quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Equador, Chile e o problema do espontaneísmo

As recentes explosões de revolta popular no Equador e no Chile são uma justa reação contra os projetos do capitalismo imperialista de ajuste fiscal em nome do sistema financeiro. Para manter o alto nível de vida da burguesia internacional e dos países do centro do mercado mundial, se retiram recursos e vida dos países da periferia. No Equador, o problema foi o fim dos subsídios estatais aos combustíveis, fazendo o preço de todos os produtos dispararem. No Chile, a gota d'água foi, como no Brasil de 2013, o aumento do transporte público, que desnudou os estragos causados na vida de milhões de chilenos os anos de austeridade neoliberal. Vários mitos burgueses e neoliberais explodiram junto com essas revoltas.
Todos os trabalhadores latino americanos e do mundo olham com simpatia, esperança e apreensão para estes protestos. Eles nos representam pela intensidade com que aconteceram e acontecem. Contudo, há um problema que os trabalhadores conscientes precisam debater: o espontaneísmo! Todas as grandes manifestações de Quito e de Santiago demonstraram grande empenho em manter-se nas ruas. Junto com este empenho, destaca-se a repulsa aos partidos e à institucionalidade.
Por um lado, é extremamente positiva tal repulsa, pois significa o repúdio inconsciente e confuso à institucionalidade burguesa; isto é, capitalista. Percebem que o problema são os ricos e a sua politicagem. Por outro, esta raiva contida e descarregada agora não apresenta nenhuma alternativa. O resultado provável é que a burguesia recuará (tal como fez Lenín Moreno no Equador, retirando o pacote de ajuste, e Piñera no Chile, com a anulação do aumento das tarifas) para se reorganizar e mudar de tática. Porém, a exploração e a sociedade burguesa continuarão.
A maioria esmagadora da "esquerda" é refém e admiradora do espontaneísmo. Acha que o quebra-quebra — justo e compreensível — por si mesmo basta. No início do século XX as grandes manifestações proletárias da Europa, que também eram espontâneas, cujo ápice se deu na Revolução Russa de 1917, apontaram os sovietes (i.e.: os conselhos populares como alternativa de administração social). O que as manifestações de 2013 no Brasil e de 2019 no Equador e no Chile apontam? O descontentamento com os planos de ajuste fiscal do capitalismo imperialista. Ok! Já compreendemos. E além disso?
No Equador se percebe uma forte tendência ao reformismo, com a possibilidade de reapresentar Rafael Correa como candidato para uma eleição antecipada. E no Chile? E se tivermos novas jornadas de junho no Brasil, o que fazer? Preparar o terreno, por medo de ousar, para a direita neofascista ou para o reformismo? O fato é que, apesar da alegria e da esperança de vermos um povo se sublevar contra a injustiça e a opressão, o espontaneísmo não oferece alternativas além do sistema. Aí faz falta o papel consciente: a organização política, o que costuma-se chamar na literatura marxista de partido revolucionário ou de direção revolucionária.
Certamente dirão que os trabalhadores rechaçam os partidos porque estes os traem. De acordo; porém, trata-se dos partidos burgueses (ou reformistas, que são, também, burgueses). Pensemos "partido" em um sentido mais amplo: que não priorize as eleições, que signifique formação política e teórica; e, sobretudo, que apresente e sustente um programa revolucionário. Por exemplo: foi-se o tempo em que os conselhos populares surgiam espontaneamente. Provavelmente esta seja uma das principais tarefas de um "partido revolucionário" (substituam por movimento revolucionário, se preferirem). Há que se dizer, forçosamente, que não existe talismã contra degeneração: é imprescindível tentar! São muitas forças, atores e fatores sociais envolvidos. Mas pra isso, é necessário ousadia e não temer o novo.
Organizar a espontaneidade não é fácil! Soa como autoritarismo, como imposição ou mesmo oportunismo. Mas, na difícil conjuntura que vivemos, é justamente isso que estes protestos latino americanos carecem: organização, coordenação, formação, perspectiva socialista... Isso não significa de modo algum sufocar as reivindicações e a legítima indignação espontânea, porém, nem só de quebra-quebra podem viver os protestos de rua. Isso tende a se tornar uma catarse, contida pela escalada autoritária do militarismo neofascista e, posteriormente, pelas ilusões reformistas. Quais alternativas para além do ajuste fiscal e do capitalismo?; que formas de organização social estão apontadas ou se pode propor para a América Latina para além das revoltas populares contra pacotes neoliberais? Como organizar e dar uma direção revolucionária a eles?
Estas questões — que são omitidas ou traídas pela "esquerda" — precisam ser debatidas e respondidas para sairmos deste círculo vicioso de dominação autoritária burguesa, sublevações populares e governos reformistas, sob pena de nos tornarmos refém dele.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Sobre o método do voto crítico


Prólogo:
Nas vésperas das eleições de 2018 que levou ao poder o candidato neofascista, Jair Bolsonaro, foi debatido longamente dentro da oposição sindical, Construção pela Base, uma política eleitoral que expressasse o combate a esta candidatura. Como a massa trabalhadora progressiva estava confusa e apática; e a sua parte reacionária, completamente hipnotizada pelo neofascismo, o único caminho que restou naquela ocasião foi o voto crítico, que é sempre uma tática política muito polêmica e controversa. Refletindo todo esse contexto, o texto abaixo foi redigido em agosto de 2018 e serviu de base para a declaração pública desta corrente sobre as eleições que levariam ao poder o neofascismo.
         Por tudo isso e, sobretudo, por conter uma importante exposição sobre o método do voto crítico, segue publicado na íntegra a seguir.
***
A Construção pela Base se caracteriza por ser uma corrente sindical que se baseia na perspectiva socialista revolucionária. Este é o seu norte. Por isso, tem elaborado políticas importantes e conseguido manter a independência em relação à burocracia sindical (diferentemente da totalidade das correntes sindicais do CPERS). Em muitos momentos ela conseguiu elaborar uma política para além do CPERS, inclusive em períodos eleitorais. O debate atual entre o voto crítico versus o voto nulo está inserido neste contexto.
Pra começar, deve-se dizer que o voto nulo não é um princípio para os socialistas revolucionários, apenas para o anarquismo. Porém, se sairmos da perspectiva revolucionária, o “voto crítico” torna-se um voto acrítico, oportunista e desesperado. Em primeiro lugar, houve (e há) uma polêmica sobre se devemos defender este tipo de voto publicamente. Alguns pensam que não, que isso seria se expor demais ou “entrar no jogo”. Outros, como eu, pensam que enquanto corrente sindical revolucionária que somos, devemos publicizar nossas posições, uma vez que a entendemos como necessária para os trabalhadores. A diplomacia secreta só pode nos levar à politicagem burguesa e à burocratização sindical. Se decidimos defender uma política devemos levá-la até o fim, publicizando-a, ou renunciar a ela, pois se tal política necessita ser “escondida”, não merece ser defendida. A cristalização de uma conduta como esta é o início da renúncia à revolução e o princípio da adaptação ao sistema. Basta um breve olhar sobre a história (incluso a do PT). Haveria ainda o argumento de que a nossa corrente sindical não teria condições e acúmulos para uma política eleitoral que transcenda o CPERS. Contudo, NINGUÉM defendeu isso, apenas apresentaram-se evasivas sobre votar às escondidas numa candidatura com peso eleitoral para “derrotar a direita” e se exigiu a nossa renúncia ao voto nulo.
O aumento do fascismo no Brasil e a sua possível vitória nas eleições de outubro acendem um sinal de alerta. Debatemos e chegamos a conclusão que devemos chamar voto crítico em quem tem condições de vencer eleitoralmente o fascismo. A abertura dessa brecha fez vir à luz uma série de posições oportunistas EXTREMAMENTE PERIGOSAS, que reforçam as ilusões eleitorais, na democracia dos ricos, no sistema, numa saída fácil (como se ela existisse); em síntese: transformam o “voto crítico” num “voto útil” à burguesia, despolitizado e beirando o senso comum. Isto seria a ruína; seria entrar no círculo vicioso da democracia burguesa que oscila entre governos “reformistas” e fascistas-ditatoriais. Há também quem compre todo o discurso da burocracia sindical do CPERS (em particular o da Helenir) sobre os malefícios do voto nulo, chegando a afirmar que “devemos abdicar dele pra sempre”. Ora, o voto nulo é uma tática, tal como o voto crítico. Podemos recorrer a ele ou não. Não foi o voto nulo que fez a direita vencer em Porto Alegre, no Estado e no país, mas a política reformista do PT, a sua conciliação e adaptação. O voto nulo jamais pode ser (e no nosso caso nunca foi) uma tática de passividade, de gerar ilusões de que “anularíamos as eleições e faríamos novas”. Sempre foi um voto de rebeldia, pela autonomia, contra a farsa e as mentiras eleitorais e, principalmente, contra a legitimação desta farsa. Por certo tem consequências, assim como tudo nessa vida e, também, como o voto útil, que legitima as eleições, apoia os eleitos e reforça a passividade e as inúmeras ilusões da classe trabalhadora.
Mas agora, apesar de ter defendido o voto nulo, compreendo ser possível sim mudar a tática, disputando a consciência do “voto útil” e do “voto desesperado” da massa, completamente desorientada, procurando dar uma PERSPECTIVA DE POLITIZAÇÃO PROLETÁRIA. O voto crítico, desde que usado com sabedoria, seria uma arma pra isso. Porém, existe entre nós quem procure justificativas inaceitáveis para votar no PT ou no PDT. Não podemos, NEM POR UM MOMENTO, iludir quem quer que seja que o voto no PT é “melhor” do que na direita porque o PT tem programas sociais ou “aumenta o salário mínimo”; ou que “Ciro Gomes sabe como enfrentar a direita e não se identifica com o anti-petismo” (que é uma das principais bandeiras da direita fascista). Haddad e Ciro Gomes se equivalem, no essencial, entre si e não podem ser embelezados; e, no fundo, POSSUEM O MESMO PROGRAMA QUE A DIREITA, embora em um ritmo mais lento. Isto seria cair no oportunismo mais rasteiro; seria tocar fora as experiências da classe trabalhadora com esses governos; fazer troça da nossa própria luta em nome do caminho mais fácil.
O voto crítico deve ser claro: votamos no PT porque defendemos as liberdades democráticas mínimas contra o fascismo; porque é um dos únicos que tem peso eleitoral neste momento para deter este avanço. E complementar: NÃO TEMOS A MENOR ILUSÃO NOS GOVERNOS DO PT, pois estes foram instrumentos dos bancos e das grandes empresas e CONTROLAM COM MÃOS DE FERRO O MOVIMENTO SINDICAL; e concluir: damos este voto crítico agora para derrotar o fascismo que nos ameaça, MAS ESTAREMOS NA LINHA DE FRENTE PARA COMBATER OS SEUS GOVERNOS, CASO SEJAM ELEITOS.
Não há outro voto crítico além deste. O resto é apoio oportunista que só vai gerar novas e piores ilusões! O mesmo poderia ser adaptado e dito sobre um eventual voto crítico em Ciro Gomes, embora eu, particularmente, seja avesso à ideia de apoiá-lo, pois não podemos nos basear apenas em pesquisas e os votos de Lula tendem a se deslocar para Haddad ao longo da campanha, além de Ciro não ter sido derrubado pela direita e, em muitos casos, fazer coro com o seu discurso anti-petista (que atinge toda a esquerda).
Muitos camaradas ainda sustentam os seus argumentos afirmando que “a revolução está muito longe” e que agora devemos “trabalhar com o que se tem”. Este argumento seria correto se não ignorasse que ao se defender qualquer política se renuncia de vez à revolução, lançando-a para um futuro indeterminado. O nosso norte deve continuar sendo a revolução, que é a nossa estratégia principal. As táticas precisam estar em harmonia com essa estratégia e não em oposição. O “voto crítico” de alguns camaradas está em franca contradição com a perspectiva da revolução.
A Construção pela Base está numa encruzilhada. Talvez haja vontade inconsciente de abandonar o caminho revolucionário, que é sempre mais criterioso, exigente, inconciliável, pelo caminho dos interesses e dos medos pessoais, mais palpáveis, concretos e reconfortantes. Nesse sentido, a Construção pela Base perderia a razão de ser. Dentro em breve perderia sua independência e a sua política sindical tornaria-se tão senso comum quanto qualquer outra. Continuo pensando que o caminho revolucionário, trilhado com firmeza e serenidade, é o único que pode nos ajudar a compreender e superar a barbárie social criada todos os dias pelo capitalismo e pela sua “democracia”. Renunciar a ele não é uma decisão muito inteligente e seria o mesmo que jogar a bússola no mar em meio a uma tempestade.


Com minhas melhores saudações
Eduardo Cambará

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Os reflexos da realidade no filme "Coringa"

Muito tem se falado das qualidades do recente filme Coringa, estrelado por Joaquim Phoenix. Os méritos são muitos: atuação, fotografia, enredo, trilha sonora... Tudo isso é fato. A grande concentração de capital que a gigante Warner Brothers possui permite mega produções impecáveis do ponto de vista estético (incluso de conteúdo, com grandes roteiristas e redatores).
É inegável também o fato de que a "ação" esperada em filmes baseado em Quadrinhos foi totalmente eclipsada pela luta psicológica travada no universo pessoal do personagem principal. E este é, certamente, o ponto alto do filme. O Coringa é um dos vilões mais famosos e atraentes dos Quadrinhos pela sua proximidade com a realidade. Ele não possui super poderes. Ele escancara um problema escondido sob mil véus de hipocrisia: a doença mental; em particular, as psicopatias. Soma-se a isso, a denúncia dos cortes orçamentários dos serviços sociais, que dificultam o atendimento do futuro Coringa, bem como o acesso aos seus remédios psiquiátricos.
Segundo alguns críticos, isso seria um hiper realismo, que colocaria o filme num pedestal de ouro, classificado inclusive como "revolucionário". A atuação de Joaquim Phoenix é, sem dúvida, uma das qualidades do filme que eleva a sétima arte e, o eleva dentro dela, como ator. A construção do enredo atinge o ponto alto quando denuncia que o Coringa não se sentia reconhecido por ninguém, mas, ao praticar crimes, começou a ser notado. Longe de um ufanismo de hiper realismo, sem dúvida o filme atinge um alto grau de realismo que engrandece toda a obra.
Há que se reparar agora como os movimentos sociais da atualidade se refletem no filme. É sabido que já houve diversas interpretações de Gotham City e que cada uma delas, ao seu tempo, refletia o contexto da época. No caso do filme Coringa, vemos as manifestações populares "contra o sistema" que tomam conta de diversos países do mundo neste início de século (Indignados, Occupy Wall Street, etc). Tais manifestações refletem-se em outras obras cinematográficas da atualidade, como V de Vingança e La casa de papel, onde um líder ou um grupo de líderes toma o papel de protagonista das massas, que passam a ser meras apoiadoras passivas.
Como, enfim, as manifestações populares atuais se refletem no filme Coringa? As manifestações teriam explodido a partir de um dos crimes que o palhaço cometeu no metrô e que teriam servido para desencadear uma curiosa luta "contra os ricos" e o "sistema". O mais curioso são as palavras de ordem em meio ao caos dos distúrbios sociais: "morte aos ricos"; "resistência". Esta última aparece em um cartaz num grande protesto contra o milionário Thomas Wayne, pai do futuro Batman. Seria de bom grado perguntar: resistência contra o quê? Se a resposta for "contra os ricos" e o "sistema", fica patente que a "revolta dos palhaços" seria uma manifestação do caos sem perspectiva alguma.
Assim, uma massa hipnotizada pelo ódio contra os ricos e o "sistema" (não definindo, como sempre, de que sistema se trata) para se exigir "morte aos ricos", não propondo nada para o lugar, não pode nos levar a lugar nenhum. Ou talvez a mensagem implícita é que não exista nada para além do "sistema dos ricos", somente o caos e a criminalidade incontrolável. A "revolta dos palhaços" se transforma numa onda de desordem generalizada, caos, violência, crimes, saques, etc. O filme induz o espectador a concluir que a resistência leva à ausência de governo, de polícia, de ordem social; numa palavra: ao caos; o mesmo caos que faz a classe média tremer de pavor.
Esta caricatura grotesca dos protestos sociais da atualidade abre um grave precedente reacionário, que coloca em risco o realismo da obra, uma vez que converte as grandes conclusões sobre a psicopatia em ideologia conservadora, em aceitação implícita do caos da "ordem dos ricos" e do seu "sistema". Temos, então, a realidade refletida de forma invertida no filme: a psicopatia é um subproduto da sociedade de classes capitalista (isto é, do "sistema"); combater esta ordem social não é uma tarefa para o caos, para uma "resistência" baseada em uma desorganização criminosa. Tampouco uma autêntica revolta popular, que tenha como perspectiva o socialismo ou o comunismo verdadeiros, desembocam no caos, numa falta de governo ou de organização.
Não casualmente os governos da direita neofascista se elegeram com o discurso contra o caos e a criminalidade das ruas. Uma mente destreinada e baseada no nível de debate político atual no Brasil é engolida facilmente pelas conclusões implícitas do filme, cuja doutrinação conservadora não é muito difícil de ser compreendida. Se, partindo das boas denúncias do filme, colocarmos de "cabeça para cima" as suas questões sociais, como os protestos e a luta contra a "ordem dos ricos" e o "sistema", então teremos uma obra-prima!
Como fazer isso? Concluindo que o caos da impunidade, da criminalidade e da violência é justamente aquilo que defende para si mesmo o sistema financeiro, isto é, os altos escalões de Wall Street, da Avenida Paulista e dos grandes bancos nacionais e internacionais. Uma massa caótica, que dissemina o ódio e o caos em benefício deste programa econômico jamais refletirá os protestos de "esquerda" e por "justiça social". Ao contrário, só poderá ser o reflexo de massas que agem como zumbi para perpetuar a ordem social dos ricos e o seu sistema, terminando por idolatrar e eleger como seu principal representante um palhaço psicopata.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

A independência do Brasil foi uma “revolução”?


Riacho Ipiranga, em São Paulo, de onde D. Pedro I proclamou a "independência"

1.
         O livro 1822, do escritor Laurentino Gomes, é uma importante contribuição para tentarmos remontar a narrativa da história do Brasil, ainda que ele possua uma limitada visão de mundo democrático-burguesa. O principal motivo pelo qual podemos considerar o livro importante é o extenso trabalho de pesquisa historiográfica realizado pelo autor para escrevê-lo. O fato de Laurentino ser jornalista, e não historiador, não é nenhum demérito – e seria bobagem perder tempo atacando-o pela inexistência de um diploma formal e de supostas “qualificações acadêmicas” –, uma vez que a sua narrativa é viva e atraente. Quem tiver alguma dúvida que leia o livro e tire suas próprias conclusões!
         Um dos pontos altos da obra são as informações trazidas a respeito do “patriarca” da independência, José Bonifácio. Elas são essenciais não apenas para entendermos as concepções políticas e ideológicas de Laurentino, mas para compreendermos a via histórica pela qual o país se desenvolveu: a revolução passiva. Este termo cunhado por Gramsci a partir do conceito de Lenin conhecido como via prussiana ao capitalismo, também é chamado por outros autores de modernização conservadora. Ela se opõe à via clássica, seguida por Inglaterra, França e EUA.
         A revolução passiva pode ser resumida da seguinte forma: “As transformações ocorridas na história brasileira não resultaram de autênticas revoluções burguesas, de movimentos independentes provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população e abrindo o caminho para o capitalismo; mas se processaram através de negociatas de bastidores entre as elites, de uma conciliação entre os representantes de grupos opositores dominantes economicamente. Conciliação esta que se expressa sob a figura política das ‘reformas pelo alto’. Esta conciliação pelo alto jamais escondeu a intenção de manter marginalizadas e reprimidas as classes e camadas sociais ‘de baixo’. O conceito de ‘revolução passiva’, adotado por Gramsci para explicar o desenvolvimento do capitalismo na Itália, expressa o mesmo conteúdo que pretende sintetizar a ausência de participação popular nestes movimentos sociais”[i].
         A via clássica, por sua vez, tem como principais exemplos a Inglaterra em 1688-1689, os EUA em 1776 e a França em 1789. Esta via é caracterizada por uma ruptura profunda, revolucionária, que termina por guilhotinar grande parte da classe dominante, realiza a reforma agrária, lança as bases da democracia burguesa, do mercado nacional e do capitalismo. Na Inglaterra e na França os reis tiveram a cabeça cortada e as instituições monárquicas seriamente debilitadas ou destruídas. Nos EUA, a luta contra a escravidão negra se desdobrou numa guerra civil que durou 4 anos e terminou por mudar radicalmente a estrutura produtiva do país, preparando as condições para o triunfo da industrialização.

2.
         A independência do Brasil tem como figura central D. Pedro I, em torno do qual foi criado o mito do heroico e retumbante grito, supostamente ouvido às margens plácidas do riacho Ipiranga. Mas por trás do futuro imperador brasileiro, estava o “liberal” José Bonifácio, visto por Laurentino Gomes e muitos historiadores como o real arquiteto da estratégia independentista do país.
         “Na Independência”, escreve Laurentino Gomes, “Bonifácio era um homem com um ‘projeto de Brasil’, na definição do historiador e jornalista Jorge Caldeira. Na sua visão, a única maneira de impedir a fragmentação do território brasileiro após a separação de Portugal seria equipá-lo com um ‘centro de força e unidade’ sob o regime da monarquia constitucional e a liderança do imperador Pedro I. Foi essa fórmula de Brasil que triunfou em 1822”[ii]. Teremos oportunidade de ver mais adiante os limites deste “projeto de Brasil”.
         Moderado e de espírito burguês, Bonifácio, se comparado ao restante da elite brasileira, era progressista. Justamente por isso foi combatido por ela e por D. Pedro I nos anos subsequentes à independência. Diferentemente do patriarca norte-americano, Benjamin Franklin, Bonifácio não pôde estudar no Brasil (tampouco pôde desenvolver universidades, gráficas, tipografias e clubes filosóficos como o seu “colega” norte-americano), sendo obrigado a buscar formação na metrópole, onde se tornou alto funcionário do rei português.
         Partiu para a Europa em 1783, fazendo uma primeira escala em Paris, onde presenciou de 1790 até 1791 “o furor da Revolução Francesa. Alguns anos mais tarde estaria nas trincheiras de Portugal, lutando contra as tropas do imperador Napoleão Bonaparte, que invadiram o país enquanto a corte de D. João VI fugia para o Brasil”[iii]. Quando D. Pedro I nasceu, em 1798, José Bonifácio já era um dos cientistas mais respeitados e admirados da Europa. “Entre outras realizações, publicaria tratados para melhorar a pesca da baleia, o plantio de bosques e a recuperação de minas exauridas em Portugal. Como mineralogista, sua especialidade, descreveria 12 novos tipos de minerais”[iv].

3.
         Laurentino Gomes afirma que no Brasil de 1822, José Bonifácio desempenharia um papel equivalente ao de Thomas Jefferson na independência dos EUA. E complementa: “com três diferenças, todas a favor do brasileiro”[v]. Quais seriam essas diferenças e, por que, exatamente, seriam favoráveis ao brasileiro?
         Rapidamente Laurentino nos esclarece: “Jefferson, que também vivera em Paris na época da Revolução Francesa, se deixou seduzir pelo ardor revolucionário e, durante algum tempo, acreditou sinceramente que o regime de terror e as milhares de execuções na guilhotina eram aceitáveis em nome do avanço das novas ideias políticas. ‘A árvore da liberdade precisa ser irrigada de tempo em tempo pelo sangue de patriotas e tiranos’, afirmou ao justificar os excessos dos revolucionários franceses. ‘É a sua forma natural de crescer’. Bonifácio, ao contrário, assustou-se e aprendeu muito com o que viu nas ruas de Paris. Percebeu que a energia das massas, sem controle e não canalizada para instituições como o parlamento, poderia ser tão ou mais nociva quanto a tirania de um soberano absoluto. Por isso, esforçou-se para impedir que o processo de independência fugisse ao controle das instituições monárquicas e desaguasse na república, regime para o qual acreditava que o Brasil ainda não estivesse preparado em virtude da enorme proporção de escravos, analfabetos e miseráveis que compunham a população brasileira”[vi].
         Nenhuma descrição poderia definir tão bem a diferença entre a via prussiana (ou revolução passiva) e a via clássica de desenvolvimento ao capitalismo do que esse trecho. Laurentino Gomes, demonstrando toda a sua concepção política, não tira as devidas conclusões das consequências trágicas da visão conservadora de Bonifácio, que claramente não compreendeu o regime do terror jacobino. Como veremos adiante, a ausência da figura da guilhotina no processo de independência – chamado erroneamente por ele de “processo revolucionário” em distintas passagens – deixará a aristocracia rural e os senhores de escravos tão livres e confiantes, que selarão o destino político e econômico posterior do Brasil e do seu povo.

4.
         As outras duas “diferenças” entre Jefferson e Bonifácio são as seguintes: Jefferson não tinha senso de humor, enquanto que Bonifácio era afável, divertido e adorava contar piadas; a terceira e última era que Jefferson era favorável à escravidão negra, enquanto que Bonifácio era contrário. A primeira diferença – favorável ou contra o terror da guilhotina – era claramente desfavorável à Bonifácio, cuja comparação entre os EUA e o Brasil de hoje fala por si mesma; a segunda é uma trivialidade para preencher com curiosidades um livro comercial; e a terceira e última é, realmente, favorável ao brasileiro.
         Como reflexo de sua formação europeia “ilustrada”, Bonifácio foi um abolicionista e, segundo Laurentino (e os livros consultados por ele), deu uma batalha pelo fim da escravidão, selando o seu destino pós-independência. Ele sustentava que o país deveria defender a “liberdade pessoal dos homens, que não podem ser propriedade de ninguém”, já que “os negros são homens como nós”[vii]. Durante a assembleia constituinte de 1823, “Bonifácio trombou com os poderosos interesses dos latifundiários e senhores de escravos ao sugerir à constituinte a proibição do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão no Brasil. Seu projeto nem chegou a ser apresentado (...) Dois anos mais tarde, já no exílio em Paris, Bonifácio explicaria a razão da proposta: ‘A necessidade de abolir o comércio de escravatura, e de emancipar gradualmente os atuais cativos é tão imperiosa que julgamos não haver coração brasileiro tão perverso, ou tão ignorante que a negue, ou a desconheça. (...) Qualquer que seja a sorte futura do Brasil, ele não pode progredir e civilizar-se sem cortar, o quanto antes, pela raiz este cancro moral, que lhe rói e consome as últimas potências de vida...”[viii].
         Errou. Os corações eram perversos e gananciosos demais! A guilhotina poderia ter lhes ensinado boas maneiras.
         Contrariando a afirmativa de que a primeira das “três diferenças a favor do brasileiro” seria positiva, Laurentino afirma que “Bonifácio, obviamente, cometeu um erro de cálculo. Acreditou que, uma vez silenciados os radicais republicanos e preservado o poder do imperador, conseguiria avançar nas reformas sociais de que, em sua opinião, o Brasil tanto necessitava para se considerar uma nação plenamente soberana. Era uma ilusão. Dependente até a medula da mão de obra escrava, a aristocracia rural brasileira aceitaria qualquer coisa da constituinte, menos mudanças nas estruturas sociais que sustentavam a economia brasileira e garantiam seus privilégios”[ix].
         Onde estava o “erro de cálculo” de Bonifácio? Laurentino não nos diz. Mas um observador sagaz logo perceberá que se trata do abandono da via clássica ao capitalismo, expresso, sobretudo, pelo regime do terror jacobino, ao qual, tanto Bonifácio quanto Laurentino, renegam; o que deixou os latifundiários e senhores de escravos à vontade e com força suficiente para construírem o Brasil que lhes interessava. Assim, o “projeto de Brasil” dos latifundiários e senhores de escravos – que, no fundo, era o mesmo que o de D. Pedro I – prevaleceu sobre o de Bonifácio.
         Renegando a guilhotina, Bonifácio ilusoriamente ainda defendia “a transformação dos escravos em ‘cidadãos ativos e virtuosos’ e uma reforma agrária que substituísse o latifúndio improdutivo pela pequena propriedade familiar’. O seu plano ainda incluía ‘educação primária gratuita para todos’ e a criação de ‘pelo menos uma universidade’ para o ensino superior de medicina, ciências naturais, direito e economia”[x]. Ou seja, queria a realização pacífica do programa de uma “revolução burguesa”, o que seria, sem a menor sombra de dúvida, extremamente progressivo para o Brasil, uma vez que ainda hoje ele não foi realizado plenamente.
         Porém, chorosamente, Laurentino Gomes, citando o historiador José Honório Rodrigues, constata que Bonifácio “estava à frente de todos, era um vanguardeiro de sua época, no meio daqueles fantasmas e fósseis que o circundavam”[xi]. A questão fundamental, no entanto, era a da escravidão. E, segundo nos diz o mesmo Laurentino, “ela haveria de selar o destino de Bonifácio à frente do governo de D. Pedro porque mexia no alicerce sobre o qual assentava-se todas as relações sociais do Brasil até então”[xii]. E todas estas passagens assombrosamente não fazem Laurentino concluir que a primeira diferença entre Jefferson e Bonifácio é totalmente favorável ao norte-americano.
         Como realizar todas estas mudanças sem revolução e sem guilhotina? Esperar que o poder moderador da monarquia constitucional resolvesse a questão agrária e da escravidão negra no Brasil do século XIX é o mesmo que esperar que “o morcego doe sangue e o saci cruze as pernas”. Laurentino, ao contrário, é claramente partidário de Bonifácio, o tratando como uma figura injustiçada, embora omita as consequências de suas opções políticas.

5.
         Após fazer todas estas explanações, Laurentino afirma o “caráter revolucionário” da independência brasileira, sustentando que “um mito recorrente sobre a independência do Brasil diz respeito ao caráter pacífico da ruptura com Portugal. Por essa visão, tudo teria se resumido a uma negociação entre o rei D. João VI e seu filho D. Pedro com algumas escaramuças isoladas e praticamente sem vítimas. É um erro. A guerra da independência foi longa e desgastante”[xiii].
         Ora, caros amigos, qualquer ruptura social gera necessariamente conflitos. O fato de muitos populares (sobretudo escravos) terem morrido nas batalhas do Piauí (Jenipapo) e na Bahia, não significa que a independência não tenha tido, como principal característica, uma negociação pelo alto. O povo foi usado como bucha de canhão pela elite, que não perdeu nem por um momento o controle de todo o “processo revolucionário”. O principal fator que a faria perder este controle – a guilhotina – não apenas não existiu, como foi condenado por Bonifácio, D. Pedro I e Laurentino Gomes. O “nosso autor” obscurece as relações entre Pedro I e a elite escravocrata – forçando uma autonomia do primeiro em relação à segunda –, justamente porque eles seriam os primeiros a ter a cabeça colocada na guilhotina.
Isso não quer dizer que não houve aspectos progressivos na ruptura “liderada” por D. Pedro I, mas isso está muito longe de um “processo revolucionário”; para ser mais preciso: tão distantes quanto o Sol da Terra. Bonifácio sem a guilhotina terminou exilado e o Brasil subjugado às potências imperialistas em formação. A “independência” mostrou-se um jogo de cartas marcadas, que manteve toda a estrutura colonial, perpetuando os interesses comerciais da Inglaterra, que já existiam desde o período em que o país era uma colônia portuguesa, coadunados com os da elite nacional. As mortes supostamente poupadas pela guilhotina e pela “energia incontrolável das massas”, se transformaram nas milhares de mortes diárias ocasionadas pela desigualdade social, sobretudo nas periferias das grandes cidades brasileiras.
O próprio Laurentino reconhece hipocritamente estas limitações quando afirma que o reconhecimento da independência por parte de Portugal “só veio em 1825, depois de longa e tortuosa negociação. Ao proclamar sua independência, o Brasil desfizera a rede de negócios, privilégios, cargos e laços familiares que durante mais de 300 anos prevalecera entre a colônia e a metrópole. Era complicado mexer em tudo isso sem abrir feridas e provocar ressentimentos”[xiv]. Ou seja, “nosso autor” sabe perfeitamente que a “independência” promoveria determinadas rupturas que levavam a um conflito que abriria feridas e provocaria ressentimentos, mas sem mexer no essencial: a estrutura política e econômica.
         Onde está, então, a revolução e o “processo revolucionário”?
         No desejo de afirmar a tese de que o Brasil era um país que “tinha tudo para dar errado” e, no entanto – vejam vocês –, deu certo!
         “Deu certo” mesmo que a Inglaterra tenha perpetuado no Brasil “independente” alguns privilégios que gozava em Portugal, como o direito de nomear magistrados especiais com a função de julgar todas as causas que envolvessem cidadãos britânicos[xv]. Além disso, os próprios ingleses residentes no país teriam o “direito” de eleger esses juízes, que só poderiam ser destituídos pelo governo brasileiro mediante prévia aprovação do representante da Inglaterra[xvi]. Assim nasceu a “justiça” brasileira. Toda esta brilhante estrutura política “independente” foi brindada por um grande tratado diplomático para que as monarquias europeias reconhecessem o Brasil “independente”, tendo a Inglaterra como pioneira. Nestas “tratativas diplomáticas”, D. Pedro I assinou uma cláusula secreta que obrigava o Brasil a pagar “a bagatela” de dois milhões de libras esterlinas a título de indenização a Portugal e um reconhecimento aos serviços prestados pela Inglaterra no “processo revolucionário” pela “independência”.
O corsário inglês conhecido como Lord Cochrane, enterrado em Westminster com honras de Estado, teve papel determinante neste “processo revolucionário” brasileiro e latino americano sem povo, agindo mais como agente do capitalismo britânico (e, em grande parte do tempo, em causa própria) do que como um revolucionário e herói, títulos que tentam lhe imputar. Parte do dinheiro extorquido consentidamente do governo “independente” serviu para enriquecer tipos como este.
         Assim começou a história da dívida externa brasileira (isto é, do “pacto colonial” moderno). A elite nacional não viu contradição nenhuma em nada disso, uma vez que estava interessada em fortalecer seus laços comerciais com o mercado mundial, no qual a Inglaterra tinha papel fundamental, sem a intermediação de Portugal. Este era basicamente o seu “projeto de Brasil”, que dura até hoje. E para isso, estava disposta a vender a alma ao diabo. A elite brasileira funciona desse modo: depõe governos quando se tornam inconvenientes aos seus rendimentos, trata as riquezas naturais como propriedade privada para vendê-las a preço de banana aos amos do norte e cultiva um ódio insaciável contra a ralé, criada pela estrutura econômica mantida por esta mesma elite.
Foi baseado neste “processo revolucionário” de cláusulas diplomáticas secretas que Bonifácio se tornou ministro de D. Pedro I: “Bonifácio pediu uma conversa a sós, ‘de homem pra homem’ [com D. Pedro I]. Nunca se soube o conteúdo do diálogo que se seguiu entre os dois, mas Bonifácio saiu dali ministro, como queria D. Pedro”[xvii]. Assim se deu a formação do novo governo “independente”; assim funciona a política burguesa do país até hoje.

6.
Segundo Laurentino Gomes, parte da elite nacional ao tomar conhecimento das “cláusulas secretas”, compreendeu que: “Na prática, a independência deixava de ser uma conquista dos brasileiros para se converter numa concessão do rei de Portugal”[xviii]. Isto é, num acordo entre o rei e o príncipe herdeiro; e destes com a Inglaterra.
É no mínimo curioso que D. Pedro I seja retratado por Laurentino Gomes e por outros historiadores como “liberal”, quando na verdade foi um monarca absolutista, admirador de Napoleão (que encarnou o retrocesso da Revolução Francesa) e proponente do famigerado poder moderador, que anula a importância de qualquer constituição. Certamente D. Pedro I representava aspectos mais progressivos do que os de seu irmão D. Miguel, com o qual desencadeou uma guerra civil pelo trono português em 1832.
O fato de D. Miguel ser um partidário do absolutismo monárquico que encarnou a reação feudal europeia não deveria aliviar as contradições absolutistas de D. Pedro I. O “liberalismo” de D. Pedro I, aceito acriticamente pela maior parte da historiografia brasileira, tolerou e compactuou com a escravidão negra e o latifúndio; com “liberdades individuais” fictícias, que existiam em 99% dos casos apenas para os proprietários brancos. Esta concepção “liberal” passou para o DNA da elite brasileira, que assim o compreende.
D. Pedro I só foi questionado quando começou a representar uma séria ameaça aos negócios da elite brasileira, torrando o tesouro nacional e contraindo empréstimos desenfreadamente para sustentar suas campanhas militares. Nestes momentos ela tira o pó dos seus discursos sobre “liberdade, igualdade e fraternidade” para agitá-los contra a “tirania”; tudo, evidentemente, para perpetuar a estrutura econômica de um capitalismo periférico, do qual depende toda a sua existência e privilégios.
Portanto, não houve “processo revolucionário” algum na “independência” do Brasil, que se caracteriza muito mais por ser uma revolução pelo alto ou uma modernização conservadora. A ausência de uma guilhotina e da energia das massas, tão menosprezadas por Bonifácio quanto por Laurentino Gomes, não mudou a estrutura política e econômica da colônia portuguesa; muito menos a classe social que detinha o poder. Ao contrário: a perpetuou com um discurso “mais moderno”. Esta foi a “revolução burguesa” no Brasil.
O heroísmo independentista de D. Pedro I existiu apenas no desembarque da cidade do Porto, em 1832, quando aspirava derrotar o irmão usurpador, que se apoderara do trono com fins de restauração da monarquia absolutista. Nada se viu parecido por aqui em 1822. Não foi casual que o coração de D. Pedro I tenha ficado enterrado em Portugal. No Mausoléu do Ipiranga jaz apenas a sua carcaça liberal, na sombra do qual a elite brasileira se empenha em administrar e empreender o novo pacto colonial chamado dívida pública, que é insolucionável e impagável.
 
Monumento à independência, próximo ao riacho Ipiranga; local onde D. Pedro I está sepultado.

Post-Scriptum:
         A monarquia implantada no Brasil por D. Pedro I e José Bonifácio teve um mérito, apesar dos diversos meios sangrentos e obscuros utilizados para atingi-lo: a unidade territorial do país. O Brasil é hoje um dos maiores países do mundo. Isso poderia ser uma grande vantagem se, de fato, a elite nacional e o imperialismo o deixassem desenvolver o seu mercado interno para que o país pudesse se utilizar dos bons métodos do capitalismo na sua fase de ascensão histórica. Não é o caso: utilizam-no para espolia-lo.
         D. Pedro I era um fanático da grandeza territorial. Compreendia que o poder e a riqueza eram o resultado de grandes possessões de terra. Assassinou mais brasileiros republicanos na repressão à Confederação do Equador em 1824 do que morreram, proporcionalmente, “patriotas” no “processo revolucionário” de 1822. Procurou manter o Uruguai à força sob o tacão do império brasileiro, tal como faria qualquer monarca absolutista europeu, torrando o tesouro público, ignorando que na Província Cisplatina já existia uma nação independente, com cultura, sociedade e economia autônomas.
         O Brasil será uma grande potência de fato, não apenas em declarações e esperanças eleitorais, se o povo brasileiro (em especial seus trabalhadores) tiveram capacidade e coragem de tomar o poder no país, convertendo essa extensão territorial em uma grande possibilidade de desenvolvimento social, de integração econômica e humana; sem falar na possibilidade de tirar energia e recursos dos oceanos, conforme apregoam alguns oceanologistas, uma vez que se trata de um dos maiores litorais do mundo.
Para atingir o socialismo e poder elevar o nível de vida e de cultura do povo, precisa desenvolver plenamente as potencialidades que a burguesia brasileira não teve coragem histórica de resolver nos séculos XIX e XX. Caso contrário, a grande extensão do país será melhor entendida como a figura de um gigantesco latifúndio de poucas famílias, usado indiscriminada e criminosamente para o enriquecimento ilícito e imoral, dando ao país a sua verdadeira alcunha: nem do carnaval, nem do futebol, mas o país das maiores desigualdades sociais do mundo!
         Já passou da hora de virarmos esta página da história...


NOTAS


[i]Ver neste blog, em 17 de julho de 2016, O desenvolvimento do capitalismo no Brasil:  http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/07/o-desenvolvimento-do-capitalismo-no.html
[ii] 1822, Laurentino Gomes, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2010 (Página 146).
[iii] Idem.
[iv] Idem (Página 147).
[v] Idem (Página 150).
[vi] Idem (grifos nossos).
[vii] Idem (Páginas 152 e 153).
[viii] Idem (Página 217).
[ix] Idem (Página 218).
[x] Idem (Página 152)
[xi] Idem.
[xii] Idem.
[xiii] Idem (Página 163).
[xiv] Idem (Página 286).
[xv] Idem (Página 288).
[xvi] Idem (Página 288 e 289).
[xvii] Idem (Página 155).
[xviii] Idem (Página 287).

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Bolsonaro e o apoio do povo

"É preciso ensinar ao povo horrorizar-se consigo mesmo, 
para insuflar-lhe coragem".
K. Marx
Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel.


Naquele horripilante vídeo de Bolsonaro defendendo a tortura e a ditadura militar que circulou pela internet o que mais assusta não é a afirmação "eu sou favorável à tortura, você sabe disso!", mas precisamente o que segue. Ali podemos constatar, sombria e tardiamente, que ele falava com certo conhecimento de causa. Um conhecimento mais intuitivo do que refletido, é verdade, mas ainda assim um "conhecimento", que é baseado numa "conversa entre inconscientes".
Qual é a sequência da frase? "E o povo é favorável a isso também!". Favorável ao quê? Ora, favorável à tortura! É doloroso constatar isso, mas é uma triste verdade. É claro que atrás desta palavrinha "povo" se põe o que quiser; cabendo mundos e fundos. Inclusive podemos ser imprecisos e, por isso mesmo, injustos. Contudo, Bolsonaro tem razão: grande parte do povo o elegeu e o apoiou, mesmo sabendo de tudo isso. Não podemos dourar a pílula. Se queremos superar o problema temos que tocar na ferida e olhá-la de frente.
Mais adiante, ainda no mesmo vídeo, o entrevistador pergunta: "se você fosse hoje o presidente da República, você fecharia o Congresso Nacional?", ao que o "nosso" fascista responde: "Não há a menor dúvida, daria golpe no mesmo dia. Não funciona! E eu tenho certeza que, pelo menos, 90% da população ia fazer festa e bater palma".
Como a mídia comercial, as grandes empresas e as "autoridades" não apenas fizeram vistas grossas, mas apoiaram abertamente tal tipo de "liberdade de expressão", o resultado é que através do sadismo, das taras e do ódio descarado, o bolsonarismo soube manipular o lado podre do ser humano, tão bem conhecido por ele, misturando fake news e confusão de conceitos. Já foi dito que "Estes métodos de 'debate' servem perfeitamente para manipular emoções infantis de 'pessoas comuns' e ocultar os níveis de privilégios e exploração do capitalismo imperialista, que se encontra em avançado estado de degeneração. As contradições são muito grandes para não serem percebidas, por isso esta direita se especializou em métodos refinados de distorção da realidade, que misturam 'auto-verdade', pós-modernismo, egotismo e sadomasoquismo"*.
Em contrapartida, a "esquerda" continua com o seu ramerrão político, "explicando" o bolsonarismo meramente como: "um voto de protesto contra o PT". E que protesto!
Que puniram o PT, não restam dúvidas; porém, não estavam simplesmente "punindo" o PT, mas a si mesmos, optando conscientemente pela tortura e pela ditadura militar para atender anseios inconscientes. Ainda sem compreender nada, a "esquerda" segue se autoenganando: "Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos válidos. São 57 milhões de pessoas, na imensa maioria trabalhadores, que votaram em uma saída machista, racista, homofóbica e neoliberal. Mas que fizeram isso não por apoiar estas ideias, mas pensando estar votando contra a corrupção e a violência que assolam a classe trabalhadora e se refletem na morte dos jovens, na insegurança das mulheres e na falta de verba para a saúde e educação".
Que dentre estes 57 milhões existam indivíduos iludidos que votaram em Bolsonaro esperando melhoras até se pode concordar (alguns começam a se manifestar hoje), mas ignorar que a maior parte conhecia declarações, vídeos, reportagens e outras tantas bizarrices de Bolsonaro e, ainda assim, votaram nele (e seguem o defendendo), é porque estão de acordo com uma saída machista, racista, homofóbica, neoliberal, defensora da tortura, da intervenção militar, da subserviência aos EUA e um longo etc. Nesse caso Bolsonaro tem razão: o povo "é favorável"!
É triste constatar isso, mas Bolsonaro conhece o "povo" melhor que a "esquerda". E por que isso acontece? Porque ele leva em consideração uma massa real, cheia de contradições. Não a idealiza, como faz a "esquerda", que a trata como criança, tipo Cristo na cruz: "perdoa-os pai, ela não sabe o que faz!". Se os trabalhadores queriam punir o PT, porque escolheram puni-lo exatamente com a ditadura militar e a tortura? Isto é: por que evoluíram à direita e não à esquerda?
Superar o velho discurso dogmático, repetitivo e estéril é necessário. Existem determinados avanços na ciência ignorados pela "esquerda", como a psicanálise. Temos que aprender a intervir nos fenômenos da psicologia de massas; a politizar as questões da vida cotidiana, a desmascarar as contradições da massa e a tornar as suas perversões, sadomasoquismos e taras do inconsciente coletivo em atividades perfeitamente conscientes! Não podemos idealizar a massa, mas olhá-la de frente e apontar os seus problemas sem medo de ser impopular ou de "perder votos". Isso não é uma tarefa fácil, nem existe receita de bolo. Aliás, é uma tarefa pioneira, que nunca foi tentada em lugar nenhum. Para chegar até as massas ela deve começar por nós, passar pelos nossos "companheiros", pelo atual sindicalismo e militância política que reproduzem o paternalismo e o clientelismo da direita, "protegendo" a massa, como se fossem filhos mimados.
Numa sociedade acostumada a dissimular sentimentos e desvios, chamar as coisas pelo seu nome continua sendo um ato revolucionário. Não tenhamos medo de olhar a massa e a nós mesmos no nosso "espelho profundo". É um primeiro e decisivo passo para procurar uma luz no fim do túnel.