais, sociais, profissionais, sem
falar nos medos, emoções e receios. Por reação, muitas vezes não vemos os
fatos, as ações e os objetos, apenas nos contentamos com palavras, que nos
anestesiam, mas cobram um preço muito alto logo ali adiante.
Dentro
da mesma lógica, a maioria das organizações de “esquerda” — sobretudo as de
cunho oportunista — quando falam em “socialismo” querem dizer “democracia
burguesa”; quando falam em “revolução”, estão querendo dizer “pressão
parlamentar burguesa” ou “mudança de governo via eleitoral”. Fazem uma
misturança de conceitos e termos para esconder uma prática oportunista de
conciliação. Com esta atitude não podem responder as distorções da grande mídia
e do establishment burguês, que tira toda a vantagem dessas
contradições.
Ultimamente
os sindicatos dirigidos pelo oportunismo tem falado em “greve”, mas a sua greve
pode casar com trabalho remoto, com “greve de pijama” ou, ainda, com
paralisação de 1 dia. Ou seja, é uma forma de tentar acender uma vela pra cada
santo, confundindo tudo e desgastando ainda mais a palavra “greve”. Como não
tem preocupação com as questões linguísticas e a sua dissociação com a
realidade, não vê problema nenhum em fazer agitações que são hipocritamente
oportunistas ou que beiram o realismo fantástico esquizofrênico, do que
toquem realmente a consciência e o coração da classe trabalhadora — mesmo que
seja a longo prazo.
Por uma linguagem e relações sociais mais humanizadas!
Os seres humanos sempre
viveram num campo de batalha. Seja pelas necessidades materiais e econômicas
com que se defrontaram, seja nas palavras e nas emoções por causa de suas
compreensões egocêntricas: primeiro o “eu”, depois os outros. Primeiro meus
interesses, minha segurança, meu prazer, meu sucesso, minha
posição, meu prestígio, minha corrente política. Na maioria das
vezes esse “eu” se identifica com “a pátria”, “a família”, “a doutrina”, “a
categoria”, “a classe trabalhadora”, etc. Por meio desse artifício linguístico
se tenta dissolver o “eu” e o egocentrismo que o move no meio de supostos
interesses coletivos e sociais.
Parte fundamental de uma nova sociedade
está em desenvolver relações sinceras, baseadas em outras ligaduras sociais que
não o dinheiro e discursos exaltados vazios que escondem a negação da
realidade. Contudo, abolir o dinheiro e a demagogia política não serão tarefas
simples. Ao contrário. Demandam uma colaboração em larga escala que precisa ser
estudada e desenvolvida a partir de experiências concretas. De qualquer forma,
não poderá ser uma tarefa inconsciente e espontânea. O
capitalismo se desenvolveu semi espontaneamente e, em grande parte, de forma
inconsciente, embora sempre exaltando conscientemente a ganância
individual. Uma nova sociedade, uma sociedade socialista, ao contrário, deverá
ser desenvolvida de forma consciente — o que é,
ao mesmo tempo, uma dádiva e uma maldição! Deve, portanto, exaltar novos valores sociais solidários, o que é bem
mais difícil, dado os séculos de escravidão, de submissão, de espírito de
rebanho, de mentiras e de linguagens vazias.
Para desenvolvermos
relações sociais baseadas numa nova confiança social, precisaremos
transformar toda a sociedade numa grande escola, como sugeria Ernesto Che
Guevara, levando em consideração a prática sintonizada com o discurso; isto é:
que “se entregue a própria pele para demonstrar suas verdades”. O
primeiro passo é, sem dúvida, combater as consequências e implicações de uma
sociedade baseada no dinheiro, bem como os seus menores reflexos na vida
cotidiana da população.
Outro passo determinante
no sentido de construirmos novas relações sociais para uma sociedade socialista
é, sem dúvida, não nos assustarmos com as expressões de vida no outro e
em nós mesmos. Séculos de cristianismo separaram as nossas emoções mais
pessoais e íntimas como “coisas do demônio”, o que transforma sensações
absolutamente naturais em algo anti-natural. A era burguesa não foi muito
melhor, se aproveitando desses séculos de mecanicismos nas relações sociais e
na percepção do mundo, construindo o seu mundo sobre eles.
Além disso, uma sociedade socialista
precisa atribuir mais valor à linguagem conectada à prática; e não simplesmente
subtrairmos e negarmos as implicações práticas de mentirmos para nós mesmos o
tempo todo. Esta sociedade futura deve ter o cuidado de não naturalizar a
hipocrisia e o abafamento dos nossos sentimentos mais profundos cotidianamente.
Trabalhar consciente e inconscientemente para que o conteúdo seja expresso pela
forma; e não que a forma seja usada para apagar ou confundir o conteúdo! Saber
levar em consideração o fato de que somos seres contraditórios e que muitas
vezes nos desdizemos, sem falar no agravante de estarmos em uma realidade
eternamente em movimento — devemos reconhecer,
portanto, a importância da autocrítica!
Enfim, uma nova esquerda
com consciência de classe deve trabalhar de forma diligente e honesta para que
a linguagem falada e escrita corresponda à nossa prática cotidiana, tornando as
palavras estritamente vinculadas ao nosso caráter; e lhes conferir tanto valor
quanto possível para que estas sejam capazes de substituir o dinheiro como o
elemento central da “confiança” que dá liga às relações sociais.
Referências
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