terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Contribuição à organização do Comitê de Enlace

Esse artigo segue o debate acerca do chamado à formação de uma nova organização revolucionária no Brasil feita pela Transição Socialista (TS) em junho-agosto deste ano. O primeiro artigo do nosso blog sobre o tema foi publicado em 18 de agosto de 2021, e pode ser acessado clicando aqui. Quem assina o texto abaixo é o extinto "Grupo 1", que foi formado por um núcleo de militantes de diversas regiões do Brasil que compreenderam o processo de uma maneira semelhante.


Uma das questões que ocupou boa parte do tempo da primeira e da segunda reunião do Comitê de Enlace foi o debate sobre organização. Dado o grande número de ativistas independentes em relação às poucas organizações, é necessário repensar a proposta original feita pela Transição Socialista (TS) no sentido de testar novas formas de organização.

         As concepções organizativas hegemônicas entre a esquerda apresentam um desgaste que precisa ser reavaliado justamente porque terminam por engessar o debate, a troca democrática e, consequentemente, a política, a agitação e a propaganda. E sem mexer nessas certezas cristalizadas é provável que não consigamos animar uma nova organização revolucionária no Brasil que seja capaz de aglomerar massas e superar o petismo. Com esse documento queremos apresentar algumas ideias que precisam ser refletidas e testadas com a finalidade de buscar um novo caminho.

         Tentaremos esboçar e sintetizar algumas dessas ideias a seguir:

 

1) Para refletirmos sobre o tamanho e a importância da nossa tarefa, precisamos refletir sobre o que realmente somos. Há um erro comum cometido por quase todas as organizações socialistas e revolucionárias no Brasil que é se ver e se auto proclamar como o partido revolucionário pronto e acabado.

         Porém, precisamos pontuar que um grupo de propaganda não é um partido revolucionário. Geralmente, o primeiro é uma organização revolucionária germinal que pretende construir o segundo, mas ainda não o é; assim como uma semente de laranjeira não é a árvore e nem o seu fruto. Um partido revolucionário é uma força de massas na sociedade; sua militância se conta por centenas de milhares, não por dezenas; e ela está inserida em diversas categorias da classe trabalhadora, com uma influência sentida e refletida por ela. Um grupo de propaganda tem o papel mais restrito de fazer a semente germinar, numa fase ainda embrionária. Se já vemos a semente como a própria árvore ou a laranja, então comeremos um pequeno caroço sem suco e buscaremos uma sombra de poucos centímetros de altura. Isto é, cometeremos um disparate completo!

         Reparem o que Trotski escreveu em 1929: “O bolchevismo sempre foi forte por causa de sua elaboração historicamente concreta de formas organizativas. Sem esquemas áridos. Os bolcheviques mudaram sua estrutura organizacional radicalmente a cada transição de um estágio para o outro. No entanto, hoje, um único e mesmo princípio de ‘ordem revolucionária’ é aplicado ao poderoso partido da ditadura do proletariado, assim como ao Partido Comunista alemão, que representa uma força política séria; ao jovem partido chinês; e ao partido dos EUA, que é apenas um pequeno grupo de propaganda. (...) Um partido novo representando um organismo político em completo estágio embrionário, sem nenhum contato real com as massas, sem experiência de direção revolucionária, sem formação teórica, já foi armado dos pés à cabeça com todos os atributos da ‘ordem revolucionária’, ficando parecido com um menino de seis anos de idade que usa a armadura de cavaleiro do pai”[i].

         Isso foi escrito em uma polêmica com o stalinismo, nos albores da década de 1930, mas vale perfeitamente para a vanguarda “revolucionária” brasileira de 2021, que veste a armadura de cavaleiro do pai, mesmo tendo apenas 6 anos de idade – ou ainda menos! A maior parte das organizações de vanguarda do Brasil se ilude, querendo acreditar que a armadura esconde a sua falta de idade para vesti-la, porém, não engana a burguesia e a grande mídia. A classe trabalhadora, por sua vez, olha para elas com o mesmo ar estupefato de quem vê um indivíduo andando na rua com fantasia de carnaval em pleno mês de agosto!

 

2) Os grupos de propaganda revolucionários confundem as duas etapas e por isso suas palavras de ordem e a sua propaganda – na maioria das vezes – são estéreis e irreais, causando pouca preocupação na burguesia ou no reformismo. Por certo, um grupo de propaganda pode e deve levantar algumas palavras de ordem condizentes com o seu tamanho e intervir em categorias profissionais, mas isso está subordinado a sua tarefa central, que é a propaganda e a busca por uma nova hegemonia na vanguarda – segundo Lenin,“sem isso não é possível dar sequer o primeiro passo para a vitória”[ii]. Pobre deste grupo de propaganda se ele levanta ou reproduz palavras de ordem como se já fosse um partido revolucionário!

         Aqui devemos refletir melhor sobre que tipo de “tarefa central” de propaganda é essa? Trata-se de “pesquisar, estudar, descobrir, adivinhar, captar o que há de particular e específico, do ponto de vista nacional, na maneira pela qual cada país aborda concretamente a solução do problema internacional comum, do problema do triunfo sobre o oportunismo e o doutrinarismo de esquerda no seio do movimento operário”[iii]. Isto é, vencer o oportunismo e o doutrinarismo na vanguarda da classe trabalhadora.

Um pequeno grupo de propaganda precisa estar aberto à divergência e não ter medo delas, tal como fizeram Lenin e Rosa Luxemburgo na 2ª Internacional. Portanto, a etapa de um grupo de propaganda deve se caracterizar, antes de tudo, mais pela democracia do que pelo centralismo, dado que buscamos uma fisionomia própria no embate entre a vanguarda e precisamos oxigenar permanentemente os debates, buscando estabelecer o contato real com as massas – que é sempre muito difícil e deve, necessariamente, superar as antigas vanguardas que detêm esse “monopólio”. Para isso, novas práticas e novas buscas são fundamentais.

O centralismo democrático precisa ser construído de acordo com as condições concretas, sobretudo do tamanho, organização e inserção do partido, sendo mais o resultado e um meio de organização do que uma imposição formal e burocrática de cima para baixo, empregada através do voto formal. É preciso respeitar os diversos níveis de consciência da militância e da massa em geral, para, aí sim, intervir sobre ela. Se, negando a realidade, nos consideramos o partido revolucionário e não um grupo de propaganda, então a chance de colocar os pés pelas mãos e nos imiscuirmos em picuinhas e desconfianças intermináveis é gigantesca!

E para nós, mesmo que o Comitê de Enlace seja formado com sucesso a partir daquele número de presentes nos dias 18 de setembro e 30 de outubro, ainda sim será um grupo de propaganda revolucionária e não um partido revolucionário já construído.

 

3) Considerando todos estes aspectos desenvolvidos nos pontos 1 e 2, sugerimos que inicialmente o Comitê de Enlace se organizasse em forma de uma frente de ligas, organizações ou de indivíduos. Esta “frente” teria o papel de convergir, apresentar as divergências, debatê-las; mas, sobretudo, trocar informações, experiências e práticas. Saber ouvir sem segundas intenções ou imposições. Nesse sentido, podia ser eleito um comitê executivo – uma espécie de conselho geral, tal como existia na 1ª Internacional – que tivesse a finalidade de organizar reuniões, formações, publicações, encontros, etc.

No âmbito dessas questões pode-se e deve-se votar em reuniões, mas não obrigar a centralização em debates políticos públicos que expressem diferenças profundas. O que não pudesse ser resolvido destas questões nas reuniões do comitê executivo, deveria ser levado para reuniões mais amplas (uma espécie de “assembleia”, tal como a ocorrida nos dias 18/09 e 30/10), onde todos os/as presentes tivessem direito à voz, voto e publicação de textos para o debate.

O mais importante deste processo é não forçar supressão de divergências, criar confiança por outros laços; debater e esclarecer posições divergentes; valorizar as convergências; publicar as posições divergentes para que a vanguarda e o próprio Comitê de Enlace possam conhecer e crescer com elas. Em síntese, devemos fazer o inverso do que a vanguarda de “esquerda” fez até hoje: aprendermos a nos fortalecer com as divergências, com formações e discussões honestas/fraternas e abertas. Atuar conjuntamente nos pontos em que se têm convergências naturais, nascidas deste processo. Respeitar e ter paciência com as diferenças.

 

4) Na era digital, onde tudo praticamente vem sendo feito online, é muito ruim que não tenhamos contato permanente com o pessoal que participa das reuniões. Por isso foi sugerido a criação de um fórum de e-mails e um grupo de whatsapp, geridos pelo Comitê Executivo, para todos e todas que quiserem participar. Evidentemente que estes espaços têm a finalidade de divulgação de materiais, posições e, obviamente, para que possamos nos conhecer melhor.

         As instâncias decisórias são outras: as reuniões do Comitê Executivo e as “reuniões gerais” (tal como as ocorridas nos dias 18/09 e 30/10). Estes serão os fóruns corretos de deliberação e discussão, sendo o grupo de e-mails e de whatsapp apenas uma forma extra e complementar de comunicação. Por fim, achamos ruim o que foi aprovado no dia 30 de outubro; isto é, que só grupos e organizações tenham “direito a voto e à produção e circulação de textos nos órgãos de discussão do Comitê de Enlace”. Dado o tamanho e as possibilidades tecnológicas, este direito, respeitando-se as principais pautas e discussões coletivas, devia ser estendido para gerar mais reflexão e menos burocracia na divulgação de ideias e críticas.

         Houve, assim, uma limitação de possibilidades auto imposta, voltando os olhos de todo mundo pra trás, e não pra frente. Ao contrário do que muitos pensam ao defender e aprovar tal proposta, isso nada tem de leninismo. Isso te a ver, de fato, com um leninismo formal, que ignora o realismo revolucionário de nos olhar, tal como somos; e, portanto, repete fórmulas ao invés de buscar desenvolver o verdadeiro realismo leninista[iv].

 

5) Um belo exemplo de como não agir: o editor do blog Espaço Marxista narra a formação, nos anos 2014/2015, da Frente Comunista dos Trabalhadores[v]. Após sadias relações na fase de “comitê paritário”, decidiu-se estreitar os laços e formalizar uma organização propriamente dita (e não a “confederação” de grupos e militantes, como era até então). Assim, se quis dar um passo maior do que a perna, num momento em que as condições não estavam maduras para tal.

Rapidamente a Frente entrou em decadência. Pareceu claro que o grupo maior, a Liga Comunista, na verdade “incorporou” os demais, a ponto de querer impor resoluções próprias (isto é, anteriores ao nascimento da Frente e que, portanto, não foram debatidas no novo espaço – quis, assim, crescer artificial e formalmente). À medida que as diferenças se fizeram mais transparentes, a Liga Comunista agia como fração monopolista na nova Frente, mobilizando seus membros em ataques contra o editor do blog, como é de praxe em organizações burocratizadas e hegemônicas na “esquerda”.


Grupo 1



Referências

[i] TROTSKI, Leon. Stalin – o grande organizador de derrotas; A III Internacional depois de Lenin. Editora Sundermann, São Paulo, 2010 (página 206 – grifos nossos).

[ii] LENIN, Vladmir. Esquerdismo, doença infantil do comunismo.  Editora Expressão Popular, São Paulo, 2014 (página 140).

[iii] Idem, página 139.

[iv] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/a-essencia-do-leninismo.html

[v] Ver: https://espacomarxista.blogspot.com/2020/09/espaco-marxista-2015-2020.html e https://espacomarxista.blogspot.com/2015/09/balanco-e-resolucoes-do-1-congresso-da.html

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