sexta-feira, 10 de julho de 2020

Junho de 2013: a esfinge ainda não decifrada que pode nos devorar novamente

Junho de 2013 em São Paulo

“A esfinge, com seus enigmas, obrigou-nos
a deixar de lado os fatos incertos,
para só pensar no que tínhamos diante de nós
(fala de Creonte, in Rei Édipo, Sófocles).

         Passaram-se 7 anos e ainda não deciframos a esfinge dos protestos de junho de 2013. Muitos jornais, sites e blogs de organizações de esquerda e da “mídia alternativa” tentam, atônitos, solucionar o mistério, porém, sem muito sucesso. Uma vez que não há ainda um balanço profundo de 2013 que tenha assimilado e difundido suas lições, as organizações de esquerda e as mídias alternativas batem cabeça nesta interpretação política e social das “jornadas de junho” – muitas vezes reproduzindo as ilusões, os preconceitos e as tacanhices da mídia burguesa e do reformismo ou simplesmente fazendo uma “comemoração”.
Por isso, se faz necessário uma tentativa de exame sociológico, filosófico e psicológico deste intrigante episódio da história recente do Brasil, ainda mais quando novos atos anti-fascistas contra o governo Bolsonaro despontam de norte a sul do nosso país (protestos de resistência também ocorrem nos EUA e tendem a se repetir em outros locais do mundo com o aprofundamento da crise econômica). Tais atos anti-fascistas ainda estão longe das manifestações de rua que ocorreram em 2013, é verdade, mas possuem potencial semelhante. Assim sendo, enquanto não entendermos os protestos de 2013 tendemos a cometer os mesmos erros e ficar andando em círculos.

Ruas inquietas e uma conjuntura precedente: as rebeliões pelo mundo e uma herança em comum
        O estopim para os protestos de rua foram as tradicionais manifestações contra o aumento de tarifa do transporte público que se alastraram pelas principais capitais do Brasil como rastilho de pólvora. O conchavo entre os empresários do transporte “público” e as prefeituras foi a gota d’água, tendo seu primeiro laboratório em Porto Alegre, nos meses de março e abril de 2013 (um ano antes já tinha ocorrido o episódio da destruição do Tatu Bola, símbolo da Copa, exposto no centro da cidade), seguido por São Paulo. A capital gaúcha é palco permanente deste conflito, transformando os protestos contra o aumento das passagens de ônibus quase que numa agenda dos movimentos sociais todo o início de ano. Foi assim, pelo menos, desde 2005. No entanto, apenas em 2013 se tornou um verdadeiro movimento de massas, terminando por um ataque sem precedentes à prefeitura da cidade, com quebradeira e depredação. A mídia burguesa, que imediatamente se apavorou, iniciou uma ofensiva pública contra o movimento, mas não encontrou eco na opinião pública. Pela primeira vez, em mais de 30 anos de democracia burguesa, a mídia comercial perdeu momentaneamente o controle sobre a manipulação da apatia e da aceitação da população. Este pavor exigia uma mudança de postura e de política que, como sempre, foi compreendido rapidamente pela pragmática burguesia, mas não pela “esquerda”.
        Segundo a Mídia 1508, “em 2013 vivemos no Brasil um levante popular, uma insurreição, como tantas que ocorreram nos anos anteriores em vários lugares do mundo: Wall Street, Grécia em 2008, Seattle”[i]. Podemos acrescentar o contexto mundial aberto após a crise econômica mundial de 2008, que teve desdobramentos também na chamada Primavera Árabe e no movimento dos indignados da Espanha, que clamavam por “democracia real”. Há uma tendência política comum que perpassa todos estes movimentos, marcados por uma repulsa a todo o tipo de partido, direção ou programa. Queriam questionar algumas consequências do capitalismo sem avançar sobre suas causas, provavelmente, temendo a morte repetir os erros do “socialismo” e da “esquerda” tipo PT.
        Sem dúvida alguma eram movimentos progressivos, que questionavam inconsciente e inconsequentemente a estrutura vigente, mas possuíam todas estas limitações espontaneístas que eram ignoradas pela “esquerda”, quando não incentivadas. Estas características dos movimentos sociais – que também estiveram presentes em junho de 2013 no Brasil – marcam a nossa época histórica. Estiveram presentes na primavera árabe, na Europa, na América do Norte; e mais recentemente nos protestos franceses liderados pelos Coletes Amarelos e nas sublevações populares da América Latina (Equador, Chile e Bolívia) em 2019.
        Engels escreveu, certa vez, que “onde há uma convulsão social tem de haver por trás alguma carência social que é impedida de se satisfazer por instituições gastas”[ii]. Isto explica, em parte, somado à crise econômica mundial, as razões dos protestos de junho de 2013. Em junho de 2014 – um ano depois – o blog Consciência Proletária escreveu que: “frente às mobilizações de rua que tomaram conta das principais capitais do Brasil em junho de 2013 e, principalmente, frente ao desgaste dos partidos e dos políticos, um setor da burguesia lançou a bandeira de ‘Reforma Política’ e de ‘Assembleia Constituinte’, que supostamente serviriam para a ‘moralização da política’, acabando com a corrupção e racionalizando a administração pública. Mas, dada a estrutura do sistema capitalista e de suas instituições ‘democráticas’, esta bandeira não passa de mais uma forma de enganar a população, desviando o descontentamento popular para a defesa disfarçada dos interesses da burguesia. É impossível moralizar as instituições burguesas porque em sua essência são apenas balcões de negociatas de empresários, banqueiros, empreiteiros, donos de televisão, ruralistas, magnatas das multinacionais. Aos trabalhadores elas não podem servir, uma vez que a sua natureza é defender e patrocinar a propriedade privada capitalista às custas do suor e do sofrimento dos trabalhadores. Esta afirmação é baseada na experiência de mais de um século”[iii].
        E concluía numa tentativa de ir além do espontaneísmo reinante – de uma forma talvez prematura e muito vaga em razão da ânsia juvenil: “A grande tarefa dos revolucionários é traduzir o verdadeiro sentido do desgaste destas instituições e dos políticos em geral; isto é, mostrar que este descontentamento não pode ser resolvido com uma mera ‘reforma política’ das instituições burguesas e dos seus partidos, ou com uma Assembleia Constituinte (como defendem alguns partidos de ‘esquerda’), mas que é necessário destruir as bases do sistema que lhes dá sustentação, o capitalismo”[iv]. Hoje, contudo, temos um pouco mais de elementos para tentar concretizar estas tarefas. Para tanto, é preciso analisar profundamente os discursos ideológicos presentes desde 2013 até hoje, bem como as bandeiras do movimento, ainda não superadas!


Junho de 2013 no Rio de Janeiro

PT versus direita tradicional: nenhum deles tem razão!
        Durante as mobilizações de rua de 2013 o PT estava no poder a nível federal, estadual no Rio Grande do Sul e municipal em São Paulo. Isso lhe aumenta sobremaneira a responsabilidade. Sua postura frente aos protestos não se diferencia da direita, pois fez demagogia dizendo que “ouvia as vozes da rua”, mas não fez nada de prático para demonstrar isso. Ao contrário: atacou ideologicamente as manifestações, se solidarizou com policiais feridos dizendo se tratar de um “barbarismo antidemocrático”[v] (nunca falou o mesmo quando se tratou dos assassinatos policiais nas periferias) e lançou mão da repressão da brigada militar, inclusive sem poupar em nada gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral e balas de borracha, criminalizando e perseguindo militantes dos movimentos sociais.
        A retórica petista da época ainda não foi modificada. Qual seja: que os protestos seriam ações da extrema direita que gostaria de desestabilizar os seus governos. Se é correto dizer que a ascensão da extrema direita neofascista começou a partir do vácuo aberto com os protestos de 2013, é totalmente incorreto afirmar que os protestos em si foram desencadeados pela extrema direita. As razões pelas quais ela tomou a frente deste vácuo serão analisadas mais adiantes, e tem a ver, sobretudo, com a falta de consciência, organização, política e programa da “esquerda” – indo desde o PT e o PCdoB até os demais partidos da “esquerda” institucionalizada (PSOL, PSTU, PCB, PCO; bem como os pequenos grupos revolucionários que possuem uma relativa influência nos movimentos sociais) e a inoperância ou traição aberta das centrais sindicais.
        Dentro da sua estratégia “democrático-popular” o PT não foi sequer capaz de dialogar com os movimentos de rua no sentido de pressionar a elite nacional a conceder mais “reformas” – na grande mídia ou no sistema financeiro (conforme oportunisticamente Lula vende que vai fazer caso o PT retorne ao poder). Esse discurso se tornou uma forma de balanço e de justificativa frente ao golpe institucional de 2016, que tentava encontrar explicações que já haviam sido dadas por toda a trajetória política de adaptação do PT desde a sua fundação. Na realidade, o PT foi um algoz dos movimentos de rua de 2013, seja em Porto Alegre, São Paulo ou Brasília. Se equilibrando numa corda bamba, tentava desesperadamente garantir a paz de cemitérios e a tranquilidade dos investidores para a realização dos mega eventos que se avizinhavam em 2014 e 2016 (Copa do Mundo e Olimpíadas). Podemos acrescentar ainda que, para além do desgaste das instituições democrático-burguesas, contribuíram decisivamente para a ascensão da direita a política, o programa e a estratégia petistas aplicadas em uma década à frente do governo federal.
        Se escondendo atrás da linha de frente petista, estava a direita – sobretudo o PSDB (mas por trás dele estavam outros ratos do baixo clero parlamentar que hoje conhecemos bem) – se regozijando por ver o circo pegar fogo e muito satisfeita com o papel cumprido pelo PT, ao mesmo tempo em que atacava o governo Dilma e procurava capitalizar todo o seu desgaste político. O vácuo de poder e o desgaste político começaram a ser trabalhado pela direita nacional em estreita colaboração com o imperialismo estadunidense e o seu deep state, que esboçaram uma maquiavélica linha de manipulação da psicologia de massas através das redes sociais via espionagem, fake news, ódio sádico e “auto-verdade”. A total desorientação da “esquerda revolucionária”, somada a sua profunda miséria teórica e prática, bem como o seu medo oportunista de se enfrentar com o atraso das massas, ajudaram a pavimentar o caminho da direita (e ela sempre conta com isso!).
        A ausência de uma estratégia clara para os protestos de rua de 2013 – incompreendidos até hoje – foram capitalizados dia e noite pela burguesia e a sua estrutura política e midiática. Assim, desembocamos no golpe de 2016. Porém, a análise petista de que foram os protestos de 2013 que prepararam o golpe demonstram apenas o seu cretinismo e a sua falência política para resolver os problemas do país e enfrentar a direita que o vende a preço de banana.


Junho de 2013 em Brasília

As reivindicações e as claras limitações dos movimentos de junho de 2013
        Os protestos multitudinários de junho de 2013 despertam todas as paixões e parecem libertar da garganta do povo – em forma de catarse – os séculos de repressão da elite brasileira. Mas estes ecos de opressões engasgados saem num turbilhão confuso e, não raras vezes, de forma contraditória. A classe dominante com o seu pragmatismo e sapiência destes séculos de dominação sabe lidar e, sobretudo, esperar, para que o cansaço e a falta de perspectivas destas explosões populares se abrandem lentamente (para isso, basta administrar o espontaneísmo e o apartidarismo reinantes). Dentro de todo este contexto é natural que venham à tona diversos exageros de analises e perspectivas, refletindo anos de uma deseducação teórica e prática da “esquerda”.
        As ruas foram tomadas por centenas de milhares de pessoas: estudantes, jovens, membros da classe média, trabalhadores, desempregados, os sem perspectivas de futuro. Por mais que em sua esmagadora maioria fossem pessoas ligadas à classe trabalhadora (ou ao seu “exército industrial de reserva”) é um exagero dizer que a classe trabalhadora estava no centro da trama política. De fato havia grandes chances de ela tomar o epicentro desta trama, mas desgraçadamente não o tomou por vários fatores. Aqui vamos pontuar alguns: desorganização total, inconsciência, confusão de palavras de ordem, falta de perspectiva política de poder. A crise do socialismo (resultado inevitável dos anos de stalinismo) não foi superada e ele esteve completamente fora das perspectivas de 2013. A “esquerda” revolucionária apenas reproduziu dogmas e não conseguiu estabelecer nenhuma ligação entre a realidade concreta nacional e as perspectivas do socialismo.
        Para a Luta Marxista – a análise mais lúcida entre as que foram feitas na época –, “não é verdade que os atos não foram dirigidos. Não houve uma direção hegemônica, mas houve direções. O movimento foi disputado por três setores: pelo governismo (PT, CUT, UNE, PCdoB), pela direita fascistizante (PSDB, Globo, SBT, Record, grupos fascistas e a polícia) e por grupos reformistas (PSOL, PSTU, anarquistas, entre outros). O governo tentou desviá-lo com a sua proposta de reforma política (constituinte, plebiscito, financiamento público de campanha, etc.)”. Muitos setores da esquerda – em especial os anarquistas – “afirmaram que ‘não é hora de dirigir o povo, mas de aprender com ele’, contra censo absurdo num momento em que o movimento estava sendo dirigido por uma ou outra fração da burguesia”[vi].
        Como já foi dito, os principais problemas foram o espontaneísmo (que levou a uma miríade confusa de palavras de ordem auto excludentes ou ilusórias, deixando o movimento a reboque dos setores da burguesia – o que desperdiçou a potencialidade para organizar a força do movimento e impulsioná-lo contra o governo e o sistema) e o apartidarismo (que foi a expressão auto satisfeita desse espontaneísmo). Por certo existiram outros problemas, mas estes eram a espinha dorsal dos demais.
        O apartidarismo tem dois lados: um positivo e um negativo. O positivo expressa o rechaço aos partidos burgueses, à politicagem, aos anos de mentiras e corrupções; o negativo é o preponderante, pois atribui qualquer tipo de organização, programa ou até mesmo fala nos atos como sendo formas de manipulação. Este último acaba se voltando contra a própria organização política consciente dos trabalhadores. Foi se aproveitando deste sentimento confuso e perigoso que a direita passou a avançar sobre os protestos e, sobretudo, pelo vácuo conjuntural pós 2013. Uma vez que essa direita não necessita aparecer formalmente organizada em partido (inclusive se dizendo “autônoma” e “independente” dos partidos, quando na verdade são seus representantes diretos ou indiretos), todas as ilusões presentes nos ativistas de rua de que “basta moralizar as instituições que aí estão” reforçam o predomínio dos partidos burgueses e das suas instituições, ainda que isso seja feito inconscientemente por eles.
        A indignação contra os partidos tradicionais é aparentemente progressiva, uma vez que repudia a politicagem burguesa, o aparelhamento, a defesa velada dos interesses dos ricos, a identificação dos partidos como responsáveis pela situação social e econômica do país, mas, no fundo, volta-se contra os próprios trabalhadores, porque é usada pela burguesia e sua mídia como uma forma velada de disseminar preconceito contra a organização política do proletariado. A ausência de uma organização revolucionária impede a ampla tomada de consciência dos trabalhadores e os mantém sem uma alternativa independente de direção. A população brasileira sente que não pode contar com os partidos e os políticos do país. Sabe que a corrupção rola solta nos bastidores do poder, mesmo sem poder comprová-la. Mas a conclusão mais profunda que não tira de todos os escândalos de corrupção é que o afastamento de assessores, marketeiros e deputados envolvidos em escândalo de corrupção, sem destruir o capitalismo, nada resolverá. É por isso que a corrupção não acaba. A experiência com a democracia burguesa e os seus partidos não se traduziu em indignação e conscientização, mas em letargia e desânimo[vii]. Ou seja, há um medo de envolvimento por sentirem-se na iminência de serem enganados e usados, mas, também, não desenvolvem uma postura auto afirmativa de assumirem em suas mãos o seu próprio destino (na maioria das vezes esperam líderes políticos, sindicais ou “messias” – sucedâneos inconscientes dos pais que não lhes trairão e terão por eles os sentimentos mais ternos, preservando-os na sua condição de eternas crianças).
        O apartidarismo é, portanto, uma das principais formas de espontaneísmo, que deixa o movimento sem programa e sem perspectivas, geralmente esperando a “humanização e a moralização das instituições, dos políticos e do próprio sistema”. Os partidos de “esquerda” institucionalizados, por sua vez, ao invés de combaterem consciente e honestamente este problema, acabam capitulando a ele, reforçando o atraso de que não é necessário “nenhuma direção e nenhum programa para o movimento” com medo de serem tachados de oportunistas ou manipuladores (ou por não possuírem realmente nenhuma outra estratégia). A maioria dos partidos reformistas de “esquerda” se beneficia amplamente destas ilusões de que é possível “moralizar” as instituições da democracia burguesia e eleger políticos éticos e comprometidos com o povo. Tal como disse Engels –“onde há uma convulsão social tem de haver por trás alguma carência social que é impedida de se satisfazer por instituições gastas” – as jornadas de 2013 são o sintoma principal de que as instituições brasileiras faliram e precisam ser substituídas, mas o espontaneísmo e o apartidarismo dos movimentos, somados à miséria teórica e ao oportunismo da “esquerda”, não foram capazes de perceber isso e, tampouco, de formular um programa que trabalhasse conscientemente para substituí-las por instituições dos trabalhadores que imprimam uma perspectiva socialista à economia.
        Ao invés disso, querem pular direto para o “fora este ou aquele” ou acabar com a polícia militar; e tudo isso sem correlação de forças, aguardando que sejam levadas a cabo pelas próprias instituições burguesas gastas, caducas e comprometidas até a medula óssea com os governos, a burguesia e a própria polícia militar.

Junho de 2013 em Porto Alegre

A tática black block como uma das expressões do culto ao espontâneo
        Por entre a vanguarda dos protestos de 2013 foi comum ouvir muitos elogios ao movimento black block, ainda que ele tenha sido criticado parcial e oportunistamente por parte dos partidos de “esquerda” – mais preocupados com os desdobramentos institucionais e eleitoreiros do que com uma real educação teórica revolucionária. Uma grande parcela de ativistas e organizações, ao contrário, o via como um fim em si mesmo que deveria ser incondicionalmente apoiado e que qualquer oposição feita a ele seria “peleguismo”.
        Em junho de 2013, os black blocks foram a encarnação de uma tática que não possuía nenhuma estratégia final, a não ser quebrar vidraças e se enfrentar com o cordão policial. Muitas análises foram feitas sobre este movimento, afirmando se tratar de uma tática de “auto defesa”. Certamente a “auto defesa” é sempre muito bem vinda, mas em 2013 os black blocks não tiveram nada de auto defesa, sendo apenas a expressão de um ataque desesperado e inconsequente, sem nenhum preparo prévio – e, antes de tudo, autoritário, porque se colocava contra o que queria a ampla maioria dos manifestantes. A busca pela adrenalina juvenil acabou por aprofundar o “pacifismo” apático e estéril dos manifestantes de 2013, pois estes preferiam isso a uma quebradeira sem objetivo. Como não poderia deixar de ser, isso foi um prato cheio para a polícia que, comprovadamente, infiltrou os seus “black blocks” nos movimentos para justificar a repressão.
        Na contramão dessa análise, a mídia 1508, afirma que: “a tática ajudou a dar voz aos protestos nas ruas, expressando uma crítica radical ao sistema e fortalecendo sua capacidade de resistir aos ataques da polícia à população. Já famosa em vários lugares do mundo, a tática que surge aqui em meio aos protestos de junho possibilitou que os corpos, diariamente jogados uns contra os outros pela máquina do mercado, se encontrassem igualados nas ruas, unidos para responder à violência inerente ao cotidiano das cidades e fundamental para a manutenção dessa sociedade desigual. Aprender a resistir, desafiar o monopólio da força destrutiva estatal e lembrar ao próprio povo e ao Estado que o oprime de onde deriva o poder”[viii]. A ação dos black blocks teve esse efeito mágico ou há aqui um flagrante exagero?
        Sabemos que a quebradeira demonstra o descontentamento social e pode vir a desafiar parcial e restritamente o “poder do Estado”; e, também, que a mídia burguesa e a polícia criminalizaram os black blocks como forma de coibir não apenas seus ativistas – sem querer entendê-los –, mas, sobretudo, como uma manobra ideológica e política para condenar todo o movimento. Não é possível mudar a sociedade apenas quebrando vidraças e caixas eletrônicos de bancos, mas apenas desenvolvendo uma estratégia política revolucionária de poder alternativo. Os black blocks nunca possuíram uma (justiça seja feita: a maior parte da “esquerda” também não; a não ser esperar saídas institucionais).
        A Revista Sextante (Ruas Inquietas), publicada no segundo semestre de 2013, traz uma reportagem sobre os black blocks, fazendo um apanhado histórico. Nela encontramos a análise da participação deste movimento nos protestos de Seattle, em 1999. É sabido que, nesta ocasião, tais protestos visavam impedir a realização da hipócrita cúpula da Organização Mundial do Comércio (OMC) que queria fazer propaganda do “sonho da globalização”. “Quando o dia chegou, dezenas de milhares de pessoas dos mais diversos grupos – sindicatos, anarquistas, ecologistas e estudantes – espalharam-se em pontos estratégicos da cidade, bloqueando ruas e cruzamentos e impedindo os delegados de chegaram ao local do encontro”[ix]. Neste contexto, a tática black block se justifica plenamente e, inclusive, é uma das melhores a ser aplicada, uma vez que a ditadura da democracia burguesa não deixa outra possibilidade para a expressão do povo organizado. Há um claro objetivo: impedir a realização da cúpula da OMC e demonstrar o descontentamento popular. Porém, em 2013, a tática black block não podia expressar um objetivo claro, a não ser mostrar o descontentamento pelo descontentamento. Como lutar contra o desgaste das velhas instituições burguesas, reacionárias e caducas, em um território do tamanho do brasileiro, apenas quebrando vidraças e não apresentando nenhuma alternativa para além disso? Este vácuo é um prato cheio para qualquer proposta que vise renovar ilusões ou de “apagar fogo com gasolina” (isto é, reforçando o próprio mal que se queria combater).
        Portanto, em 2013 a tática black block significou apenas um culto ao espontaneísmo de um movimento sem objetivos claros e que, ademais, deixou um vácuo político em aberto por medo de propor novas instituições e um programa socialista – tarefas muito mais longas, pacienciosas, demoradas; que não entram na perspectiva de uma mentalidade imediatista que pretende, ilusoriamente, “resolver tudo com uma tacada só”. A “esquerda” institucionalizada – tipo PSOL e PSTU – criticaram os black blocks não porque tinham em mente apresentar uma tática e uma estratégia revolucionária de superação das instituições burguesas, mas justamente para demonstrar que respeitavam estas instituições e a opinião pública que a orbita se diferenciando do simples quebra-quebra. Ou seja, medo e preconceitos morais.



É possível acabar com a polícia militar e conquistar o passe livre preservando as instituições burguesas?
        Outra bandeira de 2013 que ainda vive nos atuais protestos anti-fascistas contra o governo Bolsonaro é a exigência pelo fim da polícia militar. É uma reivindicação justa porque expressa o ódio contra uma polícia que tem carta branca para matar jovens negros nas periferias das grandes cidades brasileiras e é especialista em reprimir manifestações de rua. Em muitos países do mundo ela não existe, o que demonstra a estrutura política do nosso país, voltada para reprimir a sua própria população, que vive condenada à pobreza. É assim que os governos brasileiros e as suas instituições tem “resolvido” historicamente os problemas sociais do país: com o cassetete policial!
        Porém, cai de maduro que esta reivindicação não pode ser um fim em si mesmo, uma vez que significa exigir das instituições burguesas atuais, como o Congresso Nacional, que acabem com uma polícia da qual depende a sua própria sorte. No caso de existirem protestos populares com força suficiente para impô-la ao Congresso Nacional e ao governo federal, tais protestos jamais poderiam se restringir apenas a isso, pois teriam força para fazer uma revolução, mudando muito mais do que a instituição policial. Trocando em miúdos, significa dizer que para acabar de fato com a polícia militar ou conquistar o passe livre para estudantes e desempregados no transporte público, é necessário modificar a estrutura política, econômica e social do país; portanto, é necessário fazer uma revolução, colocando abaixo as atuais instituições burguesas e criando instituições controladas pelos trabalhadores e o povo pobre, articuladas em nível nacional. Toda a estratégia política deve estar permeada por este objetivo – foi exatamente o que faltou em junho de 2013; e continua faltando até hoje.


A Avenida Paulista em junho de 2013

Tentando decifrar a esfinge!
        Em essência, os protestos de junho de 2013 foram uma resposta ao desgaste das instituições democrático-burguesas do país que são incapazes de representar a sociedade brasileira, mas apenas uma pequena parcela dela, a sua elite e os seus interesses econômicos particulares. Este é o significado histórico tanto dos protestos, quanto do desgaste de partidos e políticos. A bem da verdade, esta estrutura política reflete a situação econômica do Brasil: um país periférico no mercado mundial, voltado a produzir commodities para abastecer o centro. Um real desenvolvimento do país pressupõe mudar a sua estrutura política econômica, criando instituições que reflitam os interesses conscientes dos trabalhadores e que apontem para a economia socialista (ainda que isso seja um processo longo e contraditório que precisa levar em consideração formulações históricas transicionais de um sistema para o outro). Isso tudo, como é natural, necessita de uma revolução, pois a elite brasileira não abandonará a cena histórica sem uma dura resistência.
        Os protestos de 2013 – que alguns preferem chamar de “insurreição”, termo um tanto exagerado – seriam parte importante do impulsionamento de uma possível revolução. Como vimos, os seus principais problemas e desvios não foram combatidos, mas intensificados; assim, se perdeu uma grande oportunidade histórica. Para que ela não seja totalmente em vão, se faz necessário refletir sobre as suas principais lições para não cometer os mesmos erros novamente. Nesse sentido, é preciso avançar numa luta decidida contra o mercado (sobretudo o desregulamentado), traduzindo e explicando o que ele representa para as grandes massas; e desenvolvendo métodos e formas para os trabalhadores o controlarem a partir de uma nova estrutura social.
        Diferente das mobilizações populares do Chile em 2019 (ou ainda, de fevereiro de 1917 na Rússia, por exemplo), as jornadas de junho de 2013 não apontaram pra nenhum tipo de organização política independente que pudesse significar a criação de um duplo poder (se houve, os seus participantes não tiveram a capacidade de interpretá-lo e traduzi-lo conscientemente). O espontaneísmo foi uma explosão fugaz que não deixou traços apreensíveis. Isso aumenta a responsabilidade do elemento consciente das manifestações, da necessidade de organização e de um programa político articulado e coordenado a nível nacional.
        Temos que nos questionar sobre o quê, de fato, pode quebrar os bancos: estilhaçar suas vidraças ou levantar reivindicações populares pra desmascará-los perante a opinião pública e criar um outro regime social no qual eles não levem vantagem em tudo? Quebrar caixas eletrônicos ou criar uma nova “opinião pública” para denunciar, controlar e coibir o abuso de suas taxas, do cheque especial, dos juros dos cartões de créditos? Por que o povo não pode opinar e decidir sobre tudo isso? Por que os trabalhadores não podem decidir as metas do seu trabalho e serem responsabilizados socialmente por ele (tanto pelas decisões boas quanto pelas ruins)? Por que os estudantes não podem decidir junto o que estudam e administrar conjuntamente as suas instituições de ensino? O mesmo poderia ser dito sobre os moradores dos bairros mais distantes, bem como para os agricultores pobres.
Pra que tudo isso se torne realidade, seria preciso fazer aquilo que um ativista dos movimentos sociais escreveu na sua conta do facebook: “estruturas só se modificam criando outras estruturas”. Foi exatamente isso que 2013 não fez: não se preocupou em modificar as estruturas criando outras. A principal parcela de culpa recai, obviamente, sobre a “esquerda”, que vive presa em dogmas, oportunismos e autoilusões; a outra parcela recai sobre o ombro dos próprios manifestantes, que esperavam que um “líder ético” resolvesse os seus problemas e tendia a fugir da responsabilidade social de criar novas organizações e instituições que lhe deem protagonismo real. Novas estruturas democráticas só surgirão quando refletir uma mudança de postura dos próprios manifestantes, que vão chamar a responsabilidade para si mesmo, para controlar não apenas os “representantes políticos”, mas avançar para o controle sobre o próprio mercado, que hoje controla tudo de acordo com os interesses de que está no topo.
Para mudar essas estruturas e a postura das pessoas, a esquerda precisa se modificar, mudar seus métodos, parar com a prática de gerar feudos particulares e rebanhos humanos, mas incentivar uma política de independência de classe que se reflita na autonomia e independência dos indivíduos; que estes sejam cobrados de sua responsabilidade social e que estejam comprometidos com as pautas coletivas e, sobretudo, socialistas. Não adianta gritar contra os partidos e os políticos, mas se eximir de suas responsabilidades sociais. Não adianta querer uma “nova política” e “políticos éticos” sem lutar por instituições novas e que levem em conta de verdade a ética. Em qualquer um destes casos é necessário mudar a base material de tudo isso: é preciso trabalhar conscientemente para superar o capitalismo e substituí-lo pelo socialismo. Estudar e compreender os erros do passado; e não jogar tudo fora e enfiar a cabeça na terra como faz o avestruz. A “nova esquerda” precisa levar tudo isso em consideração, além de prestar uma atenção cuidadosa sobre novas formas de organização política revolucionária que reflita determinados anseios positivos da massa de 2013 – deixando de reproduzir acrítica e dogmaticamente ecos europeus do início do século passado –, ao mesmo tempo em que saiba cobrá-la de suas inevitáveis responsabilidades sociais, parando de tratá-la como criança.
Uma saída revolucionária e socialista requer uma nova prática que ainda está por ser criada. É nisso, e não nas eleições ou na institucionalidade burguesa, que a esquerda precisa investir pesado se quiser estar à altura de um “novo” 2013!



NOTAS


[ii] ENGELS, Friedrich. Revolução e contra-revolução na Alemanha. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/revolucao/cap01.htm
[iv] Idem.
[v] Revista Sextante, 2013/2, Ruas Inquietas – página 100.
[ix] Revista Sextante, 2013/2, Ruas Inquietas – página 101.

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