sábado, 8 de dezembro de 2018

Cuidados maternos e seus desdobramentos no desenvolvimento psíquico


*Por T. Panke

Pensando sobre o atual momento político do Brasil, bem como a ascensão fascista que se espalha pelo mundo, muitas são as interrogações que afloram em debates na tentativa de compreender tal desfecho. Neste exercício de produzir reflexões, proponho uma retomada na teoria psicanalítica sobre a importância da função materna e a constituição mental e física de cada sujeito.
Em psicanálise aborda-se a visão de sujeito que “não é senhor de sua própria casa”, postulando a ideia de que todas as ações, escolhas e pensamentos são influenciadas pelo inconsciente. Entendendo o conceito de inconsciente, somos levados a reconhecer as primeiras vivências da infância como sendo a base que construirá o sujeito em sua totalidade. São as primeiras marcas, experiências positivas e negativas e a forma como cada uma destas vivências foi sentida e armazenada pela criança que terão papel preponderante na estruturação de ego e personalidade futuras.
Sendo assim, a tarefa essencial para pensarmos sobre como entender e tentar construir uma sociedade com traços mais saudáveis em sua integralidade (tanto material, quanto “espiritualmente”), o caminho primeiro a ser trilhado deveria ser o estudo do papel dos pais e de cuidadores como sendo fundamental para a construção subjetiva do indivíduo, pois, conforme o que foi abordado anteriormente, a maneira como foram sentidas e registradas as primeiras vivências da infância irão constituir e deixar suas marcas na história de vida de cada sujeito.
Para Winnicott o ambiente propiciado pela mãe nos primeiros anos de vida será o elemento central para a constituição mental saudável de qualquer indivíduo. O ambiente ocupa o foco da teoria deste autor, trazendo a ideia de que todas estas primeiras experiências criadas no vínculo mãe-bebê influencia e determina o crescimento psíquico (Winnicott, 1948). O autor também explora a ideia de que o bebê só existe a partir da relação com a mãe, sendo dependente e moldado a partir destas interações relacionais com ela. Emprega a palavra devoção, que significaria a capacidade da mãe decodificar as necessidades de seu bebê. Resumidamente: “um bebê não pode ser pensado sem a presença de alguém que lhe exerça a função de mãe e sem um ambiente, por esta última criado, onde possa evoluir e desenvolver seu potencial de crescimento e amadurecimento”. (Coutinho, 1997).
Ainda sobre a teoria winnicottiana, existem três funções maternas fundamentais para facilitação de um desenvolvimento saudável: o holding (sustentação), o handling (manejo) e apresentação dos objetos. Para que estas funções ocorram é necessário que a mãe seja “suficientemente boa”. De acordo com Winnicott (1993, p.491):

“Existe o meio ambiente que não é suficientemente bom e que distorce o desenvolvimento do bebê, da mesma forma que pode haver um meio ambiente suficientemente bom, aquele que permite ao bebê alcançar, em cada estádio, as satisfações, ansiedades e conflitos inatos apropriados”.

A função de holding tem como base a sustentação do bebê no colo, sendo, simultaneamente, uma vivência corporal e simbólica, onde o que é experimentando é a forma como o bebê é amado e desejado por sua mãe. Quando este suporte é estabelecido de maneira satisfatória, o processo de maturação psíquica é facilitado, possibilitando as condições necessárias ao desenvolvimento do ego. O Handling (manejo) seria a etapa que se refere à forma como o bebê é cuidado, manipulado e apresentado os limites de seu corpo a partir das mãos maternas. Sendo, portanto, a experiência de entrar em contato com o corpo. Conforme Winnicott (1970) a distorção dos cuidadores neste processo originaria distorções no ego da criança. Por fim, na apresentação dos objetos a mãe iniciaria um processo de mostrar ao seu bebê que é substituível, estimulando a criação de novos objetos mais adequados de acordo com o momento vivenciado. Nesta fase encontra-se a inauguração das relações interpessoais e o contato com a totalidade do mundo externo. As três funções exercidas pela mãe suficientemente boa, possibilitam a estruturação do ego e sua maturação adequada, compreendendo as tarefas de integração, personalização e relação objetal.
Pensando sobre a importância do papel materno nos primeiros anos de vida, torna-se necessário compreender o conceito de objeto continente proposto por Esther Bick[i]. De acordo com a autora, as primeiras experiências emocionais são apreendidas primariamente através do corpo. Trazendo o mecanismo de segunda pele, defende que:

“Em sua forma mais primitiva, as partes da personalidade são sentidas como não tendo nenhuma força de ligação entre si e que, portanto, devem se manter unidas de um modo que vivenciam passivamente – com a pele funcionando como limite. Mas esta função interna de conter as partes do self depende, inicialmente, da introjeção de um objeto externo [mãe], sentido como capaz de cumprir esta função.” (Bick, 1967, p. 194).

            Sendo assim, o objeto continente proposto por Esther Bick seria sentido de forma concreta pelo bebê, como sendo uma pele representada pela mãe. Na ausência desta contenção a criança experimentaria ansiedades elevadas e sentimentos de desintegração. Podemos associar as teorias de Winnicott sobre a mãe suficientemente boa e a teoria de Bick sobre a necessidade de uma segunda pele funcionando como objeto continente como sendo o elemento central no desenvolvimento psíquico saudável de cada sujeito. Ainda segundo esta autora:

“A necessidade, no estado não-integrado infantil, de um objeto continente, parece gerar uma busca frenética por um objeto – uma luz, uma voz, um cheiro ou outro objeto sensório – que possa estabelecer a atenção e desta forma ser vivenciado ao menos momentaneamente, como um objeto que mantém unidas as partes da personalidade. O objeto ótimo é o mamilo na boca, juntamente com a mãe que segura a criança, fala com ela e tem um cheiro familiar.”
(Bick, 1967, p.195).

            Para resumir o conceito, Bick (1967,p. 198): “o fenômeno segunda pele, que substitui a integração da primeira pele, manifesta-se como um tipo parcial ou total de concha muscular ou como uma musculatura verbal correspondente”. Portanto, este objeto continente denominado como segunda pele, propiciaria ao bebê a capacidade sensória de estar contido, tendo consciência de um espaço dentro do self para promover, posteriormente, a cisão primária em que o bebê começa a reconhecer-se como parte separada da mãe.
            A reflexão sobre os conceitos psicanalíticos abrangidos na teoria do desenvolvimento convergem no sentido de que a forma como a criança foi olhada, cuidada e “construída” imprimem traços sólidos e que acompanham cada um de nós em nossas particularidades, modos de ser e estar no mundo, jeitos singulares inundados de medos, desejos e conflitos.
            Se mesmo no seio de famílias com condições financeiras adequadas sabemos a dificuldade em cumprir uma função materna satisfatória, proponho debruçarmos nosso olhar para as mães de periferias, onde os direitos não ecoam, onde sequer existe o reconhecimento de suas existências. A violência disseminada e a constante luta por sobrevivência, muitas vezes não deixam tempo para se pensar em qual a forma correta de se criar um filho.
Muito mais do que pensar os motivos que adoecem uma sociedade, devemos pensar em como cada sujeito foi influenciado por sua história, e como cada um de nós tem o dever de transmitir estes conhecimentos às famílias futuras, deixando melhores condições de desenvolvimento psíquico e, quem sabe, novos caminhos a serem trilhados no sentido de um reflorescimento psicológico, ético e social.


Referências

Bick, E. (1967). A experiência da pele em relações de objeto arcaicas in Melanie Klein: Desenvolvimentos da teoria e da técnica/ editado por Elizabeth Bott Spillius; tradução de Belinda Haber Mandelbaum. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.
Coutinho, F. (1997). O ambiente facilitador: a mãe suficientemente boa in Podkameni, A.B; Guimarães, M.A.C. Winnicott: 100 anos de um analista criativo. Rio de Janeiro: NAU
Winnicott, D.W. (1956). Preocupação materna primária. In Winnicott, D. W. Textos selecionados: Da pediatria à psicanálise (J. Russo, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1993.


NOTAS:


[i] Esther Bick: Esteza Lifsza Wander, nascida em Przemyśl, na Galícia, Polônia, era uma médica e psicanalista infantil que teve uma profunda influência no desenvolvimento da psicoterapia infantil na Inglaterra. Ela é conhecida por desenvolver o método de observação infantil psicanalítica.

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