quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

A sociologia de Jessé Souza e o que a esquerda precisa aprender com ela


Nenhuma sociedade complexa é tão absurdamente desigual como a nossa.
Essa deveria ser a vergonha nacional
(Jessé Souza, in “A tolice da inteligência brasileira...”).


A intelectualidade brasileira formou-se historicamente de costas para o povo. As universidades nacionais assimilaram o cínico modus operandi da “modernização conservadora” e de “mudanças pelo alto” na qual o país foi edificado. Procurando estar sempre de bem e em harmonia com a elite nacional e, sobretudo, internacional, esta intelectualidade colocou-se à sombra do poder, aceitando na maioria das vezes se submeter à pressão conservadora.
         É certo que a inexistência de um movimento político-social relativamente forte deixou os intelectuais mais ou menos “livres” e “independentes” para se submeter a esta pressão conservadora, conforme já alertou muito bem Florestan Fernandes. Os que participam da vida universitária e dos movimentos sociais se inclinam a cindir os seus papéis intelectuais, como se esses dois eixos de atividade fossem estanques e separados, só se encontrando no infinito.
         Este não parece ser o caso do professor Jessé Souza, formado pela Universidade de Brasília e com pós-graduação e atividades acadêmicas em universidades europeias e norte-americanas, mas que busca olhar para o povo pobre do Brasil e a sua relação com os privilégios das classes dominantes. A sua produção teórica é um alento, que destoa do restante das universidades brasileiras (com outras raras e honrosas exceções, é claro), ainda que peque em muitas análises, abrindo precedentes pra perpetuar a ordem que supostamente combate. O ponto forte e a justeza de suas posições estão exatamente neste descolamento da universidade burguesa, com os seus protocolos cínicos e alheios à realidade da classe trabalhadora e do povo pobre, que tornam qualquer produção acadêmica estéril, desprovida de compromissos com o país.
         Para Jessé, corretamente, a coragem de afirmar certas conclusões está acima da erudição, usada pelos nossos acadêmicos, na maioria das vezes, para esconder a sua total ausência de conteúdo, reproduzindo apenas velhos valores completamente caducos e reacionários com uma máscara de “novidade” (não sem o apoio da grande mídia comercial). Nas palavras de Jessé: “a compreensão da complexidade social não depende tanto de erudição, mas antes de tudo, de ‘coragem’”[i]. E coragem é exatamente o que falta para a maioria da intelectualidade brasileira, acostumada a servir como mercenária das ideologias dominantes, perpetuando os interesses escusos da elite.
         É exatamente por isso que Jessé consegue desenvolver uma inovadora análise sociológica, dando um sopro de vida para o estudo da realidade brasileira. Isto já é motivo suficiente para que a esquerda dê uma atenção especial às suas conclusões.

Jessé Souza durante uma entrevista

Os pontos fortes da contribuição teórica de Jessé

I.
         Jessé Souza tem como principal referência o sociólogo francês Pierre Bordieu, que buscou fazer uma síntese entre os pensamentos de Max Weber, Karl Marx e Émile Durkheim. A novidade desta abordagem permitiu uma aproximação inovadora com os fenômenos sociais que não podem se restringir apenas à análise econômica, procurando também uma abordagem psicológica, o que é de grande importância para explicar a complexidade da realidade social brasileira. Jessé, partindo de boas conclusões de Bordieu, lança mão de um arsenal teórico capaz de investigar além do capital econômico, penetrando nos “mistérios” do capital cultural e simbólico – tão caros à classe média –; cabendo destacar, dentre estes, o conceito de violência simbólica, que nos permite conhecer de perto a “realidade invisível” da ralé brasileira, imperceptível ao senso comum e ocultada sistematicamente pelos mecanismos institucionais, políticos e midiáticos do país.
         Esta “nova” visão sobre o povo pobre do país, batizada provocativamente por ele de ralé brasileira, é fundamental para a ação política futura por parte da esquerda. É, certamente, uma das chaves para qualquer mudança social profunda em nosso país. Nesta aproximação com a ralé, Jessé sofreu influências importantes do sociólogo brasileiro, Florestan Fernandes, ao qual rende grandes e merecidas homenagens. Para conseguir concretizar esta análise, Jessé não fez uma releitura apenas de Florestan Fernandes – sobretudo no seu livro A integração do negro na sociedade de classes –, mas de toda a produção intelectual brasileira dos últimos 100 anos. Deflagra uma verdadeira (e saudável) cruzada contra os mitos brasileiros, expressos na sociologia de Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta, Raymundo Faoro, Gilberto Freyre e outros, acertando contas com as fantasias nacionais baseadas no “homem cordial” e no “jeitinho brasileiro”. Segundo Jessé, estes mitos conformam a base do senso comum nacional, que serve para legitimar todas as ideologias modernas de dominação, como a meritocracia, “a violência urbana e a corrupção na política”, vendidos como os principais e únicos problemas do Brasil. Tais pensamentos do senso comum tornam possíveis a naturalização e a reprodução infinita das desigualdades sociais do nosso país geradas pelo nosso capitalismo periférico e dependente. Em relação a esta crítica à intelectualidade brasileira não há nada a se objetar. Ao contrário, é preciso conhecê-la para continuar enriquecendo-a.
         A novidade da análise sobre a ralé brasileira está neste trecho, que sintetiza todo o pensamento do autor sobre este assunto: “a sua não incorporação no mercado de trabalho, reservado às outras classes, a torna um joguete impotente e passivo de uma lógica social excludente que explora o trabalho não qualificado. Entre as mulheres da ‘ralé’, são as empregadas domésticas, faxineiras, lavadeiras ou prostitutas – a perfeita metáfora ‘real’ de quem só tem o corpo e é obrigado a vendê-lo – que trabalham nas casas de classe média ou para a classe média. Essas mulheres permitem, a baixo preço, toda uma posição privilegiada às classes médias e alta brasileiras que pode, assim, ser poupada de grande parte do cotidiano e custoso trabalho doméstico. É esse tempo de trabalho poupado por uma classe privilegiada que pode, então, ser reinvestido em atividades reconhecidas e lucrativas ‘fora de casa’. Os homens da ‘ralé’ estão envolvidos em atividades que exigem trabalho muscular e não qualificado, como ambulante, biscateiro, lavador de carros, vigia, transporte de carga pesada etc. [acrescentaria neste “etc.” traficantes, assaltantes, cuidadores de carros...], e servem aos mesmos fins das mulheres. (...) Para os esmagados por uma ordem incompreensível cujo sofrimento não pode deixar de ser vivido não só como natural mas acima de tudo como ‘merecido’, pelo efeito da ‘culpa individualizada’ da ideologia meritocrática percebida como verdade absoluta, resta o devaneio de ‘saídas mágicas’ ou o ressentimento individualizado contra ‘pessoas’”[ii].

II.
         Dentro desta mesma perspectiva, Jessé desmascara a hipocrisia ideológica do jeitinho brasileiro, demonstrando que ele não é apenas brasileiro, mas de todas as classes precarizadas e desesperadas em qualquer lugar do mundo moderno. Segundo ele, o “conto de fadas sociológico” do jeitinho brasileiro apenas obscurece a verdadeira percepção de quais são os nossos reais problemas sociais, além de misturar a absoluta dependência dos pobres com a desfaçatez e o privilégio dos ricos e poderosos, chamando os dois pelo mesmo nome de “jeitinho”, o que equivale a não compreender nem um, nem outro fenômeno e ainda confundi-los num mesmo nome[iii].
         Esta incapacidade de olhar a ralé brasileira como um produto do capitalismo periférico é um impeditivo para encontrar uma política justa de combate à sua situação social. Neste sentido, Jessé endereça uma boa crítica à esquerda brasileira: “quando interpretações ‘politicamente corretas’, que abundam entre nós, legitimam esse tipo de expectativa irreal ‘idealizando o oprimido’, elas apenas jogam água no moinho da reprodução continuada da opressão real dessa classe. A necessidade da ‘ralé’ de ‘fantasiar’ a própria vida é compreensível e justificável. Afinal, só pode perceber com clareza a própria miséria social e existencial quem possui, ao menos potencialmente, os meios de superá-la. Que intelectuais, pretensamente de esquerda, façam o mesmo é bem menos compreensível – ainda que se possa perceber os ganhos em popularidade e aceitação imediata que possam advir disso – e menos ainda justificável”[iv].
         A esquerda que professa um “marxismo” mecânico, desprovido de conteúdo e de vida, é incapaz de propor políticas de enfrentamento a situação da ralé e, muito menos, capaz de construir uma aliança política e social que possa unificá-la com a luta geral da classe trabalhadora pelo socialismo. Ao contrário disso, tende a reproduzir a opressão real que a ralé sofre cotidianamente. O Brasil contemporâneo e o seu capitalismo periférico produziram esta classe social de desqualificados, humilhados e ofendidos, cuja aliança com os demais trabalhadores é imprescindível para uma sociedade melhor, tal como os camponeses o foram para os operários na Rússia do início do século 20. A “esquerda” atual apenas reproduz determinados preconceitos ao ignorar os “consensos inarticulados que legitimam esse tipo de prática na vida cotidiana”, sobretudo quando endossam a má-fé institucional do país e determinados tipos de senso comum.
         Segundo Jessé, a maioria da ralé brasileira enxerga a política como um espetáculo bizarro e inatingível (até mesmo indesejável), que, contraditoriamente, pode “orientar a vida sem limites”, como se todo o “processo fosse percebido como produto de intenções individuais” de um governo, justamente porque o sistema político brasileiro concentra boa parte do poder no presidente, o que reforça esta visão. Segundo Jessé, se a ralé não enxergasse a política assim, não poderia consumi-la como um teatro, repleto de clichês de novela, com mocinhos e bandidos, na qual ela é mera expectadora passiva e principal vítima.

III.
         Jessé desnuda a dinâmica da ideologia do patrimonialismo, professada, dentre outros, por Raymundo Faoro, que tem as seguintes consequências sobre o imaginário nacional: “o Brasil seria uma sociedade ‘pré-moderna’, porque reproduz a forma ‘patrimonialista’ de exercício do poder que vigorava em Portugal. Como Faoro procura demonstrar nas várias centenas de páginas do seu livro, precisamente, a correção histórica e sociológica de seu argumento, e é no embate com suas ideias que poderemos perceber a fragilidade teórica dessas ideias ‘teleológicas’, ou seja, construídas para validar uma única tese política: a ação intrinsecamente demoníaca do Estado contraposta à ação intrinsecamente virtuosa do mercado. Essa é a ideia-força fundamental do liberalismo brasileiro por boas razões, afinal, nas poucas vezes em que se verificou historicamente qualquer preocupação política com as demandas das classes populares, estas sempre partiram do Estado”[v].
         Nesta grande sacada da ideologia burguesa nacional, Jessé desnuda que por trás deste mito de Estado-ruim e mercado-bom que remontaria supostamente as nossas raízes patrimonialistas, a elite estaria apenas no Estado e não no mercado[vi]. Toda a construção midiática e ideológica usa e abusa desta noção absurda e voltada unicamente a manipular o povo contra si próprio. A corrupção endêmica do Brasil estaria, assim, justificada como sendo o resultado dos “excessos do Estado”, tendo a sua solução na radicalização das “medidas de mercado”.
A sua conclusão fundamental, desmentindo toda esta baboseira, é que “quase sempre que existe corrupção no Estado há também corruptores no mercado. A corrupção – compreendida como vantagem ilegítima em um contexto de pretensa igualdade – é, aliás, dado constitutivo tanto do mercado quanto do Estado em qualquer lugar do mundo. A fraude é uma marca normal do funcionamento do mercado capitalista sempre que este não seja estritamente regulado. A última crise financeira apenas deixou isso claro como a luz do sol. O mercado financeiro mundial sem regulação estatal usou títulos sem qualquer garantia, ‘maquiou’ incontáveis balanços de empresas e até de países – como na recente crise da Grécia – e tem usado de qualquer expediente que possa garantir maior lucro. Mas a cantilena sobre o patrimonialismo só do Estado e a exaltação da ‘confiança’ somente do mercado continua sendo repetida à exaustão ao arrepio da realidade. Minha tese é que não existe outra saída para o liberalismo conservador brasileiro a não ser repetir o mesmo discurso populista e manipulador da corrupção, supostamente apenas estatal, já que esta foi a forma – que a falsa generalização dos interesses particulares do lucro e do juro fáceis encontrou e construiu cuidadosamente desde os anos 1930 – de encontrar algum eco nos setores populares (...) Todos os problemas sociais acontecem devido à corrupção supostamente estatal. Mas o ‘golpe de mestre’ dessa tese é o ‘ganho efetivo’ conseguido ao tornar a ‘sociedade’ – ou seja, todos a quem esta ideologia se dirige – tão virtuosa quanto o mercado, expulsando todo o mal em um ‘outro’ bem identificado, uma elite estatal que ninguém define e localiza precisamente. Ela pode ser todos e ninguém. Assim, a tese do patrimonialismo oferece ‘boa consciência’ a todos que podem se imaginar perfeitos e sem mácula, sem participação nenhuma em uma sociedade que humilha, desqualifica e não reconhece grande parte de sua população, já que ‘todo o mal’ já tem endereço certo”[vii].
         Esta contribuição, além de desmascarar a ideologia que impera na grande mídia comercial abre uma grande perspectiva de debate, agitação e propaganda para a esquerda nacional. Precisa ser confrontada com a mentalidade de classe média que impera na sociedade – inclusive em largas camadas da classe trabalhadora, da ralé e, inclusive, da própria “esquerda” – reproduzindo essa falsa dicotomia entre Estado-ruim versus mercado-bom.

IV.
         Criticando o servilismo da intelectualidade brasileira, profundamente colonizada pelas ideologias da direita norte-americana, Jessé desfaz as mentiras de que a corrupção só existe no Brasil, justamente porque nós, supostamente, dependeríamos muito mais do Estado (patrimonialista e populista), enquanto que os EUA estariam livres deste mal justamente porque se sustentam na “confiabilidade” do mercado. Nas palavras dele: “O que separa o americano do brasileiro é que o primeiro legaliza a corrupção de modo profissional, deixando para os amadores do Brasil expedientes como esconder dinheiro ilegal na cueca. Outra distinção é que o americano não atenta contra a própria economia, como fez a Lava Jato”[viii].
         Um intelectual universitário denunciar hoje a operação Lava Jato quando o próprio PT capitula à ela vergonhosamente, é, no mínimo, um ponto digno de atenção. Jessé parece compreender bem o papel cínico em que caiu a maior parte da classe média brasileira, desmascarando a sua função ideológica. Não apenas entendeu bem qual foi a função social desta classe durante os protestos que culminaram no impeachment da presidente Dilma Rousseff, mas os fins de suas “reivindicações”. Baseando-se em Max Weber, Jessé traduz a mentalidade desta pequena-burguesia, quando afirma: “durante toda a história humana, os ricos, charmosos, saudáveis e cultos não querem apenas saber-se mais felizes e privilegiados, eles precisam se saber como tendo ‘direito’ à sua felicidade e privilégio. Um dos fundamentos de várias religiões do passado foi exatamente esse tipo de legitimação”[ix].
         Ou seja, a classe média e a burguesia precisam não apenas sentir-se plenamente merecedoras dos seus privilégios para si, mas precisam fazer com que as classes exploradas legitimem e concordem com o “direito” e a “justeza” destes privilégios, como se eles fossem, de fato, uma conquista única ou principal do esforço individual de quem os possui. Toda esta petulância da nossa decadente e retrógrada classe média encontra o seu lado mais cínico na política, expresso, conforme já foi dito, durante as manifestações pelo “Fora Dilma”.

V.
         “A corrupção e sua vagueza conceitual”, escreve Jessé, “é sempre o mote que galvaniza a solidariedade ‘emocional’ das classes médias, que se imaginam moralmente superiores às outras classes. (...) Na verdade, é uma vontade de meia dúzia de endinheirados que manipulam sua tropa de choque de uma classe média infantilizada que se auto idealiza. (...) O moralismo da classe média no Brasil sempre foi extremamente seletivo e antidemocrático ao mesmo tempo. Sua seletividade implica em ver o mal ‘fora de si mesma’, e nunca na sua própria ação cotidiana de exploração de outras classes de quem a classe média rouba o tempo, a energia e qualquer possibilidade de redenção futura”[x].
Ficou famoso o caso de uma família de classe média participando de um ato pelo “Fora Dilma” com sua babá oriunda da ralé, levando o carrinho dos filhos do patrão e supostamente dando volume ao protesto. Esta desprezível capacidade de ver o mal apenas fora de si mesma, auto-idealizando sua visão infantilizada e egocêntrica de política e de mundo, buscando uma “virtude idealizada” que está absolutamente fora de suas preocupações, serviu perfeitamente para os interesses dos monopólios empresariais da grande burguesia, cortando os escassos investimentos sociais e destinando quase todos os recursos do Estado para os monopólios imperialistas, o sistema financeiro, os grandes empresários e o agronegócio.
         Esta descrição da classe média brasileira, que se submete em grande parte voluntariamente à manipulação da elite nacional e a da grande burguesia internacional, resume bem a história recente do país, desde a queda de Vargas (1954), até o impeachment de Dilma (2016), passando pelo golpe militar de 1964 que derrubou Jango. Em todos estes movimentos sociais a classe média serviu de aríete da elite nacional e internacional. As ideologias de classe média são extremamente fortes e úteis para a burguesia brasileira, sobretudo no nosso atual período histórico, onde impera o ódio como política, as manipulações escancaradas do irracionalismo das pessoas, a institucionalização da hipocrisia, da fake news, da apologia à tortura e à ditadura militar, que sabidamente matou e torturou centenas de milhares de brasileiros, cuja expressão maior foi Dilma Rousseff. Poderia haver degeneração maior do que um deputado carreirista e inútil, corrompido até a medula dos ossos, fazer apologia à tortura praticada pelo coronel Brilhante Ustra como “argumento” em defesa do impeachment da primeira mulher presidente do país, ser chamado de “mito” por esta classe média e, logo depois, eleito presidente da República? Não estaria, de fato, mais da metade de nossa sociedade (incluso largos setores de trabalhadores e da própria ralé) completamente doente e em avançado estágio de sofrimento?
        
VI.
Jessé conseguiu captar muito mais o drama brasileiro do que a maior parte da nossa esquerda, como PSOL, PSTU, PCB e PCO. Estes partidos fazem análises um tanto esquemáticas, muito envelhecidas e afastadas dos acontecimentos cotidianos. Nesse sentido, PT e PCdoB já estavam muito mais cientes deste papel da classe média do que aqueles partidos, não por uma sagacidade teórica dos seus intelectuais, mas pelas necessidades “pragmáticas” de governar o Estado burguês, no qual estiveram à frente por quase 15 anos. Jessé, mesmo como parte simpatizante do campo petista, vai muito além do PT. Por este motivo, sua visão “corajosa” consegue superar os intelectuais petistas e os intelectuais universitários, que como bem observou Carlos Nelson Coutinho, vivem à “sombra do poder”. A política de todos estes partidos de “esquerda” (incluso organizações menores) não consegue desmascarar as ideologias burguesas disseminadas pela classe média porque lhe falta uma visão mais profunda, que saiba traduzir a vida cotidiana para desmascarar as pequenas hipocrisias.
         O período histórico que se abre agora, dominado pela direita mais reacionária, sem nenhum freio moral (nem mesmo “deus”), exige uma nova abordagem que realize certas caracterizações sobre a classe média. A influência desta classe sobre os trabalhadores e a ralé tem se mostrado decisiva. Foi uma das armas ideológicas mais poderosas da elite nacional usada no século 20. A última vez em que a classe média brasileira agiu de maneira mais ou menos positiva foi durante a Revolução de 1930, o que possibilitou quebrar a espinha dorsal da burguesia cafeicultora de São Paulo. Posteriormente, a classe média brasileira só se alinhou com os interesses da burguesia paulistana (FIESP) – lembrem-se do famigerado pato amarelo –, expressando uma política reacionária e autocolonialista. Uma das chaves para se combater a repulsa da ralé à ideia de socialismo, que nada mais é do que um reflexo da repulsa da classe média a ele, está em explicar pacientemente o papel cumprido por ambas as classes em nossa sociedade periférica. Numa sociedade socialista de novo tipo ela perderia não apenas os seus privilégios econômicos sobre a ralé, mas também o “direito” de se sentir superior e de bem com a sua própria consciência.
         Cabe relembrar, por fim, que foi a burguesia proto-fascista quem influenciou massas nos últimos 5 anos aqui no Brasil, não a esquerda. Esta tragédia nos força a tirar certas conclusões.

Os pontos fracos e perigosos da contribuição teórica de Jessé
        
VII.
Todas estas preciosas contribuições teóricas não seriam possíveis se Jessé Souza não tivesse rompido com o silêncio que as universidades brasileiras impõem sobre a miséria do povo e as profundas desigualdades de nossa sociedade; sem que ele quisesse honestamente passá-las a limpo, demonstrando mais “coragem do que erudição”. Podemos constatar claramente que Jessé simpatiza com a causa dos oprimidos do nosso país. Este é, seguramente, o que lhe permite ter uma visão além do alcance, superando a maioria dos intelectuais universitários e da “esquerda”. Se ele perdesse esta qualidade, certamente cairia no senso comum de reproduzir as ideologias estéreis, tipo um pós-modernismo obtuso, cujo objetivo central é relativizar ou obscurecer os conflitos sociais e esconder os privilégios da elite nacional e internacional.
         Porém, apesar de todas estas qualidades, Jessé paga um tributo à sua condição de acadêmico. Estas conclusões e denúncias muito bem fundamentadas esbarram num perigoso limitador: seu culto respeitoso ao liberalismo burguês. Nos seus livros faz uma perigosa apologia dele, chegando ao ponto de reivindica-lo como o “fundamento básico de qualquer regime democrático”[xi], sem perceber que o “liberalismo conservador brasileiro” é o único possível no nosso capitalismo periférico, onde a “nossa” burguesia nacional não pode (nem quer) praticar as doutrinas econômicas que prega. O “livre mercado” é apenas uma ficção, onde os monopólios e trustes internacionais controlam os principais ramos. A burguesia nacional age desta forma não exclusivamente por maldade ou perversidade (suas características intrínsecas), mas porque o capitalismo e as potências imperialistas internacionais não permitem que aja de outra forma. Sendo assim, a admiração de Jessé pelo liberalismo burguês é um perigoso limitador de suas obras, capaz de fazer suas grandes conclusões escorrerem pelos dedos, tornando-as absolutamente estéreis.
         Segundo Jessé, a sociedade moderna funciona de acordo com uma “segunda natureza” invisível que guia todas as nossas ações mais importantes sem que sequer nos apercebamos disso. Este tipo de funcionamento social se daria, em grande medida, por meio de um automatismo pré-reflexivo que não nos faz perceber, nem compreender o que se passa. Ora, tudo isso também vale para o liberalismo burguês (seja o político ou o econômico), que nos molda dentro dos interesses da sociedade atual (nos dando uma direção). Mesmo as “liberdades individuais” do liberalismo burguês clássico são condicionadas por um automatismo pré-reflexivo de uma “segunda natureza” invisível (no caso, a “natureza do mercado”). Fazer apologia dele, portanto, não ajuda a emancipação dos trabalhadores, muito menos da ralé. Antes disso: possibilita novos grilhões ideológicos, com discursos mais modernos e arrojados (como a omissão sobre a necessidade de organização para os trabalhadores e para a ralé!).

VIII.
A sua denúncia apaixonada da estrutura social brasileira e da condição da ralé tenciona até o ponto inevitável que abre a perspectiva de uma revolução. Esta necessidade cai de maduro a cada conclusão dolorosa que tira da situação da “nossa” ralé. Porém, Jessé não quer comprometer-se com ela. Aliás, foge dela desesperadamente, chegando a fazer apologia do pacifismo como forma de “revoluções de consciência”, que seriam, segundo ele, “muito mais eficientes”.
A base da sua crítica ao marxismo vai neste sentido: “daí essa mania um pouco ridícula dos marxistas sempre procurarem ‘consciência de classe’ e ‘atores revolucionários’ quando esses são sempre construções improváveis e que existem mais como exceção do que como regra”[xii].
Sim, as revoluções são exceções ao longo da história, mas elas existem. Seria muito importante que Jessé apresentasse suas experiências e pesquisas no movimento sindical e político dos trabalhadores para embasar melhor estas colocações. É importante relembrar nosso professor que o marxismo é uma ciência para a revolução; isto é, para derrubar ordens sociais injustas e dar consciência e organização aos oprimidos. Somente pode existir vida no marxismo se ele estiver de fato comprometido com a organização de uma revolução (mesmo que esta seja hoje uma “causa perdida”). Ele não nasceu nas universidades; não foi aceito nas universidades; foi combatido pela maioria das universidades. Após ser canonizado pela esterilidade das teorias acadêmicas ou brutalmente falsificado, foi finalmente “aceito”. A crítica de Jessé entende o marxismo como uma teoria sociológica cuja finalidade é fazer a melhor interpretação em uma concorrência com outras teorias universitárias. O marxismo vivo – o qual Jessé parece não conhecer – procura “tentar” e “testar” formas de organizar os trabalhadores e o povo oprimido (a ralé, muito bem descrita e conhecida por ele) visando sua emancipação, mesmo que isso seja uma causa perdida.
Jessé ainda acusa o marxismo de “economicismo”, entendido como uma forma de submeter tudo à visão econômica. “Lembremos” Jessé que a finalidade última do marxismo é a emancipação humana. Não existe mais possibilidade de uma ciência social ou um humanismo que ignore os oprimidos de sua própria sociedade. O que torna atribuir um economicismo ao marxismo, no mínimo, injusto. No entanto, não restam dúvidas quanto a uma interpretação economicista do marxismo por parte da maioria da “esquerda”, seja ela reformista ou stalinista.

IX.
         Já se disse que “uma gota de fel amarga um barril de mel”. Após uma denúncia apaixonada em mais de um livro que tornaram-se best-sellers, culminando em inúmeros convites para as “mídias de esquerda”, inclusive por redes de televisão, como a TVE e a TV Cultura, Jessé parece ter medo das dolorosas conclusões que foi obrigado a tirar de suas pesquisas sociológicas, afirmando que “não é preciso ‘guerra civil’ ou grandes calamidades com banho de sangue e sofrimento”[xiii]. Cruzou todos os limites que o academicismo oficial se nega a cruzar; mas se recusa a abandonar todas as esperanças pacifistas que são características dele. Ao invés da “revolução sangrenta”, Jessé aposta que uma análise teórica renovadora, como a que professa, seria capaz de dialogar com os setores sensíveis das classes média e alta, que apoiariam “mudanças reais”. A grande questão é: onde estariam estes setores e quem precisamente seriam eles?
         Jessé aponta que muitos brasileiros gostam de saídas “mágicas”, de “decretos que mudam o mundo com uma penada, uma política pública salvadora ou genial”; ou seja, tudo o que tenha a ver com mudanças “fora de nós”, que nunca acontecem nos corações e mentes dos próprios indivíduos, bem como na forma em que cada um de nós percebe o mundo[xiv]. Jessé está certo ao se preocupar com as experiências revolucionárias que, derramando sangue e dispendendo enormes quantidades de energia, não deram atenção ou não foram capazes de “mudar corações e mentes”; isto é, que foram duras e perderam completamente a ternura.
         Com relação a mudar os corações e as mentes, a forma de agir e de se comportar dos seres humanos, não há o que se objetar. Uma revolução que não seja capaz de levar os seres humanos a mudar suas estruturas internas, tornando-os mais sensíveis com os dramas dos outros e da humanidade; que traga o pão, mas se esqueça da poesia, não é uma autêntica revolução. Hoje o percebemos claramente, e Jessé tem razão ao frisar este aspecto. A esquerda já padeceu muito deste mal justamente por acreditar que as questões econômicas resolveriam por si só as demandas psicológicas, emocionais e de caráter. A revolução precisa trabalhar duro sobre a educação pública e as relações cotidianas; não restam dúvidas! Porém, a consciência não é nada sem uma mudança estrutural, política, econômica e institucional que lhe dê sustentação a longo prazo.
Tampouco fará uma única mudança duradoura se não tivermos coragem, ousadia... e uma direção revolucionária!

X.
Como se dariam estas mudanças tão necessárias para resgatarmos a ralé desta subcidadania, subserviência e subexistência? É certo que não existem milagres e, tampouco, passes de mágica. Todas estas mudanças serão um parto doloroso e contraditório. Porém, não será apenas por uma “revolução de consciência” que conseguiremos mudar a sociedade de fato. Além disso, a “revolução de consciência” apresentada por Jessé é totalmente espontaneísta, sem organização e programa político.
Jessé precisa escrever um novo best-seller preocupado em responder como superar a ordem social descrita por ele, o capitalismo periférico e dependente do Brasil, que “gera” a nossa ralé, a partir de uma transição pacífica (de “revolução de consciência”), que dispense a violência revolucionária, sendo que por muito menos a classe média brasileira já desencadeia toda a sua fúria para humilhar, agredir e colocar a ralé “no seu lugar”. Como fazer a ralé acreditar numa mudança profunda e radical, que tenha a capacidade de instigá-la a perceber a seriedade e a gravidade de sua situação e de uma proposta de mudança sem combater de modo também radical e decisivo as instituições que a tratam com “má-fé”? Um dos grandes papéis de um(a) revolucionário(a) é, sem dúvida, instigar o povo a horrorizar-se consigo mesmo, para que em algum momento este horror se transforme em ação.
No campo econômico, a necessidade premente do nosso país é socializar a riqueza (ou distribuir renda, no linguajar do economista burguês), possibilitando-lhe reais condições de vida. Para isso, o socialismo é indispensável, pois a ralé brasileira é um produto inevitável de um capitalismo periférico, o único incentivado e tolerado pela Europa e os EUA. A sociologia de Jessé deixa subentendido a defesa de uma humanização do capitalismo, fato que, como sabemos pela experiência com o reformismo, é impossível. É fundamental uma revolução no país para instituir um governo formado por trabalhadores, que mude todas as caducas instituições brasileiras, fazendo que com o povo consiga gerir a economia de forma consciente e organizada. Não tem sido possível outro modo de atingir as bases iniciais do socialismo que não por uma revolução violenta concreta, da maioria. Seria muito melhor atingi-lo, se no geral isso fosse possível, de forma pacífica, deixando a força da violência revolucionária organizada apenas para o caso da classe dominante não nos deixar alternativas. Admitir isso ainda é um grande tabu no meio acadêmico, que é especializado em mostrar mais erudição do que coragem.
         Apesar das boas conclusões sociológicas de Jessé, sobre as questões da macroeconomia não há uma única análise inovadora. Apenas os velhos clichês do reformismo, da social-democracia, do destaque apenas à “revolução de consciência”. Como fazer uma “revolução na consciência” sem fazê-la no cotidiano material? Existiria diferença desta proposta com o reformismo socialista, tão duramente criticado pelo marxismo? O PT não teria apostado no diálogo com os “setores sensíveis da classe média” e da burguesia? Seria, então, o método da “revolução de consciência” apenas publicar livros, blogs, dar palestras e conferências nas universidades e nos sindicatos? Formação política é sempre importante, mas sozinha e descolada de um objetivo de mudanças profundas e, sobretudo, descolada da ação cotidiana, pouco incomoda a estrutura social, acostumada ao marasmo político, à desistência passiva ou à adaptação oportunista.
         O inspirador de Jessé Souza, Florestan Fernandes, nos responde a todos estes questionamentos de forma muito mais progressiva e muito mais séria: “O que se destroçou? A ilusão de que um país como o Brasil possa expungir-se de iniquidades seculares por meios pacíficos (…). A democracia exige uma revolução social. Uma revolução social rebenta de baixo (ao contrário da contra-revolução) e vai da sociedade para o sistema do poder (e a forma política do Estado) (…) Os caminhos pacíficos estão bloqueados e que as ‘esquerdas’ que ganharam mas não levaram, precisam aprender a avançar revolucionariamente na direção de sua organização institucional (…). É preciso enraizar os desenraizados em seus partidos, em suas organizações de luta, em seus meios ideológicos e políticos de atuação defensiva e ofensiva”[xv].
         Nesta conclusão tão singela e tão profunda de Florestan, a sociologia de Jessé Souza não apenas não representa avanço algum, como, perigosamente, pode significar um retrocesso.


NOTAS


[i] SOUZA, Jessé. A ralé brasileira – Quem é e como vive? Editora UFMG, BH, 2009 (página 406).
[ii] Idem (páginas 416 e 417).
[iii] Idem (página 415).
[iv] Idem (página 418).
[v] SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira – ou como o país se deixa manipular pela elite. Editora Leya, São Paulo, 2015 (páginas 53 e 54).
[vi] Idem (página 56).
[vii] Idem (páginas 91 e 92).
[viii] SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira, para entender o país além do jeitinho brasileiro. Editora Leya, Rio de Janeiro, 2018.
[ix] SOUZA, Jessé. A ralé brasileira – Quem é e como vive? Editora UFMG, BH, 2009 (página 43).
[x] SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira – ou como o país se deixa manipular pela elite. Editora Leya, São Paulo, 2015 (páginas 256 e 257).
[xi] Idem (página 90).
[xii] Idem (página 116).
[xiii] SOUZA, Jessé. A ralé brasileira – Quem é e como vive? Editora UFMG, BH, 2009 (página 430).
[xiv] Idem (página 430).
[xv] FERNANDES, Florestan. Que tipo de república? São Paulo: Brasiliense, 1986.

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