terça-feira, 1 de setembro de 2020

O agro não é pop! Análise do agronegócio brasileiro e sua relação com a China

*Por Kim Follador

O Mercado de Trabalho Agrícola brasileiro se insere em uma estrutura produtiva majoritariamente voltada para o que identificamos como agronegócio, marcado pela modernização tecnológica a partir da década de 60 com a “Revolução Verde”, que transformou o modo de produção agrícola adotado até o momento, baseada no melhoramento genético das cultivares, intensificando a utilização de insumos e agrotóxicos, de maquinário e tecnologia, o que, a longo prazo, demanda o aprimoramento das técnicas de cultivo, criando uma dependência por esses insumos, por território, e, principalmente, pelo mercado externo consumidor desses produtos. O processo de tecnificação da agricultura impactou fortemente o trabalho rural por conta da mecanização do trabalho, da mudança de sazonalidade dos cultivos e da demanda por mão-de-obra nas diferentes fases de cultivo e até mesmo por mudanças no ciclo biológico desses cultivos.

O processo de modernização conservadora contribuiu para a consolidação do atual modelo do agronegócio brasileiro, marcado pelo foco na produtividade voltada para exportação de produtos brutos. É importante ressaltar que apenas médios e grandes produtores tiveram acesso aos programas de crédito fornecidos pelo Governo no início desse avanço tecnológico, o que vai determinar a dinâmica de trabalho ligada às atividades agrosilvipastoris a partir daquele momento, acarretando na organização do trabalho tal como é estabelecida hoje. Dessa forma, esse padrão estabelecido quase que impositivamente – ou você se adequa, ou fica à margem – passou a criar dois polos antagônicos de modelos produtivos: o da agricultura patronal e o da agricultura familiar. São duas formas distintas de produzir alimento, que assumem diferentes papéis no contexto brasileiro do mercado de trabalho e suas ocupações, com objetivos diferentes em relação ao destino de suas produções, além da diferença de valor agregado ao produto entre elas, diferenciando-as também no processo produtivo e em suas formas de comercialização. Por um lado, o mercado de trabalho agrícola brasileiro é amparado por recursos públicos para o desenvolvimento de uma agricultura voltada para a manutenção favorável da nossa balança comercial – o que é importante –, mas que não podemos destinar apenas a esse setor a responsabilidade por manter positiva a economia brasileira frente à concorrência internacional, uma vez que essa dependência na verdade fragiliza nossa economia externa, e por outro lado, deixamos de incentivar não só alimentos destinados à alimentação dos próprios brasileiros, mas também incentivar ‘novos’ produtos, dentre eles os com valor agregado, beneficiados talvez por jovens produtores de pequeno porte que, atraídos por programas de acesso a crédito e incentivos fiscais, passam a considerar a agricultura como uma alternativa digna e sólida de atividade remunerada, ou seja, de trabalho, condição para permanecerem no campo.

Como pode considerar-se avançado um país em que uma das suas principais atividades econômicas, a Agricultura, vem sendo cada vez mais renegada pelas gerações mais novas?! É uma contradição. Ainda mais, seria muito audacioso pensar em uma juventude saindo da cidade e indo para o campo para se dedicar a uma das tarefas mais ‘nobres’ que pode existir, que é produzir algo tão essencial à vida: o alimento?! E se esse alimento for cultivado, em cada local, para abastecer a sua proximidade, respeitando seu ciclo natural, em equilíbrio e até imitando a natureza, se tornando a cada safra mais independente de aporte de insumos externos como fertilizantes, utilizando sim o desenvolvimento tecnológico, mas apenas o suficiente para empregar um modelo que produza não apenas alimentos, mas também saúde, independência, facilitando o acesso da população a tais alimentos, tanto na questão do preço final dos produtos, que hoje acabam encarecidos por conta da falta de incentivo e necessidade de certificações de alto custo aos produtores – no caso dos alimentos orgânicos –, quanto na questão de transporte desses alimentos: quanto mais se encurtam as cadeias produtivas, sem necessidade de atravessadores, ganham produtores e consumidores, pois o preço do produto baixa e o lucro do produtor aumenta, assim como a quantidade vendida, já que o consumidor terá maior poder de compra com preços mais acessíveis.

Podemos pensar também em um sistema agroalimentar que inclua a produção no meio urbano, utilizando espaços dentro das cidades para produzir alimento. Se foram verticalizadas as habitações para poder abrigar cada vez mais pessoas no meio urbano, por que não pensar em estratégias também para otimizar a utilização do espaço urbano para produção de alimento?! Não que o meio urbano passe a ser o principal produtor, mas que se aproprie, na sua capacidade, da produção de certos gêneros alimentícios que hoje em dia dependem do campo, mas que teriam plenas condições de serem cultivados na cidade, como temperos, chás e hortaliças, por exemplo. Evidente que para viabilizar essas alternativas precisamos que pessoas se dediquem a estudar essas estratégias, em diferentes esferas da complexidade em que essa perspectiva se apresenta. No entanto, já existem algumas iniciativas que caminham nessa direção, que é o caso da compostagem doméstica. Além de dar uma destinação mais correta aos resíduos sólidos orgânicos, diminui os gastos da prefeitura - que gasta por tonelada de lixo - com coleta, transporte, transbordo e destinação final dos resíduos, e que ainda produz fertilizantes sólido e líquido, que podem ser melhor estudados para serem aplicados nessas produções urbanas. Dessa forma o ciclo se completa: a pessoa come o alimento, composta, gera adubo para produzir outro alimento. Sem abordar a educação alimentar e ambiental, mudança de hábitos, quebra de paradigmas: “estou desembalando mais que descascando?”.

Se continuarmos pensando de acordo com o modelo vigente, sem pautar novas estratégias de produção, transporte e comercialização de alimentos, não será possível avançar. As questões que influenciam o sistema agroalimentar atual, como a insegurança alimentar como questão de segurança nacional, a apropriação de terras, o espaço para produção, o cenário de mudanças climáticas influenciadas pela forma como se preferiu fazer agricultura, devem ser melhor formuladas, repensadas, sendo necessário abrir mais espaço para modelos nos quais já vemos resultados positivos. Tomemos como exemplo a FAO (ligada à ONU), que não teve alternativa a não ser progredir. Muito baseada no exemplo de países europeus ditos desenvolvidos - como a Alemanha, em que 80% da população consome orgânicos e tantos outros que já têm uma ampla rede de políticas públicas voltadas à agroecologia também como forma de prevenir doenças, por exemplo - aderiu ao desenvolvimento humanitário e passou a apoiar a forma de agricultura que realmente está disposta a erradicar a fome no mundo e a garantir a segurança e soberania alimentar: a produção agroecológica de alimentos.

Nesse contexto de avanço, não abrir um espaço maior para esse mercado que se agiganta à nossa frente (o de produtos mais saudáveis com valor agregado) significa não aproveitar o potencial de ampliação de mercado de trabalho e a consequente diversidade de possibilidades de ocupações. Nos resta questionar a quem está servindo conter o avanço desse nicho com potencial tão elevado, e em meio a todas essas alternativas que esse novo mercado propõe, assistimos aos representantes políticos deste mesmo país aprovarem projetos de lei que restringem a venda de produtos orgânicos ao mesmo tempo que flexibilizam a utilização de agrotóxicos.

 

Diversificação de produtos: agregar valor e dependência do mercado chinês (com citações em itálico, neste e no próximo tópico, extraídas do artigo: “A força que move o agronegócio brasileiro”, publicado na revista China Hoje e disponível em: http://www.chinahoje.net/a-forca-que-move-o-agronegocio-brasileiro/).

- De 2000 a 2020, as importações chinesas saltaram de 2% para 35% da pauta exportadora do agro brasileiro; a China se tornou o principal cliente global do Brasil, bem distante de EUA e Europa

- Neste momento delicado das contas internas brasileiras, com tendência de piora por causa da recessão global, é mais conveniente tratar bem nosso cliente histórico, inclusive porque ele poderá produzir grãos e petróleo na África e ser menos dependente da nossa produção”, prevê Roberto Rodrigues referindo-se à “Rota da Seda”, projeto chinês de US$ 1 trilhão para infraestrutura na Ásia, Europa, Oriente Médio e África.

- No ano passado, do total das exportações brasileiras (US$ 225,4 bilhões), 28% foram para a China, bem acima do segundo maior destino – EUA, com 13%.

- Para o presidente-executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, “o agro é a salvação da lavoura porque, embora nossa dependência se concentre em três produtos, o agronegócio é quase a soma dos outros dois” exemplifica, referindo-se a soja, petróleo e minério de ferro, que acumularam vendas de US$ 16,6 bilhões, US$ 9,509 bilhões e US$ 7,545 bilhões, respectivamente, de janeiro a maio deste ano.

- Castro sublinha que a China é responsável por 90% do superávit da nossa balança comercial acumulado nos primeiros cinco meses de 2020

- Outro dado indica a relevância do comércio entre os dois países: o único país com que o Brasil ampliou importações em 2020 foi a China. De todos os demais, as compras brasileiras caíram mais de 11%. “Nos próximos dois anos, a China continuará absoluta nas nossas compras externas. Hoje, 85% do que o Brasil importa da China são manufaturados, e quase 100% do que exportamos são commodities”, acrescenta Castro. “Nossa dependência não está só na exportação, está na produção mesmo”

- Para o sócio-diretor da MacroSector Fábio Silveira, o Brasil precisaria estreitar a cooperação para abrir novos mercados, vender mais farelo de soja e açúcar, suco de laranja e fumo. Outro exemplo é o café: em 2019, a China ocupou a 34ª posição entre os países que mais consomem o grão brasileiro, apesar do salto das exportações de 328% na última década (US$ 177,4 milhões no ano passado). “Precisamos continuar investindo em tecnologia e pesquisa para melhorar a qualidade do nosso café e atender à demanda chinesa, que está aprendendo a consumir a bebida”, diz Nelson Carvalhaes, presidente do Cecafé (Conselho dos Exportadores de Café do Brasil).

- “Ocupamos o espaço da Argentina quando taxou as exportações de soja; mais recentemente, a guerra comercial.

- avançar em várias direções, entre elas, a maior presença do Brasil nas importações chinesas de produtos semielaborados e acabados, e não só de commodities agrícolas e proteína animal.

- Dos embarques para os chineses, o agronegócio respondeu por 42% (US$ 26,5 bilhões), dos quais US$ 20,5 bilhões somente em soja em grãos e US$ 4 bilhões de carnes de frango, bovina e suína. Ou seja, quase 100%.

- Exportando para eles mais carne em vez de tanta soja, é uma maneira de agregar valor às nossas vendas”, comenta Jank.

            É possível perceber que se compreende que o Brasil precisa diversificar os produtos que exporta, assim como agregar valor a eles, mas parece que isso se limita a “ter mais produtos para vender e dessa forma ganhar mais dinheiro”. Não é feito nenhum esforço para enxergar além dos números, então a lógica que se estabelece é que se quase 100% do que foi vendido pra China pelo agronegócio foi grão de soja e carne no geral, então se aposta alto exclusivamente nesse nicho, sem preocupação com o risco que isso acarreta. E se esse comprador tão fiel até agora der um jeito de não depender mais do Brasil dessa forma?! (Que é o que já estão fazendo...) Não vamos ter outras opções na manga porque toda a estrutura produtiva do Brasil vai ter sido moldada pra atender a demanda externa por soja e carne, fazendo com que a gente tenha que lançar mão na marra, de uma hora para outra, do desenvolvimento de outras possibilidades que possam ser fortes e competitivas no mercado externo. Os mesmos que criticam a economia da Venezuela, que apostou tudo no petróleo e por um jogo de poder geopolítico acabou como está agora, dizem para o povo brasileiro que devemos plantar soja para alimentar o mundo! Olhem a contradição!

            É evidente que o Brasil não está de braços cruzados esperando isso acontecer, mas não é dada a devida importância à diversificação que a produção de alimentos merece; muito pelo contrário, é negligenciada, uma vez que o esquema já está todo organizado. É muito rentável para a cadeia produtiva da oligarquia dos barões do agronegócio, que vai desde os detentores de sementes, passando por fabricantes de todos os insumos (fertilizantes, agrotóxicos, etc.) e abastecimento (super e hipermercados), que, em parceria com bancos que concedem crédito aos produtores, tornam essa atividade a mais lucrativa possível para eles, a minoria produtora rural do país.

            E se tivesse mais políticas públicas voltadas pra incentivar (de mil e uma formas que não citaremos aqui, mas, por exemplo, diminuindo imposto sobre a exportação - BEM COMO É FEITO COM AS COMMODITIES!), diminuindo imposto de circulação desses produtos, diminuindo taxação sobre produção e comercialização de produtos agrícolas voltados para a transição agroecológica, como insetos nativos que predam outros considerados praga em certos cultivos, ou então financiar massivamente pesquisas que trabalhem nesse caminho, como produção de óleos essenciais, que mostram eficácia como fitoterápicos (para as plantas), mas que são tão incipientes ainda! Aí pegam a piretrina, molécula produzida por uma planta, o crisântemo (o do bem-me-quer-mal-me-quer); copiam essa molécula em laboratório e produzem inseticida a partir dela. A vida não pode ser patenteada, mas com a cópia dela não precisa de qualquer escrúpulo.

            O Brasil é um país continental. Temos quase todos os biomas do mundo; temos uma variação climática incrível ao longo do território; podemos produzir tantas espécies de plantas a se perder da conta! Por que forçar que produzam as mesmas em qualquer canto do território nacional? O quanto não foi investido de dinheiro público pra produzir uma variedade de soja que se adaptasse às condições de solo e de clima do Cerrado brasileiro? Pra beneficiar quem? Por que não investir na transição agroecológica, na produção orgânica de café agroecológico, por exemplo? Porque os movimentos sociais já estão cumprindo esse papel, já estão mais inseridos nesse mercado... Teríamos um comprador maravilhoso: o mercado europeu. O problema não está em que não temos hoje tecnologia para exportar produtos que perecem facilmente, como frutas e hortaliças. Querem produto mais perecível do que a carne? Não valeu a pena investir em pesquisa, tecnologia para buscar soluções para esse e outros problemas?

            Em relação à agregação de valor, podemos dar o exemplo da nossa produção de café. Somos os maiores produtores de café do mundo! Mas quem ganha mais dinheiro com a exportação de café é a Alemanha, que compra o nosso café, o “beneficia” e o vende para o mercado externo. Por que a gente não faz isso? O que a Alemanha tem que nós não poderíamos desenvolver? Que interesses estão por trás dessa relação?

            Ademais, com maior quantidade de produtores em áreas menores (ao contrário de poucos produtores em áreas gigantescas e muitos em áreas pequenas), produzindo ecologicamente, com diversidade, o potencial produtivo do Brasil ia pulsar no mundo inteiro! Não apenas na Europa, que poderia ser o principal parceiro comercial do Brasil. É engraçado que o pessoal do monocultivo, da soja e da carne, odeia o mercado europeu, vivem falando que é burocrático demais e que temos que valorizar a China como parceiro externo. Claro, os produtos que a Europa quer não são os produtos desse modo tóxico de produção!

 

O que está por trás dos novos hábitos chineses? O mito da carne (proteína animal) como fonte de proteína mais barata

- tem de estar atenta às tendências nos hábitos, provocadas pela ocidentalização da cultura das novas gerações.

- Turra observa o interesse recente dos chineses por produtos mais prontos, com o crescimento da classe média que migra do campo para as cidades.

- “As profundas transformações se casaram em 2000, quando a demanda explosiva por proteína animal da classe média emergente chinesa se encontrou com a imensa oferta de soja do cerrado brasileiro. A soja, uma planta originária da China, é a principal fonte de proteína da alimentação animal.

- Segundo o professor do Insper e da Esalq-USP, o “casamento entre a demanda deles por proteínas vegetais para produzir proteína animal lá provocou o avanço da nossa produção”.

 

     Essa é uma pauta atrelada ao vegetarianismo e ao veganismo, que vai além da preocupação com o bem estar dos animais. Muito se fala que o vegetarianismo e o veganismo são elitizados e caros, principalmente por esse pessoal que se alegra um tanto que os chineses passaram a comer mais carne com o crescimento da classe média. Ora, se uma alimentação baseada na carne como fonte de proteína fosse mais viável economicamente, o que a ascensão da classe média teria a ver com o maior consumo de carne pela China?! Não sou vegetariana, mas me questiono quanto ao “nível saudável” da proteína de origem animal. Por outro lado, acho que a solução não seria eliminar o consumo de carne, mas reduzir drasticamente essa dependência da carne que nos foi criada. Se tivéssemos mais essa consciência, não consumiríamos tanta carne e deixaríamos de movimentar essa engrenagem da produção de soja, do desmatamento para avançar em área, que no fim e ao cabo, serve para criar boi, vaca, porco, peixe, qualquer tipo de proteína de origem animal. E a carne em si não é o maior problema, mas sim a produção de leite e derivados. Se usa 10x mais área pra pastagem e produção de milho/sorgo pra dar conta de produzir gado de leite do que gado pra carne. Portanto, essa ocidentalização da cultura chinesa vem bem a calhar aos barões do agronegócio brasileiro.

            Por outro lado, a produção de gado, ovinos e caprinos por pequenos agricultores aqui no Rio Grande do Sul tem extrema importância, principalmente para a preservação do bioma Pampa, cuja parcela brasileira está localizada exclusivamente na metade Sul do Rio Grande do Sul. É uma atividade realizada há gerações por esses pecuaristas que ainda não se dobraram para a soja, embora já existam casos de desmatamento da mata nativa para a implantação da cultura ou então para a implantação de megaminerações.

 

Segurança alimentar e nutricional de uma população mundial em ascensão

- De acordo com estudos da FAO e USDA (Departamento de Agricultura dos EUA), para o planeta ampliar em 20% a oferta de alimentos nos próximos dez anos e, com isso, afastar o risco de fome, o Brasil terá de incrementar sua produção em 40%, no mesmo período, bem à frente de Estados Unidos (12%), Europa, China, Índia e Rússia (14%).

Essa é uma das maiores bobagens da história! Não precisamos produzir mais alimento, precisamos que os alimentos produzidos sejam acessados pela população brasileira e mundial. Poderemos produzir o quanto quisermos, 50 vezes mais, mil vezes mais, mas ainda teremos bocas sem alimento se seguirmos com esse modelo vigente que é assegurado pela desigualdade.

O setor alimentar deverá preocupar-se nos próximos anos com estratégias a serem implementadas a fim de garantir a segurança alimentar minimizando os impactos ambientais para uma população em crescimento exponencial. Os métodos utilizados para a produção de alimentos hoje no mundo se divide basicamente em dois grandes grupos: o que aposta na agricultura extensiva para elevar a produtividade e o que acredita que este modelo está defasado – sobretudo no quesito de conservação ambiental –, propondo diferentes alternativas.

          A viabilidade de assegurar alimentação de qualidade para a população mundial depende do empenho do poder público e dos cidadãos produtores e consumidores de alimentos em garanti-los em quantidade suficiente e sem prejuízo à saúde e ao meio ambiente. Para isso é importante sim que exista alta tecnologia sendo aplicada nesse setor, alto recurso financeiro destinado à pesquisa e à capacitação tanto de agricultores quanto de assistentes, visando prioritariamente a saúde da população e a suficiência de alimentos. No entanto, o que percebemos é o empenho de grandes empresas que hoje controlam direta e indiretamente a cadeia produtiva, como a Bayer+Monsanto, em garantir lucratividade em detrimento da erradicação da fome no mundo – esta última vem sendo utilizada como principal justificativa para as práticas dessas empresas em conluio com o setor estatal burguês, que muito se apoiam na financeirização do setor alimentar, destacando-se a elevada concentração de terras nas mãos de poucos produtores, da ascensão do preço da terra e consequente restrição do acesso a ela pelos menos favorecidos.

                O que evidencia ainda mais a incoerência capitalista das fusões dessas multinacionais é justamente a transgressão do seu pilar básico: o liberalismo como estratégia para assegurar a competitividade e, assim, garantir qualidade. Isso não acontece! Sem competição, dentro do capitalismo, não há como assegurar a qualidade dos produtos, muito menos baixos preços, pelo princípio econômico simples da oferta/procura. Se a qualidade e o preço justo não eram prioridade antes das fusões que ocorreram nos últimos anos, agora que a maior empresa de tecnologia em agricultura e a de fármacos se uniram, o monopólio tende a abranger a vida, uma vez que os remédios serão produzidos pela mesma empresa que nos causa doença.

 

A abertura para a exploração da nossa terra pelo o mercado internacional: neoliberalismo; financeirização do alimento; pagamos esse preço com a nossa natureza!

Vejamos um trecho do livro “A Empresa Radar S/A e a Especulação com Terras no Brasil”:

O agronegócio consome bilhões em recursos públicos e créditos subsidiados que acabam por se transformar em dívidas impagáveis. Dados oficiais revelam que as políticas agrícolas do Estado brasileiro priorizam o apoio à expansão de monocultivos. O Estado disponibiliza linhas de crédito subsidiadas para o agronegócio através da negociação de Títulos do Tesouro Nacional no sistema financeiro. Segundo o Plano Agrícola e Pecuário de 2015/2016, no decorrer da última década os valores destinados ao agronegócio por meio do mecanismo de crédito rural mais do que sextuplicou, saltando de R$27 bilhões em 2003/2004 para R$187,7 bilhões na safra de 2015/2016. As empresas do agronegócio se utilizam ainda de acesso a créditos para especular no mercado financeiro. Um exemplo ocorreu com a agroindústria canavieira brasileira que utilizou tais recursos para especular com derivativos cambiais ao longo da primeira década do século 21. Diversas usinas tomaram empréstimos baratos em dólar, aproveitando a valorização do real ao longo daqueles anos. Com a reversão dessa tendência e a valorização do dólar em relação à moeda brasileira, a partir da crise econômica mundial iniciada em 2008, muitas usinas quebraram. O setor somou um prejuízo de mais de $4 bilhões de reais apenas em derivativos cambiais, logo após o início da crise. As empresas deixaram de investir, por exemplo, na renovação de canaviais, tratos culturais e adubação, o que mantinha a elevação dos níveis de produtividade. Por essa razão, em janeiro de 2012 o governo brasileiro liberou $4 bilhões de reais para o agronegócio somente para a renovação dos canaviais. A crise econômica mundial gerou uma mudança no perfil do agronegócio no Brasil e estimulou a presença de empresas estrangeiras de diferentes setores, não só agrícolas, mas também financeiras, automotivas e petroleiras. Este processo ocorreu principalmente através de fusões e aquisições, causando maior concentração de capitais. As empresas optam por tal procedimento com a intenção de aumentar seu capital e demais ativos, como máquinas, terra, subsidiárias, entre outros. Assim, o preço de suas ações, compostos por tais ativos financeiros, passa a ser parte fundamental do valor de mercado das empresas e torna-se parâmetro para que consigam crédito. O acesso a crédito e a novos instrumentos financeiros gerou maior capacidade de endividamento do setor, permitindo uma transformação tecnológica que aprofundou a diferença entre montantes de capitais investidos e imobilizados em relação à força de trabalho a ser explorada. Este movimento aprofunda a incapacidade das empresas se valorizarem por meio da exploração do trabalho, justamente a finalidade do capitalismo que se critica.

O agronegócio necessita de cada vez mais volumosas massas de créditos e subsídios estatais para manter sua expansão, o que gera um crescente endividamento que, por sua vez, incentiva a expansão territorial, expressa na contínua incorporação de “novas” áreas de monocultivos, principalmente em regiões ricas em fontes de água, biodiversidade e infraestrutura. A extensão territorial, que marca historicamente o agronegócio no Brasil, aumenta diante do cenário de acúmulos constantes de dívidas. Porém, é este contexto de expansão que motiva a própria crise, já que o agronegócio se expande com o objetivo de remunerar o capital imobilizado na forma de investimentos em mecanização e na crescente necessidade de aquisição de insumos químicos. A necessidade de incorporação de novas áreas fomenta a inflação do preço do solo, o que permite justamente que este passe a ser negociado como ativo financeiro à parte, submetido à especulação de investidores em busca de rendimentos.

Em pleno século 21, o país continua a basear sua política agrícola nas supostas “vantagens naturais” de seu território e na superexploração da força de trabalho. Esta política, sustentada pelo monocultivo para exportação, serve aos interesses de uma oligarquia latifundiária agora travestida de agronegócio, que supre as demandas dos países centrais por commodities agrícolas. Com isso, o Brasil perde a oportunidade de realizar propostas históricas defendidas pelos movimentos sociais para a garantia de sua autonomia, que não pode ser construída sem a própria soberania alimentar.

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Vejamos, agora, um trecho de “A floresta negociada na bolsa”:

O novo Código Florestal, aprovado em 2012 (anos do governo Dilma/PT – vale lembrar), trouxe a novidade das Cotas de Reserva Ambiental (CRAs), que possibilitam a adequação ambiental das propriedades rurais em mecanismo similar ao do mercado de crédito de carbono, que permite que países que emitem muito CO2 comprem cotas daqueles que emitem menos. A diferença é que, no caso das CRAs, o negócio se dá entre as áreas de Reserva Legal dos imóveis rurais. Uma Reserva Legal é uma área coberta por vegetação natural dentro do imóvel rural que pode ser explorada somente com manejo florestal sustentável, respeitando-se o bioma em que está a propriedade. Funciona assim: os proprietários ou posseiros dos imóveis que possuírem um excedente de Reserva Legal ou vegetação nativa declarado nos seus Cadastros Ambientais Rurais (CARs) poderão vender, quando as CRAs forem regulamentadas, essas áreas excedentes em forma de cotas, também chamados de “títulos representativos”, para os imóveis que não estiverem com o nível de Reserva Legal exigido pela legislação ambiental. Por lei, esse nível de Reserva Legal varia de 20% a 80% da área do imóvel e leva em conta o bioma e a região do país no qual está inserido.

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            Comparemos tudo isso com outras citações escolhidas do artigo da revista China Hoje, “A força que move o agronegócio brasileiro”:

- A parceria pode ser ampliada com a maior presença do capital chinês no Brasil. Para reduzir a dependência de multinacionais no escoamento de suas importações, a China vem adquirindo corretoras de commodities, concorrendo com gigantes como a Bunge. Assim surgiu a trading estatal chinesa Cofco International, uma das maiores exportadoras de soja do Brasil.

- Os chineses estão presentes nos negócios antes e depois da porteira. Só não estão dentro das fazendas porque estrangeiros não podem ser donos de terras no Brasil, assinala Eduardo Daher, diretor executivo da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).

Não é verdade que estrangeiros não podem ser donos de terras no Brasil. Existe, inclusive, um termo para isso, que tem sido acentuado nos últimos anos devido à facilidade com que empresas estrangeiras têm tido em se apropriar de terras no nosso país: “estrangeirização da terra”. Essa questão pode ser melhor entendida no artigo de 2016 de título O PROCESSO DE ESTRANGEIRIZAÇÃO DA TERRA E EXPANSÃO DO AGRONEGÓCIO NA REGIÃO DO MATOPIBA, de Lorena Izá Pereira e Lucas Pauli, cujo resumo é o descrito abaixo:

A partir da crise agroalimentar de 2007/2008, observamos um período de intensificação na disputa mundial por terras. A estrangeirização é analisada como um processo que ocorre em escala global, com destaque para os países Africanos e Latino-Americanos, pois apresentam terras com baixos preços, legislação ineficaz, terras agricultáveis e com disponibilidade hídrica e mão-de-obra barata. É neste contexto que está inserida a territorialização do capital transnacional na região do MATOPIBA, onde atualmente possui 26 empresas de capital transnacional territorializadas, sobretudo para a produção de commodities como algodão, cana-de-açúcar, milho e soja. A expansão desta nova fronteira agrícola da estrangeirização da terra é muito intensa, o que levou o governo brasileiro a elaborar um Plano de Desenvolvimento Agropecuário para a região, evidenciando novamente o papel do Estado brasileiro como mitigador do referido processo”.

Um estudo mais aprofundado sobre as políticas públicas aplicadas à Agroecologia nos demais países da América Latina, seria necessário para compreender melhor a dinâmica desse jogo de poderes com a Macroeconomia que é o que impede a maior inserção da Agroecologia como forma de produção alimentar nesses países. Poderemos, quem sabe, visar uma real soberania alimentar, a partir do momento em que voltarmos nossa produção para a diversidade de alimentos fortalecendo os “pequenos agricultores” (para não repetir Agricultores Familiares, mas não soa muito bem esse termo) e dando-lhes condições de produzir, bem como foi feito no passado – que se estende aos dias atuais – com os grandes proprietários monocultores. Na verdade, o subsídio estatal foi fundamental para o sucesso dos latifundiários em detrimento da produção familiar (o que, inevitavelmente, enfraquece o mercado interno e fortalece o centro do mercado mundial, para quem a produção dos latifundiários do agronegócio é destinada).

A fala do professor Sérgio Schneider, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS, no 18º Seminário do SENGE sobre Agricultura e Desenvolvimento com a perspectiva da Segurança Alimentar, que ocorreu no final de 2017, expõe a contradição do modelo agroalimentar atual que precisa ser superado:“existe um movimento mundial que modifica o cenário agrícola, desconectando-se da sua relação primordial com a nutrição e segurança alimentar da população. É necessário mudar a forma de produção. Se no século passado o objetivo era garantir a oferta de alimentos, hoje em dia é enfrentar os desafios da crescente urbanização da população, especialmente em países mais pobres, como a Nigéria e a Índia. Estamos atravessando uma transição no setor, onde o problema não está na escassez, e sim na baixa qualidade dos alimentos, aumentando as taxas globais de sobrepeso e obesidade. No Brasil, em 2010, 57% dos adultos já apresentavam sobrepeso, impactando a saúde pública. Dos grandes problemas de morte no mundo, as três grandes razões são doenças crônicas não transmissíveis devido à alimentação inadequada, como diabetes, pressão arterial e obesidade. O sistema alimentar se relaciona com a saúde pública. Atualmente o sucesso está baseado em métricas de colheita e produtividade, e não de saúde da população”.

Para garantir a segurança alimentar, compatibilizando o crescimento da população com a conservação dos recursos naturais e a produção de alimentos, deve-se focar na sua diversidade, bem como na mudança do modo de produção: sem monocultura, imitando a natureza, equilibrando o ambiente de produção para que não seja necessário o uso de agrotóxicos. Temos muito recurso e tecnologia que, se forem empregados para esse viés, poderemos erradicar a fome no mundo e, além disso, diminuir inúmeras enfermidades causadas por essa forma de pensar agricultura e alimentação que vemos ser dominante até o momento.


  

Referências:

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BUAINAIN, Antônio Márcio; ALVES, Eliseu; SILVEIRA, José Maria da; NAVARRO, Zander. O mundo rural no Brasil do século 21: A formação de um novo padrão agrário e agrícola. Brasília: EMBRAPA, 2014.

CRUZ, Fabiana Thomé; MATTE, Alessandra; SCHNEIDER, Sérgio. Produção, Consumo e Abastecimento de Alimentos: Desafios e Novas Estratégias. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016.

PEREIRA, Lorena Izá; PAULI, Lucas. O processo de estrangeirização da terra e expansão do agronegócio na região do MATOPIBA. in CAMPO-TERRITÓRIO: revista de geografia agrária. São Paulo, 2016.

PITTA, Fábio T.; MENDONÇA, Maria Luisa. A Empresa Radar S/A e a Especulação com Terras no Brasil. Outras expressões: São Paulo, 2015.

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