quarta-feira, 16 de junho de 2021

A impostura do padre youtuber

No início do mês de junho ocorreu um debate interessante nas redes sociais acerca do vídeo do padre youtuber, Paulo Ricardo, em que ele supostamente "destrói argumentos de professores que pregam contra a Santa Igreja Católica". O debate se deu entre o militante católico Alfredo Romualdo, que enviou o referido vídeo por whatsapp ao militante socialista Eduardo Cambará.

Tanto o vídeo do padre Paulo Ricardo, quanto a resposta de Eduardo seguem reproduzidos abaixo para que os leitores do blog possam conhecer a polêmica de ambos os lados e tirar suas próprias conclusões.


Alfredo, te mando, conforme tu pediste, um retorno acerca do vídeo do padre youtuber, Paulo Ricardo, em que ele, supostamente, "destrói argumentos de professores que pregam contra a Santa Igreja Católica".

Já acompanhei alguns outros vídeos dele e percebi que seguidamente o padre atribui aos outros os erros que ele mesmo comete. Por exemplo: chama de "sofista" quem critica a Inquisição, mas toda a defesa dela está pautada por sofismas. Acredito que a fé cega na Igreja Católica — que "deve estar" sempre correta, já que é infalível — te impeça de perceber. Inclusive me parece que nem ele, nem tu, estão interessados no debate de ideias e na busca da verdade dos fatos, mas na reafirmação dos preceitos tradicionais da Igreja, visivelmente em crise.

Apesar disso, vou responder mesmo assim, já que tu pediste um "retorno". A defesa que ele faz da Inquisição é deplorável. Uma vergonha e um insulto para a inteligência humana. Qual é o seu sofisma nesse caso? Dizer que a Igreja "só julgava os católicos e não quem estava fora da Igreja". Ora, desde o final do Império Romano, por volta de 200 ou 300 d.C., que a Igreja confunde a sua estrutura com o aparato de Estado. Dá pra se dizer que, até certo ponto, o Estado moderno é um pouco tributário da estrutura estatal de governo estabelecido pela própria Igreja Católica.

Então dizer que "só se julgava católicos" é uma piada mórbida, porque todos eram obrigados a ser católicos, de forma quase compulsória. Sobretudo durante o período medieval (de 476 d.C. até 1453 d.C.; mas podemos ir além: esta estrutura semi-governamental da Igreja Católica se estende, seguramente, até o século XX). No Brasil, pra se ter uma ideia, a separação formal entre Estado e Igreja só se deu em 1889, sendo que ela seguiu informalmente até hoje, já que a nossa Constituição de 1988 foi promulgada "sob as bênçãos de deus".

No princípio da cristandade os fiéis faziam ofertas voluntárias para o tesouro comum. Logo que a religião cristã se tornou uma religião de Estado, o clero exigia que as ofertas fossem trazidas tanto pelos pobres como pelos ricos. Desde o século VI o clero impôs uma taxa especial, o dízimo (a décima parte das colheitas), que tinha de ser paga à Igreja. Esta taxa esmagava o povo como um pesado fardo; durante a Idade Média, tornou-se um verdadeiro flagelo para os camponeses oprimidos pela servidão. O dízimo era imposto sobre qualquer porção de terra, sobre qualquer propriedade. Mas foi sempre o servo camponês quem pagou com o seu trabalho. Assim, os pobres não só perderam a ajuda e o apoio da Igreja, mas viram ela se aliar aos príncipes, nobres e agiotas.

Ao longo da Idade Média, enquanto a população trabalhadora se afundava em pobreza através da servidão, a Igreja tornava-se cada vez mais rica. Além dos dízimos e de outras taxas, a Igreja se beneficiava, neste período, de grandes doações feitas por ricos e libertinos de ambos os sexos, que desejavam compensar, no último momento, a sua vida de pecado. Deram à Igreja dinheiro, casas, aldeias inteiras com os seus servos e algumas vezes rendas de terra ou direitos consuetudinários. Deste modo a Igreja passou a ser a "administradora" de toda esta riqueza. Foi abertamente declarado, no século XII, ao formular-se uma lei que se diz vir da Sagrada Escritura, que a riqueza da Igreja não pertence aos fiéis, mas é propriedade individual do clero e do seu chefe, o Papa. Assim, o clero de todos os países cristãos tornou-se o mais importante proprietário de terras (sobretudo na Europa). Possuía algumas vezes um terço ou mais de todas as terras do país!

A Inquisição perseguiu e matou centenas de pessoas por se insubordinarem a este poder ou simplesmente por questioná-lo, usando como desculpa deus e Cristo. A heresia — que o padre Paulo Ricardo parece querer ressuscitar lá da Idade Média — é o mote pra tentar justificar o injustificável. Ela redundava, geralmente, na pior punição de todas: ser queimado na fogueira ou ser excomungado (isto é: expulso do feudo, da sociedade, tendo que ir habitar as florestas, etc., ou seja: o mesmo que a morte e o oposto dos ensinamentos de Cristo, que sempre foi por agregar e pelo perdão, apesar das diferenças).

Quando Lutero se levantou contra a Igreja foi contra a corrupção escancarada, resultado de toda essa riqueza acumulada. Penso que o espírito cristão primitivo estava com ele e não com a Igreja Católica. Mas ainda assim, vou partir do pressuposto de que a argumentação do padre esteja "correta" e que a excomunhão de Lutero seja certa porque ele ocupava um alto cargo dentro da estrutura da Igreja. Mas o que, então, justificaria a prisão, a tortura e o assassinato de centenas de milhares de pessoas "comuns", camponeses, mulheres, jovens, filósofos e pensadores que não ocupavam nenhum posto dentro da hirarquia da Igreja Católica?

O que justifica o esmirilhamento dos ossos e dos órgãos do simples vendedor de tecidos Jean Calas na praça principal de Toulouse em 1792 descrito por Voltaire no seu livro Tratado sobre a tolerância? Ele professou a fé protestante, diria o padre Paulo Ricardo. Mas prendê-lo e condená-lo à morte em um suplício público não é uma interferência aberta à liberdade de consciência? Que cargo eclesiástico Jean Calas ocupava dentro da Igreja? Não seria um recado para toda a comunidade de Toulouse em 1792? O que essa postura tem a ver com a essência da mensagem de Cristo?

E o que falar sobre Giordano Bruno, cientista e filósofo, queimado vivo na fogueira por dizer que o universo era infinito e que a Terra não era o centro do universo, como professava até então a Igreja Católica? E Galileu Galilei, que foi obrigado a voltar atrás de suas descobertas sobre as luas de Júpiter para não ter o mesmo destino que Bruno?

O padre Paulo Ricardo dirá que Giordano Bruno era um teólogo de formação e que, portanto, estava dentro da estrutura interna da Igreja. De fato, ele foi teólogo até o momento em que a sua consciência exigiu que transgredisse os limites impostos pela Igreja, já que na sua época qualquer órgão educacional e "científico" só era permitido dentro desses limites, bem como a condescendência do Estado, que era ligada e, de certa forma, controlado pela Igreja. Condená-lo à fogueira foi um crime cuja finalidade era desestimular qualquer pensamento diferente. E para Igreja, qualquer pensamento diferente é heresia! Querem rebanho, consensos impostos, não construídos. Quando perdem influência intimidam e gritam, como o tom do padre Paulo Ricardo que aumenta em determinados trechos do seu sermão no vídeo para lembrar os ouvintes que ele detém o poder — concedido pela Santa Madre Igreja Católica — de decidir quem queima e quem não queima no fogo do inferno.

Com todos esses argumentos duros não quero dar a entender que tudo o que a Igreja fez ou faz, bem como todas as pessoas que se dizem católicas praticantes, sejam ruins e execráveis. Existem muitas coisas boas e positivas na Igreja, mesmo ao longo da história, como a pacificação das guerras bárbaras bem no início da Idade Média, além da humanização de muitos rituais religiosos que realizavam sacrifícios humanos e animais, exigindo sangue. Mas isso não lhes dá um salvo conduto eterno e nem pra mim está isenta de falibilidade ou mesmo de crimes premeditados. O Papa citado pelo padre no vídeo, Joseph Ratzinger, o Bento XVI, fez parte da juventude hitlerista. A Igreja convive muito bem não só com isso, mas também com o apoio que dado a inúmeros regimes fascistas, desde a Alemanha, a Itália, a Espanha, bem como a inúmeros horrores na América, desde a colonização portuguesa e espanhola (senão que em alguns casos a Igreja foi a própria promotora desses regimes).

Estou bem na condição de "herege" que o padre tenta qualificar quem não se submete aos ditames "vindos de cima"; ao contrário dele, que tenta fingir que ficaria bem se os católicos fossem "apenas meia dúzia". O monte de justificativas injustificáveis sobre a Inquisição e as imposturas da Igreja servem exatamente para fazer com que ela não perca mais fiéis e nem aprofunde sua crise. Penso que chegou o momento da humanidade andar por conta própria, com coragem própria, com capacidade de discernir o que é certo ou errado sem medo da "ameaça celestial" de arder no fogo do inferno (ou conhecer esse "fogo do inferno" aqui mesmo na Terra por obra da própria Igreja).

Em dezembro de 2020, o blog que acompanho escreveu este trecho de algum valor para o nosso debate: "Temores, igrejas novas ou antigas, rituais opressivos e de submissão, somados a preconceitos e à repressão moral/sexual, são barreiras para a 'iluminação', para o real entendimento do processo do eterno, do numinoso e do cósmico. O entendimento da vida real, da dialética do finito e do infinito, não se dará por uma 'revelação' de uma igreja institucionalizada, mas precisamente pelo esforço pertinaz e incansável de cada 'ego daqui', na busca por se lapidar, libertar e 'se curar' das próprias sombras, deixando um 'mundo dos eus' melhor aos egos que virão para que sejam mais 'iluminados', esclarecidos e, por isso mesmo, livres... ou o mais próximo possível disso. Nenhum messias, líder religioso ou guru espiritual pode fazer isso por nós. Quando são sinceros, no máximo podem nos orientar, tal como supostamente fez Buda: 'os rituais não tem eficácia, as preces são vã repetições de fórmulas. Confiai em vós e não em apoios exteriores'. Ao contrário disso, as religiões patriarcais institucionalizadas afirmam que necessitamos de sacerdotes e gurus para nos consolar e nos 'livrar do pecado'. Nesse caso, tais crentes querem ter o 'direito de pecar' e, ao mesmo tempo, a segurança fácil de um sacerdote e de uma instituição religiosa que os perdoe e absolva sempre que for conveniente, lhes conservando o 'direito' de manter as suas 'imundícies interiores'. Os que têm preguiça e medo de pensar por si mesmos aceitam todas as invenções dos interessados, que são os gurus de tais igrejas. O que os crentes procuram, na verdade, é apenas segurança; e, assim, pelas religiões oficiais obtém a maior das pseudo-seguranças: a imortalidade do seu ego e, portanto, do seu egoísmo. As religiões oferecem ao povo autoridade em lugar de verdade, elas dão-lhe muletas em lugar de tornar suas pernas mais fortes, elas dão-lhe ópio em lugar de impeli-lo a caminhar em suas pernas na busca da verdade. Não há religião onde há crença".

É assim que percebo o discurso do padre: uma tentativa de colocar medo e de tentar evitar uma crise inevitável de uma instituição religiosa da Idade Média, que esconde diversos crimes atrás de uma santidade muito questionável. Espero que entendas e leve a crítica para o lado positivo.

Um abraço!

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