Pensando
sobre o atual momento político do Brasil, bem como a ascensão fascista que se
espalha pelo mundo, muitas são as interrogações que afloram em debates na
tentativa de compreender tal desfecho. Neste exercício de produzir reflexões,
proponho uma retomada na teoria psicanalítica sobre a importância da função materna
e a constituição mental e física de cada sujeito.
Em
psicanálise aborda-se a visão de sujeito que “não é senhor de sua própria casa”,
postulando a ideia de que todas as ações, escolhas e pensamentos são influenciadas
pelo inconsciente. Entendendo o conceito de inconsciente, somos levados a
reconhecer as primeiras vivências da infância como sendo a base que construirá
o sujeito em sua totalidade. São as primeiras marcas, experiências positivas e
negativas e a forma como cada uma destas vivências foi sentida e armazenada
pela criança que terão papel preponderante na estruturação de ego e
personalidade futuras.
Sendo
assim, a tarefa essencial para pensarmos sobre como entender e tentar construir
uma sociedade com traços mais saudáveis em sua integralidade (tanto material,
quanto “espiritualmente”), o caminho primeiro a ser trilhado deveria ser o
estudo do papel dos pais e de cuidadores como sendo fundamental para a
construção subjetiva do indivíduo, pois, conforme o que foi abordado
anteriormente, a maneira como foram sentidas e registradas as primeiras
vivências da infância irão constituir e deixar suas marcas na história de vida
de cada sujeito.
Para
Winnicott o ambiente propiciado pela mãe nos primeiros anos de vida será o
elemento central para a constituição mental saudável de qualquer indivíduo. O
ambiente ocupa o foco da teoria deste autor, trazendo a ideia de que todas
estas primeiras experiências criadas no vínculo mãe-bebê influencia e determina
o crescimento psíquico (Winnicott, 1948). O autor também explora a ideia de que
o bebê só existe a partir da relação com a mãe, sendo dependente e moldado a
partir destas interações relacionais com ela. Emprega a palavra devoção, que significaria a capacidade
da mãe decodificar as necessidades de seu bebê. Resumidamente: “um bebê não pode ser pensado sem a presença
de alguém que lhe exerça a função de mãe e sem um ambiente, por esta última
criado, onde possa evoluir e desenvolver seu potencial de crescimento e
amadurecimento”. (Coutinho, 1997).
Ainda
sobre a teoria winnicottiana, existem três funções maternas fundamentais para
facilitação de um desenvolvimento saudável: o holding (sustentação), o handling
(manejo) e apresentação dos objetos.
Para que estas funções ocorram é necessário que a mãe seja “suficientemente
boa”. De acordo com Winnicott (1993, p.491):
“Existe
o meio ambiente que não é suficientemente bom e que distorce o desenvolvimento
do bebê, da mesma forma que pode haver um meio ambiente suficientemente bom,
aquele que permite ao bebê alcançar, em cada estádio, as satisfações, ansiedades
e conflitos inatos apropriados”.
A
função de holding tem como base a
sustentação do bebê no colo, sendo, simultaneamente, uma vivência corporal e
simbólica, onde o que é experimentando é a forma como o bebê é amado e desejado
por sua mãe. Quando este suporte é estabelecido de maneira satisfatória, o
processo de maturação psíquica é facilitado, possibilitando as condições
necessárias ao desenvolvimento do ego. O Handling
(manejo) seria a etapa que se
refere à forma como o bebê é cuidado, manipulado e apresentado os limites de
seu corpo a partir das mãos maternas. Sendo, portanto, a experiência de entrar
em contato com o corpo. Conforme Winnicott (1970) a distorção dos cuidadores
neste processo originaria distorções no ego da criança. Por fim, na apresentação dos objetos a mãe iniciaria
um processo de mostrar ao seu bebê que é substituível, estimulando a criação de
novos objetos mais adequados de acordo com o momento vivenciado. Nesta fase
encontra-se a inauguração das relações interpessoais e o contato com a
totalidade do mundo externo. As três funções exercidas pela mãe suficientemente
boa, possibilitam a estruturação do ego e sua maturação adequada, compreendendo
as tarefas de integração, personalização e relação objetal.
Pensando
sobre a importância do papel materno nos primeiros anos de vida, torna-se
necessário compreender o conceito de objeto continente proposto por Esther Bick[i]. De acordo com a autora,
as primeiras experiências emocionais são apreendidas primariamente através do
corpo. Trazendo o mecanismo de segunda pele, defende que:
“Em
sua forma mais primitiva, as partes da personalidade são sentidas como não
tendo nenhuma força de ligação entre si e que, portanto, devem se manter unidas
de um modo que vivenciam passivamente – com a pele funcionando como limite. Mas
esta função interna de conter as partes do self depende, inicialmente, da
introjeção de um objeto externo [mãe], sentido como capaz de cumprir esta
função.” (Bick, 1967, p. 194).
Sendo assim, o objeto continente
proposto por Esther Bick seria sentido de forma concreta pelo bebê, como sendo
uma pele representada pela mãe. Na ausência desta contenção a criança
experimentaria ansiedades elevadas e sentimentos de desintegração. Podemos
associar as teorias de Winnicott sobre a mãe suficientemente boa e a teoria de
Bick sobre a necessidade de uma segunda pele funcionando como objeto continente
como sendo o elemento central no desenvolvimento psíquico saudável de cada
sujeito. Ainda segundo esta autora:
“A
necessidade, no estado não-integrado infantil, de um objeto continente, parece
gerar uma busca frenética por um objeto – uma luz, uma voz, um cheiro ou outro
objeto sensório – que possa estabelecer a atenção e desta forma ser vivenciado
ao menos momentaneamente, como um objeto que mantém unidas as partes da
personalidade. O objeto ótimo é o mamilo na boca, juntamente com a mãe que
segura a criança, fala com ela e tem um cheiro familiar.”
(Bick, 1967, p.195).
Para
resumir o conceito, Bick (1967,p. 198): “o
fenômeno segunda pele, que substitui a integração da primeira pele,
manifesta-se como um tipo parcial ou total de concha muscular ou como uma
musculatura verbal correspondente”. Portanto, este objeto continente
denominado como segunda pele, propiciaria ao bebê a capacidade sensória de
estar contido, tendo consciência de um espaço dentro do self para promover, posteriormente, a cisão primária em que o bebê
começa a reconhecer-se como parte separada da mãe.
A reflexão sobre os conceitos
psicanalíticos abrangidos na teoria do desenvolvimento convergem no sentido de
que a forma como a criança foi olhada, cuidada e “construída” imprimem traços
sólidos e que acompanham cada um de nós em nossas particularidades, modos de
ser e estar no mundo, jeitos singulares inundados de medos, desejos e
conflitos.
Se mesmo no seio de famílias com condições
financeiras adequadas sabemos a dificuldade em cumprir uma função materna
satisfatória, proponho debruçarmos nosso olhar para as mães de periferias, onde
os direitos não ecoam, onde sequer existe o reconhecimento de suas existências.
A violência disseminada e a constante luta por sobrevivência, muitas vezes não
deixam tempo para se pensar em qual a forma correta de se criar um filho.
Muito
mais do que pensar os motivos que adoecem uma sociedade, devemos pensar em como
cada sujeito foi influenciado por sua história, e como cada um de nós tem o
dever de transmitir estes conhecimentos às famílias futuras, deixando melhores condições
de desenvolvimento psíquico e, quem sabe, novos caminhos a serem trilhados no
sentido de um reflorescimento psicológico, ético e social.
Referências
Bick, E. (1967). A
experiência da pele em relações de objeto arcaicas in Melanie Klein:
Desenvolvimentos da teoria e da técnica/ editado por Elizabeth Bott Spillius;
tradução de Belinda Haber Mandelbaum. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.
Coutinho, F. (1997). O
ambiente facilitador: a mãe suficientemente boa in Podkameni, A.B; Guimarães,
M.A.C. Winnicott: 100 anos de um analista criativo. Rio de Janeiro: NAU
Winnicott, D.W. (1956).
Preocupação materna primária. In Winnicott, D. W. Textos selecionados: Da
pediatria à psicanálise (J. Russo, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves,
1993.
NOTAS:
[i] Esther Bick: Esteza
Lifsza Wander, nascida em Przemyśl, na Galícia, Polônia, era uma médica e
psicanalista infantil que teve uma profunda influência no desenvolvimento da
psicoterapia infantil na Inglaterra. Ela é conhecida por desenvolver o método
de observação infantil psicanalítica.
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