sexta-feira, 26 de março de 2021

A esquerda renega a teoria de Trotski sobre os sindicatos

Texto publicado originalmente no site da Luta Marxista em 5 de novembro de 2008

Os textos Escritos sobre sindicato de Trotski são, em geral, desconhecidos. Não por acaso. Em Os sindicatos na época imperialista, o revolucionário analisa a tendência de integração dos sindicatos ao Estado na época da dominação do capital monopolista: “O capitalismo monopolista é cada vez menos capaz de conviver com a independência dos sindicatos”. Para ele os sindicatos “já não podem ser politicamente neutros”; “já não podem ser reformistas, porque as condições objetivas não dão espaço a nenhuma reforma séria ou duradoura”.

Disso não se deduz que já não se deva atuar nos sindicatos. É preciso impor à burocracia a nossa participação. Não podendo os sindicatos ser reformistas, somente lhes resta duas alternativas: “Os sindicatos do nosso tempo podem ou servir como ferramentas secundárias do capitalismo imperialista para subordinar e disciplinar os operários e para impedir a revolução ou, ao contrário, transformar-se nas ferramentas do movimento revolucionário do proletariado”. O centrismo sabota esse caráter revolucionário dos sindicatos. Tenta mantê-los no quadro do sindicalismo reformista.

Esse economicismo se apóia numa cultura oportunista e reacionária que rotula de ultra-esquerdista a política de denúncia do capitalismo. Não faz distinção entre a política revolucionária e o doutrinarismo inconseqüente. A primeira, vincula de forma concreta o programa mínimo com o programa máximo; a luta imediata com as tarefas de expropriação do capital, do controle da produção, da organização de base, do duplo poder e da propaganda do poder dos trabalhadores. O doutrinarismo é abstrato. O método revolucionário é concreto. Todos são rotulados como “a ultra”, no jargão oportunista. Nesse sentido, o doutrinarismo lhe presta um serviço inestimável.

Essa “esquerda” se permite falar de socialismo nos Primeiros de Maio, nas teses para o Congresso, etc. Mas, ao mesmo tempo, propaga um código oportunista não escrito, assimilado por parte da vanguarda, que estabelece os limites para esse discurso aos dias de festa. O pretexto é que não se deve desconsiderar “o nível de consciência das massas”. Certamente que não se deve, e esse é o método leninista: partir desse nível de consciência, mas para elevá-lo. O oportunismo esquece a necessidade de elevação do nível de consciência das massas. A sua tradução oportunista do leninismo é: não devemos assustar as massas, principalmente a classe média, com propaganda radical. Para Lênin, os sindicatos devem ser “escolas de socialismo”. Para a quase totalidade da esquerda, são “escolas de oportunismo”.

Os sindicatos e o partido
A maioria das correntes tem uma posição falsa sobre a relação entre partido e sindicato. Pela mesma razão que separam a luta sindical da luta contra o capitalismo, também escondem o partido dos trabalhadores nos sindicatos. Defendem a “autonomia” dos sindicatos em relação aos partidos. O que seria justo. Entretanto, essa pretensa defesa da autonomia é feita de maneira a destilar preconceito contra os partidos. “Os operários devem desconfiar duplamente dos aspirantes a dirigentes que atuam disfarçadamente, pretendendo lhes fazer acreditar que não necessitam de nenhuma direção”.

Alguns grupos satélites do PSTU vão mais longe: defendem a total independência política dos sindicatos dos partidos em geral. Não distinguem partidos operários de partidos burgueses. Um semi-anarquismo semelhante Trotski combateu no texto “Comunismo e sindicalismo” de 1929: “O partido é a ferramenta fundamental para a ação do proletariado, a organização de combate de sua vanguarda, que deve erigir-se em direção da classe operária em todos os âmbitos da sua luta, sem exceção, e portanto, também no campo sindical”. “Aqueles que, em princípio, contrapõem a autonomia sindical à direção do partido comunista estão contrapondo – queiram ou não – o setor proletário mais atrasado com a vanguarda da classe operária; a luta pelas conquistas imediatas com a luta pela libertação dos trabalhadores; o reformismo com o comunismo; o oportunismo com o marxismo revolucionário”.

Para Trotski, o essencial não é “a forma jurídica da autonomia”. É a política sindical. “A uma política incorreta deve-se opor uma política correta”. “Os fatos demonstram que não há, em lugar nenhum, sindicatos politicamente independentes. Nunca houve. A experiência e a teoria nos dizem que nunca haverá”. Ou estão a serviço da política da burguesia ou dos interesses do proletariado. “Na realidade, a independência de classe dos sindicatos, quanto às suas relações com o Estado burguês, somente pode garanti-la, nas condições atuais, uma direção revolucionária, isto é, a IV Internacional”.

A unidade da maioria da Conlutas e a de Trotski
A unidade dos trabalhadores é uma necessidade. A tática de frente única (entendida como unidade de ação, que nada tem a ver com o esquema em voga) foi preconizada pelos bolcheviques diante da divisão do movimento operário. Essa tática se aplica à atualidade, mas foi transformada numa fórmula oportunista. Para o oportunismo, a unidade das organizações está em primeiro lugar, as tarefas em segundo. As tarefas devem ser adaptadas às necessidades da unidade. O oportunismo considera um pecado condicionar a unidade ao programa revolucionário; assustaria assim os seus possíveis aliados. No concreto, a prioridade do PSTU é forçar o PSOL a assumir a Frente de Esquerda, o que exige a unidade com a Intersindical. Como esta, em parte, está também na CUT, é preciso assumir certas bandeiras governistas (“Contra a emenda 3”, “Por uma nova política econômica”, etc.) e todo o calendário de “lutas” do governismo.

Essa é uma unidade de capitulação. Para Trotski “a unidade das organizações sindicais tem enormes vantagens”. “De qualquer modo, a nós comunistas interessa demonstrar aos operários que a responsabilidade pela ruptura dos sindicatos recai inteiramente sobre a social democracia. Mas daí não se pode concluir que a fórmula vazia da unidade seja mais importante para nós que as tarefas revolucionárias da classe operária”. “Na realidade, o futuro da revolução não depende da fusão dos aparelhos sindicais, mas da unificação da maioria da classe operária ao redor de bandeiras e métodos de luta revolucionários”.

Portanto, a política de unidade revolucionária é uma política de desmascaramento dos revisionistas. “É indubitável que a unidade da classe operária só pode realizar-se sobre bases revolucionárias. A política de frente única é um dos meios para libertar os operários da influência reformista e, inclusive, em última instância, de avançar para a genuína unidade da classe operária”. “Não preterimos nada que signifique luta para quando se consiga a unidade”. “A tarefa não consiste em sempre propor, formalmente, aos reformistas a frente única, mas em impor-lhe em cada caso as condições que correspondem o melhor possível à situação”.

Essa tática de desmascaramento é transformada em tática de embelezamento. Um setor criou a receita oportunista chamada “exigências e denúncias”. As exigências são esquecidas. Quando existem, são feitas a frio, sem mobilização. Servem para embelezar os conciliadores, como se estes pudessem assumir, sem pressão, as ditas exigências. O Programa de Transição, quando fala em “exigir das direções traidoras”, quer dizer “impor as suas condições”. Essa política de combate é substituída por outra de acomodação, já que [...] não se deveria importunar, exasperar ou molestar os queridos amigos com embustes, críticas inoportunas, intransigências sectárias, etc.”. Entretanto, [...] uma das tarefas do Partido Comunista é precisamente a de assustar e impedir o sonho dos centristas e semi-centristas”.

Entre a política de unidade revolucionária e a da maioria da Conlutas existe um abismo.


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(*) As citações contidas neste artigo são extratos de “Escritos sobre sindicato”, Leon Trotski, Edição Kairós.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Dona Carmem


*Por Artigas Osores

O corpo pequeno, vestido de preto, se balança em direção ao rio.
Em sua alma de mulher, aromas de jasmim e manjericão.
Em suas pequenas mãos enrugadas se confunde o cheiro de terra, graxa e fumaça.
Dona Carmem carrega na cabeça a dignidade, sobre ela equilibra com dificuldade a trouxa de roupas dos poderosos.
Aurora, Carola, Graciana, Rosa, Juanita, Teresa, Piruncha e outras tantas vizinhas, pobres como ela, saúdam-na ao passar.
Junto às Toninas, sobre as pedras, esfregam e lutam as últimas lavadeiras de minha cidade.
Mulheres honestas do meu pobre bairro, que nada mais desejam do que criar seus filhos com valores e princípios.
Mulheres, esposas, mães que lutam, ganhando o pão.
De que material serão feitas essas guerreiras, que nunca reclamam, que nunca se queixam?
À tarde, da torneira da esquina carregam jarros de água; e à noite, cozinham com lenha sob o chão de terra batida, ainda em tempo, sem demonstrar cansaço, de dar carinho aos seus filhos antes de dormir.
Viveram sem luxos, sem confortos.
O sistema as oprimiu; não tinham direitos e muitas delas desconheciam as letras e a liberdade.
Não as presenteavam com flores e perfumes; e talvez elas não precisassem disso para saber o que é a felicidade.
As mulheres "de baixo", se soubessem o quanto eu as amo, o quanto me lembro delas quando vejo mulheres nas ruas, de punhos fechados, com gritos de "direitos iguais, justiça e liberdade".
Jovens moças, estudantes, trabalhadoras que carregam sob suas cabeças, tal como Dona Carmem, a dignidade.
Assim como Aurora, Carola, Graciana, Rosa, Juanita, Teresa, Piruncha e tantas outras exigindo o seu direito ao pão.


*Artigas Osores é um trabalhador com consciência de classe e escritor uruguaio que descreve as belezas e os sofrimentos da gente "de baixo" da cidade de Mercedes, do seu país e da América Latina.

domingo, 14 de março de 2021

Notas sobre como a Rede Globo manipula o povo e este se deixa manipular: o incrível caso da operação Lava-Jato!

Não posso deixar de me assustar com a cara-de-pau da Rede Globo, na pessoa de Willian Bonner, via JN, "noticiando" a anulação do processo judicial contra Lula. São mestres da sutileza. Tal como aquele irmão que deu o tapa e escondeu a mão, ficando com uma carinha de anjo olhando para os pais enquanto o irmão menor chora.

A Rede Globo foi a pivô e articuladora da operação Lava-Jato: uma das maiores fraudes do combate à corrupção no país, que não apenas forjou "provas" pra prender Lula, mas "recuperou" menos de R$1 bilhão da corrupção enquanto trabalha para garantir que os R$500 bilhões continuem escoando para o sistema financeiro e o mercado; sem falar na pavimentação do caminho para a eleição do governo Bolsonaro.
A Rede Globo é, portanto, cúmplice tanto da fraude judicial da Lava-Jato, da glorificação de Sérgio Moro e Deltan Dallangnol, quanto indiretamente pela eleição de Bolsonaro. Por isso suas "denúncias" do governo federal soam cínicas e traiçoeiras (sem esconder que aprova integralmente toda a sua política econômica). Isso não impede que Willian Bonner, o nosso paladino da "imprensa livre", tire onda de imparcial.
A Rede Globo, a grande mídia e os partidos da ordem (incluso os de "esquerda") arrasam cotidianamente a possibilidade de aprendizagem coletiva da população brasileira. Assim, estamos sempre andando num círculo caótico, sem início, meio e fim. Uma vez que o bolsonarismo (tal como o trumpismo nos EUA) começa apresentar fissuras e os ratos iniciam um sutil abandono do navio (a começar pela ratazana mór, Sérgio Moro), a Rede Globo, com o maquiavelismo jornalístico que a caracteriza, começa a preparar a construção do discurso para se adaptar às possíveis tormentas da conjuntura.
A bem da verdade, tal manipulação assustadora, é possível porque grande parte do povo deixa-se levar por discursos, por emoções mal resolvidas e inconscientes, cuja grande mídia em geral, e a Rede Globo em particular, sabem manipular como ninguém. Por certo, amplos setores da burguesia já deram sinal verde para a transição de governos e, provavelmente, sentem que podem arriscar legalizar a situação de Lula: ou porque sentem-se mais fortes com a sua candidatura "puro sangue" (Dória ou Leite), ou porque sabem que Lula é o líder indiscutível das massas trabalhadoras não mobilizadas e apáticas (é a liderança perfeita para mantê-las nesta condição).
Certamente a grande mídia e os governos não seriam tão fortes nessa manipulação maquiavélica, que impede qualquer aprendizado coletivo, se não contasse com o inestimável apoio da "esquerda" institucional. Haddad (PT), Luciana Genro (PSOL) e o PSTU foram defensores diretos ou indiretos da Lava-Jato e, portanto, de toda a farsa jurídica que se montou para o golpe de 2016. Assim como a Rede Globo, farão contorcionismo teórico para justificar suas posições reacionárias, sem nenhum vestígio de autocrítica e mudança real de postura.

Sobre a anulação dos processos contra Lula
1) Nunca fui petista e sempre estive na linha de frente da oposição de esquerda aos governos de Lula e Dilma, quando a classe média e o bolsonarismo ainda nem pensavam em sair para rua. Por isso, me sinto à vontade para declarar que sou totalmente favorável a anulação de tais processos jurídicos por se tratarem de uma fraude escandalosa que serviu unicamente para atacar as bases da economia dos governos petistas e impedir a candidatura de Lula. As provas para comprovar a fraude foram dadas pelo The Intercept.
2) Uma vez que os processos sejam anulados, o juiz Sérgio Moro e Deltan Dallangnol devem sofrer algum tipo de penalidade (em especial, serem presos e responderem por calúnia, difamação e utilização da lei como arma política de guerra; além, é claro, da sabotagem contra a própria economia do país em detrimento de outro).
3) A anulação demonstra, insofismavelmente, o caráter sabotador e seletivo da Lava-Jato, que não apenas não combateu corrupção alguma, como serviu de instrumento de ascensão de setores, como o governo Temer e Bolsonaro, que tem a corrupção como prática de governo.
4) A técnica manipulatória da grande mídia e do governo Bolsonaro consiste em tentar abafar a anulação dos processos contra Lula com o terrorismo psicológico da "reação" das bolsas de valores e do mercado. Tudo isso é uma mentira flagrante e vergonhosa, pois Lula nunca rompeu com nenhuma regra de mercado e do sistema financeiro. Ao contrário: deu lucro recorde aos bancos (como ele mesmo enche a boca pra dizer) e pagou religiosamente em dia a fraudulenta dívida pública. Aos setores conscientes da classe trabalhadora só cabe repudiar e denunciar com toda a força tal tipo de terrorismo midiático e manipulador.
5) Tristemente a maior parte da "esquerda" e do povo trabalhador não aprendeu nada (ou quase nada) com todo este processo. Segue apostando única e exclusivamente na eleição de Lula em 2022, tal como um messias salvador da pátria. Toda a farsa judicial contra Lula não apaga suas alianças com a elite do atraso; prática que muito provavelmente será mantida, preparando, futuramente, novos e piores golpes, além de impedir que conclusões políticas e teóricas mais profundas sejam tiradas e disseminadas entre o povo trabalhador desse país, da América Latina e do mundo.
Em síntese: repudio toda a farsa jurídica/política da Lava-Jato contra Lula e o PT; exijo punição aos seus promotores; pelo fim do terrorismo midiático contrapondo "democracia eleitoral" à queda das bolsas de valores e "reações de mercado"; mas não deposito um grama de ilusão e esperança no PT e em Lula. Esta é a lição mais dolorosa e mais importante que devemos tirar...

quarta-feira, 10 de março de 2021

Que “nova normalidade” a grande mídia e o sistema pretendem introduzir em nossas vidas?

Pandemia em Japeri-RJ

O CPERS, as organizações de “esquerda” e a maioria esmagadora do movimento sindical do país procura atacar os governos que querem forçar a volta às aulas nas escolas públicas e privadas. Pensam que sua agitação e propaganda desgastam a imagem e o projeto dos governadores e de Bolsonaro. Contudo, a despeito desses delírios de grandeza e do real desgaste do governo Bolsonaro (ex-PSL, mas ainda sem partido), que é fruto de vários fatores – sobretudo da sua própria política –, os governadores estaduais, com Eduardo Leite (PSDB e comparsas) à frente, contam com a blindagem e o apoio da grande mídia, vendidos como “responsáveis” e “corretos”. Pouco ou quase nada a propaganda da “esquerda” e dos sindicatos atinge tais governos. Tudo já está no cálculo político dos seus marqueteiros e assessores.

Enquanto CPERS e alguns movimentos chamam o governo Leite de genocida, a grande mídia dá todo o destaque para as suas medidas de “proteção e segurança”, o vendendo como “responsável” e “corajoso”. Em relação à mudança de horário da final da Copa do Brasil em Porto Alegre, por exemplo, o Diário Gaúcho (secundado pela Rede Globo durante a transmissão) afirmou se tratar de uma medida sensata do governador, além de uma série de citações dele e de “especialistas” exaltando seu empenho no combate à pandemia. Na ZH de 5 de março, podemos ler que “para especialistas da área de saúde consultados por GZH, a afirmação de Leite é corajosa e crucial para tentar conter o forte avanço do coronavírus no território gaúcho”. E toda a sua cobertura “jornalística” está repleta de trechos como esse, embasados por “especialistas” muito bem selecionados. Como sabemos, os jornais da RBS e da Rede Globo atingem muito mais gente do que a agitação da “esquerda” e do CPERS. Eles estão sempre na frente e já sabem contar com o seu atraso (sem falar nas posições abertamente oportunistas, legalistas, conformistas do CPERS e da “esquerda”).

Assim sendo, governo Leite, Dória e grande parte dos governos estaduais estão tranquilos. Mesmo com a atuação macabra e desastrosa, embora premeditada, do governo Bolsonaro em vários campos, estão conseguindo, pouco a pouco, criar a “nova normalidade”, que é a economia “uberizada”, sem direitos trabalhistas, enquanto preservam a estrutura estatal que garante o lucro recorde para o sistema financeiro e o mercado.

 

O terrorismo psicológico e a utilização da pandemia para retirar direitos

O Diário Gaúcho de 27 e 28 de fevereiro difunde que “os lojistas de Porto Alegre podem suspender o contrato de trabalho dos funcionários enquanto o comércio ficar fechado pela determinação do governo do Estado. Durante o período, o empresário pagará  50% do salário”. E a reportagem conclui, escondendo-se atrás da fala de um advogado, que “o lojista pode reduzir a jornada e o salário dos funcionários de 20% até 40%”. Com a desculpa da pandemia, a burguesia não está apenas retirando direitos, mas diminuindo drasticamente o poder de compra e as condições de vida da classe trabalhadora. Ainda que a pandemia seja uma ameaça, ela conseguiria hoje uma desculpa melhor?

A ZH de 5 de março, por sua vez, estampa em sua capa: “Piratini manterá bandeira preta e empresários pedem compensação” e, também escondendo-se atrás das declarações do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, expõe sua real posição ao dizer, junto com ele, que “considera legítima as reclamações dos empresários, mas diz que a abertura das atividades, em meio ao crescimento exponencial de casos e mortes, com o sistema hospitalar em colapso, não salva a economia”. Ora, o que a salvaria então? É evidente que as medidas e “reformas” para a retirada de direitos no sentido da uberização são vendidas como a salvação! Isso não está explícito na mesma reportagem, mas na lógica de todo o restante dos jornais do grupo RBS/Rede Globo e dos seus noticiários militantes.

O funcionalismo público e o magistério estadual e municipal, em particular, não podem ignorar esta realidade na sua agitação e propaganda sob pena de cair no mais estreito e vergonhoso corporativismo. Precisam arrojar as suas próprias reivindicações e palavras de ordem e parar de morder todas as iscas feitas pelos governos e pela grande mídia. Já foi alertado, embora com poucos interessados nesse debate, que “temos visto que quem questiona determinadas ações da 'luta' contra o coronavírus é automaticamente taxado de irresponsável porque estaria menosprezando a pandemia. Caímos, assim, numa dicotomia. O vírus existe e é uma ameaça. As medidas preventivas são importantes, embora devamos ter a cabeça no lugar para não exagerarmos demasiadamente este problema em detrimento de outros. É exatamente isso que vem acontecendo. As exigências da quarentena e do combate ao vírus, na maioria das vezes, são dissociadas da estrutura econômica. Ora, aqui há uma contradição flagrante sobre a ameaça do novo coronavírus. Se não devemos medir esforços no seu combate – como propõe a grande mídia comercial, a maioria dos governos e centenas de vozes –, a estrutura econômica precisa ser inevitavelmente questionada, já que é dela que resultam problemas no sistema de saúde pública, na falta de leitos e da tecnologia necessária ao tratamento do coronavírus, bem como no corte do orçamento das pesquisas científicas – o resultado inevitável do neoliberalismo! Isto quase nunca é lembrado pela maioria dos governos e da grande mídia e, portanto, se torna uma hipocrisia flagrante. A tapeação tem sido a seguinte: todos nós nos esforçamos, inclusive abrindo mão de salários e direitos, enquanto os bancos, o sistema financeiro, os monopólios e o agronegócio seguem intactos, lucrando como nunca e não abrindo mão uma vírgula dos seus interesses e privilégios econômicos. Mesmo muitos dos cientistas, ativistas, pessoas comuns e até organizações de 'esquerda' que nos dão conselhos e vídeo-aulas pela internet, exigem que a quarentena e o combate ao vírus sejam tratados como prioridade absoluta, mas, na maioria das vezes, ignoram os cortes orçamentários, as privatizações e a destruição dos serviços públicos, como se a prioridade neste combate fosse apenas tarefa individual de cada um, preservando uma mudança na estrutura social e no nosso estilo de vida e consumo. Se há poucos leitos para receber pacientes com coronavírus, cai de maduro que se deve lutar abertamente por aumentá-los; e isso nos joga, inevitavelmente, contra a dívida pública e a PEC do fim do mundo; em suma: contra a estrutura econômica. Porém, vemos os governos e a grande mídia irem no sentido de restringir ainda mais direitos trabalhistas e de garantir quase a totalidade das verbas públicas para o setor privado”[i].

Percebendo o exagero, a grande mídia não poupa esforços em apostar tudo no terrorismo psicológico, como o já referido Diário Gaúcho fez ao alardear que o “RS bate recorde de pacientes em UTIs. (...) A taxa de recuperação atual das pessoas internadas em UTIs é de 25% no Rio Grande do Sul. Isso quer dizer que, estatisticamente, a cada quatro pessoas contaminadas que precisam de internação em UTI, três delas não vão sobreviver”. Engraçado é o fato de que calcular as estatísticas vale para reforçar certas ideias chaves da grande mídia e pra outras, sobretudo no campo econômico, de cortes na saúde e educação públicas, o mesmo não acontece. Já a rádio CBN veiculou a notícia de que o humorista da “praça é nossa” teria morrido de covid-19 por complicações cardíacas. Nesse caso, cai de maduro a contradição, repetida por muitas outras rádios e empresas da grande mídia.

         Além disso, segundo a psicóloga e contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés, “a imagem brutal é um velho recurso para fazer com que o self emotivo preste atenção a uma mensagem muito séria”[ii]. Algo parecido já foi dito há quase um ano sobre esta utilização emotiva do senso comum: “O psicólogo Daniel Goleman alerta para os efeitos da ansiedade e da preocupação, que são o resultado inevitável da utilização midiática do coronavírus: ‘Quando o medo dispara o cérebro emocional, parte da ansiedade resultante fixa a atenção na ameaça direta, forçando a mente a obcecar-se sobre como tratá-la e a ignorar tudo mais que ocorra naquele momento (...) Quando se deixa uma preocupação repetir-se continuamente, sem que seja contestada, ela adquire poder de persuasão; contestá-la, pensando numa série de pontos de vista igualmente plausíveis, impede que unicamente o pensamento preocupado seja ingenuamente tomado como verdadeiro’”[iii].

         Ironicamente, o único que observa o terrorismo midiático é o bolsonarismo, com finalidades completamente diferentes, evidentemente. Uma das características do neofascismo é partir de um ponto da realidade para distorcê-lo e utilizá-lo para os seus próprios fins escusos[iv]. Trump comprou uma briga com a imprensa comercial dos EUA para fingir-se como “antissistema”, tal como o seu vassalo faz no Brasil. Os fins econômicos do bolsonarismo e da grande mídia são os mesmos – nesse ponto são aliados tácitos –, embora um setor importante da burguesia (e da própria grande mídia) já deu sinal verde para descartar o neofascista, tal como foi feito nos EUA com Trump em favor de Biden, fingindo um descontentamento com suas posições medievais.

A “esquerda”, os movimentos sociais e o CPERS não tem a menor preocupação em relação ao terrorismo psicológico da grande mídia sobre a pandemia. Dão de presente esta bandeira ao bolsonarismo, que a usa como lhe convém. Esta é, precisamente, a base da engenharia política de manipulação do momento para retirar direitos e criar as condições para reciclar o sistema. É por isso que, querendo evitar ser taxada de “negacionista” ou “bolsonarista”, estes setores deixam a grande mídia de lombo liso e totalmente livre para seguir manipulando a realidade a seu bel prazer.

 

O que significa exigir lockdown dos atuais governos nessa conjuntura?

         A “esquerda” repete literalmente as reivindicações de parte da direita da forma mais acrítica possível: “vacina já!” e “lockdown”. Quais são as consequências dessas palavras de ordem? Ora, o fortalecimento do bloco burguês, quer queiramos ou não. Quando se exige “vacina já!” sem acrescentar nenhuma preocupação sobre como colocar isso em prática, estamos na cauda do cometa puxado por Dória em São Paulo, lhe dando força e apoio político indireto (ou mesmo direto). Nenhuma denúncia sobre a utilização demagógica e eleitoral de Dória e dos demais governadores sobre este tema, por exemplo (desgraçadamente apenas o bolsonarismo cumpre esse papel, pela direita!); nenhuma palavra sobre a quebra das patentes da fórmula da vacina, criando um correlato do software livre no campo da saúde pública, visando uma construção realmente coletiva no combate à pandemia. Nada! Apenas a reprodução do que vem de cima como solução milagrosa para uma pandemia que, como podemos ver, será espremida como uma laranja pela grande mídia para extrair-lhe até a última gota de suco.

         Já a palavra de ordem de “lockdown” é mais rebaixada e rastejante do que a outra. A primeira questão que devemos nos perguntar é: a classe trabalhadora (ou mesmo uma categoria profissional, como o magistério público) tem condições de impor e organizar um lockdown na nossa sociedade? Se estivermos com os pés no chão, a resposta será: não! Então estamos propondo para quem impor e organizar um lockdown? Ora, só pode ser para o governo Bolsonaro e os governos estaduais, pois são os únicos que possuem poder real para concretizar tal reivindicação hoje.

         Uma coisa é exigir o não retorno presencial das aulas ou de outra atividade profissional, por exemplo, outra, bem diferente, é exigir lockdown, que significa restrição do direito de ir e vir e, de certa forma, uma imposição de “prisão domiciliar”. Assim sendo, estamos exigindo dos governos tal como um condenado exigindo ao seu carrasco: aperte a corda bem firme em volta do meu pescoço! Isto é, a renúncia voluntária a possíveis manifestações, que deverão ser canceladas ou condenadas, não pela polícia, mas pelas próprias pessoas comuns, que as verão, erroneamente, como uma afronta. Já para as burocracias sindicais isso é um verdadeiro presente com lacinhos vermelhos, visto que ela vive de quarentena, mesmo sem pandemia.

Pandemia em São Paulo

Como a “esquerda” apoia a aplicação da “nova economia” e da “nova normalidade”?

Em síntese, podemos dizer que não apenas no caso do lockdown, mas no da vacina e no que tange a toda a problemática da pandemia, a “esquerda”, suas organizações, movimentos e sindicatos, no geral, ajudam direta ou indiretamente a burguesia na aplicação de sua “nova economia” uberizada e, portanto, na naturalização de uma “nova normalidade” (baseada na velha exploração, requentada e refinada).

No caso da educação pública, enquanto a “esquerda” se aferra ao não retorno presencial como única bandeira, está dando a chance por diversos meios do governo reforçar o nó da corda em volta do nosso pescoço. Se os governos ainda não aplicaram plenamente a EaD na escola pública foi porque as condições da maioria das comunidades escolares é de extrema pobreza. No entanto, certamente estão trabalhando dia e noite para criar e justificar tais planos, a começar pelo preenchimento de notas e de avaliações pelo sistema via internet, o que vai aumentar o trabalho dos educadores, sem aumentar o seu salário ou melhorar suas condições profissionais. Ao contrário: vão aumentar o controle e economizar com mão-de-obra barata.

Ao invés de remar na direção contrária dos interesses da “nova normalidade”, a “esquerda” no geral, e o CPERS em particular, como sempre, boiam no fluxo do senso comum. Não são capazes de articular uma única palavra de enfrentamento ao capital frente à pandemia; nem sequer desmascara a utilização descarada que ele faz da pandemia em benefício próprio. Por exemplo: se os governos estaduais querem retornar às aulas presenciais, então que se exija o menor número de alunos por sala de aula, aumentando a necessidade de admissão de mais educadores e de reabertura de escolas fechadas, transformando isso numa grande campanha popular, que busque dialogar com amplos setores sociais que necessitam da escola pública. Mas não! Vemos o mesmo discurso medroso cultivado cuidadosamente pela grande mídia em conluio aberto ou disfarçado com os governos estaduais (às vezes até mesmo contra as bizarrices do governo federal).

Em síntese, procurar formas de demonstrar a inconsistência das políticas e a manipulação em benefício próprio de todos os governos, seja o federal ou os estaduais, não significa que a pandemia não exista ou que não seja importante contê-la, mas sim, denunciar em alto e bom som a utilização que fazem dela, em conluio com a grande mídia. Isso pode parecer uma teoria da conspiração, mas quando tomamos conhecimento da doutrina do choque (ou do capitalismo de desastre) desenvolvida pela Escola de Chicago[v], então as coisas parecem menos opacas e mais nítidas.

A doutrina do choque necessita de “crises”, reais ou inventadas, de “estados de emergência”; enfim, de choques, para tornar as políticas neoliberais aparentemente impossíveis de serem aceitas numa “política inevitável”. Milton Friedman – o principal chefe da Escola de Chicago – entendeu perfeitamente a utilidade da crise para aplicação de planos impopulares. Uma população acometida por um estado de choque e semiparalisada é uma presa fácil para a imposição de um programa típico dos “Chicago boys”. A grande mídia e as posições do governo Bolsonaro exploram e garantem o estado de choque; os governos estaduais se apressam a impor o programa (isto é: apressam-se em passar a boiada, para usar uma expressão célebre e conhecida de todo mundo). Nesse sentido, será dado ênfase midiática à quantas cepas e variantes se fizerem necessárias – até que toda a boiada tenha passado!

A “esquerda” por sua vez, fala em crise do capitalismo bem aos moldes de como o stalinismo as compreendia: isto é, algo que, por si só, messianicamente, vai acabar com o capitalismo. Se justificam nos textos dizendo que não se trata disso, mas, na prática, é exatamente assim que agem; sobretudo repetindo as velhas fórmulas e expressões grandiloquentes caducas ou semicaducas. A crise do capitalismo não significa a quebra da economia (pode ser no caso de uma república de bananas, como o Brasil, mas muito dificilmente do sistema como um todo). Ao contrário: significa a criação de uma nova forma de acumulação de capital e de funcionamento. Se tivermos um pouquinho de boa vontade, levantando o véu do medo e do estado de choque, perceberemos que o sistema está nitidamente se utilizando da pandemia para se “reinventar”. E o resultado final dessa “reinvenção” será, precisamente, a “nova normalidade”.

Não é necessário dizer quem vai pagar a conta disso tudo. E o pior (como sempre!), com a conivência da “esquerda” e dos sindicatos...





terça-feira, 2 de março de 2021

Um balanço da frente popular entre o PT e a elite do atraso

Lula afirmou recentemente numa entrevista: "a elite brasileira não estava preparada para aceitar a inclusão social".

Ele tem toda razão. A nossa elite já foi muito bem caracterizada por Jessé Souza como "a elite do atraso". Mas aqui podemos ir além destas reflexões um tanto óbvias: qual classe dominante está preparada para a inclusão social? Essa afirmação de Lula não denota que a estratégia petista de se aliar com a mesma elite que "não está pronta para aceitar a inclusão social" estava redondamente equivocada (pra não dizer que se tratou de uma traição consciente)?
Indo ainda mais além de Lula: essa afirmação não atestaria a necessidade de ser socialmente duro com esta elite, preparando a classe trabalhadora para enfrentá-la organizada e conscientemente, criando, assim, condições de controlá-la e anulá-la através de mecanismos da "ditadura do proletariado", tendo, em primeiro lugar, a função de regulamentar o mercado controlado por ela para ir minando as bases do seu poder?
E indo definitivamente mais além do que Lula, tirando as conclusões que ele não quer nem pode tirar: tal afirmação não significaria o reconhecimento implícito da necessidade de uma revolução para tirá-la do poder?