Um
imperialismo em decadência não pode simplesmente ruir em silêncio: ele precisa
tentar se reerguer de qualquer maneira, sobretudo quando inúmeros negócios
lucrativos de empresas gigantescas dependem dele. É o que se passa com os EUA
na atual conjuntura histórica. No início de 2022 trabalhou incessantemente para
provocar a guerra contra a Rússia através da Ucrânia e da OTAN, suas marionetes.
Agora, uma vez que atingiu parcialmente os seus objetivos de sabotar o mercado
de gás europeu, bem como as relações entre Europa e Rússia[1],
desloca o eixo geopolítico para o estreito de Taiwan visando iniciar novas
provocações contra a China. Os EUA pretendem com isso iniciar uma campanha
preventiva em relação a um problema muito antigo, vendido como novidade: a
questão de Taiwan!
A cobertura jornalística Ocidental centra-se
nas demonstrações militares da China e de Taiwan, com direito a lançamento de
mísseis e manobras de porta-aviões. Seria tudo isso a demonstração do tão
falado imperialismo chinês?
Declarações de políticos e
personalidades ocidentais, amplificadas pela grande mídia, sustentam que em
relação à Taiwan, o governo chinês “copia
o roteiro da Rússia na Ucrânia”[2].
Isto é, com esta narrativa procura vincular a ideia de “imperialismo” apenas à
Rússia e à China, ao mesmo tempo que esconde as ações políticas provocativas do
imperialismo estadunidense, relativizadas ou mesmo exaltadas pela grande mídia.
Tudo se trataria, portanto, de um truque discursivo para vender a ação do
governo chinês como “imperialismo” e “autoritarismo comunista” contra a pobre
ilha de Taiwan, que queria apenas viver em paz na “democracia” mundial dos EUA.
Vejamos uma declaração deste tipo,
bastante ilustrativa: “O procedimento de
Pequim lembra os preparativos de Vladimir Putin para a guerra de agressão
contra a Ucrânia. Ao longo de semanas, o chefe do Kremlin enviou tropas para as
fronteiras do país vizinho, igualmente camuflando como manobras militares os
seus preparativos de guerra. (...) Pequim
segue os passos neo-imperialistas de Moscou. Taiwan é uma peça decisiva para a
estratégia de expansão imperialista de Xi. Porém ele não está de olho apenas na
democracia insular. Paralelamente às atuais manobras militares, o Ministério da
Guerra chinês anunciou que durante quatro semanas realizará exercícios
semelhantes próximo às Filipinas, onde o mandatário também ambiciona
territórios”[3].
Outro veículo da grande mídia
tradicional já classifica a questão de Taiwan como a nova “crise dos mísseis”[4],
querendo requentar o discurso de guerra fria em pleno século XXI, transferindo
sutilmente o problema para a China e não para a sua verdadeira fonte: as
sabotagens do imperialismo anglo-saxão em decadência histórica.
Um breve apanhado histórico sobre a
questão de Taiwan
Não há dúvida de que o capitalismo
estatal chinês tem se tornado imperialista, ascendendo mundialmente e
transformando-se numa grande potência econômica – ainda que isso se desenvolva
bem aos moldes da cultura milenar da China, isto é, “comendo quieto”. Basta
olhar as estatísticas e perceber a invasão de empresas e ações governamentais
chinesas na Ásia, na África e na América Latina. Entre 2000 e 2019, 82 empresas
controladas pelo Estado chinês passaram a fazer parte da lista da Fortune, aparecendo no rol das 500
maiores do mundo[5].
Também não restam dúvidas de que o imperialismo chinês vem se colocando à
frente de um novo bloco de países (os BRICs) e falando cada vez mais grosso
contra os EUA. Em resposta à visita da presidente da Câmara dos Deputados dos
EUA, Nancy Pelosi, cinco grandes empresas da China pretendem deixar a bolsa de
valores de Nova York[6].
Contudo, não podemos considerar a ação
chinesa em Taiwan como uma ação imperialista, dado que nenhum país do mundo
pode ser imperialista contra si mesmo, o que seria uma estupidez ou, então, uma
falsificação. É exatamente nisto que aposta o imperialismo estadunidense e a
sua “liberdade de imprensa”.
Em síntese, Taiwan se tornou o refúgio
da burguesia chinesa liderada pelo Kuomitang, derrotada na revolução de 1949. Não
foi casual que Chiang Kai-shek – a principal liderança do Kuomitang – tenha se
deslocado exatamente para Taiwan, onde recebeu todo o suporte político e
econômico dos EUA, que imediatamente reconheceram a ilha como a representação
oficial da China, inclusive lhe garantindo um assento permanente na ONU em
detrimento de Pequim. A partir daí, a fuga de capitais passa a ser um problema
econômico central ao longo de todo o próximo período histórico[7] –
só estancado e revertido pela reabertura ao capitalismo feita por Deng Xiaoping
entre 1976-1986. Mao Zedong denunciava, já em 1958, que “o imperialismo norte-americano invadiu o território chinês de Taiwan e
continua a ocupá-lo, já lá vão nove anos”[8].
A
título de uma figura comparativa, imaginemos que o povo brasileiro realize uma
revolução socialista e a sua burguesia se refugie na ilha de Santa Catarina,
recebendo todo o amparo político e econômico do imperialismo anglo-saxão,
dizendo que a representação oficial do Brasil não é mais Brasília, mas sim
Florianópolis. Além disso, o imperialismo ainda ocuparia o Rio de Janeiro ou
São Paulo afirmando se tratar de uma “zona autônoma”, tal como fez com Hong
Kong.
Imaginemos
que o mesmo se passe na Argentina, com a sua burguesia se refugiando nas
Malvinas e recebendo todo o reconhecimento e o investimento necessário para a
sua manutenção e reprodução. Como deveríamos agir frente a estes dois casos
hipotéticos? Isto é: se Brasil ou Argentina quisessem retomar as suas ilhas
legítimas que lhe foram arrancadas à força e utilizadas como pontos
estratégicos de sabotagem e ameaça exterior, deveríamos classificar tais ações de que forma?
Ora,
é evidente que se trata de uma ação legítima de reincorporação de um território
que foi usurpado pelo invasor, mesmo que discordemos política ou
ideologicamente do governo ou partido que executa tal ação. A China é um país
agredido historicamente pelo imperialismo Ocidental, que foi dividido e
humilhado em inúmeras oportunidades desde o século XIX. Tolerar tal divisão
imposta pelo imperialismo anglo-saxão seria o mesmo que tolerar o retorno
àquela condição.
Uma
longa negociação diplomática iniciada pelo governo de Deng Xiaoping, chamada de
“um país, dois sistemas”, tratou de iniciar a reincorporação pacífica de Hong
Kong e Taiwan ao território chinês. Não casualmente, nos últimos anos temos
visto o aumento de uma escalada de sabotagens contra a política de
reincorporação de Hong Kong à China[9] –
política esta que foi construída em comum acordo com o imperialismo
anglo-saxão, mas sabotada por debaixo dos panos no início deste século XXI a
partir do método das “revoluções coloridas”. O mesmo se passou com a ilha de
Taiwan. O neofascismo
trumpista modificou sutilmente a compreensão dos acordos anteriores, uma
vez que o deep state norte-americano
pretende deter, custe o que custar, a ascensão mundial chinesa e não pode mais
contar com o teatro das leis do “livre mercado” para isso, nas quais foram
ultrapassados pela economia chinesa. É por isso que procura pretextos para
inventar sanções econômicas e políticas contra a China ou contra a Rússia,
gerando impasses econômicos e políticos internacionais que são verdadeiras
sabotagens.
A
insuspeita Revista Exame, da editora abril, aponta que os EUA mudaram
gradualmente a sua política em relação à Taiwan: “sob a administração de Donald Trump os EUA suspenderam as restrições
aos contatos entre autoridades americanas e seus colegas taiwaneses; mudou
sutilmente a formulação de sua política de ‘uma só China’, dando mais ênfase
aos compromissos americanos com Taiwan, bem como transferiu sistemas avançados
de armas para a ilha. Esses desafios para a China continuaram sob Biden. No ano
passado, os fuzileiros navais dos EUA treinaram abertamente com os militares de
Taiwan. E em maio passado, Biden sinalizou que os EUA interviriam militarmente
se a China atacasse Taiwan (embora a Casa Branca rapidamente recuasse essa
declaração)”[10].
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Os EUA, na pessoa de Nancy Pelosi, ao centro, recebendo a mais alta honraria civil do governo de Taiwan |
O desenvolvimento de Taiwan
subsidiado pelos EUA
Uma vez que, após o triunfo da
revolução em 1949, Taiwan se tornou o refúgio da burguesia chinesa, sendo a principal
responsável pela fuga de capitais do país, a ilha passou, consequentemente, a
ser um ponto de apoio preferencial de ameaças e desestabilização da China. Por
estes motivos, recebeu maciços investimentos norte-americanos para
sustentar esta “independência”, servindo de comparativo entre a “democracia” e
a “modernidade” taiwanesa e a “ditadura e o “atraso comunistas” da China. Com o
desenvolvimento econômico da China, no entanto, Taiwan foi ultrapassada, mas persiste a
demagogia em torno do velho discurso “democracia versus ditadura comunista”.
Esta receita também foi aplicada na
Coréia a partir de 1950-1953, subsidiando e garantindo uma série de benesses econômicas
ao sul em detrimento do norte; bem como na Europa com o malfadado Plano
Marshall do pós-Segunda Guerra, que significou o investimento preferencial na
reconstrução da Europa Ocidental, “capitalista”, em contraposição ao bloqueio econômico
à Europa Oriental, supostamente “comunista”[11].
Durante a vigência do Plano Marshal,
algo em torno de US$ 13 bilhões foram “investidos” em assistência técnica e
econômica na Europa Ocidental, com baixos juros, visando a recuperação dos
países europeus; enquanto que o leste europeu, a URSS e a Alemanha Oriental tiveram
que tirar leite de pedra para reconstruir suas economias, sofrendo com o
boicote internacional no mercado mundial e com os problemas oriundos da
burocratização stalinista.
A mesma receita foi aplicada em relação
à Taiwan, que após a revolução de 1949 recebeu armas de última geração,
tecnologia e benesses fiscais de toda a ordem, com a finalidade de se tornar um
polo opositor à China “comunista”. Hoje é beneficiária de vultosos
investimentos de uma indústria de semi-condutores de fabricantes de chips – fato utilizado como chamariz por
setores da mídia Ocidental para afirmar que este seria o principal motivo da
tentativa de reintegração de Taiwan à China[12]. Além
disso, recentemente recebeu U$1,1 bilhão do governo dos EUA como auxílio
militar para se preparar para o próximo período[13].
O
resultado do subsídio norte-americano dado à Taiwan é o grande crescimento
econômico da ilha, atribuído mentirosamente ao modelo da “democracia Ocidental”
e à “superioridade do capitalismo”, quando, na verdade, trata-se de uma
política estratégica do imperialismo anglo-saxão para a região, cuja finalidade
central é desestabilizar a China e tirar do poder o Partido Comunista Chinês (PCC)
para reestabelecer a democracia burguesa e, assim, poder retomar o controle
econômico sobre toda a China. Vale lembrar ainda que Chiag Kai-shek governou a
ilha pessoalmente através de uma brutal ditadura militar desde 1949, com total
apoio e assistência estadunidense, até a sua morte em 1975, quando foi
substituído pelo filho.
Uma
vez que o Kuomitang foi cooptado pela política de reintegração à China do PCC,
o imperialismo estadunidense ajudou a criar e a levar ao poder o Partido
Democrático Progressista, que mais corretamente deveria ser chamado de partido pró-EUA, reabrindo as
provocações no sentido de retomar a política de “independência” da ilha[14].
Portanto, os discursos de “democracia taiwanesa” versus “ditadura chinesa” são
parte da guerra midiática, política e econômica do imperialismo Ocidental, cujo
objetivo central é garantir no poder de Taiwan e, também, se possível, na
China, partidos “democráticos” como este.
Grande parte da população de Taiwan e
de Hong Kong foi “ocidentalizada” através de benesses econômicas com o objetivo
de opô-la à China continental. Enquanto o governo do PCC – mesmo com todos os
seus graves problemas – estabeleceu uma política de reincorporação pacífica de
Hong Kong e Taiwan à administração continental, o imperialismo anglo-saxão insiste
nas provocações “diplomáticas” e midiáticas para desestabilizar toda a região,
o que pode redundar em guerra – repetindo o que ocorreu na Ucrânia. Como é um
imperialismo em decadência, os EUA não podem agir de outra forma e, portanto,
suas ações traiçoeiras de rasgar acordos antigos – como o reconhecimento da
política de uma “única China” – serão cada vez mais recorrentes.
Por estes e outros motivos podemos
considerar como infundado o discurso da grande mídia Ocidental de que se trata
de imperialismo a legítima ação da China para reincorporar a ilha de Taiwan. No
entanto, isso não deve nos fazer esquecer, nem por um segundo, que o
imperialismo chinês está em franca ascensão mundial e infiltra-se em distintos
continentes, não representando, portanto, a superação do capitalismo, mas, de
certa forma, a sua intensificação. Esta é a principal razão da nova provocação
estadunidense no estreito de Taiwan para tentar sabotar e conter o meteórico crescimento
do dragão asiático, valendo-se para isso, como sempre, dos argumentos e
pretextos mais baixos, cínicos e desprezíveis.
Referências
[8] TSÉ-TUNG,
Mao. O livro vermelho – citações do comandante Mao Tsé-Tung. Martin Claret, São
Paulo, 2002.