O livro de Orwell, ainda que diga que se trate de uma crítica a todas as ditaduras do mundo, faz uma alusão descarada à URSS. Todo o seu conteúdo serve perfeitamente para disseminar os mais nefastos preconceitos anti-socialistas, associando mecanicamente as ideias de "ditadura totalitária" e "ineficiência econômica" diretamente e acriticamente à de "socialismo". A ideia central que inevitavelmente se chega é que o socialismo leva automática e inevitavelmente a ditadura de partido único dirigida por um "grande irmão", uma vez que, segundo a ficção literária, todos os países do mundo teriam se tornado "Estados Operários socialistas". Desde os EUA até a Inglaterra (que é onde se desenrola a trama). A ficção é extremamente forçada ao ignorar a economia e a política, pois desconsidera as mudanças econômicas profundas que sofreria a URSS (ou “Oceânia”, na ficção) se um país imperialista, tal como EUA ou Inglaterra, aderisse ao socialismo, por exemplo, mas reforçariam – segundo a “ficção” – o poder totalitário do tipo stalinista. Não por acaso, o livro se baseia na teoria do "Coletivismo Burocrático" de Bruno R., líder da oposição pequeno-burguesa dentro da IV Internacional, que dizia que o futuro da humanidade seria um inevitável avanço às formas de sociedade semelhantes ao stalinismo – caracterizado por Trotsky como um regime transitório por suas próprias relações sociais, que tenderiam ao avanço para o socialismo pleno ou um retorno ao capitalismo. Os teóricos do "coletivismo burocrático" deram ponta pé inicial à tese fantasiosa – que teve toda a sua falsidade desnudada por Trotsky – e Orwell levou até as últimas consequências na ficção.
Podem argumentar de que se trata de literatura, ficção e, portanto, de uma expressão artística, o que não se tem nada a objetar. Contudo, as obras de arte não estão imunes à crítica. Além do que, existem obras de arte progressistas, revolucionárias; e obras de arte reacionárias, que servem perfeitamente aos interesses das classes dominantes. Eis onde se encaixa o livro de Orwell e o porquê de merecer uma crítica. O seu conteúdo não inspira os fracos, os oprimidos, os explorados, os escravos modernos. Muito antes pelo contrário: dá-lhes uma injeção fatal de desânimo, de prostração, de ceticismo, de dúvidas insolucionáveis.
O livro de Orwell ignora completamente a teoria marxista e, em especial, o trotskysmo e a sua crítica implacável ao stalinismo. Transforma a oposição trotskysta – na ficção expressa pelos seguidores de Emanuel Goldstein – num corpo de lunáticos, fanáticos, terroristas, que praticam atos de sabotagem inconsequentes; isto é, tudo o que a oposição trotskysta combateu na teoria e na prática (são conhecidos os longos textos e artigos de Trotsky contra o terrorismo e os atos isolados das massas). E não ironicamente, o livro faz coro – nem tão "fictício" assim – a tudo o que o stalinismo acusava a oposição trotskysta: terrorista, sabotadores, fanáticos, etc. "1984" faz terra arrasada do trotskysmo, dissemina preconceito contra todo o pensamento socialista (oposição, situação, etc.). Num dado momento do livro diz claramente que não existe esperança em lugar algum, nem sequer nos "proletas". O que fazer? Se enterrar no porão e esperar o fim do mundo (nas horas livres do trabalho, é claro), enquanto a burguesia desfruta do paraíso sobre a terra as nossas custas e perpetua a sociedade de classes.
Não é a toa que o livro é utilizado amplamente pelo imperialismo, sobretudo, neste período pós-restauração capitalista na URSS. Se um "trabalhador comum" ler “1984” em nenhum momento concluirá que o "Grande Irmão" existiu ou existirá num país que não seja "socialista". Ao contrário. Este "leitor" desenvolverá inúmeros preconceitos (alguns talvez insanáveis) contra o "socialismo", mesmo sem nunca ter lido nenhuma obra especializada sobre socialismo, de um teórico marxista, de um dirigente da Revolução Russa. Isto é, além de não ter noção científica sobre o que é o “socialismo” e o “comunismo”, este livro passa a ser sua crítica ao "socialismo", sua posição política acerca do que é "socialismo".
George Orwell perde páginas e páginas descrevendo as torturas – tal como faz Arthur Koestler em "O zero e o infinito" – que sofre seu personagem "contestador da ordem", mas não dá a menor atenção à análise política e teórica trotskysta, que consta em inúmeros jornais, livros e artigos; tais como: "A Revolução Traída" (de 1936), "A revolução desfigurada", "A III Internacional depois de Lenin", "Stalin, o grande organizador de derrotas", "A História da Revolução Russa", dentre muitos outros.
Naturalmente este livro é amplamente utilizado pelos ideólogos burgueses e, principalmente, pela grande mídia comercial, que o divulga e o reimprime em diversas novas edições através de suas editoras milionárias. Se eu fosse um burguês, um banqueiro ou um especulador, receitaria entusiasticamente este livro aos "meus operários". Como um trotskysta convicto eu só posso dizer que, junto com "A revolução dos bichos", "1984" aprofunda o ceticismo e a descrença dos trabalhadores e do povo pobre no socialismo, ou seja, na única saída para a crise capitalista que estamos vivendo e que aprofundará impiedosamente a barbárie e a miséria da grande esmagadora maioria da população. Este tipo de literatura reacionária excita os maus instintos da multidão, reforça a alienação capitalista, tornando impossível aos trabalhadores mais “atrasados” na vida política desfazer estes nós. E num momento que vivemos uma crise de direção revolucionária tão profunda, de hegemonia do oportunismo político na vanguarda, de baixa mobilização, de grande despolitização e vacilação no movimento operário, "1984" entra como um elo "artístico" na manutenção da opressão de classe, da ditadura atual nem tão disfarçada assim, onde, na verdade, quem se revela o verdadeiro "Grande Irmão" é o Banco Mundial, o FMI e o grande capital.
Adendos ao texto através de comentários feitos no facebook:
D.: Concordo com tudo que você falou. Aliás, me impressiona muito como muitas pessoas de esquerda acham que o livro é uma simples crítica do stalinismo. Algumas informações podem reforçar seus argumentos. O George Orwell pertenceu as brigadas do POUM na guerra civil espanhola, mas depois da II Guerra Mundial, segundo o historiador Josep Fontana (em "História, análise do passado, projeto social") ele passou a trabalhar como colaborador da CIA. Tanto "1984", quanto "A Revolução dos Bixos", tiveram sua divulgação amplamente financiada pela CIA, e no Brasil esses livros foram editados no início dos anos sessenta pela principal agência empresarial que conspirou para depor o governo João Goulart em 1964 e impor a ditadura militar, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). A importância do IPES para o golpe e a ditadura foi esclarecido pelo cientista político uruguaio René Dreifuss no seu livro "1964, a conquista do Estado", que nos anexos tem os livros editados pelo instituto, entre os quais os do Orwell.
A.: Orwell, Arendt e outros eram ligado a política cultural do imperialismo... leiam o livro A Guerra Fria Cultural e outras fontes.
A.: Koestler é citado assim como Pollock, Reagan e tantos outros intelectuais e artistas - muitos deles dizendo-se socialistas, libertários e coisas assim - mas que estavam no bolso da CIA na chamada "guerra fria cultural".
A.: "Entre os intelectuais patrocinados ou promovidos pela CIA estavam Irving Kristol, Melvin Lasky, Isaiah Berlin, Stephen Spender, Sidney Hook, Daniel Bell, Dwight MacDonald, Robert Lowell, Hannah Arendt, Mary McCarthy e muitos outros. Na Europa, havia um interesse especial na Esquerda Democrá;tica e em ex-esquerdistas, como Ignacio Silone, Arthur Koestler, Raymond Aron, Michael Josselson e George Orwell." - sinopse do livro de F. S. Saunders
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