quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Uma resposta ao chamado da TS

 

O agrupamento revolucionário Transição Socialista (TS) lançou um manifesto para a vanguarda brasileira intitulado Chamado à conformação de uma nova organização revolucionária[1]. Tal manifesto tem a boa preocupação de tentar reagrupar e reorganizar os ativistas revolucionários que se encontram espalhados pelo país, frente ao fato de que a maior parte da “esquerda” institucional está adaptada às estruturas oficiais da sociedade burguesa.

         O texto inicia com um balanço duro sobre a adaptação desta “esquerda” ao longo dos governos petistas, criticando em particular a chamada “esquerda socialista”, que, segundo o manifesto, “não passou pela prova de fogo”[2]. De fato ela não passou, pois se manteve refém das práticas petistas, reformistas, autoritárias e burocráticas, reproduzindo, no geral, discursos e pensamentos dogmáticos que não foram capazes de fazer frente à influência petista sobre a classe trabalhadora. O chamado da TS nos permite uma revisão desta influência, abrindo margem para uma reflexão sobre qual é a estratégia para a superação do petismo, sem o quê, como aponta o texto, não haverá possibilidade de criação de uma organização revolucionária no nosso país.

Contudo, as explicações presentes nos tópicos A, B e C do ponto 2 do texto são insuficientes, dado que não avançam além do que já foi acumulado teoricamente pela vanguarda e tendem, portanto, a olhar apenas uma parte do problema (sem falar no ponto C, que deveria sim mesclar as tarefas democráticas e de “libertação nacional” com a transição ao socialismo para não cometer o mesmo erro do PT e do reformismo em geral, que as dissocia; ou do ultraesquerdismo, que só lembra do “socialismo”).

         Como o chamado diz – e se tem acordo com isso –, a maior parte da esquerda socialista se alinhou direta ou indiretamente ao PT e, por isso mesmo, não gerou nada de novo. Isso se deu, em grande parte, porque não houve um movimento do proletariado brasileiro que gerasse tendências reais que pudessem dar suporte a outras formas de organização e, em particular, de duplo poder. O chamado da TS traz várias citações de episódios recentes da história política de massas do Brasil que foram importantes – excetuando-se as mobilizações pelo “Fora Dilma” que tinham uma natureza reacionária, com o quê, certamente, haverá divergências por parte dos camaradas –, mas não assinalaram, por exemplo, que a classe trabalhadora não apresentou formas organizativas embrionárias que apontassem para a superação das instituições burguesas – tal como as mobilizações “espontâneas” em fevereiro de 1917 na Rússia.

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         As análises apresentadas acima nos forçam a tirar algumas conclusões contraditórias e angustiantes: 1) o elemento consciente passa a ter um papel ainda mais importante do que teve nos processos revolucionários do século XX – embora a esquerda entenda isso de forma muito limitada; 2) as vanguardas conscientes estão cada vez mais isoladas da massa em geral, ao passo que estas demonstram tendências para se aproximar da direita mais reacionária.

         O próprio texto da TS reconhece que há uma “impotência no proletariado brasileiro”, já que o ápice de sua construção social foi o PT. Apesar de todos os elementos negativos desta experiência, ela nos deixou lições importantes. Devemos reconhecer, forçosamente, que houve uma espécie de estagnação do proletariado brasileiro nesta fase petista. Nada de novo tem vingado para além desta experiência político-eleitoral de massas da classe trabalhadora, expressa pelo petismo. Temos, por isso mesmo, que perguntar o que estaria por trás desta “impotência”? Como renovar a nossa agitação e propaganda com a finalidade de superar essa impotência? É difícil responder tais questionamentos porque a história não se faz por encomenda, mas é possível arriscar alguns palpites para pensarmos conjuntamente. Nessa busca é imprescindível renovar nosso arsenal levando em consideração um elemento até então ignorado pela esquerda: o debate acerca da psicologia de massas.

         Por exemplo: a TS afirma que “não restou dúvida a ninguém de que o PT é um partido burguês como os demais (ou até melhor para a burguesia do que os demais, pois controla os ‘movimentos sociais’)”[3]. Esta conclusão é genérica e muito avançada para a massa, pois iguala conclusões de pequenos setores da vanguarda ao pensamento da massa em geral. Compreendo que apenas alguns setores de vanguarda concluíram que o PT é “um partido burguês até melhor para a burguesia do que os demais partidos burgueses porque controla os movimentos sociais”. A massa concluiu apenas que o PT é um partido como os demais. Chegou a esta conclusão precária e genérica a partir dos diversos escândalos de corrupção que o partido se envolveu, bem como pela grande campanha supostamente contra a corrupção na política desencadeada pela mídia burguesa (tipo Lava-Jato por exemplo).

         A partir dessa conclusão precária e limitada, a massa evoluiu à direita e não à esquerda, voltando-se para o bolsonarismo[4]. A suposta “esquerda socialista” evidentemente contribuiu para isso de uma forma ou outra, dado o seu nível teórico, político, propagandístico e programático, mas existem tendências confusas e contraditórias nas massas que são perigosamente ignoradas pela “esquerda”. Na medida em que houvesse uma evolução da massa para a esquerda, ela se sacodiria e jogaria para longe – ou, pelo menos, colocaria em uma crise profunda – as pequenas e grandes organizações da classe trabalhadora, apontando para novas tendências políticas e de organização. Mas não houve: ela foi à direita! O doutrinarismo desta “esquerda”, completamente descolado da realidade, também ajuda muitas vezes pavimentando o caminho da direita.

         Uma das questões essenciais para uma futura organização revolucionária é se debruçar sobre esses problemas graves que envolvem a psicologia de massas da classe trabalhadora e do povo em geral. Portanto, não se trata apenas de ilusões reformistas e eleitoreiras que são disseminadas, dentre outros, pelo PT, mas, sobretudo, de entender a psicologia de massas e o conservadorismo que vive em seu seio.

         Podemos perceber através do estudo deste tipo de psicologia que há uma tendência muito forte na massa humana de querer ficar sob tutela de algum tipo de líder. Por exemplo, se lhes déssemos a mais ampla independência, desatássemos as suas mãos, ampliássemos suas liberdades, enfraquecêssemos sua tutela, ela imediatamente pediria o retorno dessa ou de outra tutela. Este sentimento é muito forte e decisivo para ser ignorado. Não estou afirmando que se trate de uma força invencível, mas de que é necessário o levarmos seriamente em consideração. E esta perspectiva está definitivamente fora das preocupações das organizações “revolucionárias” no geral, bastando afirmar: “venham a mim e ao meu programa correto, criancinhas”!

         Estas “criancinhas”, contudo, insistem em voltar-se para um líder “carismático” e populista, seja ele Mussolini, Hitler, Franco, Bolsonaro ou Lula (o Psol já trabalha para formar os seus). Será que nunca ocorreu à esquerda “revolucionária” perguntar por que isso se repete tanto? O que é preciso para renovar as suas práticas, agitações e propagandas a fim de evitar que isso aconteça? O que é necessário fazer para demonstrar para as massas o porquê de o reformismo não ser o caminho correto? Isto é, devemos forçosamente tentar explicar por que a massa prefere as ilusões reformistas e eleitoreiras disseminadas pelo PT (dentre outros) ao programa revolucionário? Há uma flagrante idealização da massa, que se expressa nos discursos: “quando a massa despertar”, “quando estivermos no socialismo”, “a massa precisa fazer isso; precisa fazer aquilo”; mas ela não faz, e o porquê disso nunca é respondido, senão que renovam-se às ilusões nesta idealização da massa, apagando-se totalmente as suas nuances reais. Ou então se explica insuficientemente: tudo é o resultado da falta de uma direção revolucionária – ok! Mas por que a massa tende a preferir uma “direção” reformista à uma direção revolucionária?

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         Outro exemplo singelo, que é repetido seguidamente pelas pequenas organizações ditas “revolucionárias” de norte a sul do país e até a nível internacional, é o seguinte: frente a demissão de diretores de escola por parte de uma prefeitura do interior de MG, como resultado da recusa do magistério público em retornar às aulas presenciais durante a pandemia, uma pequena organização revolucionária chamou o sindicato e “a classe trabalhadora” para trancar a cidade inteira, visando pará-la para fazer o prefeito voltar atrás. A despeito da importância da denúncia pública da ação autoritária do prefeito, salta aos olhos que a proposta é inviável.

Quem vai trancar a cidade? As burocracias sindicais das centrais e dos sindicatos denunciadas pela própria organização revolucionária? O PT e a CUT, que respeitam toda a estrutura oficial? A organização revolucionária que é um agrupamento de uma dezena de militantes? Ou ela apostaria neste chamado messiânico para que a massa responda espontânea e automaticamente indo trancar a cidade, sem nenhum tipo de direção e organização prévia?

         A dita “esquerda revolucionária” tem trabalhado com essas hipóteses corriqueiramente, sem nenhum balanço ou autocrítica; isto é, sem perceber o seu descolamento da realidade (basta olhar os “fora este ou aquele” que agita seguidamente [5]). A última hipótese, em particular, não tem surtido efeito algum e a massa nunca – ou quase nunca – tem seguido o que é apontado por estes chamados messiânicos que a idealizam. Existem fases para a construção de uma organização revolucionária que são sumariamente ignoradas pela “esquerda”, onde qualquer agrupamento com um punhado de militantes já age como se fosse o partido revolucionário pronto e acabado. Isto é: além do conhecimento elementar sobre a psicologia de massas, falta a noção dos limites de até onde um grupo de propaganda com intervenção pontual em algumas categorias pode ir, bem como das suas respectivas palavras de ordem, agitação, propaganda, trabalho de base, etc.

         A fase das grandes mobilizações espontâneas ou semi-espontâneas da classe trabalhadora passou. Hoje quem tem mobilizado pessoas com mais êxito é a direita[6]. A esquerda revolucionária segue isolada (e se isolando cada vez mais) dado que desconhece e ignora (muitas vezes voluntariamente) as questões fundamentais da psicologia de massas, para reproduzir consignas abstratas e descoladas da realidade, julgando-se a mais fiel depositária do pensamento e da prática “marxista-leninista”.

         As massas tem sido conduzidas com base em forças emotivas, que sobrepõem-se à argumentação racional da “esquerda”. Basta ver como agiu historicamente o fascismo italiano e alemão; e como age o neofascismo estadunidense e brasileiro. São muitas as investigações científicas e filosóficas que demonstram a capacidade das emoções para burlar a racionalidade. Com frequência as ideias subjacentes aos impulsos emotivos ficam camufladas, mascaradas, encobertas[7]. A esquerda, por uma leitura vulgar do marxismo, julga a massa humana sempre revolucionária em qualquer ocasião: ela que vai “trancar a cidade”; ela que vai corrigir os erros da vanguarda; ela que é a solução – messiânica – pra qualquer problema. Contudo, temos visto que os argumentos racionais nada podem frente à pulsão emotiva intensa, explorada pelo neofascismo e inclusive pelo petismo, na pessoa de Lula (dentre outros).

         Estas são algumas das questões que uma futura organização revolucionária deve encarar e responder se quiser, de fato, superar o petismo. Destas respostas, que precisam ser testadas pela experiência desta “nova militância”, possivelmente surgirá uma nova prática. Hoje, desgraçadamente, são questões de difícil resposta para o conjunto da esquerda, o que dirá para pequenas organizações e militantes isolados? Somente no debate, na divergência honesta, na militância em comum, no aprendizado de uma escuta verdadeira entre a militância revolucionária (e desta para com a massa em geral), em suma, somente na construção coletiva e com consciência de classe, poderemos encontrar tais respostas que, no meu ponto de vista, são essenciais e absurdamente minimizadas ou ignoradas.

***

         Contudo, apesar de ser difícil encontrar essas respostas, é possível arriscar algumas. Combater o espírito de rebanho e de submissão presente na massa deve se iniciar dentro das organizações revolucionárias, no combate ao personalismo, ao egocentrismo, ao “dirigismo” e ao “adesismo”. Este exemplo deve partir da própria formação e funcionamento básico de uma futura organização revolucionária.

         A prática da construção entre a esquerda “revolucionária” está pautada pela imposição de projetos e pelo adesismo. Ou seja: grande parte dessas organizações esperam simplesmente uma adesão de outros grupos, geralmente por vias impositivas. Não há uma aproximação baseada em claros princípios, em trocas reais, em escutas. Reproduzem, assim, muito do que faz a “esquerda” institucional[8].

         Como não cair no “dirigismo” e no simples “adesismo”? Como não cair nas acusações sem fim que apenas desagregam? Penso que o primeiro passo é começar se preocupando com todas as questões apontadas aqui. Uma vez que elas forem assimiladas por uma futura organização revolucionária, talvez possamos ver o fim da repetição do ciclo que impõe o “eterno retorno ao PT”.

         Outras ideias para o desenvolvimento de um “comitê de enlace” foram desenvolvidas no artigo Combater a crise de direção requer paciência e propostas realistas:algumas ideias para avançar na “unidade” da esquerda revolucionária – disponível neste blog. Espero que recebam esta resposta de forma positiva e que ela sirva para suscitar novas e profundas reflexões com a finalidade de superar a crise de direção revolucionária.



Com minhas saudações revolucionárias
Lucas Berton 

 

Referências


[2] Idem.

[3] Idem.

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