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Riacho Ipiranga, em São Paulo, de onde D. Pedro I proclamou a "independência" |
1.
O livro 1822, do escritor Laurentino Gomes, é uma importante contribuição
para tentarmos remontar a narrativa da história do Brasil, ainda que ele possua
uma limitada visão de mundo democrático-burguesa. O principal motivo pelo qual
podemos considerar o livro importante é o extenso trabalho de pesquisa historiográfica
realizado pelo autor para escrevê-lo. O fato de Laurentino ser jornalista, e
não historiador, não é nenhum demérito – e seria bobagem perder tempo
atacando-o pela inexistência de um diploma formal e de supostas “qualificações
acadêmicas” –, uma vez que a sua narrativa é viva e atraente. Quem tiver alguma
dúvida que leia o livro e tire suas próprias conclusões!
Um dos pontos altos da obra são as
informações trazidas a respeito do “patriarca” da independência, José
Bonifácio. Elas são essenciais não apenas para entendermos as concepções
políticas e ideológicas de Laurentino, mas para compreendermos a via histórica
pela qual o país se desenvolveu: a revolução
passiva. Este termo cunhado por Gramsci a partir do conceito de Lenin
conhecido como via prussiana ao
capitalismo, também é chamado por outros autores de modernização conservadora. Ela se opõe à via clássica, seguida por Inglaterra, França e EUA.
A revolução
passiva pode ser resumida da seguinte forma: “As transformações ocorridas na história brasileira não resultaram de
autênticas revoluções burguesas, de movimentos independentes provenientes de
baixo para cima, envolvendo o conjunto da população e abrindo o caminho para o
capitalismo; mas se processaram através de negociatas de bastidores entre as
elites, de uma conciliação entre os representantes de grupos opositores
dominantes economicamente. Conciliação esta que se expressa sob a figura
política das ‘reformas pelo alto’. Esta conciliação pelo alto jamais escondeu a
intenção de manter marginalizadas e reprimidas as classes e camadas sociais ‘de
baixo’. O conceito de ‘revolução passiva’, adotado por Gramsci para explicar o
desenvolvimento do capitalismo na Itália, expressa o mesmo conteúdo que
pretende sintetizar a ausência de participação popular nestes movimentos
sociais”[i].
A via
clássica, por sua vez, tem como principais exemplos a Inglaterra em
1688-1689, os EUA em 1776 e a França em 1789. Esta via é caracterizada por uma
ruptura profunda, revolucionária, que termina por guilhotinar grande parte da
classe dominante, realiza a reforma agrária, lança as bases da democracia
burguesa, do mercado nacional e do capitalismo. Na Inglaterra e na França os
reis tiveram a cabeça cortada e as instituições monárquicas seriamente
debilitadas ou destruídas. Nos EUA, a luta contra a escravidão negra se
desdobrou numa guerra civil que durou 4 anos e terminou por mudar radicalmente
a estrutura produtiva do país, preparando as condições para o triunfo da
industrialização.
2.
A independência do Brasil tem como
figura central D. Pedro I, em torno do qual foi criado o mito do heroico e
retumbante grito, supostamente ouvido às margens plácidas do riacho Ipiranga.
Mas por trás do futuro imperador brasileiro, estava o “liberal” José Bonifácio,
visto por Laurentino Gomes e muitos historiadores como o real arquiteto da
estratégia independentista do país.
“Na
Independência”, escreve Laurentino Gomes, “Bonifácio era um homem com um ‘projeto de Brasil’, na definição do
historiador e jornalista Jorge Caldeira. Na sua visão, a única maneira de
impedir a fragmentação do território brasileiro após a separação de Portugal
seria equipá-lo com um ‘centro de força e unidade’ sob o regime da monarquia constitucional
e a liderança do imperador Pedro I. Foi essa fórmula de Brasil que triunfou em
1822”[ii].
Teremos oportunidade de ver mais adiante os limites deste “projeto de Brasil”.
Moderado e de espírito burguês,
Bonifácio, se comparado ao restante da elite brasileira, era progressista.
Justamente por isso foi combatido por ela e por D. Pedro I nos anos
subsequentes à independência. Diferentemente do patriarca norte-americano,
Benjamin Franklin, Bonifácio não pôde estudar no Brasil (tampouco pôde
desenvolver universidades, gráficas, tipografias e clubes filosóficos como o
seu “colega” norte-americano), sendo obrigado a buscar formação na metrópole,
onde se tornou alto funcionário do rei português.
Partiu para a Europa em 1783, fazendo
uma primeira escala em Paris, onde presenciou de 1790 até 1791 “o furor da Revolução Francesa. Alguns anos
mais tarde estaria nas trincheiras de Portugal, lutando contra as tropas do
imperador Napoleão Bonaparte, que invadiram o país enquanto a corte de D. João
VI fugia para o Brasil”[iii].
Quando D. Pedro I nasceu, em 1798, José Bonifácio já era um dos cientistas mais
respeitados e admirados da Europa. “Entre
outras realizações, publicaria tratados para melhorar a pesca da baleia, o
plantio de bosques e a recuperação de minas exauridas em Portugal. Como
mineralogista, sua especialidade, descreveria 12 novos tipos de minerais”[iv].
3.
Laurentino Gomes afirma que no Brasil
de 1822, José Bonifácio desempenharia um papel equivalente ao de Thomas
Jefferson na independência dos EUA. E complementa: “com três diferenças, todas a favor do brasileiro”[v].
Quais seriam essas diferenças e, por que, exatamente, seriam favoráveis ao
brasileiro?
Rapidamente Laurentino nos esclarece: “Jefferson, que também vivera em Paris na
época da Revolução Francesa, se deixou seduzir pelo ardor revolucionário e,
durante algum tempo, acreditou sinceramente que o regime de terror e as
milhares de execuções na guilhotina eram aceitáveis em nome do avanço das novas
ideias políticas. ‘A árvore da liberdade precisa ser irrigada de tempo em tempo
pelo sangue de patriotas e tiranos’, afirmou ao justificar os excessos dos
revolucionários franceses. ‘É a sua forma natural de crescer’. Bonifácio, ao contrário,
assustou-se e aprendeu muito com o que viu nas ruas de Paris. Percebeu que a
energia das massas, sem controle e não canalizada para instituições como o
parlamento, poderia ser tão ou mais nociva quanto a tirania de um soberano
absoluto. Por isso, esforçou-se para impedir que o processo de independência fugisse ao controle das instituições
monárquicas e desaguasse na república, regime para o qual acreditava que o
Brasil ainda não estivesse preparado em virtude da enorme proporção de
escravos, analfabetos e miseráveis que compunham a população brasileira”[vi].
Nenhuma descrição poderia definir tão
bem a diferença entre a via prussiana
(ou revolução passiva) e a via clássica de desenvolvimento ao
capitalismo do que esse trecho. Laurentino Gomes, demonstrando toda a sua
concepção política, não tira as devidas conclusões das consequências trágicas
da visão conservadora de Bonifácio, que claramente não compreendeu o regime do
terror jacobino. Como veremos adiante, a ausência da figura da guilhotina no processo
de independência – chamado erroneamente por ele de “processo revolucionário” em
distintas passagens – deixará a aristocracia rural e os senhores de escravos
tão livres e confiantes, que selarão o destino político e econômico posterior
do Brasil e do seu povo.
4.
As outras duas “diferenças” entre
Jefferson e Bonifácio são as seguintes: Jefferson não tinha senso de humor,
enquanto que Bonifácio era afável, divertido e adorava contar piadas; a
terceira e última era que Jefferson era favorável à escravidão negra, enquanto
que Bonifácio era contrário. A primeira diferença – favorável ou contra o
terror da guilhotina – era claramente desfavorável à Bonifácio, cuja comparação
entre os EUA e o Brasil de hoje fala por si mesma; a segunda é uma trivialidade
para preencher com curiosidades um livro comercial; e a terceira e última é,
realmente, favorável ao brasileiro.
Como reflexo de sua formação europeia
“ilustrada”, Bonifácio foi um abolicionista e, segundo Laurentino (e os livros
consultados por ele), deu uma batalha pelo fim da escravidão, selando o seu
destino pós-independência. Ele sustentava que o país deveria defender a “liberdade pessoal dos homens, que não podem
ser propriedade de ninguém”, já que “os
negros são homens como nós”[vii].
Durante a assembleia constituinte de 1823, “Bonifácio
trombou com os poderosos interesses dos latifundiários e senhores de escravos
ao sugerir à constituinte a proibição do tráfico negreiro e a abolição gradual
da escravidão no Brasil. Seu projeto nem chegou a ser apresentado (...) Dois anos mais tarde, já no exílio em Paris,
Bonifácio explicaria a razão da proposta: ‘A necessidade de abolir o comércio
de escravatura, e de emancipar gradualmente os atuais cativos é tão imperiosa
que julgamos não haver coração brasileiro tão perverso, ou tão ignorante que a
negue, ou a desconheça. (...) Qualquer
que seja a sorte futura do Brasil, ele não pode progredir e civilizar-se sem
cortar, o quanto antes, pela raiz este cancro moral, que lhe rói e consome as
últimas potências de vida...”[viii].
Errou. Os corações eram perversos e
gananciosos demais! A guilhotina poderia ter lhes ensinado boas maneiras.
Contrariando a afirmativa de que a
primeira das “três diferenças a favor do brasileiro” seria positiva, Laurentino
afirma que “Bonifácio, obviamente, cometeu
um erro de cálculo. Acreditou que, uma vez silenciados os radicais republicanos
e preservado o poder do imperador, conseguiria avançar nas reformas sociais de
que, em sua opinião, o Brasil tanto necessitava para se considerar uma nação
plenamente soberana. Era uma ilusão. Dependente até a medula da mão de obra
escrava, a aristocracia rural brasileira aceitaria qualquer coisa da
constituinte, menos mudanças nas estruturas sociais que sustentavam a economia
brasileira e garantiam seus privilégios”[ix].
Onde estava o “erro de cálculo” de
Bonifácio? Laurentino não nos diz. Mas um observador sagaz logo perceberá que
se trata do abandono da via clássica
ao capitalismo, expresso, sobretudo, pelo regime do terror jacobino, ao qual,
tanto Bonifácio quanto Laurentino, renegam; o que deixou os latifundiários e
senhores de escravos à vontade e com força suficiente para construírem o Brasil
que lhes interessava. Assim, o “projeto de Brasil” dos latifundiários e
senhores de escravos – que, no fundo, era o mesmo que o de D. Pedro I –
prevaleceu sobre o de Bonifácio.
Renegando a guilhotina, Bonifácio
ilusoriamente ainda defendia “a
transformação dos escravos em ‘cidadãos ativos e virtuosos’ e uma reforma
agrária que substituísse o latifúndio improdutivo pela pequena propriedade
familiar’. O seu plano ainda incluía ‘educação primária gratuita para todos’ e
a criação de ‘pelo menos uma universidade’ para o ensino superior de medicina,
ciências naturais, direito e economia”[x].
Ou seja, queria a realização pacífica do programa de uma “revolução burguesa”,
o que seria, sem a menor sombra de dúvida, extremamente progressivo para o
Brasil, uma vez que ainda hoje ele não foi realizado plenamente.
Porém, chorosamente, Laurentino Gomes,
citando o historiador José Honório Rodrigues, constata que Bonifácio “estava à frente de todos, era um
vanguardeiro de sua época, no meio daqueles fantasmas e fósseis que o
circundavam”[xi].
A questão fundamental, no entanto, era a da escravidão. E, segundo nos diz o
mesmo Laurentino, “ela haveria de selar o
destino de Bonifácio à frente do governo de D. Pedro porque mexia no alicerce
sobre o qual assentava-se todas as relações sociais do Brasil até então”[xii].
E todas estas passagens assombrosamente não fazem Laurentino concluir que a
primeira diferença entre Jefferson e Bonifácio é totalmente favorável ao
norte-americano.
Como realizar todas estas mudanças sem
revolução e sem guilhotina? Esperar que o poder moderador da monarquia
constitucional resolvesse a questão agrária e da escravidão negra no Brasil do
século XIX é o mesmo que esperar que “o morcego doe sangue e o saci cruze as
pernas”. Laurentino, ao contrário, é claramente partidário de Bonifácio, o tratando
como uma figura injustiçada, embora omita as consequências de suas opções
políticas.
5.
Após fazer todas estas explanações,
Laurentino afirma o “caráter revolucionário” da independência brasileira, sustentando
que “um mito recorrente sobre a
independência do Brasil diz respeito ao caráter pacífico da ruptura com
Portugal. Por essa visão, tudo teria se resumido a uma negociação entre o rei
D. João VI e seu filho D. Pedro com algumas escaramuças isoladas e praticamente
sem vítimas. É um erro. A guerra da independência foi longa e desgastante”[xiii].
Ora, caros amigos, qualquer ruptura social
gera necessariamente conflitos. O fato de muitos populares (sobretudo escravos)
terem morrido nas batalhas do Piauí (Jenipapo) e na Bahia, não significa que a
independência não tenha tido, como principal característica, uma negociação
pelo alto. O povo foi usado como bucha de canhão pela elite, que não perdeu nem
por um momento o controle de todo o “processo revolucionário”. O principal
fator que a faria perder este controle – a guilhotina – não apenas não existiu,
como foi condenado por Bonifácio, D. Pedro I e Laurentino Gomes. O “nosso
autor” obscurece as relações entre Pedro I e a elite escravocrata – forçando
uma autonomia do primeiro em relação à segunda –, justamente porque eles seriam
os primeiros a ter a cabeça colocada na guilhotina.
Isso não quer dizer que não houve
aspectos progressivos na ruptura “liderada” por D. Pedro I, mas isso está muito
longe de um “processo revolucionário”; para ser mais preciso: tão distantes
quanto o Sol da Terra. Bonifácio sem a guilhotina terminou exilado e o Brasil
subjugado às potências imperialistas em formação. A “independência” mostrou-se
um jogo de cartas marcadas, que manteve toda a estrutura colonial, perpetuando
os interesses comerciais da Inglaterra, que já existiam desde o período em que
o país era uma colônia portuguesa, coadunados com os da elite nacional. As
mortes supostamente poupadas pela guilhotina e pela “energia incontrolável das
massas”, se transformaram nas milhares de mortes diárias ocasionadas pela
desigualdade social, sobretudo nas periferias das grandes cidades brasileiras.
O próprio Laurentino reconhece hipocritamente
estas limitações quando afirma que o reconhecimento da independência por parte
de Portugal “só veio em 1825, depois de
longa e tortuosa negociação. Ao proclamar sua independência, o Brasil desfizera
a rede de negócios, privilégios, cargos e laços familiares que durante mais de
300 anos prevalecera entre a colônia e a metrópole. Era complicado mexer em
tudo isso sem abrir feridas e provocar ressentimentos”[xiv].
Ou seja, “nosso autor” sabe perfeitamente que a “independência” promoveria
determinadas rupturas que levavam a um conflito que abriria feridas e
provocaria ressentimentos, mas sem mexer no essencial: a estrutura política e
econômica.
Onde está, então, a revolução e o “processo
revolucionário”?
No desejo de afirmar a tese de que o
Brasil era um país que “tinha tudo para
dar errado” e, no entanto – vejam vocês –, deu certo!
“Deu certo” mesmo que a Inglaterra
tenha perpetuado no Brasil “independente” alguns
privilégios que gozava em Portugal, como o direito de nomear magistrados especiais com a função de julgar todas as causas que envolvessem cidadãos britânicos[xv].
Além disso, os próprios ingleses residentes no país teriam o “direito” de
eleger esses juízes, que só poderiam ser destituídos pelo governo brasileiro
mediante prévia aprovação do representante da Inglaterra[xvi].
Assim nasceu a “justiça” brasileira. Toda esta brilhante estrutura política
“independente” foi brindada por um grande tratado diplomático para que as monarquias
europeias reconhecessem o Brasil “independente”, tendo a Inglaterra como
pioneira. Nestas “tratativas diplomáticas”, D. Pedro I assinou uma cláusula secreta que obrigava o Brasil
a pagar “a bagatela” de dois milhões de libras esterlinas a título de indenização
a Portugal e um reconhecimento aos serviços prestados pela Inglaterra no
“processo revolucionário” pela “independência”.
O corsário
inglês conhecido como Lord Cochrane, enterrado em Westminster com honras de Estado,
teve papel determinante neste “processo revolucionário” brasileiro e latino
americano sem povo, agindo mais como agente do capitalismo britânico (e, em
grande parte do tempo, em causa própria) do que como um revolucionário e herói,
títulos que tentam lhe imputar. Parte do dinheiro extorquido consentidamente do
governo “independente” serviu para enriquecer tipos como este.
Assim começou a história da dívida
externa brasileira (isto é, do “pacto colonial” moderno). A elite nacional não
viu contradição nenhuma em nada disso, uma vez que estava interessada em
fortalecer seus laços comerciais com o mercado mundial, no qual a Inglaterra
tinha papel fundamental, sem a intermediação de Portugal. Este era basicamente
o seu “projeto de Brasil”, que dura até hoje. E para isso, estava disposta a
vender a alma ao diabo. A elite brasileira funciona desse modo: depõe governos
quando se tornam inconvenientes aos seus rendimentos, trata as riquezas
naturais como propriedade privada para vendê-las a preço de banana aos amos do
norte e cultiva um ódio insaciável contra a ralé,
criada pela estrutura econômica mantida por esta mesma elite.
Foi baseado neste “processo
revolucionário” de cláusulas diplomáticas secretas que Bonifácio se tornou
ministro de D. Pedro I: “Bonifácio pediu
uma conversa a sós, ‘de homem pra homem’ [com D. Pedro I]. Nunca se soube o conteúdo do diálogo que
se seguiu entre os dois, mas Bonifácio saiu dali ministro, como queria D.
Pedro”[xvii].
Assim se deu a formação do novo governo “independente”; assim funciona a
política burguesa do país até hoje.
6.
Segundo Laurentino Gomes, parte da elite
nacional ao tomar conhecimento das “cláusulas secretas”, compreendeu que: “Na prática, a independência deixava de ser
uma conquista dos brasileiros para se converter numa concessão do rei de Portugal”[xviii].
Isto é, num acordo entre o rei e o príncipe herdeiro; e destes com a Inglaterra.
É no mínimo curioso que D. Pedro I seja
retratado por Laurentino Gomes e por outros historiadores como “liberal”,
quando na verdade foi um monarca absolutista, admirador de Napoleão (que
encarnou o retrocesso da Revolução Francesa) e proponente do famigerado poder moderador, que anula a importância
de qualquer constituição. Certamente D. Pedro I representava aspectos mais
progressivos do que os de seu irmão D. Miguel, com o qual desencadeou uma
guerra civil pelo trono português em 1832.
O fato de D. Miguel ser um partidário do
absolutismo monárquico que encarnou a reação feudal europeia não deveria aliviar
as contradições absolutistas de D. Pedro I. O “liberalismo” de D. Pedro I,
aceito acriticamente pela maior parte da historiografia brasileira, tolerou e
compactuou com a escravidão negra e o latifúndio; com “liberdades individuais”
fictícias, que existiam em 99% dos casos apenas para os proprietários brancos.
Esta concepção “liberal” passou para o DNA da elite brasileira, que assim o
compreende.
D. Pedro I só foi questionado quando
começou a representar uma séria ameaça aos negócios da elite brasileira, torrando
o tesouro nacional e contraindo empréstimos desenfreadamente para sustentar
suas campanhas militares. Nestes momentos ela tira o pó dos seus discursos
sobre “liberdade, igualdade e
fraternidade” para agitá-los contra a “tirania”; tudo, evidentemente, para
perpetuar a estrutura econômica de um capitalismo periférico, do qual depende
toda a sua existência e privilégios.
Portanto, não houve “processo
revolucionário” algum na “independência” do Brasil, que se caracteriza muito
mais por ser uma revolução pelo alto
ou uma modernização conservadora. A
ausência de uma guilhotina e da energia das massas, tão menosprezadas por
Bonifácio quanto por Laurentino Gomes, não mudou a estrutura política e
econômica da colônia portuguesa; muito menos a classe social que detinha o
poder. Ao contrário: a perpetuou com um discurso “mais moderno”. Esta foi a
“revolução burguesa” no Brasil.
O heroísmo independentista de D. Pedro I
existiu apenas no desembarque da cidade do Porto, em 1832, quando aspirava
derrotar o irmão usurpador, que se apoderara do trono com fins de restauração da
monarquia absolutista. Nada se viu parecido por aqui em 1822. Não foi casual que o coração de D. Pedro I tenha ficado
enterrado em Portugal. No Mausoléu do Ipiranga jaz apenas a sua carcaça liberal,
na sombra do qual a elite brasileira se empenha em administrar e empreender o
novo pacto colonial chamado dívida pública,
que é insolucionável e impagável.
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Monumento à independência, próximo ao riacho Ipiranga; local onde D. Pedro I está sepultado. |
Post-Scriptum:
A monarquia implantada no Brasil por D.
Pedro I e José Bonifácio teve um mérito, apesar dos diversos meios sangrentos e
obscuros utilizados para atingi-lo: a unidade territorial do país. O Brasil é
hoje um dos maiores países do mundo. Isso poderia ser uma grande vantagem se,
de fato, a elite nacional e o imperialismo o deixassem desenvolver o seu
mercado interno para que o país pudesse se utilizar dos bons métodos do
capitalismo na sua fase de ascensão histórica. Não é o caso: utilizam-no para
espolia-lo.
D. Pedro I era um fanático da grandeza
territorial. Compreendia que o poder e a riqueza eram o resultado de grandes
possessões de terra. Assassinou mais brasileiros republicanos na repressão à Confederação do Equador em 1824 do que
morreram, proporcionalmente, “patriotas” no “processo revolucionário” de 1822.
Procurou manter o Uruguai à força sob o tacão do império brasileiro, tal como
faria qualquer monarca absolutista europeu, torrando o tesouro público,
ignorando que na Província Cisplatina
já existia uma nação independente, com cultura, sociedade e economia autônomas.
O Brasil será uma grande potência de
fato, não apenas em declarações e esperanças eleitorais, se o povo brasileiro
(em especial seus trabalhadores) tiveram capacidade e coragem de tomar o poder
no país, convertendo essa extensão territorial em uma grande possibilidade de
desenvolvimento social, de integração econômica e humana; sem falar na
possibilidade de tirar energia e recursos dos oceanos, conforme apregoam alguns
oceanologistas, uma vez que se trata de um dos maiores litorais do mundo.
Para atingir o socialismo e poder elevar
o nível de vida e de cultura do povo, precisa desenvolver plenamente as
potencialidades que a burguesia brasileira não teve coragem histórica de resolver
nos séculos XIX e XX. Caso contrário, a grande extensão do país será melhor entendida
como a figura de um gigantesco latifúndio de poucas famílias, usado
indiscriminada e criminosamente para o enriquecimento ilícito e imoral, dando
ao país a sua verdadeira alcunha: nem do carnaval, nem do futebol, mas o país
das maiores desigualdades sociais do mundo!
Já passou da hora de virarmos esta
página da história...
NOTAS
[ii] 1822, Laurentino Gomes, Editora Nova Fronteira, Rio de
Janeiro, 2010 (Página 146).
[vi] Idem (grifos nossos).
[vii] Idem (Páginas 152 e 153).
[xvi] Idem (Página 288 e 289).