sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O bicho contemporâneo

*Por Raquel Silveira

O bicho


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira,1947.


73 anos nos separam do poema de Manuel Bandeira, mas nem um dia sequer nos aparta da mesma desigualdade social, embora vivamos apartados dos "bichos" que vagam pelas ruas do país ou montam "acampamentos da miséria" em cada canto obscuro: são os marginalizados, invisibilizados, animalizados! Em meio ao agosto invernal aqui do sul, na província, fez uma semana de verão durante certo dia e queda de temperatura a noite — o que vem se tornando típico. 

Era domingo e voltava para casa. O primeiro ônibus demora tanto que, apesar do bom café da manhã, já sinto um pitada de fome, ou a ideia de fome  — nunca se sabe bem quando é uma ou outra até se passar fome realmente, mas penso que vou chegar em casa passado hora do meio-dia e não há nada pronto pra comer, e iria almoçar muito tarde pra fazer algo, já que demora fazer baldeação no terminal Alameda-Partenon, e na vila não há onde comprar almoço pronto. Assim me achava eu, envolta nas minhas necessidades e possibilidades, nas minhas, repito; quando desço do primeiro ônibus no último andar do terminal, são dois andares e o nível térreo. 

Ao passar para o primeiro andar me deparo com uma das cenas mais aterradoras que vi com moradores em situações de rua  — uma cena aterradoramente desgraçada! O quê, por início, me invade é o cheiro: dejetos humanos, urina ardida, impregnada! Na medida em que me aproximo para passar as primeiras imagens se formam, desoladoras: isopores de marmita, vulgo "quentinhas" (o que não era o caso); um compacto e cintilante espaguete com salsicha — mas nunca vi assim: era algo com aparência cenográfico, como que coberto por uma película cristalizada —, até difícil de descrever, obviamente que em meio ao contexto, a mim causava repulsa, mas provavelmente, a quem ali estava, fosse tal qual o poema do Bandeira: o bicho tem a fome real, a acumulada, a que tira a energia, a luz, toda e qualquer perspectiva, e, essa é a morte em vida, a ausência de perspectiva pro aqui e agora, e do porvir; mas não acaba aqui: amontoado, amorfo ao olhos dos passantes, rente ao muro e a canto, um corpo estendido entre  as poucas cobertas. Nem sei como, apenas fiz o registro, de qualquer jeito, como pude, este relato dói, dói relembrar, doeu ver o entorno: outros muitos, acampados, envolvidos em poucas cobertas finas, alguns carrinhos com pertences, sabe lá quais conseguiram juntar ou a serventia; doeu a ponto de ter que dividir a dor logo ao chegar em casa com "aquele com o qual a gente precisa falar"...

A imagem do registro dei por perdida — estava muito escura (foto 2), até essa semana, quando fiz uma nova tentativa no editor e de algum modo saiu algo pra lhes mostrar e provar que os bichos estão aí, embora já saibamos (foto1); e ele sente a fome, o frio, as dores no corpo, a indiferença, as violências.


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