quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A repressão moral da sexualidade é uma das principais formas de dominação da psicologia de massas do fascismo


*Texto publicado originalmente no blog da Construção pela Base - Oposição à burocracia sindical do CPERS em 15 de fevereiro

Análise da política pública de abstinência sexual da ministra evangélica Damares Alves


As recentes declarações da ministra do governo Bolsonaro, Damares Alves, em defesa da abstinência sexual para a juventude, trouxe à tona um velho método fascista de resignação e domesticação das massas, que necessita ser amplamente debatido pela esquerda. Bolsonaro tenta esconder sua ligação com o nazi-fascismo, alegando que este “era de esquerda” ou dizendo-se adepto das religiões judaico-cristãs, tal como se a doutrina de Hitler se resumisse apenas à perseguição de judeus. Não tardou para que as consequências das forças doentias despertadas por seu governo trouxessem à superfície cenas bizarras, como a do secretário de “cultura”, Roberto Alvim, reeditando um discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels[i]. O “espanto” de muitos apoiadores de Bolsonaro o fez demiti-lo no dia 17 de janeiro. Esta demissão, a contragosto, acusou o golpe.
Como é sabido, o nazi-fascismo possuía um braço armado próprio, as “famosas” tropas de assalto hitleristas, chamadas de Sturmabteilung, as SA’s[ii]. O neofascismo bolsonarista também tem suas SA’s, que são as milícias do Rio de Janeiro. Segundo o próprio Bolsonaro: “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bem vindos”[iii]. Existem denúncias graves de que policiais civis de bairros importantes são acusados de ajudar milícias que deveriam investigar; além de 22 juízes cariocas estarem sendo ameaçados por grupos milicianos paramilitares[iv].
Mas as semelhanças com o fascismo não param por aí. O “bolchevismo cultural” dos nazi-fascistas alemães tornou-se o “marxismo cultural” tão combatido pelos olavistas do governo Bolsonaro, que vão desde o Ministério da Educação até o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Damares Alves, a ministra desta pasta, é uma pastora evangélica profissional e tem semeado em outras searas. Aborda temas como a moralidade, a família e a sexualidade – todos temas bastante trabalhados pelo imaginário nazi-fascista que possuem a mesma finalidade de controle das massas, bem aos moldes da psicologia de massas do fascismo já muito bem analisada e denunciada por Wilhelm Reich.

I - Os disparates do fundamentalismo evangélico não são desprovidos de finalidades políticas
         Causa profundo espanto o fato das declarações de todo o alto escalão do governo Bolsonaro continuarem impunes e ainda serem levadas a sério por amplas camadas populares. Aqui, cabe um destaque especial para a ministra Damares, que é a campeã de declarações absurdas, beirando a irracionalidade. A sua última “pérola” foi a proposta de abstinência sexual para a juventude, afirmando que o início precoce da vida sexual leva à delinquência e que tal “política pública” serve para coibir gravidez na adolescência[v] e combater as doenças sexualmente transmissíveis[vi]. O texto ministerial diz ainda que a prática do sexo na pré-adolescência leva a “comportamentos antissociais ou delinquentes” e ao “afastamento dos pais, escola e fé”[vii]. Para confundir e dar força aos seus argumentos, Damares dá ênfase no seu discurso ao “canal de vagina” de meninas de 12 anos pra chocar, o que esconde o fato de que sua “política pública” é para todo o período da adolescência e almeja, implicitamente, se estender à vida adulta.
Por isso, enganam-se aqueles que pensam que tais declarações são desprovidas de finalidades práticas e racionais, deixando-nos tentados a classificá-la como “louca” ou “demente”. Quem assim age dá um presente para a ministra do neofascismo, pois é tudo o que esperam! Segundo W. Reich, Hitler insistia que os nazistas deveriam se dirigir às massas não com argumentos, provas e conhecimentos, mas apenas com sentimentos e profissões de fé[viii]. É exatamente assim que procedem Bolsonaro e Damares.
         As empresas da grande mídia pretendem dar um ar de seriedade às propostas da ministra-evangélica, realizando uma cobertura jornalística que passa um verniz de coerência às suas contradições mais escabrosas. Por exemplo: a RBS afirma que tais propostas foram aplicadas nos EUA e em Uganda[ix]; outros destacam trechos do documento ministerial que afirmam se tratar de uma proposta embasada “cientificamente”. Obviamente que tais mídias comerciais nem chegam perto da essência da questão, que é, justamente, a intensificação da hipnose das massas, sobretudo as mais conservadoras e moralistas, que se localizam entre a classe média e o eleitorado evangélico.
Damares, ao contrário do secretário Roberto Alvim, tenta dissimular suas referências políticas mais profundas, afirmando que a proposta “não irá conflitar com as políticas atualmente existentes de educação sexual, do uso de preservativos ou de outros métodos contraceptivos. Será complementar”[x]. Isto é uma tergiversação cínica, uma vez que, como evangélica, condena o uso de preservativos e as fake news do seu governo atacam impiedosamente qualquer tipo de educação sexual alternativa. No documento da ministra, por exemplo, podemos ler que: “ensinar métodos contraceptivos para esse público normaliza o sexo adolescente”[xi],o que demonstra claramente que ela almeja impor esta política sobre todas as outras. Basta lembrar que em 2010, a união das bancadas católica e evangélica no Congresso Nacional reagiu fortemente ao Programa Saúde e Prevenção nas Escolas, uma iniciativa que previa a distribuição de preservativos em escolas públicas, resultando no seu cancelamento[xii]. Damares foi assessora parlamentar da bancada evangélica por 20 anos.
Os disparates do governo Bolsonaro – e os da Damares em particular – não seriam possíveis se não houvesse profunda crise econômica e graves problemas de saúde mental na massa evangélica, conforme reconhece um pastor dissidente[xiii]. Esta saúde mental deficiente, propícia a acreditar em qualquer coisa que lhes indica o líder, é justamente o resultado de uma “educação sexual” baseada na repressão moral e na abstinência. A bem da verdade, esta massa religiosa não sabe que está sendo educada sexualmente dentro destes moldes em seus cultos e rituais, já que esta tem sido uma das principais finalidades sociais não declaradas das religiões patriarcais organizadas – sobretudo as evangélicas.
A aproximação do neofascismo bolsonarista com as “maiorias” evangélicas, por suposto, não pode ser vista como casualidade. Seus princípios essenciais reforçam-se mutuamente: deus-religião, família-patriarcado e propriedade-nação. Daí os lemas dos apoiadores da ditadura militar (1964-1985) de “deus, pátria e família”; e do governo Bolsonaro de “Brasil acima de tudo, deus acima de todos”. Todos lemas muito semelhantes ao misticismo político do nazismo alemão, que dizia: “Alemanha acima de tudo”.
“Nessa combinação de fatos econômicos e ideológicos – escreveu W. Reich –, a família burguesa apresenta-se como o primeiro e principal lugar de reprodução do sistema capitalista, ou ainda, do sistema de economia privada, como fábrica da sua ideologia e da sua estrutura. É por isso que a ‘defesa da família’ é o primeiro mandamento da política cultural reacionária”[xiv]. É dentro da família burguesa reacionária que a repressão sexual encontrará a sua mais fiel colaboradora. “A psicanálise de pessoas de qualquer idade, país ou camada social – conclui W. Reich – dá o seguinte resultado: a conexão da estrutura sócio-econômica e da estrutura sexual da sociedade, e a reprodução ideológica da sociedade, produzem-se nos quatro ou cinco primeiros anos da vida e no interior da família. A igreja limita-se, em seguida, a perpetuar essa função. É desse modo que o estado de classe manifesta imenso interesse pela família: esta tornou-se a sua fábrica de estrutura e de ideologia. (...) Nunca se sublinhará bastante o fato de que o laço familiar com a sociedade de classe tem grande intensidade e fortíssima carga afetiva”[xv].

II - Repressão sexual e obediência política
A energia sexual é a força motriz da vida. Segundo Freud, provém dela não apenas as pulsões de vida, de amor e de ódio, mas a energia sublimada que se transforma em arte, ciência ou culto religioso. A psicanálise e a economia sexual[xvi] apontam a contradição entre as exigências de satisfação pulsional e as imposições morais da sociedade. Segundo W. Reich, a fé e o medo de deus, de um ponto de vista energético, são uma excitação sexual que mudou de finalidade e conteúdo[xvii]. Na maior parte dos casos, surge uma contradição entre as necessidades pulsionais e a ordem social da qual a família (e mais tarde a escola) é uma das principais representantes. Esta contradição conduz a um conflito, a origem de neuroses, psicoses, sadismos, etc. Como o indivíduo é o mais fraco dos adversários dentro deste conflito, estas modificações realizam-se na sua estrutura psíquica[xviii]. Sob a pressão do mundo exterior começam a desenvolver-se no seu aparelho psíquico um órgão de inibição, o superego, responsável pelo (auto) controle, capaz de introjetar um impiedoso complexo de culpa.
A ordem sexual patriarcal, na qual está baseada a sociedade de classes, retira às mulheres, crianças e adolescentes a liberdade sexual, transformando a sexualidade em mercadoria ou colocando os interesses sexuais a serviço dos interesses econômicos, o que inevitavelmente leva à degeneração destas relações. Assim, a sexualidade passa a estar desconfigurada no sentido do diabólico, do demoníaco, sendo parte daquilo que é necessário domesticar e dominar[xix]. “Deve-se observar – escreveu Gramsci – como os industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas relações sexuais de seus empregados e, em geral, pela organização de suas famílias; a aparência de um ‘puritanismo’ assumida por este interesse (como no caso do proibicionismo) não deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não se pode desenvolver o novo tipo de homem exigido pela racionalização da produção e do trabalho enquanto o instinto sexual não for adequadamente regulamentado, não for também ele racionalizado (...) Foram os instintos sexuais que sofreram a maior repressão por parte da sociedade em desenvolvimento”[xx].
O fascismo clássico, por sua vez, relega a sensualidade sexual para a “raça estrangeira”, geralmente tida como inferior. Foi o caso dos judeus na Alemanha[xxi]. É exatamente aí que se encontra a semelhança entre o nazi-fascismo clássico e o neofascismo de Bolsonaro e Damares, que fazem inúmeras apreciações negativas da sexualidade, “esquecendo-se” que os problemas não devem ser buscados na sexualidade em si, mas, justamente, na sexualidade do patriarcado que sustentam e professam.
Hitler “denunciava” no Mein Kampf “um envenenamento não menos terrível do corpo do povo pela sífilis” como resultado da “judaização da nossa vida espiritual e a introdução do mercantilismo nos nossos apetites sexuais”; e tal “mistura de raças” levaria ao “envenenamento do sangue e do corpo”[xxii]. A ideologia da “alma” e da sua “pureza” é a ideologia da assexualidade, da “pureza sexual”; portanto, no fundo, um fenômeno de recalcamento sexual e do medo da sexualidade viva, devidos à sociedade patriarcal baseada na economia privada. Segundo demonstrou amplamente com inúmeros argumentos W. Reich, o núcleo da teoria racista do fascismo é o medo e o temor da sexualidade sensual, física[xxiii]. Hitler e o nazismo, almejando a repressão sexual do povo alemão para controlá-lo, utilizaram-se de teorias de “raça pura” e de “decadência de um povo por sua cruza com outro, inferior”; enquanto que o neofascismo de Bolsonaro e Damares atribuem a necessidade de abstinência sexual aos problemas de gravidez na adolescência e à “imoralidade” do povo pobre. Sabemos o quanto esta ideologia sexual – uma parente tupiniquim da teoria de Malthus – é amplamente aceita nos estratos da classe média alta, que recorrentemente afirmam que “os pobres ficam colocando mais pobres no mundo”.
Segundo W. Reich, “a inibição da sexualidade natural cuja fase é constituída pelos graves danos feitos à sexualidade genital da criança, torna-a ansiosa, tímida, receosa diante da autoridade, obediente no sentido burguês (...). Resumindo, o seu objetivo é fabricar um cidadão que se adapte à ordem assentada na propriedade privada, que a tolere, apesar da miséria e das humilhações. Como etapa prévia nessa via, a criança passa pelo estado autoritário em miniatura que é a família, a cuja estrutura a criança tem que começar por adaptar-se se mais tarde quiser inserir-se no quadro geral da sociedade”[xxiv].
Note-se que W. Reich, apesar de ser um profundo crítico da psicanálise, se baseia em Freud, que diz o seguinte para liquidar as falácias da “nossa” ministra-evangélica: “A relação entre a quantidade de sublimação possível e a quantidade de atividade sexual necessária varia muito, naturalmente, de indivíduo para indivíduo, e mesmo de profissão para profissão. (...) Em geral não me ficou a impressão de que a abstinência sexual contribua para produzir homens de ação enérgicos e autoconfiantes, nem pensadores originais ou libertadores e reformistas audazes. Com frequência bem maior produz homens fracos, mas bem-comportados, que mais tarde se perdem na multidão que tende a seguir, de má vontade, os caminhos apontados por indivíduos fortes”[xxv].
Em sintonia com tais conclusões, W. Reich afirma: “A repressão da satisfação das necessidades puramente materiais produz resultados diferentes da repressão das necessidades sexuais. A primeira leva à revolta, mas a segunda, por submeter as exigências sexuais ao recalcamento, retirando-as da consciência e enraizando-as internamente sob forma de proibição moral, proíbe a realização da revolta cuja fonte se encontra em ambas formas de repressão. E mesmo a inibição da revolta é também inconsciente”[xxvi]. É por isso que a repressão sexual está ao serviço da dominação de classe. Esta reproduziu-se ideológica e estruturalmente nos dominados, e sob esta forma constitui o mais forte poder, ainda desconhecido, porém, mais eficaz que qualquer espécie de repressão policial[xxvii]. A política fascista, segundo W. Reich, deve propagar a “miséria sexual e emocional das massas”, pois controlá-las significa controlar seus impulsos sexuais e afetivos. Quanto mais empobrecidos e reprimidos, mais fáceis de arrebanhar[xxviii].


III - O recalcamento se transforma em sadismo: a base da manipulação fascista!
         Com efeito, se pelo processo do recalcamento a sexualidade for excluída das vias naturais de satisfação, toma os caminhos diversos da satisfação substitutiva. Assim, por exemplo, a agressividade natural amplifica-se para transformar-se em sadismo brutal que constitui uma parte essencial da base psicológica de massa do fascismo e mesmo da guerra, que repousa num mecanismo libidinal. A repressão sexual modifica estruturalmente o ser-humano oprimido economicamente, de tal modo que ele age, sente e pensa contra o seu próprio interesse material[xxix]. Mais do que isso, passa a defender os interesses econômicos da classe dominante, seguindo, conforme descreveu Freud, os caminhos apontados por indivíduos fortes.
         A sedução do neofascismo bolsonarista reside, precisamente, na manipulação do sadismo das massas, originado e fortalecido pela repressão sexual. Esta é a verdadeira finalidade da política pública proposta pela “nossa” ministra-evangélica. A força de Bolsonaro está, tal como no nazi-fascismo clássico, na legalização das descargas dos impulsos sádicos. O que encontra uma satisfação substitutiva da repressão sexual natural. É por isso que o pensamento bolsonarista é completamente perturbado por emoções irracionais e encontra seu mais fiel apoio nas massas religiosas. As suas conclusões não resultam de pensamentos refletidos honestamente, mas são apenas uma confirmação dos seus desejos e suas emoções mal compreendidas (em grande parte gerados pela energia recalcada que produz um ódio sádico inconsciente).
Exemplo de ódio sádico neofascista nas redes sociais
         A dominação neofascista, seja de Trump nos EUA ou de Bolsonaro e Damares no Brasil, precisa estimular, portanto, o aumento da abstinência e da repressão sexual, o que gerará maior quantidade de prazer compensatório calcado no ódio sádico, passível de ser explorado pela manipulação política das redes sociais, das fake news, dos haters, dos discursos políticos, das empresas de “engenharia comportamental”, etc.[xxx] Quando Hitler dizia que os nazistas deviam se dirigir às massas com sentimentos e profissões de fé era, principalmente, ao ódio sádico mal contido das massas que ele estava se referindo.
         Estes métodos de “debate” servem perfeitamente para manipular emoções infantis de “pessoas comuns” e ocultar os níveis de privilégios e exploração do capitalismo imperialista, que se encontra em avançado estado de degeneração. Como as contradições econômicas e sociais são muito grandes para não serem percebidas, esta direita se especializou em métodos refinados de distorção da realidade, que misturam “auto-verdade”, pós-modernismo, egotismo e manipulação do sadismo, o que resulta em práticas fascistas.

IV - A hipocrisia dos neofascistas: para os trabalhadores pobreza, recalcamento, miséria social e sexual; para os ricos exploração, fartura e orgias!
Vimos que o verdadeiro interesse do governo Bolsonaro e de Damares não é com a gravidez precoce ou DST, mas com a repressão sexual das massas. Para as religiões patriarcais organizadas o prazer é pecado. Portanto, o sexo não pode buscar a satisfação sexual. Ele só pode ser realizado quando se tem a intenção de reprodução. A ministra-evangélica também não está interessada em combater os casos de abusos de jovens e crianças, que é o resultado inevitável da pobreza, da miséria, de concepções patriarcais, machistas e do aumento da disposição à satisfação sádica. Isso continuará ocorrendo livremente, bem como a prostituição. Assim, a “política pública” de Damares serve apenas para deseducar sexualmente os trabalhadores e os seus filhos, transformando-os em seres dóceis e obedientes politicamente, mas dispostos a serem sádicos contra si mesmos e os seus.
Enquanto Bolsonaro e Damares exigem uma moral casta, de abstinência e privação sexual para os pobres, consentem com as orgias da classe dominante, bem como dos seus abusos sexuais cometidos em muitas esferas sociais – inclusive contra os pobres –, que nada mais são do que reproduções da sua exploração no campo econômico (lembrem-se dos escândalos das orgias da elite paulistana ligada a João Dória; uma reprodução quase exata da pervertida elite romana; ou, ainda, da declaração de Bolsonaro afirmando que usava o dinheiro do auxílio moradia “pra comer gente”). Além disso, fazem vistas grossas para os casos de abusos cometidos dentro das igrejas e no seio das famílias mais religiosas. Não há preocupação com a coerência de sua própria pregação: o moralismo sádico se basta a si mesmo!

V - Como deve ser a vida sexual da juventude trabalhadora?
         Frente ao desmascaramento das reais intenções do governo Bolsonaro e da sua ministra-evangélica chegamos inevitavelmente a este questionamento, que certamente é respondido de forma dicotômica pelos bolsonaristas: ser contra a política de abstinência sexual é ser a favor de um caos sexual e do desregramento completo. A tudo isso, devemos responder da seguinte forma: a sexualidade é parte indissociável da natureza humana e, enquanto tal, um pilar da sua saúde corporal e mental. Existem práticas medicinais do oriente totalmente baseadas na sexualidade com bons resultados de cura. É, antes de tudo, um assunto íntimo de qualquer indivíduo, assim como deveria ser a religião.
Porém, a educação sexual precisa fazer parte do currículo da escola pública que, em primeiro lugar, necessita ser pautada pela laicidade; em segundo, pela cientificidade. Quem deve elaborá-la são médicos, assistentes sociais, professores, psicólogos e psicanalistas, em sintonia com as necessidades de cada comunidade escolar; e não ser dominada por pastores ou religiosos. Os moralismos das religiões devem ser evitados porque servem apenas para o controle político que, em sua maioria, estão umbilicalmente ligados às ideologias de direita. A educação sexual não pode ser tratada como tabu, mas como ciência, permeada pela sabedoria e o amor.
         Muito se tem falado sobre a escola não corresponder aos interesses dos jovens de hoje. Quem fala isso tem toda a razão, embora continue propondo políticas educacionais fora dos seus interesses. A escola omite um dos principais assuntos da vida humana: o sexo! Isso não significa propor um debate meramente mecânico-biológico, de orientações utilitaristas sobre gravidez na adolescência, como evitar DST, etc. Tudo isso é importante, mas não chega nem perto do problema. Também não se trata de propor um debate “pornográfico”, desprovido de reflexões críticas e amoral. Há que se estabelecer uma nova forma de moral. Não a ultrapassada e decadente das religiões patriarcais, mas uma moral natural, que respeite a vida viva e as suas verdadeiras emoções. Além disso, a educação sexual precisa abordar temas como: as consequências do sexo; a importância do prazer feminino; questões de identidade de gênero e diversidade sexual; a possibilidade masculina de recusa ao sexo se não se sentir preparado (o homem também chora e brocha); as responsabilidades paternas; o papel da mãe e do pai no desenvolvimento de um bebê; diferenciação entre abuso e consentimento; enfim, dar uma noção completa e ampla de que uma busca leviana por sexo pode resultar em consequências nefastas para si e para uma futura criança, bem como da importância do sexo para uma vida saudável e feliz.
Algo em nós se opõe à possibilidade de um debate público sobre esse tópico. Este “algo” é, segundo Reich, uma peste emocional social, que luta constantemente para preservar a si mesma e a suas instituições. O resultado é o crescimento do sadismo fascista e da neurose de massas, que tomam formas em nefastas couraças anti-naturais que cristalizam a frustração sexual (profundamente necessária para as bases da sociedade de classes e para os regimes fascistas). Traçou-se, então, uma distinção errônea entre vida pública e vida privada, e esta última é impedida de chegar até à tribuna dos debates públicos e, sobretudo, à escola, totalmente fechada a este tema. Atualmente, segundo nossos padrões hipócritas de sociedade, a vida pública é assexuada na superfície e pornográfica ou pervertida nas profundezas. Se essa dicotomia não existisse, a vida pública coincidiria com a vida privada e espelharia, de modo correto, a vida cotidiana em amplas formas sociais.
A educação sexual pautada nesta perspectiva serviria para abrir as válvulas que bloqueiam o fluxo de energia biológica no animal humano, para que as outras coisas importantes, como o pensamento límpido, a decência natural e o trabalho agradável possam funcionar e para que a sexualidade pornográfica deixe de ocupar todo o pensamento das pessoas como ocorre hoje[xxxi] (o que é a inevitável consequência da política de repressão sexual).

VI – Família e liberdades individuais
         Quando criticamos a família, classificando-a como o centro da política cultural reacionária do fascismo clássico e do neofascismo, não se trata de ser contra a família em si, mas contra a forma patriarcal-burguesa de família, que é a única reconhecida pelo Estado, pelas religiões organizadas e pela sociedade capitalista, já que ela é um pilar fundamental da dominação de classe. Propomos o reconhecimento e o respeito a todas as formas possíveis de família: desde a biológica até aquela onde um ser-humano se sinta bem e acolhido, respeitando a sua adoção ou escolha. Da mesma forma, propomos o combate a toda a família opressora e reprodutora da sociedade de classe, com o seu consentimento aos abusos, suas regras arcaicas e tabus.
         Acontece que todas as formas de família que destoem da patriarcal-burguesa são combatidas ferozmente pelo neofascismo e pelos setores mais atrasados e decrépitos da burguesia. Acusam-nas equivocadamente de ser uma incitação à promiscuidade, pedofilia, zoofilia e outras barbaridades. O governo Bolsonaro se vende como partidário das “liberdades individuais”, no entanto, o liberalismo burguês clássico dos séculos XVII e XVIII reconhecia, pelo menos em palavras, a importância da não intervenção nas liberdades individuais (religiosa, sexual, artística, política e intelectual). Os liberais da direita neofascista brasileira atacam todas as liberdades individuais: interferem na religião e na opção sexual das pessoas, professando valores retrógrados e de violência. Ou seja, demonstram como o liberalismo se traduz na prática, e não em palavras: uma reprodução do absolutismo monárquico medieval.
Algumas noções desenvolvidas a partir do liberalismo econômico se convertem, inevitavelmente, em diversas formas de narcisismos, hedonismos e egotismos. O mercado joga o tempo todo com as emoções infantis e egocêntricas do individuo médio comum, fazendo confundir o seu infantilismo egotista, expresso por suas noções religiosas e místicas pessoais, com questões políticas e econômicas. O que está escondido no fundo disso tudo é o medo da classe média perder seus pequenos privilégios e diluír-se no meio do povo trabalhador, bem como desejos sexuais reprimidos pelo moralismo exacerbado, que se transforma em ódio sádico e acomodação. Os liberais da direita e a grande mídia burguesa sabem muito bem se utilizar destes medos e taras, manipulando-os como ninguém[xxxii].

VII - A “esquerda” frente ao neofascismo
         Completamente desnorteada, a “esquerda” oficial (PT, PCdoB/movimento 65, PCB, PSTU, PSOL, PCO, etc.) e os seus sindicatos tendem a reproduzir as políticas públicas moralistas e repressivas do neofascismo ou, então, como um velho ramerrão, ignoram todo o debate sexual e cultural, taxando-o de “desvios pequeno-burgueses” ou “anti-marxistas”. Em qualquer um dos casos, comete um crime e deixa uma avenida para a direita, que não abre mão de propor pautas e se interessar por esse tipo de discussão. Muitos “marxistas” supostamente ortodoxos pensam que a simples mudança das bases econômicas através de uma revolução solucionaria automaticamente todos esses problemas por si mesmos.
         O PT, por sua vez, propõe uma “aproximação com as comunidades evangélicas”, se apercebendo que neste terreno foi ultrapassado pela direita. Talvez isso ocorra pelo fato de que 29% dos eleitores petistas também aprovam a ministra Damares[xxxiii]. No entanto, qual seria o método dessa aproximação e com qual finalidade? Sobre isso não há nenhuma palavra. Lula busca um diálogo desesperado e oportunista com os evangélicos, afirmando que “sempre teve jeitão de pastor” e que “o lugar natural dessas igrejas seria militando no PT”[xxxiv]. Isso indica uma aproximação eleitoreira e institucional-burguesa que servirá para reforçar a própria doutrina evangélica, o que sabota qualquer possibilidade real de vitória sobre o neofascismo e de um necessário reestabelecimento da saúde mental pública, pois, conforme alerta Reich, as igrejas são as organizadoras da política sexual do capital. O aprofundamento da exploração sobre os trabalhadores costuma ser acompanhada sempre de um reforço da pressão moral. Dado que, em caso de crise, a intoxicação religiosa é a medida essencial em psicologia de massas para preparar o terreno para a adoção da ideologia fascista, não podemos evitar a busca pela elucidação dos efeitos psicológicos da religião[xxxv]. A dominação petista e cutista sobre os sindicatos, pautados por uma política de rebanho e de ódio contra quem lhes questiona a hegemonia, reproduz o espírito do neofascismo (justiça seja feita: este tipo de “dominação sindical” se estende a outras correntes da “esquerda” além do petismo).
Uma das principais tarefas da esquerda é estudar e compreender os problemas da psicologia de massas que levam-nas a agir e a pensar contra si próprias, sendo um reflexo direto da repressão sexual. Temos que ser capazes de explicar porque a mística venceu a ciência; ou, dito de outra forma, porque o irracional venceu o racional. Por isso, o núcleo central da política cultural revolucionária deve se tornar a questão sexual. Neste ponto não há política por parte da “esquerda”; aqui apenas a direita apresenta as suas armas que são reproduzidas consciente ou inconscientemente pela “esquerda”. Assim, os “disparates” da Damares são mais eficientes do que todas as grandes políticas e diálogos da “esquerda”.
Sabemos, também, que as igrejas não pagam impostos no Brasil. Este privilégio é garantido pela Constituição brasileira de 1988, se convertendo numa das bases materiais que confere grande poder de expansão para as igrejas evangélicas. É necessário começar uma grande campanha política que taxe o funcionamento das igrejas, tal como qualquer outro estabelecimento ou serviço (se a educação paga, por que as igrejas não pagam?). Muito provavelmente o PT e outros partidos institucionais não se colocarão tal tarefa, dado o seu grau de adaptação ao sistema. Porém, se trata de uma tarefa fundamental na luta contra o obscurantismo religioso que serve de base à dominação de classe do grande capital; e, enquanto tal, deve ser enfrentada.

VIII – O que fazer?
Segundo W. Reich, a sexualidade natural é inimiga mortal da religião. A consciência sexual plena significa o fim da religião (pelo menos das religiões patriarcais organizadas). Trocando em miúdos, a vida viva se sobrepõe a vida mecânica, reprodutora e passiva. É precisamente aí que a esquerda deve investir pesado. Isso significa ouvir as pessoas realmente; saber interpretar e dialogar com os seus sentimentos, sem capitular a eles. Porém, há aqui uma advertência importante: como a esquerda precisa desenvolver o novo, lidar com forças puras, ela está em desvantagem em relação a direita, que se utiliza das taras, dos medos e do sadismo da massa. Lutar contra isso não é apenas difícil, mas desesperador. A frustração não é uma boa conselheira nestes embates, pois estamos falando de um longo e paciencioso trabalho de Sísifo.
Os seres humanos não são apenas seres racionais, tal como nos afirmaram ao longo dos séculos os filósofos, mas são, também, seres irracionais. Sabemos hoje que na nossa mente, bem como em toda a realidade, existem elementos e fenômenos conflitantes que tem efeitos devastadores e paralisadores. A humanidade adora o prazer, mas também cultua (geralmente) de forma inconsciente a dor. Exalta o amor, mas também o ódio. Busca a liberdade, mas se torna refém da culpa e da opressão. “É necessário fixar – aponta W. Reich – que não atingiremos os nossos fins com discussões sobre a existência ou a inexistência de deus, mas somente pelo levantamento dos recalcamentos sexuais e o afrouxar dos laços infantis em relação aos pais”[xxxvi]. Devemos agir como terapeutas que não querem destruir a religião daquele que se está a analisar, mas tratá-la como qualquer outro dado psíquico que funciona como apoio ao recalcamento sexual que consome boa parte de sua energia vital, combatendo a submissão inconsciente e respeitosa às autoridades (paternas, maternas, religiosas, estatais, dos líderes políticos ou sindicais...) em nome da coletividade e da responsabilidade social.
         Se nos perguntamos por que é que a revolta de um trabalhador é reprimida e controlada pela direita neofascista, podemos constatar que se trata, sobretudo, da atuação inconsciente da reprodução da repressão familiar. É impossível levá-lo à consciência de classe incitando-o simplesmente à greve, como o fazem muitos militantes mecanicistas, aptos a reproduzir e a não pensar por si mesmos frente à vida viva, ignorando seu estado de espírito e, muitas vezes, o difamando. Para o trabalhador adulto, é a reprodução familiar patriarcal-burguesa que o entrava. Nele, a moral sexual burguesa “coexiste” com rudimentos da consciência de classe; e ele não percebe nisso nenhuma contradição[xxxvii] (isso ocorre, inclusive, com a maioria dos militantes organizados). Há que se desenvolver um método de agitação e propaganda que desnude as contradições sádicas das massas e, despertando-as de seu transe, cobre-as de suas responsabilidades sociais. Em nenhum dos casos as organizações de esquerda e os sindicatos podem tratá-las como crianças mimadas, mas devem conscientizá-las e responsabilizá-las. Não é necessário dizer que tudo isto está em frontal contradição com a política eleitoral da maioria dessas organizações.
         Atualmente os revolucionários não tem tarefa mais importante do que encontrar os pontos fracos do neofascismo, compreendê-los e desenvolver meios de desmascará-los o mais amplamente possível. Acordar os trabalhadores da hipnose neofascista requererá grande habilidade na demonstração de como o governo Bolsonaro utiliza-se do sadismo presente nas massas, gerando uma confusão irracional caótica, para entregar os recursos naturais e as riquezas do país com a finalidade de manter a boa vida da elite, dos bancos e dos políticos. Nesse sentido, a diplomacia secreta deve ser abolida. Tudo quanto seja possível necessita submergir da escuridão do inconsciente para a luz da consciência e da análise crítica.
         A vida privada dos trabalhadores – sua sexualidade, seus anseios, a criação dos filhos, a sua educação – deve figurar no primeiro plano da propaganda revolucionária e dos debates da esquerda e não ficar como último item como tem sido até agora (quando eles existem!). É fundamental renovar os métodos, pensar experiências em relação à política sexual – especialmente entre a juventude proletária – e politizar a vida privada e as questões cotidianas para se contrapor às práticas das igrejas evangélicas e da direita neofascista.
         Há muito por se estudar e compreender. Outro tanto é necessário ser feito para superarmos as práticas nefastas desta direita. No entanto, alguns pontos já podem ser modificados desde já: é muito importante redemocratizar os espaços da “esquerda”, como os sindicatos, movimentos sociais e os partidos “operários”. Como um terapeuta, temos que analisar criteriosamente não apenas as ações da direita neofascista, as suas bases teóricas e sociais, mas, também, analisar a nós mesmos, a “esquerda” e os movimentos dos trabalhadores. Ver, honestamente, o quanto cumprimos ou deixamos de cumprir.
         Nesta luta, a mente consciente parece ser insuficiente para nos ajudar. Seja o que for o inconsciente, sabemos que é um fenômeno natural que produz símbolos provadamente relevantes. Ele não pode ser ignorado, pois é natural, ilimitado e poderoso como as estrelas. A direita neofascista e os seus ideólogos não abrem mão de explorar a psicologia de massas. Nós devemos nos especializar em libertar a psicologia das massas da escravidão mental inconsciente. Provavelmente só esta nova abordagem poderá nos dar possibilidade de iniciar uma nova prática capaz de vencer o neofascismo e de extirpá-lo pela raiz.


NOTAS


[ii] Sturmabteilung abreviado para SA (em alemão, “Destacamento Tempestade”) usualmente traduzida como “Tropas de Assalto” ou “Seções de Assalto”, foi a milícia paramilitar durante o período em que o Nazismo exercia o poder na Alemanha.
[iv] O Globo, de 31 de janeiro de 2020, página 11.
[viii] REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Publicações escorpião, Porto, 1974 (página 79).
[ix] Ver: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/01/politica-de-abstinencia-sexual-de-damares-alves-foi-aplicada-nos-eua-e-em-uganda-ck61ctge60cuz01mv6zdechw5.html Tal cobertura jornalística serve muito bem para dialogar com o complexo de vira-lata dos brasileiros visando ganhar confiança e “seriedade”.
[x] Idem.
[xiii] Ver a entrevista do pastor Caio Fábio em: https://www.youtube.com/watch?v=cbhUEhvm7W0&t=1615s
[xiv]REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Publicações escorpião, Porto, 1974 (página 59).
[xv] Idem (página 31 e 57).
[xvi] Teoria de Wilhelm Reich, de suposta superação da psicanálise.
[xvii] REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Publicações escorpião, Porto, 1974 (página 134).
[xviii] REICH, Wilhelm. Materialismo dialético e psicanálise. Biblioteca de ciências humanas, Editorial presença, Lisboa, 1975 (página 91).
[xix] REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Publicações escorpião, Porto, 1974 (páginas 84 e 85).
[xx] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere – vol. 4; temas de cultura, ação católica, americanismo e fordismo. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2007 (páginas 249 e 252).
[xxi] REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Publicações escorpião, Porto, 1974 (página 85).
[xxii] Idem (página 78).
[xxiii] Idem. (página 80).
[xxiv] Idem (página 32)
[xxv] FREUD, Sigmund. Die Kulturelle Sexualmoral und die Moderne Nervositat (Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna), Ges. Schr., vol. V, página 159, extraído de REICH, Wilhelm. Análise do Caráter. Martin Fontes, São Paulo, 1995 (página 180).
[xxvi] REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Publicações escorpião, Porto, 1974 (página 33).
[xxvii] REICH, Wilhelm. Materialismo dialético e psicanálise. Biblioteca de ciências humanas, Editorial presença, Lisboa, 1975 (páginas 119 e 120).
[xxix] REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Publicações escorpião, Porto, 1974 (página 34).
[xxx] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/01/quem-esta-por-tras-de-olavo-de-carvalho.html e assistir o documentário da Netflix “Privacidade hackeada”.
[xxxv] REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. Publicações escorpião, Porto, 1974 (páginas 109 e 110).
[xxxvi] Idem (página 160).
[xxxvii] REICH. Wilhelm. O que é consciência de classe? Textos exemplares, Porto, 1976.

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