quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Sobre como o petismo tende a repetir os métodos do bolsonarismo

 

Após postar o texto Basta eleger a esquerda institucional para a situação melhorar?, publicado no dia 28 de dezembro, no grupo Magistério Público Estadual do facebook, muitos ataques despolitizantes foram feitos, o que traz à tona a importância de os analisarmos sob uma luz crítica. O grupo em questão possui uma comunidade virtual de cerca de 17 mil pessoas, sendo, portanto, uma boa expressão do que pensa e escreve o magistério público do RS. A linha política hegemônica no grupo é a petista, apesar de haver pequenos setores mais à esquerda e mais à direita.

         Cabe chamar a atenção para os argumentos (ou a falta deles) de algumas pessoas deste grupo – por serem muitos e por serem, no essencial, bizarros, selecionamos apenas alguns que sintetizam repetições recorrentes:

1) Muitos que “criticaram” o texto sequer o leram. Se por ventura o leram, não o entenderam (ou não quiseram entendê-lo porque contrariava suas convicções íntimas). O título serviu como uma espécie de barreira e já acionou gatilhos emocionais de ódio ou de aversão.

Essa observação também vale para algumas pessoas que “apoiaram” o texto, apenas lendo superficialmente o título.

2) O argumento mais utilizado para criticá-lo, sem conhecimento de causa, é o mesmo de sempre – e é tipicamente petista: “Este tipo de texto às vésperas de uma eleição só nos fragiliza”. Ou seja, não há abertura para debater o conteúdo do texto e também não se explica exatamente o motivo de “nos fragilizar”. Também não aponta qual seria o momento “correto” de se fazer essa discussão (o que nos deixa livre para concluirmos que, provavelmente, seria o dia de são nunca).

Outro “crítico” diz o seguinte: “Complicado esse tipo de discussão em determinados momentos, que aliás por esse viés levou o magistério a eleger a direita”. Aqui, mais uma vez, o “crítico” sequer leu o texto e reproduz a essência da fala anterior. Incorre no erro de pensar que o magistério sozinho pode eleger ou não um governador (o que dirá um presidente da república?). O peso eleitoral existe, mas a categoria é visivelmente heterogênea e pragmática – fruto de uma crise de direção sindical e de formação teórica que só se agrava.

Ou seja, tal como o bolsonarismo, este tipo de conduta não quer debate algum: quer apenas gado, que siga, vote e não discorde de nada. Aonde nos leva esse tipo de “crítica” senão ao total esmagamento de qualquer diferença sincera e honesta?

3) Uma “crítica”, vendo o debate por um prisma mais tacanho ainda, ataca pelo seguinte flanco: “Se não basta votar na esquerda para resolver os problemas, devemos votar em quem? Na terceira via?”. Esta pessoa certamente não se deu o trabalho de abrir o link para ler o texto, dado que nele não há em nenhum momento discussão sobre o voto; aliás, trata-se de uma crítica a uma política sindical de mais de 30 anos, que tornou-se, praticamente, uma cultura sindical. O texto analisa detalhadamente a forma de funcionamento do parlamento burguês, independentemente das eleições – portanto, observam apenas a instituição a qual as eleições visam preencher as vagas, independentemente de quem as vençam. Sobre isso, que é a essência e a razão de ser do texto, nenhum “crítico” falou uma única vírgula.

Nesse sentido são movidos por gatilhos emocionais, tal como o é a base bolsonarista, que não debate argumentos e ideias, mas simplesmente acusa e reproduz discursos de ódio (em maior ou menor medida). Espera-se que aqueles que pretendem vencer o bolsonarismo hajam com mais sagacidade e capacidade argumentativa; mas o que vemos, infelizmente, é uma espécie de movimento correlato à “esquerda”.

4) “Críticos” mais desesperados, percebendo as respostas dadas ao longo dos comentários anteriores – e provavelmente sem ler o texto também –, foram apelando cada vez mais, até que chegamos a esta mediocridade: “Discurso burro da direita. A direita sempre foi vadia por ofício e mentirosa por vício”. E outro, mais além, complementa: “Eu já imaginava que, chegando próximo às eleições, era inevitável a direita se manifestar no grupo. Faz parte. Só não entendo que colegas façam campanha contra si mesmos. Ou é um robô que cópia o mesmo texto como resposta pra todos”.

O “robô” em questão era a essência das respostas repetidas aos comentários de desprezo, dado que as “críticas” eram basicamente as mesmas: preocupação unicamente com o voto, com o apoio cego a qualquer candidato petista e o discurso fajuto de que qualquer crítica ao PT fortalece automática e irremediavelmente a direita. Seriam suas convicções políticas e os seus projetos de governo tão frágeis a esse ponto? Tudo indica que sim.

5) Certos “críticos” reproduzem frases ocas ouvidas na luta contra o bolsonarismo, como, por exemplo, a acusação de “negacionismo”. O que, por exemplo, há de negacionismo no conteúdo do texto? Ainda que o discurso de muitos petistas não seja de ódio fascista, puro e simples, tal como é o bolsonarismo, podemos perceber certa tendência à repetição e à uniformização; sendo que em alguns casos descamba para o ódio aberto. Reparem o nível: “não mando abraço pra quem luta contra o sindicato ou contra o partido de que faço parte. Aprenda a fazer uma política pública que defenda quem te defende”.

Muitos desses “críticos” julgam-se os campeões da defesa da classe trabalhadora, quando são, na verdade, parte fundamental da sua ruína. Há, na maioria dos casos, apenas uma defesa das suas condições profissionais específicas – isto é, corporativas – disfarçadas de “defesa da classe trabalhadora”.

Podemos perceber, infelizmente, tanto no grupo do facebook, quanto na prática sindical brasileira, que é cultivado um certo nojo físico pelos adversários. Não estamos trabalhando para esclarecer divergências para crescermos juntos, mas dando vazão à imposição inquestionável e, portanto, autoritária de caminhos já trilhados como “novidade” e como “única saída”. Nem no CPERS e na maior parte da militância petista, nem nesses “críticos” virtuais, há o menor vestígio de um exame de consciência. Estamos muito longe disso.

As nossas certezas de ocasião e pessoais são as principais impulsionadoras dos discursos virtuais de ataque à posições minoritárias como os apresentados acima. Argumentos pobres, vulgares, sem conhecimento de causa em sua maioria é o que tem caracterizado o miserável debate público do magistério estadual do RS. O mais engraçado é que grande parte destes “críticos” se dizem contra a direção central do CPERS, mas, na prática, como vimos, aprovam integralmente a essência da sua política.

Assim, julgando-se os campeões da democracia, este tipo de militância nada mais faz do que reforçar a (de)formação política que leva ao fortalecimento das práticas que, por sua própria natureza, só podem dar vantagem ao inimigo que supostamente combatemos: isto é, por jogar no campo do inimigo, com os seus métodos, dá vigor e força à direita e ao próprio bolsonarismo.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Basta eleger a esquerda institucional para a situação melhorar?

 

Há uma ilusão presente em diversas categorias do funcionalismo público de que basta eleger maiorias de “esquerda” para os parlamentos federal, estaduais e municipais para solucionar a situação deplorável em que nos encontramos. Lula falou recentemente sobre isso, afirmando que “não basta elegê-lo sem eleger uma maioria de ‘esquerda’ no Congresso Nacional”[1].

         O resumo dessa compreensão foi sintetizado também pela direção estadual do CPERS num dos seus últimos vídeos, lançados em razão da aprovação do “reajuste” salarial do governo Leite (PSDB e cia.) para menos da metade da categoria – como sempre, e com grande êxito, dividindo-a. Ela disse, solenemente, que: “a nossa saída é elegermos um governo de esquerda e uma maioria de esquerda na Assembleia [Legislativa do RS]. Somente isso fará com que possamos lutar para avançar”[2].

         Há quanto tempo o PT e a direção do CPERS vendem tal ideia? Qual foi o resultado dessa política sindical de “pressão sobre os deputados” e de “eleger a ‘esquerda’” (institucional – faltou acrescentar), levada a cabo por décadas dentro do nosso sindicato e nos discursos petistas, senão o aumento desenfreado de ilusões e a perda compulsória de direitos?

         Esta política fomenta o pior tipo de ilusões porque o parlamento é burguês, bem como toda a estrutura do Estado. Esperar que se possa governar para a classe trabalhadora por dentro desta estrutura apenas tendo “maiorias” é disseminar passividade, conivência e (des)ilusões para com a máquina que nos massacra e só recebe legitimidade para isso.

         Senão vejamos: se elegemos um “governo de esquerda” – tipo PT ou Psol – vamos ter algumas medidas progressivas, mantendo-se toda a podridão burguesa, dado o seu peso econômico de classe dominante. As forças políticas da burguesia tirarão, mais cedo ou mais tarde, com a mão direita tudo o que concederem à classe trabalhadora (geralmente migalhas) com a mão esquerda, tão facilmente quanto foi eleger tal tipo de governo.

         O parlamente burguês e os governos dentro do capitalismo já deram provas de que são reféns do peso econômico da burguesia, que jamais abrirá mão de influenciar o “eleitorado” por meio de fraudes abertas ou disfarçadas; sejam elas as malfadadas pesquisas eleitorais, compra de votos, de candidatos, de projetos, da opinião pública; sejam as influências legais ou ilegais sobre a justiça, as deliberações legislativas e judiciárias, pressão sobre os locais de trabalho, de moradia e de estudo, através da grande mídia, do pragmatismo cotidiano ou do próprio senso comum – sem falar na teatralidade vazia que está no cerne do funcionamento dos parlamentos, usada para acalmar os ânimos e vender “mudanças” que, a bem da verdade, só garantem a permanência do que está aí. Ao invés de tentarmos um novo tipo de programa e de trabalho de base, apenas brigamos com os colegas e conhecidos “que votam errado” e são influenciados pela máquina de marketing eleitoral dos partidos de direita, das igrejas, da grande mídia, da “justiça” eleitoral, dos parlamentos, etc. Como poderia ser diferente, sendo que a própria esquerda institucional entra nessa ciranda e a aprova integralmente?

         Mesmo que nos nossos sonhos mais belos e coloridos um parlamento fosse composto por uma maioria de candidatos de “esquerda”, o peso econômico da burguesia continuaria a influenciá-lo e a dominá-lo, de um jeito ou de outro. Pra piorar, em nenhuma encruzilhada desse tipo ela abriu mão de dar golpes parlamentares, jurídicos e/ou militares para assegurar a manutenção do seu poder. Como o parlamento é burguês, ele foi feito para dar maiorias seguras à burguesia e não à “esquerda”, que só pode ser um enfeite “democrático”, um arremedo de representatividade – ou foi mera casualidade que ao longo dos governos Lula e Dilma a bancada evangélica, do empresariado e do agronegócio não tenha diminuído?

         A direção do CPERS e o PT, como representantes do reformismo em geral, “esquecem” disso tudo e adoçam a classe trabalhadora, vendendo-lhe as ilusões mais doces e infantis, fazendo terra arrasada da história do movimento operário nacional e internacional. Enquanto estas ilusões forem preponderantes no funcionalismo público e na classe trabalhadora, veremos governo após governo, legislatura após legislatura, retirar um a um dos direitos que restam, impor novos decretos e “leis” que apenas interessam ao empresariado, direta ou indiretamente.

         Não há meio termo possível, por mais que se queira acreditar nesse meio termo. A história do país e do Estado comprova. Sem levar adiante uma ação que questione toda a estrutura política, econômica e social – o que inclui o próprio parlamento – não haverá mudança pra melhor. Nossa luta e qualquer candidato de “esquerda” eleito deveriam apostar neste caminho inexplorado e não no que adoça a classe trabalhadora, fazendo-a esperar passivamente uma mudança eleitoral – que apenas pode ser superficial e passageira, enquanto garante as condições para que nada de essencial mude na máquina política dos ricaços.

Num momento de crise de direção profunda, de desorganização da classe trabalhadora e de ascensão do neofascismo até se pode condescender que se vote em partidos reformistas e sociais-democratas, como é o caso do PT e do PSol – dentre outros. Mas jamais se deve compactuar com a venda de ilusões, tal como sempre acontece nesses casos, que afirma ser esse o único caminho possível. Este círculo vicioso só pode nos manter chafurdando na lama eterna, enquanto, obviamente, a burguesia nos olha, sorri e agradece. É a eterna loucura de esperar resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual.

         Algumas pessoas não percebem (ou não querem perceber) a relação que existe entre as armadilhas do circo eleitoral, a estrutura política e econômica ao qual o parlamento e os governos estão submetidos[3], e a retirada de direitos, as nossas misérias e derrotas recorrentes. Parte considerável dessas desgraças se deve, sem a menor sombra de dúvidas, a estas ilusões pragmáticas que parecem ser o orgulho e a certeza não apenas da direção do CPERS, mas de grande parte da sua base de sustentação[4].

Quando passamos a ignorar a experiência, tornamo-nos refém da ingenuidade; e se ela cruza certos limites, passa a ser parte do problema. A nossa saída, portanto, não pode ser ter simples “maiorias nos parlamentos burgueses” (ainda que possamos eleger parlamentares comprometidos com a sua denúncia e destruição por dentro – o que não tem sido o caso); mas, sim, lutar contra toda estrutura de poder da burguesia, o que inclui o próprio parlamento, visando criar novas instituições de poder que representem efetivamente a classe trabalhadora.

 

Referências

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Contribuição à organização do Comitê de Enlace

Esse artigo segue o debate acerca do chamado à formação de uma nova organização revolucionária no Brasil feita pela Transição Socialista (TS) em junho-agosto deste ano. O primeiro artigo do nosso blog sobre o tema foi publicado em 18 de agosto de 2021, e pode ser acessado clicando aqui. Quem assina o texto abaixo é o extinto "Grupo 1", que foi formado por um núcleo de militantes de diversas regiões do Brasil que compreenderam o processo de uma maneira semelhante.


Uma das questões que ocupou boa parte do tempo da primeira e da segunda reunião do Comitê de Enlace foi o debate sobre organização. Dado o grande número de ativistas independentes em relação às poucas organizações, é necessário repensar a proposta original feita pela Transição Socialista (TS) no sentido de testar novas formas de organização.

         As concepções organizativas hegemônicas entre a esquerda apresentam um desgaste que precisa ser reavaliado justamente porque terminam por engessar o debate, a troca democrática e, consequentemente, a política, a agitação e a propaganda. E sem mexer nessas certezas cristalizadas é provável que não consigamos animar uma nova organização revolucionária no Brasil que seja capaz de aglomerar massas e superar o petismo. Com esse documento queremos apresentar algumas ideias que precisam ser refletidas e testadas com a finalidade de buscar um novo caminho.

         Tentaremos esboçar e sintetizar algumas dessas ideias a seguir:

 

1) Para refletirmos sobre o tamanho e a importância da nossa tarefa, precisamos refletir sobre o que realmente somos. Há um erro comum cometido por quase todas as organizações socialistas e revolucionárias no Brasil que é se ver e se auto proclamar como o partido revolucionário pronto e acabado.

         Porém, precisamos pontuar que um grupo de propaganda não é um partido revolucionário. Geralmente, o primeiro é uma organização revolucionária germinal que pretende construir o segundo, mas ainda não o é; assim como uma semente de laranjeira não é a árvore e nem o seu fruto. Um partido revolucionário é uma força de massas na sociedade; sua militância se conta por centenas de milhares, não por dezenas; e ela está inserida em diversas categorias da classe trabalhadora, com uma influência sentida e refletida por ela. Um grupo de propaganda tem o papel mais restrito de fazer a semente germinar, numa fase ainda embrionária. Se já vemos a semente como a própria árvore ou a laranja, então comeremos um pequeno caroço sem suco e buscaremos uma sombra de poucos centímetros de altura. Isto é, cometeremos um disparate completo!

         Reparem o que Trotski escreveu em 1929: “O bolchevismo sempre foi forte por causa de sua elaboração historicamente concreta de formas organizativas. Sem esquemas áridos. Os bolcheviques mudaram sua estrutura organizacional radicalmente a cada transição de um estágio para o outro. No entanto, hoje, um único e mesmo princípio de ‘ordem revolucionária’ é aplicado ao poderoso partido da ditadura do proletariado, assim como ao Partido Comunista alemão, que representa uma força política séria; ao jovem partido chinês; e ao partido dos EUA, que é apenas um pequeno grupo de propaganda. (...) Um partido novo representando um organismo político em completo estágio embrionário, sem nenhum contato real com as massas, sem experiência de direção revolucionária, sem formação teórica, já foi armado dos pés à cabeça com todos os atributos da ‘ordem revolucionária’, ficando parecido com um menino de seis anos de idade que usa a armadura de cavaleiro do pai”[i].

         Isso foi escrito em uma polêmica com o stalinismo, nos albores da década de 1930, mas vale perfeitamente para a vanguarda “revolucionária” brasileira de 2021, que veste a armadura de cavaleiro do pai, mesmo tendo apenas 6 anos de idade – ou ainda menos! A maior parte das organizações de vanguarda do Brasil se ilude, querendo acreditar que a armadura esconde a sua falta de idade para vesti-la, porém, não engana a burguesia e a grande mídia. A classe trabalhadora, por sua vez, olha para elas com o mesmo ar estupefato de quem vê um indivíduo andando na rua com fantasia de carnaval em pleno mês de agosto!

 

2) Os grupos de propaganda revolucionários confundem as duas etapas e por isso suas palavras de ordem e a sua propaganda – na maioria das vezes – são estéreis e irreais, causando pouca preocupação na burguesia ou no reformismo. Por certo, um grupo de propaganda pode e deve levantar algumas palavras de ordem condizentes com o seu tamanho e intervir em categorias profissionais, mas isso está subordinado a sua tarefa central, que é a propaganda e a busca por uma nova hegemonia na vanguarda – segundo Lenin,“sem isso não é possível dar sequer o primeiro passo para a vitória”[ii]. Pobre deste grupo de propaganda se ele levanta ou reproduz palavras de ordem como se já fosse um partido revolucionário!

         Aqui devemos refletir melhor sobre que tipo de “tarefa central” de propaganda é essa? Trata-se de “pesquisar, estudar, descobrir, adivinhar, captar o que há de particular e específico, do ponto de vista nacional, na maneira pela qual cada país aborda concretamente a solução do problema internacional comum, do problema do triunfo sobre o oportunismo e o doutrinarismo de esquerda no seio do movimento operário”[iii]. Isto é, vencer o oportunismo e o doutrinarismo na vanguarda da classe trabalhadora.

Um pequeno grupo de propaganda precisa estar aberto à divergência e não ter medo delas, tal como fizeram Lenin e Rosa Luxemburgo na 2ª Internacional. Portanto, a etapa de um grupo de propaganda deve se caracterizar, antes de tudo, mais pela democracia do que pelo centralismo, dado que buscamos uma fisionomia própria no embate entre a vanguarda e precisamos oxigenar permanentemente os debates, buscando estabelecer o contato real com as massas – que é sempre muito difícil e deve, necessariamente, superar as antigas vanguardas que detêm esse “monopólio”. Para isso, novas práticas e novas buscas são fundamentais.

O centralismo democrático precisa ser construído de acordo com as condições concretas, sobretudo do tamanho, organização e inserção do partido, sendo mais o resultado e um meio de organização do que uma imposição formal e burocrática de cima para baixo, empregada através do voto formal. É preciso respeitar os diversos níveis de consciência da militância e da massa em geral, para, aí sim, intervir sobre ela. Se, negando a realidade, nos consideramos o partido revolucionário e não um grupo de propaganda, então a chance de colocar os pés pelas mãos e nos imiscuirmos em picuinhas e desconfianças intermináveis é gigantesca!

E para nós, mesmo que o Comitê de Enlace seja formado com sucesso a partir daquele número de presentes nos dias 18 de setembro e 30 de outubro, ainda sim será um grupo de propaganda revolucionária e não um partido revolucionário já construído.

 

3) Considerando todos estes aspectos desenvolvidos nos pontos 1 e 2, sugerimos que inicialmente o Comitê de Enlace se organizasse em forma de uma frente de ligas, organizações ou de indivíduos. Esta “frente” teria o papel de convergir, apresentar as divergências, debatê-las; mas, sobretudo, trocar informações, experiências e práticas. Saber ouvir sem segundas intenções ou imposições. Nesse sentido, podia ser eleito um comitê executivo – uma espécie de conselho geral, tal como existia na 1ª Internacional – que tivesse a finalidade de organizar reuniões, formações, publicações, encontros, etc.

No âmbito dessas questões pode-se e deve-se votar em reuniões, mas não obrigar a centralização em debates políticos públicos que expressem diferenças profundas. O que não pudesse ser resolvido destas questões nas reuniões do comitê executivo, deveria ser levado para reuniões mais amplas (uma espécie de “assembleia”, tal como a ocorrida nos dias 18/09 e 30/10), onde todos os/as presentes tivessem direito à voz, voto e publicação de textos para o debate.

O mais importante deste processo é não forçar supressão de divergências, criar confiança por outros laços; debater e esclarecer posições divergentes; valorizar as convergências; publicar as posições divergentes para que a vanguarda e o próprio Comitê de Enlace possam conhecer e crescer com elas. Em síntese, devemos fazer o inverso do que a vanguarda de “esquerda” fez até hoje: aprendermos a nos fortalecer com as divergências, com formações e discussões honestas/fraternas e abertas. Atuar conjuntamente nos pontos em que se têm convergências naturais, nascidas deste processo. Respeitar e ter paciência com as diferenças.

 

4) Na era digital, onde tudo praticamente vem sendo feito online, é muito ruim que não tenhamos contato permanente com o pessoal que participa das reuniões. Por isso foi sugerido a criação de um fórum de e-mails e um grupo de whatsapp, geridos pelo Comitê Executivo, para todos e todas que quiserem participar. Evidentemente que estes espaços têm a finalidade de divulgação de materiais, posições e, obviamente, para que possamos nos conhecer melhor.

         As instâncias decisórias são outras: as reuniões do Comitê Executivo e as “reuniões gerais” (tal como as ocorridas nos dias 18/09 e 30/10). Estes serão os fóruns corretos de deliberação e discussão, sendo o grupo de e-mails e de whatsapp apenas uma forma extra e complementar de comunicação. Por fim, achamos ruim o que foi aprovado no dia 30 de outubro; isto é, que só grupos e organizações tenham “direito a voto e à produção e circulação de textos nos órgãos de discussão do Comitê de Enlace”. Dado o tamanho e as possibilidades tecnológicas, este direito, respeitando-se as principais pautas e discussões coletivas, devia ser estendido para gerar mais reflexão e menos burocracia na divulgação de ideias e críticas.

         Houve, assim, uma limitação de possibilidades auto imposta, voltando os olhos de todo mundo pra trás, e não pra frente. Ao contrário do que muitos pensam ao defender e aprovar tal proposta, isso nada tem de leninismo. Isso te a ver, de fato, com um leninismo formal, que ignora o realismo revolucionário de nos olhar, tal como somos; e, portanto, repete fórmulas ao invés de buscar desenvolver o verdadeiro realismo leninista[iv].

 

5) Um belo exemplo de como não agir: o editor do blog Espaço Marxista narra a formação, nos anos 2014/2015, da Frente Comunista dos Trabalhadores[v]. Após sadias relações na fase de “comitê paritário”, decidiu-se estreitar os laços e formalizar uma organização propriamente dita (e não a “confederação” de grupos e militantes, como era até então). Assim, se quis dar um passo maior do que a perna, num momento em que as condições não estavam maduras para tal.

Rapidamente a Frente entrou em decadência. Pareceu claro que o grupo maior, a Liga Comunista, na verdade “incorporou” os demais, a ponto de querer impor resoluções próprias (isto é, anteriores ao nascimento da Frente e que, portanto, não foram debatidas no novo espaço – quis, assim, crescer artificial e formalmente). À medida que as diferenças se fizeram mais transparentes, a Liga Comunista agia como fração monopolista na nova Frente, mobilizando seus membros em ataques contra o editor do blog, como é de praxe em organizações burocratizadas e hegemônicas na “esquerda”.


Grupo 1



Referências

[i] TROTSKI, Leon. Stalin – o grande organizador de derrotas; A III Internacional depois de Lenin. Editora Sundermann, São Paulo, 2010 (página 206 – grifos nossos).

[ii] LENIN, Vladmir. Esquerdismo, doença infantil do comunismo.  Editora Expressão Popular, São Paulo, 2014 (página 140).

[iii] Idem, página 139.

[iv] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/a-essencia-do-leninismo.html

[v] Ver: https://espacomarxista.blogspot.com/2020/09/espaco-marxista-2015-2020.html e https://espacomarxista.blogspot.com/2015/09/balanco-e-resolucoes-do-1-congresso-da.html

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Por que a classe trabalhadora brasileira ainda acredita em Lula?

Uma abordagem a partir da psicologia de massas


“Oh filósofo que não vê nada além do instantâneo,
como é estreita tua visão!
Teu olho não está feito para seguir o
trabalho subterrâneo das paixões”.
(Goethe)

         Mesmo com o desgaste dos governos petistas e toda a campanha midiática contra Lula, a maior parte do povo brasileiro segue tendo inúmeras ilusões resultantes das esperanças em sua possível eleição em 2022. Excetuando-se a propaganda direta da máquina eleitoral petista – que se estende dos publicitários das grandes agências de marketing até os aparatos sindicais –, e da propaganda indireta da grande mídia e das instituições estatais, que exercem profunda influência no inconsciente coletivo e no imaginário do país, há causas que precisam ser procuradas na relação entre o discurso oficial do PT e a psicologia de massas.

         Também há o elemento faltante: o que a ausência de um discurso, um trabalho de base, somado a uma agitação e propaganda coerentes por parte da esquerda “revolucionária”, facilitam e credenciam as ilusões no petismo? Até onde esses fatores poderiam desfazer ilusões e até onde a sede das massas humanas por consumir discursos que lhe acalmem as ansiedades e preocupações, tal como um filho em desespero anseia pelo consolo do colo dos pais, impede o seu entendimento político?

         Nota importante: neste texto não se leva em consideração as mentiras escabrosas da grande mídia burguesa baseadas na fraudulenta Operação Lava-Jato contra Lula e o PT. Tentaremos compreender a influência que Lula exerce sobre o imaginário da classe trabalhadora no sentido de paralisá-la e fazê-la esperar, freando e abortando qualquer processo revolucionário no país.

 

Lula cultiva e rega as flores da ilusão tal e qual um jardineiro

         O Brasil é um país construído sobre bases católicas. Toda a mitologia cristã, com seus inúmeros signos e hierarquias morais, pesam sobre o inconsciente coletivo e o imaginário da nação. A visão católica de mundo reflete-se, antes de tudo, sobre a forma de funcionamento da sociedade. Ao contrário do que julga grande parte da “esquerda revolucionária”, a classe trabalhadora não representa um antídoto por si mesma ao capitalismo, uma vez que está inserida nesse contexto e reproduz em maior ou menor medida todo este relicário de esperanças cristãs.

         Dentre as esperanças mais cultivadas está a espera de um “salvador da pátria” – um messias –, que fará por nós tudo o que precisamos e nos redimirá do mal, evitando confrontos, crises, guerras e revoluções. A história do Brasil está repleta de ilusões como esta, resultante, sobretudo, destas compreensões messiânicas. Lula e o PT cultivam estas ilusões. Falam o que o povo está acostumado a ouvir nos discursos da religião, só que de outra maneira.

 

O messianismo está presente também na “esquerda revolucionária”

         Alguns poucos setores da “esquerda revolucionária” já se deram conta do problema da espera pelo messianismo presente no proletariado brasileiro, tanto que criticam a saída eleitoreira de um “salvador da pátria”. Porém, não percebem que a sua idealização da massa substitui o “salvador da pátria” encarnado em uma única liderança política, transferindo este signo para o coletivo abstrato que é a massa humana, que “virá nos redimir” através de uma sublevação espontânea e redentora.

         Certamente esperamos um ascenso de massas que seja capaz de varrer a podridão da política burguesa e da sua sociedade, tal como demonstraram alguns processos revolucionários ao longo da história. Porém, temos que trabalhar com a massa real, tal como ela é: cheia de contradições e desvios moralistas, burgueses, patriarcais, religiosos; e, sobretudo, precisamos insuflar-lhe consciência de sua devida responsabilidade social, procurando analisar no concreto a sua mudança de postura, e confrontando-a permanentemente com suas próprias contradições. Inclusive devemos fazer um longo trabalho de base que combata a sua espera por um milagre vindo de um “salvador da pátria”: tarefa longa, dificílima e impopular, renegada pela “esquerda revolucionária”.

         É de uma massa que cresça dentro desta perspectiva difícil que podemos “esperar” alguma reação revolucionária que supere a deplorável situação em que o nosso país se encontra e prepare as bases para uma revolução socialista.

Por alimentar ilusões que são familiares, o discurso petista tem um apelo popular que não é compreendido pela “esquerda revolucionária”

         Há uma profunda apatia na classe trabalhadora brasileira fruto de vários fatores, mas, em particular, da utilização demagógica da psicologia de massas pela direita (bolsonarismo, partidos da elite, grande mídia, igrejas evangélicas, etc.), de um lado; e pelo petismo, por outro – sendo um o peso da gangorra para o outro. O espírito de rebanho, por exemplo, é cuidadosamente cultivado por ambos os lados nestes discursos oficiais de poder real e simbólico.

         O petismo, por seu turno, propõe uma mudança conservando esse espírito, só que com uma ênfase “popular”. É evidente que teremos aí um discurso sedutor, que será a antípoda do discurso da direita oficial, embora por estar dentro da ordem e conciliar com a nata da elite nacional, não pode ser capaz de derrota-la completamente, dado que o seu projeto programático e a sua conduta política é incapaz de resolver os grandes e graves problemas estruturais do país, deixando o caminho em aberto para novos e piores golpes de Estado.

         As palavras de ordem, ações e trabalho de base da esquerda “revolucionária”, por sua vez, soam irreais ou causam pavor na massa humana – em sua maioria não são sequer compreendidas. Ela não desfaz os estragos demagógicos do reformismo, nem se preocupa com os desvios internos da massa, já que ela é idealizada messianicamente. O seu “trabalho de base” não enfrenta suas hipocrisias cotidianas, sem o quê é impossível ajuda-la a superar as ilusões petistas e reformistas. Mais do que isso: ela surfa nessas hipocrisias; e ao proceder dessa forma, não se ilude simplesmente, mas ajuda a massa humana a se iludir.

         Já os discursos de Lula e do PT soam como “realistas” em contraposição aos da esquerda “revolucionária”. São os únicos que parecem ser “viáveis” (seja pelo peso nos movimentos sindicais e sociais; seja pela carta branca direta ou indireta que lhe é dado pela grande mídia e pela estrutura oficial, beneficiada diretamente por essas ilusões). Essa noção esperançosa de que o PT é o “único viável” reflete a visão atual da classe trabalhadora e o seu eleitoralismo latente. Dentro desta visão, as eleições são vistas como a “única possibilidade de mudança” – e, para se tirar qualquer dúvida, basta ouvir os comentários nos locais de trabalho, estudo e moradia. Sem compreender as ilusões da psicologia de massas e sem realizar um longo trabalho de base que combata o messianismo, a esquerda revolucionária pula por cima de tudo isso e prega uma saída revolucionária que não é compreendida (e muitas vezes não quer ser compreendida).

         A tentativa da esquerda “revolucionária” de desejar tudo logo e já no “concreto” é uma das origens do espanto causado na massa. Pretender que se possa realizar todo o programa socialista perfeitamente e numa tacada só transforma-se numa espécie de fanatismo. Tudo o que é existente pode ser transfigurado e transformado, mas nunca se converte no absoluto, no perfeito, no infalível, na totalidade. Nesse sentido, sua agitação e propaganda acabam rompendo as poucas pontes que existem com a massa.

         O PT de Lula desponta como a única “esquerda realista” e “possível” (como já foi dito, não sem o ativo apoio do Estado e da grande mídia) porque a despeito do seu oportunismo descarado, sabe convenientemente levar em consideração elementos da realidade. Já a esquerda “revolucionária” não consegue agir desse modo, pois está cega por este “fanatismo” totalizador; além disso, não consegue estabelecer um trabalho de base coerente, com uma agitação e propaganda que quebre ou sequer arranhe essas ilusões. Talvez aja assim por medo do novo ou mesmo por idealizar a massa, que é vista sempre como ingênua e enganada por “direções traidoras”, sem querer perceber a dialética da interdependência que existe entre “massas enganadas” e “direções traidoras” na psicologia de massas.

         Aí está um dos maiores calcanhares de Aquiles desta esquerda no momento: a ausência de preocupações e debates acerca da psicologia de massas, ignorando a necessidade de formular um programa e uma abordagem em relação a ela. Sem entendê-la não há possibilidade de quebrar os seus efeitos. Simplesmente afirmar repetidas vezes que “Lula é burguês”, “traidor”, “antissocialista”, não resolve o problema da ausência das outras condições, como um trabalho de base prolongado que enfrente as contradições da psicologia de massas, pois se choca prematuramente com as suas ilusões, cuidadosamente cultivadas por várias esferas de poderes simbólicos e reais que não são combatidos e sequer compreendidos. O que temos que descobrir é como realizar um trabalho de base para implementar um programa que quebre progressivamente estas ilusões e não as reforce, como tem acontecido até agora.

 

O diálogo petista com a meritocracia presente na psicologia de massas da classe trabalhadora

         Ao contrário do seu discurso e apesar dos 14 anos à frente do governo federal, o petismo não ganhou a consciência popular para o que seria um projeto nacional, nem combateu seus preconceitos burgueses. Ao contrário: reforçou a falta (ou confusão) de projetos e reforçou a mentalidade burguesa através da “integração social a partir do consumo” – todos elementos aceitáveis e incentivados pelo neoliberalismo. Orgulha-se da sua falta de teoria (e, consequentemente, de projeto) – conduta que vende como “não dogmática” e “adaptada à realidade”.

         O que é visto e sentido pela população pobre como o “projeto petista” é, simplesmente, o aumento do consumo através de programas sociais e a facilitação do ingresso dos mais pobres nas universidades. São medidas importantes para um país de desigualdades gritantes e que matam, mas não se sustentam sem um projeto de longo prazo que se enfrente com o sistema vigente, até porque podem ajudar a reciclá-lo, reforçando as desigualdades sociais por todos os outros canais (sem falar que as universidades são burguesas e, portanto, criarão conteúdo de classe e formarão pessoas comprometidas com essa concepção). Não casualmente, o governo Temer e Bolsonaro cortaram uma a uma dessas medidas “progressistas” dos governos petistas sem maiores dificuldades.

         Segundo Jessé Souza, insuspeito de antipetismo, “os pobres são pragmáticos. Eles percebem a política como um jogo sujo e corrupto dos ricos e querem saber quem, no final das contas, vai ajuda-los de algum modo efetivo”[1]. Assim, podemos concluir que o verdadeiro projeto político petista – que encontra amplo eco em um povo marcado pelo “pragmatismo da miserabilidade e da fome” – está assentado numa espécie de meritocracia burguesa não declarada (assim como o atual identitarismo[2]). A imagem popular do petismo apenas facilita a manutenção e propagação de valores ideológicos burgueses, vendidos como “emancipação social” através de projetos sociais muito limitados – embora Jessé não reconheça essa armadilha, nem combata este tipo de falsa “emancipação”.

         É importante ressaltar que esse engodo “meritocrático-popular” não seria possível se não houvesse uma propensão na população mais pobre em aceitar e vibrar com a ideologia de “vencer pelo próprio esforço individual” (tipo discurso de Uber, de self-made-man) e de certa admiração e respeito religioso às fortunas individuais que ela entende ser nada mais do que o resultado de um suposto esforço individual; nem vê nada de errado nas taxas de juros escorchantes praticadas pelos bancos, já que tudo isso é sentido como um “direito dos ricos” (sempre com a justificativa de que “não entendemos de economia, então o que fazem deve estar correto”).

         Nesse sentido, há uma manipulação histórica muito bem feita das suas ideias, dos seus “valores morais”, do seu sadismo e das suas emoções primárias pela grande mídia, pela moral social, pelas escolas e universidades, pelas igrejas; em síntese, pela estrutura oficial. A esquerda “revolucionária” não quer compreender esta mentalidade da massa – já que a enxerga de forma idealizada – e, por isso mesmo, sequer arranha tais fortalezas ideológicas da burguesia, que seguem operando e alimentando o aparente “realismo” do caminho petista.

         Olívio Dutra, um dos poucos petistas críticos ao partido, afirmou: “fizemos concessões a um tipo de política em que as negociações de cúpula valem mais do que o envolvimento do povo. O PT caiu na vala comum dos outros partidos. E nós não mexemos nessa estrutura, não fizemos reforma política séria, nem reforma tributária, nem reforma agrária, nem reforma urbana, que ficou tudo no Judiciário. Continuamos dando isenção tributária a grupos poderosos. Nós não mexemos nessas coisas”[3].

         Tal declaração, sincera e pouco comum nos meios petistas, não abala em nada a esperança da massa na reeleição de Lula como “única saída”, mesmo que absolutamente nenhuma vírgula dessa crítica tenha se modificado ou vá se modificar. Este “pragmatismo” resultante da miserabilidade continua sendo o seu principal norte – o que é um perigo, para se dizer o mínimo.

 

Lula e o PT dialogam com as ilusões e não propõem nenhuma tarefa política que ultrapasse ou abale essas ilusões

         A concepção política de quase toda a “esquerda”, mas em especial de Lula e do PT, está pautada, como se disse, pela visão messiânica e semi-religiosa. Para Lula e o PT isso está absolutamente tranquilo e é exatamente isso que significa, para eles, “dialogar com a massa e a classe trabalhadora”. Por exemplo: Lula busca uma aliança desesperada com as igrejas evangélicas – as quais, em sua maioria, estiveram envolvidas no golpe de 2016 e são bases ativas do governo Bolsonaro –, afirmando, demagogicamente, que “sempre teve jeitão de pastor” e que “o lugar natural dessas igrejas seria militando no PT”[4].

         Lula também tem dito seguidamente que “não adianta apenas elegê-lo se os latifundiários e a ‘direita’ têm maioria no Congresso Nacional”[5]. Este é sempre o dilema petista, refém das eleições e das instituições democrático-burguesas. Se vence o pleito presidencial em 2022, esbarra no velho problema da sabotagem via a maioria-minoria no parlamento burguês. No entanto, o petismo e a “esquerda” brasileira não se preocupam quase nada com a questão do Estado – isto é: quais são as instituições políticas novas, que sejam a representação da classe trabalhadora e do povo pobre organizado, que serão colocadas no lugar das corrompidas e irreformáveis instituições da democracia burguesa, voltadas a nunca dar uma maioria segura à classe trabalhadora (até porque quando ela por ventura a conquiste, sofre e sofrerá sempre golpes violentos para reduzi-la a uma “minoria perseguida”)?

         O problema não é, nem de longe, apenas o de conquistar a maioria no parlamento, mas é estrutural, econômico e político. Alimentar ilusões nas eleições é alimentar ilusões no atual Congresso Nacional, que governa sempre contra o povo e é, antes de tudo, um balcão de negócios para os endinheirados. Aliás, a atual estrutura internacional do capitalismo é marcada pelo controle das transnacionais e da perda de força política decisória por parte dos Estados nacionais frente à pequena elite financeira que controla essas megaempresas e grandes bancos internacionais.

         A tarefa central é criar instituições políticas que representem a classe trabalhadora organizada e que busquem destruir conscientemente este atual controle político e econômico da burguesia ligada ao grande capital, substituindo-o por um controle popular. O PT – e a maioria da esquerda – é inimigo deste projeto (a outra parte, que se diz “revolucionária” é vaga sobre isso e não apresenta nada, a não ser o seguidismo às esquerdas com maior influência política e sindical).

 

O problema das novas instituições e da apatia das massas

         Este blog tem insistido, quase solitariamente, que de nada adianta gritar “fora Bolsonaro”, “fora este ou aquele”, clamar por “greve geral”, propor mil ações radicalizadas sem um contexto coerente, sem correlação de forças, sem partido revolucionário organizado e com influência de massas – em síntese: sem nada novo para propor no lugar do que se critica e combate! O resultado é o crescimento do desespero, da confusão e, obviamente, do suposto “realismo” de projetos como o do PT. Ao invés de desmascará-lo, se reafirma sua imagem de “sensato” e “único viável”.

         Por outro lado, sabemos que o oportunismo demagógico do PT e da maioria da esquerda reforça a apatia das massas e “dialoga” com seus desvios e ilusões. O resultado é o surgimento de um sério problema: ao não se proporem fazer experiências revolucionárias com os movimentos sociais, sindicais e estudantis, a classe trabalhadora tende a não apontar para nenhuma forma organizativa e institucional diferente, deixando-a refém de um círculo vicioso infernal no qual ela sempre perde. Por exemplo: em fevereiro de 1917 a classe operária russa apontou para os conselhos populares. No Brasil e no mundo atual as mobilizações e rebeliões apontam para onde?

         O petismo, evidentemente, não tem o menor interesse em se perguntar sobre essas questões incômodas. Vê a limitação imposta por ele próprio ao movimento independente da classe trabalhadora, o seu controle burocrático dos sindicatos e as ilusões eleitorais na república burguesa cuidadosamente cultivadas como a “única saída”. Ao senso comum, ao movimento espontâneo, isso termina por soar, definitivamente, como a “única saída”.

         Mas o que tem feito a dita esquerda “revolucionária” (tipo PSTU, setores do Psol e centenas de organizações menores)? Percebemos que da sua parte não há nenhuma preocupação com a ausência de apontamentos de formas organizativas e institucionais alternativas para a classe trabalhadora. Basta estar eternamente “na rua”, “na luta”, em “movimento”, gritando “fora este ou aquele”, chamando “greves gerais”, mesmo que não haja a menor correlação de forças e nada novo para por no seu lugar; nem que todas estas “propostas” incentivem as piores ilusões, um espontaneísmo bárbaro e a mais rasteira submissão às direções hegemônicas – algumas burguesas – que inevitavelmente irão controlar todo o processo. Jura que, contra todas as evidências, a simples “denúncia” das direções traidoras irá fazer brotar, messianicamente, uma alternativa.

         Há que se reconhecer – como foi dito mais acima – para reforçar a importante ideia de que, de fato, o petismo e “oposições” como o Psol impedem o surgimento de alternativas, já que canalizam tudo para as instituições da república burguesa. Esta “esquerda” institucional (ou liberal, se preferirem) está plenamente integrada à institucionalidade burguesa, fazendo um trabalho de base, uma agitação e propaganda dentro deste estrito ponto de vista. Assim sendo, combaterá qualquer possibilidade de aprofundamento da crise institucional ou de uma nova institucionalidade que questione a existente – inclusive irá apelar para discursos de “realismo” e de “única saída possível”.

         Embora tudo isso explique muita coisa, encerra apenas uma parte da realidade, deixando outros flancos perigosos em aberto. Por exemplo: há uma nova apatia na classe trabalhadora, fruto de vários fatores descritos nesse texto (e outros tantos não abordados), mas que é cuidadosamente cultivado pela burguesia através da sua oficialidade social, pela grande mídia, redes sociais, igrejas, etc. O problema da psicologia de massas hoje está sob total controle da burguesia – em especial da burguesia neofascista – e é absurdamente ignorado pela esquerda “revolucionária”, que pensa ter todas as respostas.

         O primeiro passo é se apropriar dessa discussão com urgência e adaptá-lo a debates de formação, a um trabalho de base, uma agitação e propaganda de longo prazo; o segundo é desenvolver um método – que hoje não existe – para conseguir desenvolver responsabilidade social com consciência de classe, levando a que o proletariado, hoje apático e conformado, passe a ter iniciativa com e para além das direções. Nesse sentido, há que se levar em consideração que nos momentos de crise a massa humana, pelo peso da inércia histórica, tende a ir à direita, e não à esquerda, como se espera. Isso aumenta ainda mais a responsabilidade do elemento consciente de uma revolução – isto é, de sua direção. Mas o problema é que a repetição de fórmulas prontas, supostamente leninistas e, em particular, egocêntricas e apegadas a disputas secundárias e fechadas em si mesmas, não abrem o caminho para uma nova prática. É necessário combater o espírito de rebanho, presente na massa humana, e abrir caminho para um novo trabalho de base e uma nova prática.

         O resultado inevitável deste círculo vicioso é o ressurgimento do petismo como uma suposta “alternativa viável”. Para romper este eterno retorno ao ponto de partida do proletariado do país, há que se levar em consideração os novos avanços científicos – como a psicanálise, por exemplo –, procurar novas formas organizativas, mais condizentes com a realidade da classe trabalhadora brasileira e se basear criticamente nas experiências socialistas do passado, sabendo usa-las como referência, e não como dogmas.

         Os pontos destacados neste artigo dão o ponta pé inicial para buscar novas explicações acerca do porquê a classe trabalhadora brasileira ainda acredita em Lula, mas, certamente, não explica tudo. Toda crítica honesta (e não ressentida) em contrário será não apenas bem vinda, como necessária para o avanço da luta por uma sociedade socialista.

 

 

Referências


[1] SOUZA, Jessé. A guerra contra o Brasil. Editora Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2020 (página 180).

[2] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/02/os-meritos-e-os-perigos-do-identitarismo.html

[3] Citação extraída do Jornal “A verdade”, julho de 2021, nº240, ano 21, página 12. Ver também: https://www.cartacapital.com.br/politica/olivio-dutra-o-pt-se-acomodou-em-um-processo-de-exercer-poder-e-ter-cargo-8104/ e https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2014/12/PT-caiu-na-vala-comum-dos-demais-partidos-avalia-Olivio-Dutra-4656630.html

[4] Ver: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-04/o-que-significam-os-estranhos-elogios-de-lula-a-bolsonaro.html (grifos nossos).

[5] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=1Evq2dx1ZNQ&ab_channel=RESISTENTES (citação de Lula por volta de 1h08min da live).

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Linguística saussureana e o “êxtase” no erotismo feminino de Anaïs Nin

ÊXTASE. Para a escritora de literatura erótica, Anaïs Nin (1903-1977) – nascida na França e inserida no círculo de produção literária norte-americano, ao lado de um dos maiores escritores de literatura pornográfica do século XX (Henry Miller) — o êxtase, em paráfrase, nada mais é, do que o momento de conexão (na mulher) entre o útero e o coração quando se fundem em um mix de prazer e amor.  Sensação forte, e rara que se espalha como ondas elétricas pelo corpo. Além disso, seu significado é definido por alguns dicionários como um estado emocional em que um indivíduo entra em transe com a intensificação de vários sentimentos, como o prazer, a alegria, o medo. É, ainda, uma palavra utilizada por muitas pessoas para descrever o ápice de uma relação sexual ocidental: o orgasmo.

Tomando essa palavra, que tenta traduzir o quase intraduzível como exemplo e partindo da teoria linguística formulada por Ferdinand Saussure (1857-1913) e expressa por seus colaboradores e alunos no livro Curso de linguística geral, podemos responder as duas seguintes questões: O que é um signo linguístico? Quais são os conceitos de significado e significante?

O signo, aqui, é diferente de uma ideia generalizada, não é simplesmente a “palavra”. Para Saussure, o signo linguístico é uma entidade psíquica constituída de duas faces: a imagem acústica e o conceito. A imagem acústica é som que não é pronunciado no campo físico propriamente dito, mas no campo psíquico, ou seja, interiormente. É o que ele chama de significante. No exemplo acima, a leitura interiorizada que fazemos da palavra “êxtase”, seu som, que não é um som na realidade exterior, é a imagem acústica que constitui o signo. Já o conceito de um signo linguístico é um “fato de consciência”. É a definição. Saussure o chama de significado. No exemplo acima, a explicação, aqui parafraseada, da autora sobre o que seria esse sentimento é o seu significado específico. Os conceitos expressos, tanto pelo dicionário, quanto pela autora são os significados possíveis para descrever o que essa palavra representa.

Há ainda, duas características importantes sobre o signo linguístico segundo o autor. Uma delas é a ausência de causa lógica ou natural para a interligação de significante e significado, que foi chamada de arbitrariedade. É, com isso, uma relação arbitrária. Essa proposta que surge como uma divergência à ideia da convencionalidade (convenção), defendida por W. D. Whitney (1827-1894). Sendo assim, na teoria saussureana, não se tem uma explicação lógica sobre o porquê de ser a palavra “êxtase”, com essa imagem acústica, a representar esse sentimento humano designado por esse conceito. Por isso, se diz que a relação é imotivada, sem motivações. Além disso, outra característica importante dos signos é o caráter linear do significante dada a impossibilidade de reprodução de duas palavras ao mesmo tempo, seja no meio físico, seja no psíquico, dada a sua natureza acústica. Esses são os principais aspectos dos signos linguísticos. 

De forma sintética pode-se dizer que o signo linguístico possui duas partes principais: a imagem acústica (= significante) e o conceito (= significado). Que a relação entre ambas as partes é arbitrária. E que o significante tem caráter linear. O significante da palavra “êxtase” é seu som mental produzido durante a leitura. E o conceito é o significado como costuma aparecer nos dicionários ou nas descrições literárias consideradas por cada autor ou autora que desenvolve o tema. No exemplo abordado, o signo tem seu conceito elaborado de forma íntima e profunda sob a perspectiva dessa artista, Anais Nin, que foi uma das pioneiras na história a escrever sobre o tema do erotismo por um viés feminino e encantador: de quem usa sua sensibilidade e fluidez como força, abrindo caminhos e possibilidades às futuras gerações.