“A esfinge, com
seus enigmas, obrigou-nos
a deixar de lado
os fatos incertos,
para só pensar
no que tínhamos diante de nós
(fala de Creonte,
in Rei Édipo, Sófocles).
Passaram-se 7 anos e ainda não
deciframos a esfinge dos protestos de junho de 2013. Muitos jornais, sites e
blogs de organizações de esquerda e da “mídia alternativa” tentam, atônitos,
solucionar o mistério, porém, sem muito sucesso. Uma vez que não há ainda um
balanço profundo de 2013 que tenha assimilado e difundido suas lições, as
organizações de esquerda e as mídias alternativas batem cabeça nesta
interpretação política e social das “jornadas de junho” – muitas vezes
reproduzindo as ilusões, os preconceitos e as tacanhices da mídia burguesa e do
reformismo ou simplesmente fazendo uma “comemoração”.
Por
isso, se faz necessário uma tentativa de exame sociológico, filosófico e
psicológico deste intrigante episódio da história recente do Brasil, ainda mais
quando novos atos anti-fascistas contra o governo Bolsonaro despontam de norte
a sul do nosso país (protestos de resistência também ocorrem nos EUA e tendem a
se repetir em outros locais do mundo com o aprofundamento da crise econômica).
Tais atos anti-fascistas ainda estão longe das manifestações de rua que
ocorreram em 2013, é verdade, mas possuem potencial semelhante. Assim sendo,
enquanto não entendermos os protestos de 2013 tendemos a cometer os mesmos
erros e ficar andando em círculos.
Ruas inquietas e uma conjuntura precedente: as rebeliões
pelo mundo e uma herança em comum
O estopim para os protestos de rua foram as tradicionais
manifestações contra o aumento de tarifa do transporte público que se
alastraram pelas principais capitais do Brasil como rastilho de pólvora. O
conchavo entre os empresários do transporte “público” e as prefeituras foi a
gota d’água, tendo seu primeiro laboratório em Porto Alegre, nos meses de março
e abril de 2013 (um ano antes já tinha ocorrido o episódio da destruição do
Tatu Bola, símbolo da Copa, exposto no centro da cidade), seguido por São
Paulo. A capital gaúcha é palco permanente deste conflito, transformando os
protestos contra o aumento das passagens de ônibus quase que numa agenda dos
movimentos sociais todo o início de ano. Foi assim, pelo menos, desde 2005. No
entanto, apenas em 2013 se tornou um verdadeiro movimento de massas, terminando
por um ataque sem precedentes à prefeitura da cidade, com quebradeira e
depredação. A mídia burguesa, que imediatamente se apavorou, iniciou uma
ofensiva pública contra o movimento, mas não encontrou eco na opinião pública.
Pela primeira vez, em mais de 30 anos de democracia burguesa, a mídia comercial perdeu momentaneamente o controle
sobre a manipulação da apatia e da aceitação da população. Este pavor exigia
uma mudança de postura e de política que, como sempre, foi compreendido
rapidamente pela pragmática burguesia, mas não pela “esquerda”.
Segundo a Mídia 1508, “em
2013 vivemos no Brasil um levante popular, uma insurreição, como tantas que
ocorreram nos anos anteriores em vários lugares do mundo: Wall Street, Grécia
em 2008, Seattle”[i].
Podemos acrescentar o contexto mundial aberto após a crise econômica mundial de
2008, que teve desdobramentos também na chamada Primavera Árabe e no movimento
dos indignados da Espanha, que clamavam por “democracia real”. Há uma tendência
política comum que perpassa todos estes movimentos, marcados por uma repulsa a
todo o tipo de partido, direção ou programa. Queriam questionar algumas
consequências do capitalismo sem avançar sobre suas causas, provavelmente,
temendo a morte repetir os erros do “socialismo” e da “esquerda” tipo PT.
Sem dúvida alguma eram movimentos progressivos, que
questionavam inconsciente e inconsequentemente a estrutura vigente, mas
possuíam todas estas limitações espontaneístas que eram ignoradas pela
“esquerda”, quando não incentivadas. Estas características dos movimentos
sociais – que também estiveram presentes em junho de 2013 no Brasil – marcam a
nossa época histórica. Estiveram presentes na primavera árabe, na Europa, na
América do Norte; e mais recentemente nos protestos franceses liderados pelos
Coletes Amarelos e nas sublevações populares da América Latina (Equador, Chile
e Bolívia) em 2019.
Engels escreveu, certa vez, que “onde há uma convulsão social tem de haver por trás alguma carência
social que é impedida de se satisfazer por instituições gastas”[ii].
Isto explica, em parte, somado à crise econômica mundial, as razões dos
protestos de junho de 2013. Em junho de 2014 – um ano depois – o blog Consciência Proletária escreveu que: “frente às mobilizações de rua que tomaram
conta das principais capitais do Brasil em junho de 2013 e, principalmente,
frente ao desgaste dos partidos e dos políticos, um setor da burguesia lançou a
bandeira de ‘Reforma Política’ e de ‘Assembleia Constituinte’, que supostamente
serviriam para a ‘moralização da política’, acabando com a corrupção e
racionalizando a administração pública. Mas, dada a estrutura do sistema
capitalista e de suas instituições ‘democráticas’, esta bandeira não passa de
mais uma forma de enganar a população, desviando o descontentamento popular
para a defesa disfarçada dos interesses da burguesia. É impossível moralizar as
instituições burguesas porque em sua essência são apenas balcões de negociatas
de empresários, banqueiros, empreiteiros, donos de televisão, ruralistas,
magnatas das multinacionais. Aos trabalhadores elas não podem servir, uma vez
que a sua natureza é defender e patrocinar a propriedade privada capitalista às
custas do suor e do sofrimento dos trabalhadores. Esta afirmação é baseada na
experiência de mais de um século”[iii].
E concluía numa tentativa de ir além do espontaneísmo
reinante – de uma forma talvez prematura e muito vaga em razão da ânsia
juvenil: “A grande tarefa dos
revolucionários é traduzir o verdadeiro sentido do desgaste destas instituições
e dos políticos em geral; isto é, mostrar que este descontentamento não pode
ser resolvido com uma mera ‘reforma política’ das instituições burguesas e dos
seus partidos, ou com uma Assembleia Constituinte (como defendem alguns
partidos de ‘esquerda’), mas que é necessário destruir as bases do sistema que
lhes dá sustentação, o capitalismo”[iv].
Hoje, contudo, temos um pouco mais de elementos para tentar concretizar estas
tarefas. Para tanto, é preciso analisar profundamente os discursos ideológicos
presentes desde 2013 até hoje, bem como as bandeiras do movimento, ainda não
superadas!
Junho de 2013 no Rio de Janeiro |
PT versus
direita tradicional: nenhum deles tem razão!
Durante as mobilizações de rua de 2013 o PT estava no poder a
nível federal, estadual no Rio Grande do Sul e municipal em São Paulo. Isso lhe
aumenta sobremaneira a responsabilidade. Sua postura frente aos protestos não
se diferencia da direita, pois fez demagogia dizendo que “ouvia as vozes da
rua”, mas não fez nada de prático para demonstrar isso. Ao contrário: atacou
ideologicamente as manifestações, se solidarizou com policiais feridos dizendo
se tratar de um “barbarismo
antidemocrático”[v] (nunca
falou o mesmo quando se tratou dos assassinatos policiais nas periferias) e
lançou mão da repressão da brigada militar, inclusive sem poupar em nada gás
lacrimogêneo, bombas de efeito moral e balas de borracha, criminalizando e
perseguindo militantes dos movimentos sociais.
A retórica petista da época ainda não foi modificada. Qual
seja: que os protestos seriam ações da extrema direita que gostaria de
desestabilizar os seus governos. Se é correto dizer que a ascensão da extrema
direita neofascista começou a partir
do vácuo aberto com os protestos de 2013, é totalmente incorreto afirmar que os
protestos em si foram desencadeados pela extrema direita. As razões pelas quais
ela tomou a frente deste vácuo serão analisadas mais adiantes, e tem a ver,
sobretudo, com a falta de consciência, organização, política e programa da
“esquerda” – indo desde o PT e o PCdoB até os demais partidos da “esquerda”
institucionalizada (PSOL, PSTU, PCB, PCO; bem como os pequenos grupos
revolucionários que possuem uma relativa influência nos movimentos sociais) e a
inoperância ou traição aberta das centrais sindicais.
Dentro da sua estratégia “democrático-popular” o PT não foi
sequer capaz de dialogar com os movimentos de rua no sentido de pressionar a
elite nacional a conceder mais “reformas” – na grande mídia ou no sistema
financeiro (conforme oportunisticamente Lula vende que vai fazer caso o PT
retorne ao poder). Esse discurso se tornou uma forma de balanço e de
justificativa frente ao golpe institucional de 2016, que tentava encontrar
explicações que já haviam sido dadas por toda a trajetória política de
adaptação do PT desde a sua fundação. Na realidade, o PT foi um algoz dos
movimentos de rua de 2013, seja em Porto Alegre, São Paulo ou Brasília. Se
equilibrando numa corda bamba, tentava desesperadamente garantir a paz de
cemitérios e a tranquilidade dos investidores para a realização dos mega
eventos que se avizinhavam em 2014 e 2016 (Copa do Mundo e Olimpíadas). Podemos
acrescentar ainda que, para além do desgaste das instituições
democrático-burguesas, contribuíram decisivamente para a ascensão da direita a
política, o programa e a estratégia petistas aplicadas em uma década à frente
do governo federal.
Se escondendo atrás da linha de frente petista, estava a
direita – sobretudo o PSDB (mas por trás dele estavam outros ratos do baixo
clero parlamentar que hoje conhecemos bem) – se regozijando por ver o circo
pegar fogo e muito satisfeita com o papel cumprido pelo PT, ao mesmo tempo em que atacava o governo Dilma e procurava capitalizar todo o seu
desgaste político. O vácuo de poder e o desgaste político começaram a ser
trabalhado pela direita nacional em estreita colaboração com o imperialismo
estadunidense e o seu deep state, que
esboçaram uma maquiavélica linha de manipulação da psicologia de massas através
das redes sociais via espionagem, fake
news, ódio sádico e “auto-verdade”. A total desorientação da “esquerda
revolucionária”, somada a sua profunda miséria teórica e prática, bem como o
seu medo oportunista de se enfrentar com o atraso das massas, ajudaram a
pavimentar o caminho da direita (e ela sempre conta com isso!).
A ausência de uma estratégia clara para os protestos de rua
de 2013 – incompreendidos até hoje – foram capitalizados dia e noite pela
burguesia e a sua estrutura política e midiática. Assim, desembocamos no golpe
de 2016. Porém, a análise petista de que foram os protestos de 2013 que
prepararam o golpe demonstram apenas o seu cretinismo e a sua falência política
para resolver os problemas do país e enfrentar a direita que o vende a preço de
banana.
Junho de 2013 em Brasília |
As reivindicações e as claras limitações dos movimentos
de junho de 2013
Os protestos multitudinários de junho de 2013 despertam todas
as paixões e parecem libertar da garganta do povo – em forma de catarse – os
séculos de repressão da elite brasileira. Mas estes ecos de opressões
engasgados saem num turbilhão confuso e, não raras vezes, de forma
contraditória. A classe dominante com o seu pragmatismo e sapiência destes
séculos de dominação sabe lidar e, sobretudo, esperar, para que o cansaço e a
falta de perspectivas destas explosões populares se abrandem lentamente (para
isso, basta administrar o espontaneísmo e o apartidarismo reinantes). Dentro de
todo este contexto é natural que venham à tona diversos exageros de analises e
perspectivas, refletindo anos de uma deseducação teórica e prática da “esquerda”.
As ruas foram tomadas por centenas de milhares de pessoas:
estudantes, jovens, membros da classe média, trabalhadores, desempregados, os
sem perspectivas de futuro. Por mais que em sua esmagadora maioria fossem
pessoas ligadas à classe trabalhadora (ou ao seu “exército industrial de
reserva”) é um exagero dizer que a classe trabalhadora estava no centro da
trama política. De fato havia grandes chances de ela tomar o epicentro desta
trama, mas desgraçadamente não o tomou por vários fatores. Aqui vamos pontuar
alguns: desorganização total, inconsciência, confusão de palavras de ordem,
falta de perspectiva política de poder. A crise do socialismo (resultado
inevitável dos anos de stalinismo) não foi superada e ele esteve completamente
fora das perspectivas de 2013. A “esquerda” revolucionária apenas reproduziu
dogmas e não conseguiu estabelecer nenhuma ligação entre a realidade concreta
nacional e as perspectivas do socialismo.
Para a Luta Marxista – a análise mais lúcida entre as que
foram feitas na época –, “não é verdade
que os atos não foram dirigidos. Não houve uma direção hegemônica, mas houve
direções. O movimento foi disputado por três setores: pelo governismo (PT, CUT,
UNE, PCdoB), pela direita fascistizante (PSDB, Globo, SBT, Record, grupos
fascistas e a polícia) e por grupos reformistas (PSOL, PSTU, anarquistas, entre
outros). O governo tentou desviá-lo com a sua proposta de reforma política
(constituinte, plebiscito, financiamento público de campanha, etc.)”.
Muitos setores da esquerda – em especial os anarquistas – “afirmaram que ‘não é hora de dirigir o povo, mas de aprender com ele’,
contra censo absurdo num momento em que o movimento estava sendo dirigido por
uma ou outra fração da burguesia”[vi].
Como já foi dito, os principais problemas foram o
espontaneísmo (que levou a uma miríade confusa de palavras de ordem auto
excludentes ou ilusórias, deixando o movimento a reboque dos setores da
burguesia – o que desperdiçou a potencialidade para organizar a força do
movimento e impulsioná-lo contra o governo e o sistema) e o apartidarismo (que
foi a expressão auto satisfeita desse espontaneísmo). Por certo existiram
outros problemas, mas estes eram a espinha dorsal dos demais.
O apartidarismo tem dois lados: um positivo e um negativo. O
positivo expressa o rechaço aos partidos
burgueses, à politicagem, aos anos de mentiras e corrupções; o negativo é o
preponderante, pois atribui qualquer tipo de organização, programa ou até mesmo
fala nos atos como sendo formas de manipulação. Este último acaba se voltando
contra a própria organização política consciente dos trabalhadores. Foi se
aproveitando deste sentimento confuso e perigoso que a direita passou a avançar
sobre os protestos e, sobretudo, pelo vácuo conjuntural pós 2013. Uma vez que
essa direita não necessita aparecer formalmente organizada em partido
(inclusive se dizendo “autônoma” e “independente” dos partidos, quando na
verdade são seus representantes diretos ou indiretos), todas as ilusões
presentes nos ativistas de rua de que “basta moralizar as instituições que aí
estão” reforçam o predomínio dos partidos burgueses e das suas instituições,
ainda que isso seja feito inconscientemente por eles.
A indignação contra os partidos tradicionais é aparentemente
progressiva, uma vez que repudia a politicagem burguesa, o aparelhamento, a defesa
velada dos interesses dos ricos, a identificação dos partidos como responsáveis
pela situação social e econômica do país, mas, no fundo, volta-se contra os
próprios trabalhadores, porque é usada pela burguesia e sua mídia como uma
forma velada de disseminar preconceito contra a organização política do
proletariado. A ausência de uma organização revolucionária impede a ampla
tomada de consciência dos trabalhadores e os mantém sem uma alternativa
independente de direção. A população brasileira sente que não pode contar com
os partidos e os políticos do país. Sabe que a corrupção rola solta nos
bastidores do poder, mesmo sem poder comprová-la. Mas a conclusão mais profunda
que não tira de todos os escândalos de corrupção é que o afastamento de
assessores, marketeiros e deputados
envolvidos em escândalo de corrupção, sem destruir o capitalismo, nada
resolverá. É por isso que a corrupção não acaba. A experiência com a democracia
burguesa e os seus partidos não se traduziu em indignação e conscientização,
mas em letargia e desânimo[vii].
Ou seja, há um medo de envolvimento por sentirem-se na iminência de serem
enganados e usados, mas, também, não desenvolvem uma postura auto afirmativa de
assumirem em suas mãos o seu próprio destino (na maioria das vezes esperam
líderes políticos, sindicais ou “messias” – sucedâneos inconscientes dos pais
que não lhes trairão e terão por eles os sentimentos mais ternos, preservando-os
na sua condição de eternas crianças).
O apartidarismo é, portanto, uma das principais formas de
espontaneísmo, que deixa o movimento sem programa e sem perspectivas,
geralmente esperando a “humanização e a moralização das instituições, dos
políticos e do próprio sistema”. Os partidos de “esquerda” institucionalizados,
por sua vez, ao invés de combaterem consciente e honestamente este problema,
acabam capitulando a ele, reforçando o atraso de que não é necessário “nenhuma
direção e nenhum programa para o movimento” com medo de serem tachados de
oportunistas ou manipuladores (ou por não possuírem realmente nenhuma outra
estratégia). A maioria dos partidos reformistas de “esquerda” se beneficia amplamente
destas ilusões de que é possível “moralizar” as instituições da democracia
burguesia e eleger políticos éticos e comprometidos com o povo. Tal como disse
Engels –“onde há uma convulsão social tem
de haver por trás alguma carência social que é impedida de se satisfazer por
instituições gastas” – as jornadas de 2013 são o sintoma principal de que
as instituições brasileiras faliram e precisam ser substituídas, mas o
espontaneísmo e o apartidarismo dos movimentos, somados à miséria teórica e ao
oportunismo da “esquerda”, não foram capazes de perceber isso e, tampouco, de
formular um programa que trabalhasse conscientemente para substituí-las por
instituições dos trabalhadores que imprimam uma perspectiva socialista à
economia.
Ao invés disso, querem pular direto para o “fora este ou
aquele” ou acabar com a polícia militar; e tudo isso sem correlação de forças,
aguardando que sejam levadas a cabo pelas próprias instituições burguesas
gastas, caducas e comprometidas até a medula óssea com os governos, a burguesia
e a própria polícia militar.
Junho de 2013 em Porto Alegre |
A tática black
block como uma das expressões do culto ao espontâneo
Por entre a vanguarda dos protestos de 2013 foi comum ouvir muitos
elogios ao movimento black block,
ainda que ele tenha sido criticado parcial e oportunistamente por parte dos
partidos de “esquerda” – mais preocupados com os desdobramentos institucionais
e eleitoreiros do que com uma real educação teórica revolucionária. Uma grande
parcela de ativistas e organizações, ao contrário, o via como um fim em si mesmo que deveria ser incondicionalmente apoiado e que qualquer oposição feita
a ele seria “peleguismo”.
Em junho de 2013, os black
blocks foram a encarnação de uma tática que não possuía nenhuma estratégia
final, a não ser quebrar vidraças e se enfrentar com o cordão policial. Muitas
análises foram feitas sobre este movimento, afirmando se tratar de uma tática
de “auto defesa”. Certamente a “auto defesa” é sempre muito bem vinda, mas em
2013 os black blocks não tiveram nada
de auto defesa, sendo apenas a expressão de um ataque desesperado e
inconsequente, sem nenhum preparo prévio – e, antes de tudo, autoritário,
porque se colocava contra o que queria a ampla maioria dos manifestantes. A
busca pela adrenalina juvenil acabou
por aprofundar o “pacifismo” apático e estéril dos manifestantes de 2013, pois
estes preferiam isso a uma quebradeira sem objetivo. Como não poderia deixar de
ser, isso foi um prato cheio para a polícia que, comprovadamente, infiltrou os
seus “black blocks” nos movimentos para justificar a repressão.
Na contramão dessa análise, a mídia 1508, afirma que: “a tática ajudou a dar voz aos protestos nas
ruas, expressando uma crítica radical ao sistema e fortalecendo sua capacidade
de resistir aos ataques da polícia à população. Já famosa em vários lugares do
mundo, a tática que surge aqui em meio aos protestos de junho possibilitou que
os corpos, diariamente jogados uns contra os outros pela máquina do mercado, se
encontrassem igualados nas ruas, unidos para responder à violência inerente ao
cotidiano das cidades e fundamental para a manutenção dessa sociedade desigual.
Aprender a resistir, desafiar o monopólio da força destrutiva estatal e lembrar
ao próprio povo e ao Estado que o oprime de onde deriva o poder”[viii].
A ação dos black blocks teve esse
efeito mágico ou há aqui um flagrante exagero?
Sabemos que a quebradeira demonstra o descontentamento social
e pode vir a desafiar parcial e restritamente o “poder do Estado”; e, também,
que a mídia burguesa e a polícia criminalizaram os black blocks como forma de coibir não apenas seus ativistas – sem
querer entendê-los –, mas, sobretudo, como uma manobra ideológica e política
para condenar todo o movimento. Não é possível mudar a sociedade apenas
quebrando vidraças e caixas eletrônicos de bancos, mas apenas desenvolvendo uma
estratégia política revolucionária de poder alternativo. Os black blocks nunca possuíram uma
(justiça seja feita: a maior parte da “esquerda” também não; a não ser esperar
saídas institucionais).
A Revista Sextante
(Ruas Inquietas), publicada no segundo semestre de 2013, traz uma
reportagem sobre os black blocks,
fazendo um apanhado histórico. Nela encontramos a análise da participação deste
movimento nos protestos de Seattle, em 1999. É sabido que, nesta ocasião, tais
protestos visavam impedir a realização da hipócrita cúpula da Organização
Mundial do Comércio (OMC) que queria fazer propaganda do “sonho da
globalização”. “Quando o dia chegou,
dezenas de milhares de pessoas dos mais diversos grupos – sindicatos,
anarquistas, ecologistas e estudantes – espalharam-se em pontos estratégicos da
cidade, bloqueando ruas e cruzamentos e impedindo os delegados de chegaram ao
local do encontro”[ix].
Neste contexto, a tática black block se justifica plenamente e,
inclusive, é uma das melhores a ser aplicada, uma vez que a ditadura da
democracia burguesa não deixa outra possibilidade para a expressão do povo
organizado. Há um claro objetivo: impedir a realização da cúpula da OMC e
demonstrar o descontentamento popular. Porém, em 2013, a tática black block não podia expressar um
objetivo claro, a não ser mostrar o descontentamento
pelo descontentamento. Como lutar contra o desgaste das velhas instituições
burguesas, reacionárias e caducas, em um território do tamanho do brasileiro,
apenas quebrando vidraças e não apresentando nenhuma alternativa para além
disso? Este vácuo é um prato cheio para qualquer proposta que vise renovar
ilusões ou de “apagar fogo com gasolina” (isto é, reforçando o próprio mal que
se queria combater).
Portanto, em 2013 a tática black block significou apenas um culto ao espontaneísmo de um
movimento sem objetivos claros e que, ademais, deixou um vácuo político em
aberto por medo de propor novas instituições e um programa socialista – tarefas
muito mais longas, pacienciosas, demoradas; que não entram na perspectiva de
uma mentalidade imediatista que pretende, ilusoriamente, “resolver tudo com uma
tacada só”. A “esquerda” institucionalizada – tipo PSOL e PSTU – criticaram os black blocks não porque tinham em mente
apresentar uma tática e uma estratégia revolucionária de superação das
instituições burguesas, mas justamente para demonstrar que respeitavam estas
instituições e a opinião pública que a orbita se diferenciando do simples
quebra-quebra. Ou seja, medo e preconceitos morais.
É possível acabar com a polícia militar e conquistar o
passe livre preservando as instituições burguesas?
Outra bandeira de 2013 que ainda vive nos atuais protestos
anti-fascistas contra o governo Bolsonaro é a exigência pelo fim da polícia
militar. É uma reivindicação justa porque expressa o ódio contra uma polícia
que tem carta branca para matar jovens negros nas periferias das grandes
cidades brasileiras e é especialista em reprimir manifestações de rua. Em
muitos países do mundo ela não existe, o que demonstra a estrutura política do nosso
país, voltada para reprimir a sua própria população, que vive condenada à
pobreza. É assim que os governos brasileiros e as suas instituições tem
“resolvido” historicamente os problemas sociais do país: com o cassetete
policial!
Porém, cai de maduro que esta reivindicação não pode ser um
fim em si mesmo, uma vez que significa exigir das instituições burguesas
atuais, como o Congresso Nacional, que acabem com uma polícia da qual depende a
sua própria sorte. No caso de existirem protestos populares com força
suficiente para impô-la ao Congresso Nacional e ao governo federal, tais
protestos jamais poderiam se restringir apenas a isso, pois teriam força para
fazer uma revolução, mudando muito mais do que a instituição policial. Trocando
em miúdos, significa dizer que para acabar de fato com a polícia militar ou
conquistar o passe livre para estudantes e desempregados no transporte público,
é necessário modificar a estrutura política, econômica e social do país;
portanto, é necessário fazer uma revolução, colocando abaixo as atuais
instituições burguesas e criando instituições controladas pelos trabalhadores e
o povo pobre, articuladas em nível nacional. Toda a estratégia política deve
estar permeada por este objetivo – foi exatamente o que faltou em junho de
2013; e continua faltando até hoje.
A Avenida Paulista em junho de 2013 |
Tentando decifrar a esfinge!
Em essência, os protestos de junho de 2013 foram uma resposta
ao desgaste das instituições democrático-burguesas do país que são incapazes de
representar a sociedade brasileira, mas apenas uma pequena parcela dela, a sua
elite e os seus interesses econômicos particulares. Este é o significado
histórico tanto dos protestos, quanto do desgaste de partidos e políticos. A
bem da verdade, esta estrutura política reflete a situação econômica do Brasil:
um país periférico no mercado mundial, voltado a produzir commodities para abastecer o centro. Um real desenvolvimento do
país pressupõe mudar a sua estrutura política econômica, criando instituições
que reflitam os interesses conscientes dos trabalhadores e que apontem para a
economia socialista (ainda que isso seja um processo longo e contraditório que
precisa levar em consideração formulações históricas transicionais de um
sistema para o outro). Isso tudo, como é natural, necessita de uma revolução,
pois a elite brasileira não abandonará a cena histórica sem uma dura resistência.
Os protestos de 2013 – que alguns preferem chamar de
“insurreição”, termo um tanto exagerado – seriam parte importante do
impulsionamento de uma possível
revolução. Como vimos, os seus principais problemas e desvios não foram
combatidos, mas intensificados; assim, se perdeu uma grande oportunidade
histórica. Para que ela não seja totalmente em vão, se faz necessário refletir
sobre as suas principais lições para não cometer os mesmos erros novamente.
Nesse sentido, é preciso avançar numa luta decidida contra o mercado (sobretudo
o desregulamentado), traduzindo e explicando o que ele representa para as
grandes massas; e desenvolvendo métodos e formas para os trabalhadores o
controlarem a partir de uma nova estrutura social.
Diferente das mobilizações populares do Chile em 2019 (ou
ainda, de fevereiro de 1917 na Rússia, por exemplo), as jornadas de junho de
2013 não apontaram pra nenhum tipo de organização política independente que
pudesse significar a criação de um duplo poder (se houve, os seus participantes
não tiveram a capacidade de interpretá-lo e traduzi-lo conscientemente). O
espontaneísmo foi uma explosão fugaz que não deixou traços apreensíveis. Isso
aumenta a responsabilidade do elemento consciente das manifestações, da
necessidade de organização e de um programa político articulado e coordenado a
nível nacional.
Temos que nos questionar sobre o quê, de fato, pode quebrar
os bancos: estilhaçar suas vidraças ou levantar reivindicações populares pra
desmascará-los perante a opinião pública e criar um outro regime social no qual
eles não levem vantagem em tudo? Quebrar caixas eletrônicos ou criar uma nova
“opinião pública” para denunciar, controlar e coibir o abuso de suas taxas, do
cheque especial, dos juros dos cartões de créditos? Por que o povo não pode
opinar e decidir sobre tudo isso? Por que os trabalhadores não podem decidir as
metas do seu trabalho e serem responsabilizados socialmente por ele (tanto
pelas decisões boas quanto pelas ruins)? Por que os estudantes não podem
decidir junto o que estudam e administrar conjuntamente as suas instituições de
ensino? O mesmo poderia ser dito sobre os moradores dos bairros mais distantes,
bem como para os agricultores pobres.
Pra
que tudo isso se torne realidade, seria preciso fazer aquilo que um ativista
dos movimentos sociais escreveu na sua conta do facebook: “estruturas só se modificam criando outras estruturas”. Foi
exatamente isso que 2013 não fez: não se preocupou em modificar as estruturas criando outras. A principal parcela de
culpa recai, obviamente, sobre a “esquerda”, que vive presa em dogmas,
oportunismos e autoilusões; a outra parcela recai sobre o ombro dos próprios
manifestantes, que esperavam que um “líder ético” resolvesse os seus problemas
e tendia a fugir da responsabilidade social de criar novas organizações e
instituições que lhe deem protagonismo real. Novas estruturas democráticas só
surgirão quando refletir uma mudança de postura dos próprios manifestantes, que
vão chamar a responsabilidade para si mesmo, para controlar não apenas os
“representantes políticos”, mas avançar para o controle sobre o próprio
mercado, que hoje controla tudo de acordo com os interesses de que está no
topo.
Para
mudar essas estruturas e a postura das pessoas, a esquerda precisa se
modificar, mudar seus métodos, parar com a prática de gerar feudos particulares
e rebanhos humanos, mas incentivar uma política de independência de classe que
se reflita na autonomia e independência dos indivíduos; que estes sejam
cobrados de sua responsabilidade social e que estejam comprometidos com as
pautas coletivas e, sobretudo, socialistas. Não adianta gritar contra os
partidos e os políticos, mas se eximir de suas responsabilidades sociais. Não
adianta querer uma “nova política” e “políticos éticos” sem lutar por
instituições novas e que levem em conta de verdade a ética. Em qualquer um
destes casos é necessário mudar a base material de tudo isso: é preciso
trabalhar conscientemente para superar o capitalismo e substituí-lo pelo
socialismo. Estudar e compreender os erros do passado; e não jogar tudo fora e
enfiar a cabeça na terra como faz o avestruz. A “nova esquerda” precisa levar
tudo isso em consideração, além de prestar uma atenção cuidadosa sobre novas
formas de organização política revolucionária que reflita determinados anseios
positivos da massa de 2013 – deixando de reproduzir acrítica e dogmaticamente
ecos europeus do início do século passado –, ao mesmo tempo em que saiba cobrá-la
de suas inevitáveis responsabilidades sociais, parando de tratá-la como
criança.
Uma
saída revolucionária e socialista requer uma nova prática que ainda está por
ser criada. É nisso, e não nas eleições ou na institucionalidade burguesa, que
a esquerda precisa investir pesado se quiser estar à altura de um “novo” 2013!
NOTAS
[ii] ENGELS, Friedrich. Revolução
e contra-revolução na Alemanha. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/revolucao/cap01.htm
[iv] Idem.
[v] Revista Sextante, 2013/2,
Ruas Inquietas – página 100.
[vii] Conclusões expressas em http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2014/06/ensaio-sobre-os-partidos-politicos.html
(item V).
[ix] Revista Sextante, 2013/2,
Ruas Inquietas – página 101.
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