sexta-feira, 11 de outubro de 2019

A independência do Brasil foi uma “revolução”?


Riacho Ipiranga, em São Paulo, de onde D. Pedro I proclamou a "independência"

1.
         O livro 1822, do escritor Laurentino Gomes, é uma importante contribuição para tentarmos remontar a narrativa da história do Brasil, ainda que ele possua uma limitada visão de mundo democrático-burguesa. O principal motivo pelo qual podemos considerar o livro importante é o extenso trabalho de pesquisa historiográfica realizado pelo autor para escrevê-lo. O fato de Laurentino ser jornalista, e não historiador, não é nenhum demérito – e seria bobagem perder tempo atacando-o pela inexistência de um diploma formal e de supostas “qualificações acadêmicas” –, uma vez que a sua narrativa é viva e atraente. Quem tiver alguma dúvida que leia o livro e tire suas próprias conclusões!
         Um dos pontos altos da obra são as informações trazidas a respeito do “patriarca” da independência, José Bonifácio. Elas são essenciais não apenas para entendermos as concepções políticas e ideológicas de Laurentino, mas para compreendermos a via histórica pela qual o país se desenvolveu: a revolução passiva. Este termo cunhado por Gramsci a partir do conceito de Lenin conhecido como via prussiana ao capitalismo, também é chamado por outros autores de modernização conservadora. Ela se opõe à via clássica, seguida por Inglaterra, França e EUA.
         A revolução passiva pode ser resumida da seguinte forma: “As transformações ocorridas na história brasileira não resultaram de autênticas revoluções burguesas, de movimentos independentes provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população e abrindo o caminho para o capitalismo; mas se processaram através de negociatas de bastidores entre as elites, de uma conciliação entre os representantes de grupos opositores dominantes economicamente. Conciliação esta que se expressa sob a figura política das ‘reformas pelo alto’. Esta conciliação pelo alto jamais escondeu a intenção de manter marginalizadas e reprimidas as classes e camadas sociais ‘de baixo’. O conceito de ‘revolução passiva’, adotado por Gramsci para explicar o desenvolvimento do capitalismo na Itália, expressa o mesmo conteúdo que pretende sintetizar a ausência de participação popular nestes movimentos sociais”[i].
         A via clássica, por sua vez, tem como principais exemplos a Inglaterra em 1688-1689, os EUA em 1776 e a França em 1789. Esta via é caracterizada por uma ruptura profunda, revolucionária, que termina por guilhotinar grande parte da classe dominante, realiza a reforma agrária, lança as bases da democracia burguesa, do mercado nacional e do capitalismo. Na Inglaterra e na França os reis tiveram a cabeça cortada e as instituições monárquicas seriamente debilitadas ou destruídas. Nos EUA, a luta contra a escravidão negra se desdobrou numa guerra civil que durou 4 anos e terminou por mudar radicalmente a estrutura produtiva do país, preparando as condições para o triunfo da industrialização.

2.
         A independência do Brasil tem como figura central D. Pedro I, em torno do qual foi criado o mito do heroico e retumbante grito, supostamente ouvido às margens plácidas do riacho Ipiranga. Mas por trás do futuro imperador brasileiro, estava o “liberal” José Bonifácio, visto por Laurentino Gomes e muitos historiadores como o real arquiteto da estratégia independentista do país.
         “Na Independência”, escreve Laurentino Gomes, “Bonifácio era um homem com um ‘projeto de Brasil’, na definição do historiador e jornalista Jorge Caldeira. Na sua visão, a única maneira de impedir a fragmentação do território brasileiro após a separação de Portugal seria equipá-lo com um ‘centro de força e unidade’ sob o regime da monarquia constitucional e a liderança do imperador Pedro I. Foi essa fórmula de Brasil que triunfou em 1822”[ii]. Teremos oportunidade de ver mais adiante os limites deste “projeto de Brasil”.
         Moderado e de espírito burguês, Bonifácio, se comparado ao restante da elite brasileira, era progressista. Justamente por isso foi combatido por ela e por D. Pedro I nos anos subsequentes à independência. Diferentemente do patriarca norte-americano, Benjamin Franklin, Bonifácio não pôde estudar no Brasil (tampouco pôde desenvolver universidades, gráficas, tipografias e clubes filosóficos como o seu “colega” norte-americano), sendo obrigado a buscar formação na metrópole, onde se tornou alto funcionário do rei português.
         Partiu para a Europa em 1783, fazendo uma primeira escala em Paris, onde presenciou de 1790 até 1791 “o furor da Revolução Francesa. Alguns anos mais tarde estaria nas trincheiras de Portugal, lutando contra as tropas do imperador Napoleão Bonaparte, que invadiram o país enquanto a corte de D. João VI fugia para o Brasil”[iii]. Quando D. Pedro I nasceu, em 1798, José Bonifácio já era um dos cientistas mais respeitados e admirados da Europa. “Entre outras realizações, publicaria tratados para melhorar a pesca da baleia, o plantio de bosques e a recuperação de minas exauridas em Portugal. Como mineralogista, sua especialidade, descreveria 12 novos tipos de minerais”[iv].

3.
         Laurentino Gomes afirma que no Brasil de 1822, José Bonifácio desempenharia um papel equivalente ao de Thomas Jefferson na independência dos EUA. E complementa: “com três diferenças, todas a favor do brasileiro”[v]. Quais seriam essas diferenças e, por que, exatamente, seriam favoráveis ao brasileiro?
         Rapidamente Laurentino nos esclarece: “Jefferson, que também vivera em Paris na época da Revolução Francesa, se deixou seduzir pelo ardor revolucionário e, durante algum tempo, acreditou sinceramente que o regime de terror e as milhares de execuções na guilhotina eram aceitáveis em nome do avanço das novas ideias políticas. ‘A árvore da liberdade precisa ser irrigada de tempo em tempo pelo sangue de patriotas e tiranos’, afirmou ao justificar os excessos dos revolucionários franceses. ‘É a sua forma natural de crescer’. Bonifácio, ao contrário, assustou-se e aprendeu muito com o que viu nas ruas de Paris. Percebeu que a energia das massas, sem controle e não canalizada para instituições como o parlamento, poderia ser tão ou mais nociva quanto a tirania de um soberano absoluto. Por isso, esforçou-se para impedir que o processo de independência fugisse ao controle das instituições monárquicas e desaguasse na república, regime para o qual acreditava que o Brasil ainda não estivesse preparado em virtude da enorme proporção de escravos, analfabetos e miseráveis que compunham a população brasileira”[vi].
         Nenhuma descrição poderia definir tão bem a diferença entre a via prussiana (ou revolução passiva) e a via clássica de desenvolvimento ao capitalismo do que esse trecho. Laurentino Gomes, demonstrando toda a sua concepção política, não tira as devidas conclusões das consequências trágicas da visão conservadora de Bonifácio, que claramente não compreendeu o regime do terror jacobino. Como veremos adiante, a ausência da figura da guilhotina no processo de independência – chamado erroneamente por ele de “processo revolucionário” em distintas passagens – deixará a aristocracia rural e os senhores de escravos tão livres e confiantes, que selarão o destino político e econômico posterior do Brasil e do seu povo.

4.
         As outras duas “diferenças” entre Jefferson e Bonifácio são as seguintes: Jefferson não tinha senso de humor, enquanto que Bonifácio era afável, divertido e adorava contar piadas; a terceira e última era que Jefferson era favorável à escravidão negra, enquanto que Bonifácio era contrário. A primeira diferença – favorável ou contra o terror da guilhotina – era claramente desfavorável à Bonifácio, cuja comparação entre os EUA e o Brasil de hoje fala por si mesma; a segunda é uma trivialidade para preencher com curiosidades um livro comercial; e a terceira e última é, realmente, favorável ao brasileiro.
         Como reflexo de sua formação europeia “ilustrada”, Bonifácio foi um abolicionista e, segundo Laurentino (e os livros consultados por ele), deu uma batalha pelo fim da escravidão, selando o seu destino pós-independência. Ele sustentava que o país deveria defender a “liberdade pessoal dos homens, que não podem ser propriedade de ninguém”, já que “os negros são homens como nós”[vii]. Durante a assembleia constituinte de 1823, “Bonifácio trombou com os poderosos interesses dos latifundiários e senhores de escravos ao sugerir à constituinte a proibição do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão no Brasil. Seu projeto nem chegou a ser apresentado (...) Dois anos mais tarde, já no exílio em Paris, Bonifácio explicaria a razão da proposta: ‘A necessidade de abolir o comércio de escravatura, e de emancipar gradualmente os atuais cativos é tão imperiosa que julgamos não haver coração brasileiro tão perverso, ou tão ignorante que a negue, ou a desconheça. (...) Qualquer que seja a sorte futura do Brasil, ele não pode progredir e civilizar-se sem cortar, o quanto antes, pela raiz este cancro moral, que lhe rói e consome as últimas potências de vida...”[viii].
         Errou. Os corações eram perversos e gananciosos demais! A guilhotina poderia ter lhes ensinado boas maneiras.
         Contrariando a afirmativa de que a primeira das “três diferenças a favor do brasileiro” seria positiva, Laurentino afirma que “Bonifácio, obviamente, cometeu um erro de cálculo. Acreditou que, uma vez silenciados os radicais republicanos e preservado o poder do imperador, conseguiria avançar nas reformas sociais de que, em sua opinião, o Brasil tanto necessitava para se considerar uma nação plenamente soberana. Era uma ilusão. Dependente até a medula da mão de obra escrava, a aristocracia rural brasileira aceitaria qualquer coisa da constituinte, menos mudanças nas estruturas sociais que sustentavam a economia brasileira e garantiam seus privilégios”[ix].
         Onde estava o “erro de cálculo” de Bonifácio? Laurentino não nos diz. Mas um observador sagaz logo perceberá que se trata do abandono da via clássica ao capitalismo, expresso, sobretudo, pelo regime do terror jacobino, ao qual, tanto Bonifácio quanto Laurentino, renegam; o que deixou os latifundiários e senhores de escravos à vontade e com força suficiente para construírem o Brasil que lhes interessava. Assim, o “projeto de Brasil” dos latifundiários e senhores de escravos – que, no fundo, era o mesmo que o de D. Pedro I – prevaleceu sobre o de Bonifácio.
         Renegando a guilhotina, Bonifácio ilusoriamente ainda defendia “a transformação dos escravos em ‘cidadãos ativos e virtuosos’ e uma reforma agrária que substituísse o latifúndio improdutivo pela pequena propriedade familiar’. O seu plano ainda incluía ‘educação primária gratuita para todos’ e a criação de ‘pelo menos uma universidade’ para o ensino superior de medicina, ciências naturais, direito e economia”[x]. Ou seja, queria a realização pacífica do programa de uma “revolução burguesa”, o que seria, sem a menor sombra de dúvida, extremamente progressivo para o Brasil, uma vez que ainda hoje ele não foi realizado plenamente.
         Porém, chorosamente, Laurentino Gomes, citando o historiador José Honório Rodrigues, constata que Bonifácio “estava à frente de todos, era um vanguardeiro de sua época, no meio daqueles fantasmas e fósseis que o circundavam”[xi]. A questão fundamental, no entanto, era a da escravidão. E, segundo nos diz o mesmo Laurentino, “ela haveria de selar o destino de Bonifácio à frente do governo de D. Pedro porque mexia no alicerce sobre o qual assentava-se todas as relações sociais do Brasil até então”[xii]. E todas estas passagens assombrosamente não fazem Laurentino concluir que a primeira diferença entre Jefferson e Bonifácio é totalmente favorável ao norte-americano.
         Como realizar todas estas mudanças sem revolução e sem guilhotina? Esperar que o poder moderador da monarquia constitucional resolvesse a questão agrária e da escravidão negra no Brasil do século XIX é o mesmo que esperar que “o morcego doe sangue e o saci cruze as pernas”. Laurentino, ao contrário, é claramente partidário de Bonifácio, o tratando como uma figura injustiçada, embora omita as consequências de suas opções políticas.

5.
         Após fazer todas estas explanações, Laurentino afirma o “caráter revolucionário” da independência brasileira, sustentando que “um mito recorrente sobre a independência do Brasil diz respeito ao caráter pacífico da ruptura com Portugal. Por essa visão, tudo teria se resumido a uma negociação entre o rei D. João VI e seu filho D. Pedro com algumas escaramuças isoladas e praticamente sem vítimas. É um erro. A guerra da independência foi longa e desgastante”[xiii].
         Ora, caros amigos, qualquer ruptura social gera necessariamente conflitos. O fato de muitos populares (sobretudo escravos) terem morrido nas batalhas do Piauí (Jenipapo) e na Bahia, não significa que a independência não tenha tido, como principal característica, uma negociação pelo alto. O povo foi usado como bucha de canhão pela elite, que não perdeu nem por um momento o controle de todo o “processo revolucionário”. O principal fator que a faria perder este controle – a guilhotina – não apenas não existiu, como foi condenado por Bonifácio, D. Pedro I e Laurentino Gomes. O “nosso autor” obscurece as relações entre Pedro I e a elite escravocrata – forçando uma autonomia do primeiro em relação à segunda –, justamente porque eles seriam os primeiros a ter a cabeça colocada na guilhotina.
Isso não quer dizer que não houve aspectos progressivos na ruptura “liderada” por D. Pedro I, mas isso está muito longe de um “processo revolucionário”; para ser mais preciso: tão distantes quanto o Sol da Terra. Bonifácio sem a guilhotina terminou exilado e o Brasil subjugado às potências imperialistas em formação. A “independência” mostrou-se um jogo de cartas marcadas, que manteve toda a estrutura colonial, perpetuando os interesses comerciais da Inglaterra, que já existiam desde o período em que o país era uma colônia portuguesa, coadunados com os da elite nacional. As mortes supostamente poupadas pela guilhotina e pela “energia incontrolável das massas”, se transformaram nas milhares de mortes diárias ocasionadas pela desigualdade social, sobretudo nas periferias das grandes cidades brasileiras.
O próprio Laurentino reconhece hipocritamente estas limitações quando afirma que o reconhecimento da independência por parte de Portugal “só veio em 1825, depois de longa e tortuosa negociação. Ao proclamar sua independência, o Brasil desfizera a rede de negócios, privilégios, cargos e laços familiares que durante mais de 300 anos prevalecera entre a colônia e a metrópole. Era complicado mexer em tudo isso sem abrir feridas e provocar ressentimentos”[xiv]. Ou seja, “nosso autor” sabe perfeitamente que a “independência” promoveria determinadas rupturas que levavam a um conflito que abriria feridas e provocaria ressentimentos, mas sem mexer no essencial: a estrutura política e econômica.
         Onde está, então, a revolução e o “processo revolucionário”?
         No desejo de afirmar a tese de que o Brasil era um país que “tinha tudo para dar errado” e, no entanto – vejam vocês –, deu certo!
         “Deu certo” mesmo que a Inglaterra tenha perpetuado no Brasil “independente” alguns privilégios que gozava em Portugal, como o direito de nomear magistrados especiais com a função de julgar todas as causas que envolvessem cidadãos britânicos[xv]. Além disso, os próprios ingleses residentes no país teriam o “direito” de eleger esses juízes, que só poderiam ser destituídos pelo governo brasileiro mediante prévia aprovação do representante da Inglaterra[xvi]. Assim nasceu a “justiça” brasileira. Toda esta brilhante estrutura política “independente” foi brindada por um grande tratado diplomático para que as monarquias europeias reconhecessem o Brasil “independente”, tendo a Inglaterra como pioneira. Nestas “tratativas diplomáticas”, D. Pedro I assinou uma cláusula secreta que obrigava o Brasil a pagar “a bagatela” de dois milhões de libras esterlinas a título de indenização a Portugal e um reconhecimento aos serviços prestados pela Inglaterra no “processo revolucionário” pela “independência”.
O corsário inglês conhecido como Lord Cochrane, enterrado em Westminster com honras de Estado, teve papel determinante neste “processo revolucionário” brasileiro e latino americano sem povo, agindo mais como agente do capitalismo britânico (e, em grande parte do tempo, em causa própria) do que como um revolucionário e herói, títulos que tentam lhe imputar. Parte do dinheiro extorquido consentidamente do governo “independente” serviu para enriquecer tipos como este.
         Assim começou a história da dívida externa brasileira (isto é, do “pacto colonial” moderno). A elite nacional não viu contradição nenhuma em nada disso, uma vez que estava interessada em fortalecer seus laços comerciais com o mercado mundial, no qual a Inglaterra tinha papel fundamental, sem a intermediação de Portugal. Este era basicamente o seu “projeto de Brasil”, que dura até hoje. E para isso, estava disposta a vender a alma ao diabo. A elite brasileira funciona desse modo: depõe governos quando se tornam inconvenientes aos seus rendimentos, trata as riquezas naturais como propriedade privada para vendê-las a preço de banana aos amos do norte e cultiva um ódio insaciável contra a ralé, criada pela estrutura econômica mantida por esta mesma elite.
Foi baseado neste “processo revolucionário” de cláusulas diplomáticas secretas que Bonifácio se tornou ministro de D. Pedro I: “Bonifácio pediu uma conversa a sós, ‘de homem pra homem’ [com D. Pedro I]. Nunca se soube o conteúdo do diálogo que se seguiu entre os dois, mas Bonifácio saiu dali ministro, como queria D. Pedro”[xvii]. Assim se deu a formação do novo governo “independente”; assim funciona a política burguesa do país até hoje.

6.
Segundo Laurentino Gomes, parte da elite nacional ao tomar conhecimento das “cláusulas secretas”, compreendeu que: “Na prática, a independência deixava de ser uma conquista dos brasileiros para se converter numa concessão do rei de Portugal”[xviii]. Isto é, num acordo entre o rei e o príncipe herdeiro; e destes com a Inglaterra.
É no mínimo curioso que D. Pedro I seja retratado por Laurentino Gomes e por outros historiadores como “liberal”, quando na verdade foi um monarca absolutista, admirador de Napoleão (que encarnou o retrocesso da Revolução Francesa) e proponente do famigerado poder moderador, que anula a importância de qualquer constituição. Certamente D. Pedro I representava aspectos mais progressivos do que os de seu irmão D. Miguel, com o qual desencadeou uma guerra civil pelo trono português em 1832.
O fato de D. Miguel ser um partidário do absolutismo monárquico que encarnou a reação feudal europeia não deveria aliviar as contradições absolutistas de D. Pedro I. O “liberalismo” de D. Pedro I, aceito acriticamente pela maior parte da historiografia brasileira, tolerou e compactuou com a escravidão negra e o latifúndio; com “liberdades individuais” fictícias, que existiam em 99% dos casos apenas para os proprietários brancos. Esta concepção “liberal” passou para o DNA da elite brasileira, que assim o compreende.
D. Pedro I só foi questionado quando começou a representar uma séria ameaça aos negócios da elite brasileira, torrando o tesouro nacional e contraindo empréstimos desenfreadamente para sustentar suas campanhas militares. Nestes momentos ela tira o pó dos seus discursos sobre “liberdade, igualdade e fraternidade” para agitá-los contra a “tirania”; tudo, evidentemente, para perpetuar a estrutura econômica de um capitalismo periférico, do qual depende toda a sua existência e privilégios.
Portanto, não houve “processo revolucionário” algum na “independência” do Brasil, que se caracteriza muito mais por ser uma revolução pelo alto ou uma modernização conservadora. A ausência de uma guilhotina e da energia das massas, tão menosprezadas por Bonifácio quanto por Laurentino Gomes, não mudou a estrutura política e econômica da colônia portuguesa; muito menos a classe social que detinha o poder. Ao contrário: a perpetuou com um discurso “mais moderno”. Esta foi a “revolução burguesa” no Brasil.
O heroísmo independentista de D. Pedro I existiu apenas no desembarque da cidade do Porto, em 1832, quando aspirava derrotar o irmão usurpador, que se apoderara do trono com fins de restauração da monarquia absolutista. Nada se viu parecido por aqui em 1822. Não foi casual que o coração de D. Pedro I tenha ficado enterrado em Portugal. No Mausoléu do Ipiranga jaz apenas a sua carcaça liberal, na sombra do qual a elite brasileira se empenha em administrar e empreender o novo pacto colonial chamado dívida pública, que é insolucionável e impagável.
 
Monumento à independência, próximo ao riacho Ipiranga; local onde D. Pedro I está sepultado.

Post-Scriptum:
         A monarquia implantada no Brasil por D. Pedro I e José Bonifácio teve um mérito, apesar dos diversos meios sangrentos e obscuros utilizados para atingi-lo: a unidade territorial do país. O Brasil é hoje um dos maiores países do mundo. Isso poderia ser uma grande vantagem se, de fato, a elite nacional e o imperialismo o deixassem desenvolver o seu mercado interno para que o país pudesse se utilizar dos bons métodos do capitalismo na sua fase de ascensão histórica. Não é o caso: utilizam-no para espolia-lo.
         D. Pedro I era um fanático da grandeza territorial. Compreendia que o poder e a riqueza eram o resultado de grandes possessões de terra. Assassinou mais brasileiros republicanos na repressão à Confederação do Equador em 1824 do que morreram, proporcionalmente, “patriotas” no “processo revolucionário” de 1822. Procurou manter o Uruguai à força sob o tacão do império brasileiro, tal como faria qualquer monarca absolutista europeu, torrando o tesouro público, ignorando que na Província Cisplatina já existia uma nação independente, com cultura, sociedade e economia autônomas.
         O Brasil será uma grande potência de fato, não apenas em declarações e esperanças eleitorais, se o povo brasileiro (em especial seus trabalhadores) tiveram capacidade e coragem de tomar o poder no país, convertendo essa extensão territorial em uma grande possibilidade de desenvolvimento social, de integração econômica e humana; sem falar na possibilidade de tirar energia e recursos dos oceanos, conforme apregoam alguns oceanologistas, uma vez que se trata de um dos maiores litorais do mundo.
Para atingir o socialismo e poder elevar o nível de vida e de cultura do povo, precisa desenvolver plenamente as potencialidades que a burguesia brasileira não teve coragem histórica de resolver nos séculos XIX e XX. Caso contrário, a grande extensão do país será melhor entendida como a figura de um gigantesco latifúndio de poucas famílias, usado indiscriminada e criminosamente para o enriquecimento ilícito e imoral, dando ao país a sua verdadeira alcunha: nem do carnaval, nem do futebol, mas o país das maiores desigualdades sociais do mundo!
         Já passou da hora de virarmos esta página da história...


NOTAS


[i]Ver neste blog, em 17 de julho de 2016, O desenvolvimento do capitalismo no Brasil:  http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/07/o-desenvolvimento-do-capitalismo-no.html
[ii] 1822, Laurentino Gomes, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2010 (Página 146).
[iii] Idem.
[iv] Idem (Página 147).
[v] Idem (Página 150).
[vi] Idem (grifos nossos).
[vii] Idem (Páginas 152 e 153).
[viii] Idem (Página 217).
[ix] Idem (Página 218).
[x] Idem (Página 152)
[xi] Idem.
[xii] Idem.
[xiii] Idem (Página 163).
[xiv] Idem (Página 286).
[xv] Idem (Página 288).
[xvi] Idem (Página 288 e 289).
[xvii] Idem (Página 155).
[xviii] Idem (Página 287).

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