sábado, 10 de julho de 2021

A linguagem vazia como forma de esconder as relações sociais hipócritas

  

Oi, tudo bem? diz o porteiro para a dona Maria, que chega para trabalhar num condomínio de luxo do Rio de Janeiro.

        Tudo bem! responde mecanicamente dona Maria ao porteiro.

        Na verdade, dona Maria vive aflita por inúmeros problemas que não ousa compartilhar com ninguém. Ao contrário do cocheiro do conto do escritor russo, Tchekov[1], que queria falar desesperadamente com qualquer pessoa sobre a morte do seu filho, dona Maria não quer falar com ninguém sobre os seus problemas e aflições, a não ser com alguns de seus familiares que a ignoram.

         Não! A vida de dona Maria não vai nada bem. O filho mais moço está metido com o tráfico de drogas; a filha do meio perdeu o emprego e está em casa, abatida e propensa a se entregar ao primeiro aventureiro que aparecer; e a irmã de dona Maria descobriu que está com câncer de mama em estado avançado. Todos estes pensamentos angustiosos lhe oprimem o peito. Mesmo assim, tal como uma fortaleza inexpugnável, dona Maria vai trabalhar todos os dias, e passa pelo porteiro do condomínio que sempre lhe lança um “tudo bem” matinal.

         Nem dona Maria, nem o porteiro refletem sobre como estes “tudo bens” vão criando uma crosta de gelo nas relações humanas cotidianas. Talvez nenhum dos dois esteja realmente interessado na história de vida e nos problemas individuais de cada um, embora a etiqueta, a moral e os “bons costumes” obriguem que se lance um “tudo bem?”; e a interlocutora responda: “tudo bem!”, mesmo que, na realidade, nada esteja bem.

         Por certo, dona Maria não deveria mandar o porteiro ao diabo por lhe importunar com frases prontas para descargo de sua própria consciência, mas também não podemos relativizar e dizer que se trata de uma simples cordialidade, pois são práticas pré-reflexivas como essas que transformam o nosso cotidiano em prisões mentais, convencionais e sociais, nos familiarizando com a hipocrisia. Por que o “tudo bem?” ao invés de aproximar os dois personagens os afasta e solidifica os problemas de cada um tais como são, criando uma verdadeira cunha entre ambos, solidificando aquela máxima do senso comum de “cada um com seus problemas”?

         Em outras palavras: esta cordialidade do dia-a-dia de todo mundo, baseada em um linguajar vazio, seria algo realmente positivo ou serviria para nos mecanizar e, por isso mesmo, nos desumanizar em dolorosas parcelas diárias?

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         Num belo edifício do centro da cidade de São Paulo, o seu Vanderlei, dono do apartamento 804, dá de frente com a faxineira bem no meio do saguão de entrada do prédio. Ansioso, embora aparentando uma falsa segurança, Vanderlei dá um “oi” rápido e nervoso para a faxineira, que encontra quase todas as quartas feiras, bem na hora que sai para buscar a filha na faculdade. A faxineira já sabe que seu Vanderlei gosta de um papo. Pela sua condição subalterna em relação a um proprietário do edifício, que se julga superior e com determinados direitos ainda que todo este pensamento seja processado de forma inconsciente na mente de ambos —, ela termina por se resignar, para de passar o pano no chão e devota sua atenção para o morador

         Fruto de uma conjunção de fatores sociais, religiosos e pessoais, seu Vanderlei possui muitos déficits emocionais que o impelem a descarregar sua angústia e frustração em várias pessoas no seu entorno; no caso, a vítima da vez é a faxineira, dada a sua aparente receptividade, escondendo, atrás disso, a falsa percepção de que “gosta dela”. Julga-se bem humorado, de bem com a vida e com a vizinhança ao proceder desta forma, mas, na realidade, a faxineira apenas pensa: “que saco, mais uma vez esse velho vem despejar em mim um monte de problemas, será que ele não tem simancol?”.

         Seu Vanderlei fala recorrentemente da crise do seu casamento, contando detalhes minuciosos que causam certos constrangimentos à sua interlocutora. Ele não se importa. Segue narrando como a crise com sua mulher tem reflexos na sua relação com a filha. Em nenhum momento demonstra o menor interesse sobre a vida da faxineira, seus problemas, suas angústias. O que importa são os seus problemas, exclusivamente.

         Quando a faxineira fecha um pouco o semblante, fazendo feição de retomar a limpeza, seu Vanderlei percebe que já está na hora de seguir. Simplesmente dá tchau e retoma seu caminho em direção à garagem para pegar o seu carro.

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         Nos dois exemplos acima podemos perceber como a linguagem pode ser vazia e cruel, servindo para esconder, confundir ou dissimular sentimentos, levando-nos a uma lenta desumanização diária. No caso da dona Maria, percebemos sua recusa em falar, por receio e medo, ainda que seja obrigada a responder “tudo bem!” e forçar um sorriso para retribuir o do porteiro. No caso do seu Vanderlei quase o exato oposto temos uma metralhadora giratória de palavras que, para faxineira, são vazias, uma vez que não existe reciprocidade, mas apenas utilitarismo de ouvidos, energia emocional e paciência alheias. A faxineira, ao invés de se abrir, fecha-se mais e cultiva internamente um sentimento não expresso de desprezo por seu Vanderlei, que entende exatamente o oposto.

         Tais relações baseadas em uma linguagem vazia e desprovida de vida e sentimentos reais, usada basicamente como forma de ação prática na selva do cotidiano, pode ser reproduzida à exaustão. Quem nunca viveu ou viu situações como estas nas mais distintas esferas da vida social? O que tais relações, pautadas por este tipo de linguagem convencional, representam de fato?

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         Poderíamos ainda analisar as relações humanas expressas pelas redes sociais, em geral, e pelo whatsapp, em particular. A empresa XD serviços possui um grupo de whatsapp no qual participam a maioria dos seus funcionários. Com exceção de alguns informes institucionais, a maior parte das mensagens diz respeito apenas a "bom dias”, “boa tardes” e “ boa noites”.

         Quando alguma pessoa está de aniversário, logo os colegas mandam felicitações, acompanhadas de cartões, fotos, emojis e memes; ou então, quando alguém perde um familiar, desaba uma chuva de “meus sentimentos” que toma conta do grupo. Contudo, no cotidiano, grande parte destes “colegas” sequer se falam ou se buscam para saber o que realmente pensam e sentem. Em alguns casos, vemos até ódio e receio contido em relação ao colega que mandamos “felicitações” ou “meus sentimentos”. Nas reuniões de trabalho a maior parte sequer se fala honestamente, olho no olho, e, geralmente, não se preocupam sinceramente com as limitações e os problemas dos outros. 

As reuniões presenciais ou virtuais da empresa são, grosso modo, ambientes empesteados, onde cada participante não apenas não fala o que realmente pensa, como não sai transformado para melhor (ao contrário: a maior parte sai pior do que entrou). Apesar disso, a hipocrisia da etiqueta da “boa educação linguística” não deixa de se fazer presente nas redes sociais. E muita gente age desta forma para ficar bem com a sua própria consciência, não se importando que haja um abismo com a prática do dia-a-dia.

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Um caso parecido acontece nas festas de final de ano. Durante a maior parte do tempo a postura de um indivíduo é medíocre e totalmente descomprometida com o outro, mas chega o Natal e ele enche a boca pra lançar um “feliz natal” ou “feliz ano novo”, como se tivesse realmente alguma preocupação com a vida do outro.

A tese central aqui é que essa etiqueta linguística hipócrita funciona como parte dos mecanismos psicológicos que nos prendem à estrutura oficial da sociedade. Além de ir nos desumanizando, vai lenta e gradualmente nos acostumando a dissociar as palavras dos atos; o discurso da prática; portanto, nos habitua com a hipocrisia até nos tornar hipócritas. Isso facilita o funcionamento do sistema, que necessita desta dissociação, desta etiqueta vazia que asfixia e mata as verdadeiras relações pessoais e sociais.

 

Persona X Self: um breve paralelo com a psicologia junguiana e a filosofia de Schopenhauer

         Carl G. Jung já analisou estas relações sociais do ponto de vista de sua psicologia. Segundo ele, nós teríamos várias instâncias psíquicas que responderiam a determinados estímulos da realidade. A busca de uma vida seria pela nossa individuação, processo doloroso que leva a inúmeros conflitos, mas que proporciona o desenvolvimento da essência da nossa psique, que seria o self — isto é, aquilo que nós somos realmente, sem nenhum tipo de máscaras.

         Já a persona, seria exatamente aquela instância psicológica que entra em contato com a realidade exterior e, portanto, é suscetível a todo o tipo de etiqueta social. Em alguns casos busca por elas desesperadamente. Portanto, faz parte de nós, mas não somos nós exatamente, já que é uma personalidade “descartável”. Quando dona Maria responde automaticamente para o porteiro “tudo bem!”, sem refletir, está se utilizando das diversas máscaras da persona.

         Segundo Clarissa Estés, “a persona não é apenas uma máscara atrás da qual a pessoa se esconde, mas sim, uma presença que encobre a personalidade rotineira. Nesse sentido, a persona ou máscara é um indutor de hierarquia, virtude, caráter e autoridade. A persona é o significante exterior, a manifestação exterior de comando”[2].

         A utilização desses recursos linguísticos vazios é parte essencial da persona, que busca as mais variadas combinações para proteger as fragilidades do nosso ego. Certamente, se algum dia uma pessoa respondesse ao porteiro que “incomoda” dona Maria todas as manhãs de forma a lhe questionar as inseguranças e intenções ocultas por trás dessa linguagem mecânica, o ego do porteiro poderia desmoronar como um castelo de areia. Imaginem agora o que aconteceria se a faxineira resolvesse questionar uma única vírgula dos argumentos sobre a crise conjugal que sustenta toda a construção emocional de seu Vanderlei? Ele também desabaria e provavelmente se tornaria um inimigo mortal da faxineira. Ou ainda: se no grupo de whatsapp o colega respondesse algo como “hoje tu me dá parabéns pelo aniversário, mas quer me ver pelas costas todos os dias” o que aconteceria?

         Parte dessa etiqueta linguística é, portanto, necessária até certo ponto, embora não possa se tornar um sucedâneo das relações humanas, como tem sido a regra na sociedade capitalista, mais baseada na aparência do que na essência. Para o bom funcionamento dessa sociedade, basta que aparentemente tudo ande bem, não importando as consequências de ocultarmos diariamente o que realmente sentimos e o que realmente precisamos falar. Assim, o “tudo bem!” da dona Maria naturaliza que “está tudo bem”, quando na verdade quase nada está realmente bem. Um singelo “oi”, como forma de reconhecimento do outro, seria um bom primeiro passo. A grande questão, no entanto, é que somos educados para a hipocrisia e não para compreendermos os nossos íntimos problemas emocionais e pessoais, bem como os problemas das outras pessoas.

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         Schopenhauer também analisou este recurso psicológico, ao qual batizou de caráter adquirido, em contraposição ao caráter inteligível e ao caráter empírico

Para ele, o caráter adquirido só se “obtém no curso da vida, por meio das relações com o mundo; é dele que se fala quando se louva a alguém o ‘ter caráter’ ou quando se lamenta a sua falta. Na verdade poderia crer-se que, desde que o caráter empírico é invariável e consequente consigo mesmo como qualquer fenômeno natural, também o ser humano deveria parecer sempre semelhante a si próprio e permanecer consequente, e que não teria necessidade de criar artificialmente um novo caráter, com a experiência e com a meditação. Entretanto, não é assim, e, embora permaneçamos sempre os mesmos, nem sempre chegamos a nos compreender a nós mesmos; antes, com muita frequência nos desconhecemos até que tenhamos adquirido certo grau do verdadeiro conhecimento de nós mesmos”[3].

Obra de Susano Correa: "homem protegido debaixo de um sorriso bobo".

As relações sociais na sociedade capitalista: o que dá liga à elas?

         A plasticidade das relações humanas na sociedade capitalista, escondida sob mil véus de hipocrisia flagrante, não é precisamente uma novidade. Os autores do Manifesto Comunista, por exemplo, já haviam escrito em 1848 que “a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variados laços feudais que prendiam o ser humano aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre os seres humanos que não o do interesse nu, o do insensível ‘pagamento em dinheiro’. (...) A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as atividades até aqui veneráveis e consideradas com grande reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela. A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro”[4].

         Já para o escritor francês que descreveu como ninguém as hipócritas relações burguesas de sua época, Honoré de Balzac, “o dinheiro só se torna alguma coisa no momento em que o sentimento deixou de existir”[5].

         Toda a relação de confiança construída na sociedade burguesa se dá em torno do dinheiro e, portanto, sobrepõe-se necessariamente aos sentimentos e às emoções, manipulando-os de forma utilitária. É o dinheiro que desenvolve o poder de definir o que é confiável ou não, bem como o que é normal e o que é anormal. Na sociedade comandada pelo dinheiro, “a propaganda é a alma do negócio” (isto é: a superficialidade aparente se sobrepõe à essência).

         Não existem outras formas de “criar liga” entre os seres humanos nesta sociedade. Tudo é definido por um frio cálculo do que vamos ganhar e do que vamos perder em determinadas relações ou ações. Temos que fazer também um breve cálculo (no mais das vezes inconsciente) do quanto vamos gastar de energia e de dedicação, uma vez que a nossa força de trabalho já pertence ao patrão que a comprou. O quanto perdemos da relação para com outras pessoas, mantendo-nos em uma superficialidade assustadora, é o que determina, na prática, as relações humanas na sociedade capitalista.

         Uma vez que a principal e quase exclusiva relação de confiança da nossa sociedade é o dinheiro, tudo nela se mede pelo que se tem, pelo que ganhamos ou perdemos. Assim, se lucramos com alguma coisa, isso é bom; se perdemos e temos algum prejuízo, isso é ruim. Só que as relações humanas autênticas não se resumem a uma questão comercial. Elas são ricas em possibilidades para as reduzirmos a tão pouco. Já disse o poeta Fernando Pessoa que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. A sociedade burguesa, no entanto, obrigou as pessoas a vender a alma pelo valor monetário mais baixo e utilitarista.

         Se isso não nos mata completamente, vai nos matando um pouquinho todos os dias. Empobrece não apenas a sociedade, mas a riqueza de possibilidades das relações humanas. Assim, não somos educados para desenvolvermos relações francas, sinceras, abertas, sem nenhum tipo de máscaras ou véus. Ao contrário, somos levados a crer que agir com máscaras e dissimuladamente é um princípio básico e elementar. Nossa persona passa a ser a parte central de nossa psique, enquanto que o self é relegado ao isolamento e ao esquecimento. Muita gente morre sem conhecer a si mesmo, tão emaranhados que ficam nas cordas das máscaras que utilizam para sobreviver.

***

         Podemos fazer um paralelo desta linguagem hipócrita cotidiana com aquela utilizada pelos economistas no noticiário e nos jornais. O objetivo é obscurecer e não tornar acessível. Fingir que se “cobre” algo, mas na verdade só estão trabalhando para tornar o inaceitável “natural” por intermédio de ideologias escabrosas. Como os jornalistas e os economistas precisam esconder o abismo existente entre a elite burguesa nacional e internacional, de um lado, e a classe média e a classe trabalhadora, do outro, justificando o imoral acúmulo de riquezas e de capital num pólo, baseado no saque de rapina, falam um linguajar “próprio”, que fala, fala, mas não diz nada e esconde tudo.

         Muitas pessoas julgam-se incapazes de entender o noticiário econômico, mas na verdade ele é feito para confundir e justificar a desigualdade e a exploração. Daí provém aquela visão absurda de apenas apontar como central o “crescimento do PIB”, a “alta e baixa nas bolsas de valores do mundo”, bem como o “risco Brasil” e tantos engodos deste gênero. Outra linguagem poderia ser utilizada se interessasse fazer o povo compreender que a sua fome, o seu arrocho salarial e as taxas de juros escorchantes que lhe cobram no cartão de crédito são, na realidade, reflexos de uma política econômica deliberada pelos governos, a mando do mercado e do sistema financeiro internacional.

         Se falta verba para a saúde, a educação e a segurança públicas, isso é resultado da forma de funcionamento baseada na especulação financeira, no sistema da dívida “pública” e numa total desregulamentação do mercado, que deixa o Estado, a política, as leis e a economia completamente à mercê dos abutres da Avenida Paulista, de Wall Street e da City londrina. Um povo sem auto estima, acostumado a achar que o país não presta, que tudo o que é bom “vem de fora” e, ainda por cima, que vai sendo corrompido diariamente por uma linguagem que também não lhe diz nada, pensa que não é capaz de compreender o noticiário econômico. 

A realidade, contudo, é que os economistas e jornalistas aproveitam-se dessa institucionalização formal e informal de uma linguagem que fala, fala, mas não diz nada. Assim, muitas pessoas da classe trabalhadora concluem, erroneamente, que economia é coisa de “gente intelegente”, dos políticos e dos economistas, quando, na realidade, é assunto de todos nós — e de fundamental importância!

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Não é necessário comentar nada sobre a hipocrisia do discurso eleitoral da democracia burguesa, dado que, infelizmente, já se tornou senso comum associar os políticos com a corrupção. Apesar do esforço de reciclar as esperanças nas eleições, levado a cabo pela máquina propagandística e ideológica da grande mídia e do Estado, atingiu tal ponto do senso comum que muitas pessoas se adaptaram a ele por ser uma forma cômoda e ilusória de pensar que a vida pode mudar através do voto em eleições onde o discurso da propaganda eleitoral jamais bate com a prática de governo.

 

A linguagem morta da “esquerda”

         Por entre a militância de “esquerda” o caso é mais grave, pois trata-se de uma parcela da população que tem algum tipo de acesso à cultura e à instrução. O erro começa na ausência de escuta e na imposição de políticas que não foram debatidas com ninguém, à exceção dos organismos internos de cada partido ou direção política e sindical. Uma vez que internamente eles tenham fechado uma linha, apresentam-na como se fosse a “salvação”, à revelia de qualquer confrontação honesta que venha da base de uma categoria ou mesmo do povo.

         Grande parte desta militância transforma a teoria e sua política em dogma religioso. Aí a linguagem passa a ser vazia também. Ela “diz” outra coisa daquilo que aparentemente queria passar; e no campo político diz muito menos do que deveria. No mais das vezes, afasta ou subjuga, ao invés de emancipar. A começar por sua total ausência de crítica e autocrítica sobre a sua prática.

         Dentre vários erros grandes e pequenos (desconsiderando-se as traições abertas), a esquerda tem duas vertentes linguísticas bastante complicadas: 1) a linguagem branda da “esquerda oportunista”, cuja finalidade central é adoçar a classe trabalhadora fazendo-a esperar (seja por uma saída eleitoral, judicial, “sindical”; um “salvador da pátria”, etc.); 2) a linguagem dogmatizada e sectária da suposta “esquerda revolucionária”, que foi assim ironizada por Fernando Claudín: grande parte do movimento comunista ficou marcado por “um espírito sectário e dogmatizante, embalado num verbalismo revolucionário que dissimulava a perda de noção da realidade”[6].

         No primeiro caso se anestesia a classe trabalhadora com falsas esperanças (às vezes com alguma base na realidade, outras tantas simples mentiras deslavadas); no segundo caso a linguagem serve para dar uma aparência de combatividade revolucionária, mas a essência da questão é que se perdeu completamente a noção de realidade e apenas se “massageia” o próprio ego de que “estamos fazendo o que é revolucionário”. Tanto num como noutro caso, a linguagem é uma armadilha que deve ser reconhecida e evitada.

         Para evitarmos armadilhas, devemos observar o fato, a ação e o objeto em si mesmo. Por exemplo: “consciência” e “árvore” são palavras, mas as palavras não são os fatos, as ações e os objetos “em si mesmos”. Devemos observar tudo isso evitando a embriaguez das palavras. O orador pode fazer uma afirmação em palavras, mas se estas não correspondem aos fatos, à sua ação ou ao objeto, tornam-se meras palavras vazias que não correspondem à prática. Nossas mentes estão sujeitas a diversos tipos de pressões e preconceitos: necessidades presentes e futuras, pressões psicológicas, morais, sociais, profissionais, sem falar nos medos, emoções e receios. Por reação, muitas vezes não vemos os fatos, as ações e os objetos, apenas nos contentamos com palavras, que nos anestesiam, mas cobram um preço muito alto logo ali adiante.

         Dentro da mesma lógica, a maioria das organizações de “esquerda” — sobretudo as de cunho oportunista — quando falam em “socialismo” querem dizer “democracia burguesa”; quando falam em “revolução”, estão querendo dizer “pressão parlamentar burguesa” ou “mudança de governo via eleitoral”. Fazem uma misturança de conceitos e termos para esconder uma prática oportunista de conciliação. Com esta atitude não podem responder as distorções da grande mídia e do establishment burguês, que tira toda a vantagem dessas contradições.

         Ultimamente os sindicatos dirigidos pelo oportunismo tem falado em “greve”, mas a sua greve pode casar com trabalho remoto, com “greve de pijama” ou, ainda, com paralisação de 1 dia. Ou seja, é uma forma de tentar acender uma vela pra cada santo, confundindo tudo e desgastando ainda mais a palavra “greve”. Como não tem preocupação com as questões linguísticas e a sua dissociação com a realidade, não vê problema nenhum em fazer agitações que são hipocritamente oportunistas ou que beiram o realismo fantástico esquizofrênico, do que toquem realmente a consciência e o coração da classe trabalhadora — mesmo que seja a longo prazo.

 

Por uma linguagem e relações sociais mais humanizadas!

         Os seres humanos sempre viveram num campo de batalha. Seja pelas necessidades materiais e econômicas com que se defrontaram, seja nas palavras e nas emoções por causa de suas compreensões egocêntricas: primeiro o “eu”, depois os outros. Primeiro meus interesses, minha segurança, meu prazer, meu sucesso, minha posição, meu prestígio, minha corrente política. Na maioria das vezes esse “eu” se identifica com “a pátria”, “a família”, “a doutrina”, “a categoria”, “a classe trabalhadora”, etc. Por meio desse artifício linguístico se tenta dissolver o “eu” e o egocentrismo que o move no meio de supostos interesses coletivos e sociais.

Parte fundamental de uma nova sociedade está em desenvolver relações sinceras, baseadas em outras ligaduras sociais que não o dinheiro e discursos exaltados vazios que escondem a negação da realidade. Contudo, abolir o dinheiro e a demagogia política não serão tarefas simples. Ao contrário. Demandam uma colaboração em larga escala que precisa ser estudada e desenvolvida a partir de experiências concretas. De qualquer forma, não poderá ser uma tarefa inconsciente e espontânea. O capitalismo se desenvolveu semi espontaneamente e, em grande parte, de forma inconsciente, embora sempre exaltando conscientemente a ganância individual. Uma nova sociedade, uma sociedade socialista, ao contrário, deverá ser desenvolvida de forma consciente — o que é, ao mesmo tempo, uma dádiva e uma maldição! Deve, portanto, exaltar novos valores sociais solidários, o que é bem mais difícil, dado os séculos de escravidão, de submissão, de espírito de rebanho, de mentiras e de linguagens vazias.

         Para desenvolvermos relações sociais baseadas numa nova confiança social, precisaremos transformar toda a sociedade numa grande escola, como sugeria Ernesto Che Guevara, levando em consideração a prática sintonizada com o discurso; isto é: que “se entregue a própria pele para demonstrar suas verdades”. O primeiro passo é, sem dúvida, combater as consequências e implicações de uma sociedade baseada no dinheiro, bem como os seus menores reflexos na vida cotidiana da população.

         Outro passo determinante no sentido de construirmos novas relações sociais para uma sociedade socialista é, sem dúvida, não nos assustarmos com as expressões de vida no outro e em nós mesmos. Séculos de cristianismo separaram as nossas emoções mais pessoais e íntimas como “coisas do demônio”, o que transforma sensações absolutamente naturais em algo anti-natural. A era burguesa não foi muito melhor, se aproveitando desses séculos de mecanicismos nas relações sociais e na percepção do mundo, construindo o seu mundo sobre eles.

Além disso, uma sociedade socialista precisa atribuir mais valor à linguagem conectada à prática; e não simplesmente subtrairmos e negarmos as implicações práticas de mentirmos para nós mesmos o tempo todo. Esta sociedade futura deve ter o cuidado de não naturalizar a hipocrisia e o abafamento dos nossos sentimentos mais profundos cotidianamente. Trabalhar consciente e inconscientemente para que o conteúdo seja expresso pela forma; e não que a forma seja usada para apagar ou confundir o conteúdo! Saber levar em consideração o fato de que somos seres contraditórios e que muitas vezes nos desdizemos, sem falar no agravante de estarmos em uma realidade eternamente em movimento — devemos reconhecer, portanto, a importância da autocrítica!

         Enfim, uma nova esquerda com consciência de classe deve trabalhar de forma diligente e honesta para que a linguagem falada e escrita corresponda à nossa prática cotidiana, tornando as palavras estritamente vinculadas ao nosso caráter; e lhes conferir tanto valor quanto possível para que estas sejam capazes de substituir o dinheiro como o elemento central da “confiança” que dá liga às relações sociais.

 

 

Referências


[2] ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2018 (páginas 114, 115)

[3] SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Ediouro (página 58).

[5] Extraído do livro “Pai Goriot”, de Balzac.

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