|
Pandemia em Japeri-RJ |
O CPERS, as organizações de “esquerda” e a maioria
esmagadora do movimento sindical do país procura atacar os governos que querem
forçar a volta às aulas nas escolas públicas e privadas. Pensam que sua
agitação e propaganda desgastam a imagem e o projeto dos governadores e de
Bolsonaro. Contudo, a despeito desses delírios de grandeza e do real desgaste
do governo Bolsonaro (ex-PSL, mas ainda sem partido), que é fruto de vários
fatores – sobretudo da sua própria política –, os governadores estaduais, com
Eduardo Leite (PSDB e comparsas) à frente, contam com a blindagem e o apoio da
grande mídia, vendidos como “responsáveis” e “corretos”. Pouco ou quase nada a
propaganda da “esquerda” e dos sindicatos atinge tais governos. Tudo já está no
cálculo político dos seus marqueteiros e assessores.
Enquanto CPERS e alguns movimentos chamam o governo
Leite de genocida, a grande mídia dá todo o destaque para as suas medidas de “proteção
e segurança”, o vendendo como “responsável” e “corajoso”. Em relação à mudança
de horário da final da Copa do Brasil em Porto Alegre, por exemplo, o Diário
Gaúcho (secundado pela Rede Globo durante a
transmissão) afirmou se tratar de uma medida sensata do governador, além
de uma série de citações dele e de “especialistas” exaltando seu empenho no
combate à pandemia. Na ZH de 5 de março, podemos ler que “para especialistas da área de saúde consultados por GZH, a afirmação
de Leite é corajosa e crucial para tentar conter o forte avanço do coronavírus
no território gaúcho”. E toda a sua cobertura “jornalística” está repleta
de trechos como esse, embasados por “especialistas” muito bem selecionados. Como
sabemos, os jornais da RBS e da Rede Globo atingem muito mais gente do
que a agitação da “esquerda” e do CPERS. Eles estão sempre na frente e já sabem
contar com o seu atraso (sem falar nas posições abertamente oportunistas, legalistas,
conformistas do CPERS e da “esquerda”).
Assim sendo, governo Leite, Dória e grande parte
dos governos estaduais estão tranquilos. Mesmo com a atuação macabra e
desastrosa, embora premeditada, do governo Bolsonaro em vários campos, estão
conseguindo, pouco a pouco, criar a “nova normalidade”, que é a economia
“uberizada”, sem direitos trabalhistas, enquanto preservam a estrutura
estatal que garante o lucro recorde para o sistema financeiro e o mercado.
O
terrorismo psicológico e a utilização da pandemia para retirar direitos
O Diário Gaúcho de 27 e 28 de fevereiro
difunde que “os lojistas de Porto Alegre podem suspender o contrato de
trabalho dos funcionários enquanto o comércio ficar fechado pela determinação
do governo do Estado. Durante o período, o empresário pagará 50% do
salário”. E a reportagem conclui, escondendo-se atrás da fala de um
advogado, que “o lojista pode reduzir a jornada e o salário dos funcionários
de 20% até 40%”. Com a
desculpa da pandemia, a burguesia não está apenas retirando direitos, mas
diminuindo drasticamente o poder de compra e as condições de vida da classe
trabalhadora. Ainda que a pandemia seja uma ameaça, ela conseguiria hoje uma
desculpa melhor?
A ZH de 5 de março, por sua vez, estampa em sua
capa: “Piratini manterá bandeira preta e empresários pedem compensação”
e, também escondendo-se atrás das declarações do ex-ministro Luiz Henrique
Mandetta, expõe sua real posição ao dizer, junto com ele, que “considera
legítima as reclamações dos empresários, mas diz que a abertura das atividades,
em meio ao crescimento exponencial de casos e mortes, com o sistema hospitalar
em colapso, não salva a economia”. Ora, o que a salvaria então? É evidente
que as medidas e “reformas” para a retirada de direitos no sentido da uberização são vendidas como a salvação! Isso
não está explícito na mesma reportagem, mas na lógica de todo o restante dos
jornais do grupo RBS/Rede Globo e dos seus noticiários militantes.
O funcionalismo público e o magistério estadual e
municipal, em particular, não podem ignorar esta realidade na sua agitação e
propaganda sob pena de cair no mais estreito e vergonhoso corporativismo.
Precisam arrojar as suas próprias reivindicações e palavras de ordem e parar de
morder todas as iscas feitas pelos governos e pela grande mídia. Já foi
alertado, embora com poucos interessados nesse debate, que “temos visto que
quem questiona determinadas ações da 'luta' contra o coronavírus é
automaticamente taxado de irresponsável porque estaria menosprezando a
pandemia. Caímos, assim, numa dicotomia. O vírus existe e é uma ameaça. As
medidas preventivas são importantes, embora devamos ter a cabeça no lugar para
não exagerarmos demasiadamente este problema em detrimento de outros. É
exatamente isso que vem acontecendo. As exigências da quarentena e do combate
ao vírus, na maioria das vezes, são dissociadas da estrutura
econômica. Ora, aqui há uma contradição flagrante sobre a ameaça do novo
coronavírus. Se não devemos medir esforços no seu combate – como propõe a
grande mídia comercial, a maioria dos governos e centenas de vozes –, a
estrutura econômica precisa ser inevitavelmente questionada, já que é dela que
resultam problemas no sistema de saúde pública, na falta de leitos e da
tecnologia necessária ao tratamento do coronavírus, bem como no corte do
orçamento das pesquisas científicas – o resultado inevitável do neoliberalismo!
Isto quase nunca é lembrado pela maioria dos governos e da grande mídia e,
portanto, se torna uma hipocrisia flagrante. A tapeação tem sido a seguinte:
todos nós nos esforçamos, inclusive abrindo mão de salários e direitos,
enquanto os bancos, o sistema financeiro, os monopólios e o agronegócio seguem
intactos, lucrando como nunca e não abrindo mão uma vírgula dos seus interesses
e privilégios econômicos. Mesmo muitos dos cientistas, ativistas, pessoas
comuns e até organizações de 'esquerda' que nos dão conselhos e vídeo-aulas
pela internet, exigem que a quarentena e o combate ao vírus sejam tratados como
prioridade absoluta, mas, na maioria das vezes, ignoram os cortes
orçamentários, as privatizações e a destruição dos serviços públicos, como se a
prioridade neste combate fosse apenas tarefa individual de cada um, preservando
uma mudança na estrutura social e no nosso estilo de vida e consumo. Se há
poucos leitos para receber pacientes com coronavírus, cai de maduro que se deve
lutar abertamente por aumentá-los; e isso nos joga, inevitavelmente, contra a
dívida pública e a PEC do fim do mundo; em suma: contra a estrutura econômica.
Porém, vemos os governos e a grande mídia irem no sentido de restringir ainda mais
direitos trabalhistas e de garantir quase a totalidade das verbas públicas para
o setor privado”[i].
Percebendo o exagero, a grande mídia não poupa
esforços em apostar tudo no terrorismo psicológico, como o já referido Diário Gaúcho fez ao alardear que o “RS
bate recorde de pacientes em UTIs. (...) A taxa de recuperação atual das
pessoas internadas em UTIs é de 25% no Rio Grande do Sul. Isso quer dizer que,
estatisticamente, a cada quatro pessoas contaminadas que precisam de internação
em UTI, três delas não vão sobreviver”. Engraçado é o fato de que calcular
as estatísticas vale para reforçar certas ideias chaves da grande mídia e pra
outras, sobretudo no campo econômico, de cortes na saúde e educação públicas, o
mesmo não acontece. Já a rádio CBN veiculou a notícia de que o humorista da
“praça é nossa” teria morrido de covid-19 por complicações cardíacas. Nesse caso, cai de maduro a contradição,
repetida por muitas outras rádios e empresas da grande mídia.
Além disso, segundo a psicóloga e
contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés, “a imagem brutal é um velho recurso para fazer com que o self emotivo preste atenção a uma mensagem muito
séria”[ii].
Algo parecido já foi dito há quase um ano sobre esta utilização emotiva do
senso comum: “O psicólogo Daniel Goleman
alerta para os efeitos da ansiedade e da preocupação, que são o resultado
inevitável da utilização midiática do coronavírus: ‘Quando o medo dispara o
cérebro emocional, parte da ansiedade resultante fixa a atenção na ameaça
direta, forçando a mente a obcecar-se sobre como tratá-la e a ignorar tudo mais
que ocorra naquele momento (...) Quando
se deixa uma preocupação repetir-se continuamente, sem que seja contestada, ela
adquire poder de persuasão; contestá-la, pensando numa série de pontos de vista
igualmente plausíveis, impede que unicamente o pensamento preocupado seja
ingenuamente tomado como verdadeiro’”[iii].
Ironicamente, o único que observa o
terrorismo midiático é o bolsonarismo, com finalidades completamente
diferentes, evidentemente. Uma das características do neofascismo é partir de um ponto da realidade para distorcê-lo e
utilizá-lo para os seus próprios fins escusos[iv].
Trump comprou uma briga com a imprensa comercial dos EUA para fingir-se como
“antissistema”, tal como o seu vassalo faz no Brasil. Os fins econômicos do bolsonarismo e da grande mídia são os mesmos – nesse ponto são aliados
tácitos –, embora um setor importante da burguesia (e da própria grande mídia)
já deu sinal verde para descartar o neofascista,
tal como foi feito nos EUA com Trump em favor de Biden, fingindo um descontentamento com suas posições medievais.
A “esquerda”, os movimentos sociais e o CPERS não
tem a menor preocupação em relação ao terrorismo psicológico da grande mídia
sobre a pandemia. Dão de presente esta bandeira ao bolsonarismo, que a usa como
lhe convém. Esta é, precisamente, a base da engenharia política de manipulação
do momento para retirar direitos e criar as condições para reciclar o sistema.
É por isso que, querendo evitar ser taxada de “negacionista” ou “bolsonarista”,
estes setores deixam a grande mídia de lombo liso e totalmente livre para
seguir manipulando a realidade a seu bel prazer.
O que significa exigir lockdown dos atuais governos nessa
conjuntura?
A “esquerda” repete literalmente as
reivindicações de parte da direita da forma mais acrítica possível: “vacina já!” e “lockdown”. Quais são as consequências dessas palavras de ordem?
Ora, o fortalecimento do bloco burguês, quer queiramos ou não. Quando se exige “vacina já!” sem acrescentar nenhuma
preocupação sobre como colocar isso em prática, estamos na cauda do cometa
puxado por Dória em São Paulo, lhe dando força e apoio político indireto (ou
mesmo direto). Nenhuma denúncia sobre a utilização demagógica e eleitoral de
Dória e dos demais governadores sobre este tema, por exemplo (desgraçadamente
apenas o bolsonarismo cumpre esse papel, pela direita!); nenhuma palavra sobre
a quebra das patentes da fórmula da vacina, criando um correlato do software livre no campo da saúde
pública, visando uma construção realmente coletiva no combate à pandemia. Nada!
Apenas a reprodução do que vem de cima como solução milagrosa para uma pandemia
que, como podemos ver, será espremida como uma laranja pela grande mídia para
extrair-lhe até a última gota de suco.
Já a palavra de ordem de “lockdown” é mais rebaixada e rastejante
do que a outra. A primeira questão que devemos nos perguntar é: a classe
trabalhadora (ou mesmo uma categoria profissional, como o magistério público)
tem condições de impor e organizar um lockdown
na nossa sociedade? Se estivermos com os pés no chão, a resposta será: não!
Então estamos propondo para quem impor e organizar um lockdown? Ora, só pode ser para o governo Bolsonaro e os governos
estaduais, pois são os únicos que possuem poder real para concretizar tal
reivindicação hoje.
Uma coisa é exigir o não retorno
presencial das aulas ou de outra atividade profissional, por exemplo, outra,
bem diferente, é exigir lockdown, que
significa restrição do direito de ir e vir e, de certa forma, uma imposição de
“prisão domiciliar”. Assim sendo, estamos exigindo dos governos tal como um
condenado exigindo ao seu carrasco: aperte a corda bem firme em volta do meu
pescoço! Isto é, a renúncia voluntária a possíveis manifestações, que deverão
ser canceladas ou condenadas, não pela polícia, mas pelas próprias pessoas
comuns, que as verão, erroneamente, como uma afronta. Já para as burocracias
sindicais isso é um verdadeiro presente com lacinhos vermelhos, visto que ela
vive de quarentena, mesmo sem pandemia.
|
Pandemia em São Paulo |
Como a “esquerda” apoia a
aplicação da “nova economia” e da “nova normalidade”?
Em síntese, podemos dizer que não apenas no caso do
lockdown, mas no da vacina e no que
tange a toda a problemática da pandemia, a “esquerda”, suas organizações,
movimentos e sindicatos, no geral, ajudam direta ou indiretamente a burguesia
na aplicação de sua “nova economia” uberizada
e, portanto, na naturalização de uma “nova normalidade” (baseada na velha
exploração, requentada e refinada).
No caso da educação pública, enquanto a “esquerda”
se aferra ao não retorno presencial como única bandeira, está dando a chance
por diversos meios do governo reforçar o nó da corda em volta do nosso pescoço.
Se os governos ainda não aplicaram plenamente a EaD na escola pública foi
porque as condições da maioria das comunidades escolares é de extrema pobreza. No
entanto, certamente estão trabalhando dia e noite para criar e justificar tais planos,
a começar pelo preenchimento de notas e de avaliações pelo sistema via
internet, o que vai aumentar o trabalho dos educadores, sem aumentar o seu
salário ou melhorar suas condições profissionais. Ao contrário: vão aumentar o
controle e economizar com mão-de-obra barata.
Ao invés de remar na direção contrária dos
interesses da “nova normalidade”, a “esquerda” no geral, e o CPERS em
particular, como sempre, boiam no fluxo do senso comum. Não são capazes de
articular uma única palavra de enfrentamento ao capital frente à pandemia; nem
sequer desmascara a utilização descarada que ele faz da pandemia em benefício
próprio. Por exemplo: se os governos estaduais querem retornar às aulas
presenciais, então que se exija o menor número de alunos por sala de aula,
aumentando a necessidade de admissão de mais educadores e de reabertura de
escolas fechadas, transformando isso numa grande campanha popular, que busque
dialogar com amplos setores sociais que necessitam da escola pública. Mas não! Vemos
o mesmo discurso medroso cultivado cuidadosamente pela grande mídia em conluio
aberto ou disfarçado com os governos estaduais (às vezes até mesmo contra as
bizarrices do governo federal).
Em síntese, procurar formas de demonstrar a
inconsistência das políticas e a manipulação em benefício próprio de todos os governos, seja o federal ou os
estaduais, não significa que a pandemia não exista ou que não seja importante
contê-la, mas sim, denunciar em alto e bom som a utilização que fazem dela, em
conluio com a grande mídia. Isso pode parecer uma teoria da conspiração, mas
quando tomamos conhecimento da doutrina
do choque (ou do capitalismo de
desastre) desenvolvida pela Escola de Chicago[v],
então as coisas parecem menos opacas e mais nítidas.
A doutrina do
choque necessita de “crises”, reais ou inventadas, de “estados de
emergência”; enfim, de choques, para tornar as políticas neoliberais
aparentemente impossíveis de serem aceitas numa “política inevitável”. Milton
Friedman – o principal chefe da Escola de Chicago – entendeu perfeitamente a
utilidade da crise para aplicação de planos impopulares. Uma população
acometida por um estado de choque e semiparalisada é uma presa fácil para a
imposição de um programa típico dos “Chicago
boys”. A grande mídia e as posições do governo Bolsonaro exploram e garantem
o estado de choque; os governos estaduais se apressam a impor o programa (isto
é: apressam-se em passar a boiada, para usar uma expressão célebre e conhecida
de todo mundo). Nesse sentido, será dado ênfase midiática à quantas cepas e
variantes se fizerem necessárias – até que toda a boiada tenha passado!
A “esquerda” por sua vez, fala em crise do
capitalismo bem aos moldes de como o stalinismo as compreendia: isto é, algo
que, por si só, messianicamente, vai acabar com o capitalismo. Se justificam nos
textos dizendo que não se trata disso, mas, na prática, é exatamente assim que
agem; sobretudo repetindo as velhas fórmulas e expressões grandiloquentes
caducas ou semicaducas. A crise do capitalismo não significa a quebra da
economia (pode ser no caso de uma república de bananas, como o Brasil, mas
muito dificilmente do sistema como um todo). Ao contrário: significa a criação
de uma nova forma de acumulação de capital e de funcionamento. Se tivermos um
pouquinho de boa vontade, levantando o véu do medo e do estado de choque,
perceberemos que o sistema está nitidamente se utilizando da pandemia para se
“reinventar”. E o resultado final dessa “reinvenção” será, precisamente, a “nova
normalidade”.
Não é necessário dizer quem vai pagar a conta disso
tudo. E o pior (como sempre!), com a conivência da “esquerda” e dos
sindicatos...
Referências
[ii]
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Editora Rocco, Rio
de Janeiro, 1992.