O brasileiro é vaidoso e guloso de títulos ocos e
honrarias chochas.
(Lima Barreto)
O que cada um mais procurar e aprecia, não apenas na
simples convenção,
mas sobretudo no serviço público, é a inferioridade
do outro.
(A. Schopenhauer)
1.
O magistério estadual do Rio Grande do Sul é
a maior categoria do funcionalismo público. Isto é uma realidade não apenas do
nosso Estado, mas de quase todo o Brasil.
Por aqui, impera a nobre convicção de que a
docência é uma vocação laureada por méritos e louvores. É ainda, sem dúvida,
receptora de muito reconhecimento social. Muitos dos representantes desta
categoria e, até mesmo, de outras profissões enchem a boca para dizer “é a educação que muda o mundo”; ou
ainda: “a educação é a base de tudo”,
“respeitem os professores”.
Está fora de questão que a educação é muito
importante para a sociedade. No entanto, há que se perguntar: que tipo de
educação é capaz de “mudar a sociedade” e “ser a base de tudo”? Por acaso a maior parte dos atuais educadores da
escola pública está preocupada em mudar a sociedade?
2.
A
pior alienação é a do oprimido! Diz, corretamente, o senso
comum “de esquerda”. Mas existe uma alienação pior do que esta: a do professor da escola pública!
Ao contrário do que se pensa e se dissemina,
o magistério público estadual do RS não é exatamente a categoria mais oprimida das que existem hoje. É
triste constatar isso, porque somos terrivelmente desvalorizados e humilhados
pelos governos do nosso Estado e pela mídia comercial quase que diariamente, mas
todos nós sabemos que existe uma classe de subempregados em situação muito pior
do que a nossa, da qual fazem parte as empregadas domésticas, os trabalhadores
diaristas, os subempregados que são explorados em diversos pequenos e grandes
serviços; enfim, existe toda uma subclasse
no Brasil, conhecida pejorativamente pela elite como ralé. Estes “sub-seres-humanos”,
tornados invisíveis pela grande mídia e pelo pacto da moral meritocrática que impera na sociedade brasileira – sobretudo
entre a pequena-burguesia –, lamentavelmente estão numa condição muito pior do
que a nossa. Por mais que distintos governos estaduais estejam parcelando e
atrasando nossos salários visando forçar uma “demissão em massa”, esta
subclasse e outros setores da classe trabalhadora estão em piores condições do
que nós. São exatamente estes setores que atendemos na escola pública.
Não, isso não é uma apologia das nossas
péssimas condições de trabalho e de remuneração. E sim... estamos mal, muito
mal!
No entanto, constatar que existem categorias
profissionais e subclasses muito piores do que nós é um importante ingrediente
da consciência de classe que, diga-se
de passagem, nos falta muito! Aliás, a consciência de classe é um dos motivos
por estarmos nesta situação deplorável. Por pensarmos apenas do ponto de vista
da nossa categoria, reproduzimos, muitas vezes, uma visão pequeno-burguesa da vida, tratando colegas, alunos e pais como
inferiores, com preconceito e ignorância. É nesse sentido triste, mesquinho e inaceitável que pesa muito a alienação
da nossa categoria; já que ela não abre mão de se sentir superior à ralé sempre que pode – e, em alguns
casos, até mesmo de explorá-la!
Não é preciso conhecer história ou
sociologia profundamente para entender que este pensamento mesquinho e que, talvez, esteja presente na maioria dos
nossos colegas, é responsável também pela situação lamentável em que se
encontra o nosso sindicato, o CPERS. O tipo de “luta” praticado pelo CPERS,
ainda que tenha arrancado conquistas no passado e imponha uma relativa
preocupação aos governos no presente, é, na prática, totalmente estéril: reflete essa má consciência geral de nossa
categoria, que encontra eco na direção central do CPERS e o resultado é a atual
perda de direitos, desvalorização, parcelamento, remoções, demissões... humilhações!
3.
Mas a alienação da nossa categoria não
traz problemas apenas para a vida sindical. O espírito patrimonialista de
muitos colegas, que se traduz na busca de um cargo público pela estabilidade
(hoje seriamente ameaçado pela direita neofascista), impede o envolvimento
sincero com a sua comunidade escolar. Evidentemente existem muitas honrosas
exceções (e estas são mais que conhecidas e sentidas por alunos, pais e colegas),
mas esta “lei do menor esforço”, esta aceitação dos desvios problemáticos no
próprio país por um culto ao patrimonialismo,
cria inúmeros empecilhos contra si próprio. Examinem a motivação da maioria das
pessoas que querem fazer concurso público no Brasil: a estabilidade pela
estabilidade!
É evidente que em um país tão desigual
como o Brasil, repleto de violências e misérias, o emprego no serviço público é
uma das poucas garantias de segurança. Porém, desprovida de escrúpulos, passa a
ser uma fonte de justificação de pequenos
privilégios (que sempre servem para sustentar os grandes); de aceitação passiva da triste e decadente realidade impingida
à maioria do nosso povo.
Grande
parte dos servidores concursados não usa a estabilidade no serviço público
para lutar, mas para levar uma vida um pouco mais confortável. Dentro desta
perspectiva, é inevitável que a qualidade do serviço decaia. Muitas
justificativas são dadas: salários, descasos dos governos, péssimas condições
de trabalho, violência urbana. Tudo isso é verdade, mas já faz um
certo tempo que transcendeu as justificativas e se tornou uma forma de desvio
de conduta; um jeito de abdicar de tentar fazer o melhor possível dentro de determinadas condições precárias.
Assim, se facilita o serviço da propaganda da
grande mídia comercial (em especial da RBS, Record e Band) contra a
“ineficiência” dos serviços públicos e ajuda a preparar o caminho para as
privatizações e retirada de direitos. Além disso, abre o caminho para direções
autoritárias se perpetuarem nas escolas, reproduzindo práticas populistas,
anti-democráticas e corruptas.
4.
Esta visão pequeno-burguesa de nossa
categoria também leva a uma distorção na sua concepção sindical, o que
atrapalha qualquer luta consequente contra os governos do Estado (que como
sabemos, em sua maioria, são inimigos da educação pública). O primeiro grande
equívoco é compreender a luta sindical como ganho pessoal, meramente salarial,
em detrimento de outras categorias e áreas sociais; ou seja, uma visão curta,
mesmo quando expressa em linguagem econômica e corporativa.
Não foram poucas vezes em que o CPERS
foi criticado por colegas apenas por participar de atos com o MST ou por
destacar pautas de outras categorias, refletindo a má consciência midiática (em
especial a disseminada pela RBS). O nosso sindicato tem graves falhas e desvios
sérios, mas não deveria ser criticado por
isso. Esta subcultura corporativa leva a uma atitude passiva: espera “que o sindicato faça por nós”. Tal como
uma criança espera os pais resolverem suas necessidades. Pensa que lutar é
fazer ações judiciais contra o governo. Não vê o sindicato como seu espaço, que
necessita da sua participação o mais frequentemente possível. Faz como o
avestruz: “o sindicato está cheio de partidos e correntes que só querem defender
os seus interesses políticos”, aí enfia a cabeça na terra.
Sim, de fato o CPERS tem problemas
dessa gravidade, que precisam ser seriamente combatidos. Porém, não querem
enxergar o papel de sua omissão individual nisso, nem o lado positivo das
atuações político-partidárias de esquerda no CPERS enquanto organizações e forças. Se por um lado estas correntes e partidos estão cheios de
interesses políticos que, não raro, entravam e sabotam a luta da nossa
categoria, por outro, são os seus militantes que estão sempre alertas e
dispostos a se mobilizar quando grande parte da categoria está na praia,
descansando ou cuidando da sua vida pessoal. Estes partidos e correntes precisam ser criticados por sua política,
pelo seu programa, por sua atuação prática, não simplesmente por estarem
organizados em partidos ou correntes.
Nada justifica a politicagem e o
burocratismo que impera no CPERS, mas quando a crítica da base da categoria ao
nosso sindicato não a leva a se olhar no próprio
espelho e ver o quanto deixou de cumprir, estará usando a entidade sindical
como “bode expiatório” de frustrações acumuladas – e mesmo que toleremos fazer
de nossos ouvidos “psicólogos anônimos”, tamanha ignorância “classista” não é
admissível, sobretudo na nossa conjuntura política.
5.
E essa mania feia de desviar o olhar
quando estamos de frente para o próprio espelho não tem consequências nefastas
apenas em relação à categoria ou ao CPERS, mas, também, em relação às
comunidades escolares nas quais estamos inseridos. Se por um lado é bastante
complicada a indisciplina dos alunos, por outro, é a própria concepção
pedagógica autoritária e a total falta de sensibilidade e interesse pelos
alunos que ajudam a manter a indisciplina (dentro de outros problemas maiores
que dizem respeito, evidentemente, a falta de condições infra estruturais).
Em não poucos casos, percebemos uma completa
despreocupação com os alunos, reproduzindo o autoritarismo da sociedade e
práticas que se voltarão contra si próprio. Uma turma não compreendida em suas
reivindicações simples e justas,
tende a se tornar indisciplinadas e a infernizar a vida dos próprios
professores, funcionários, direção e o patrimônio da escola, dali por diante.
E não se trata apenas disso!
Quando se vira as costas aos alunos, mantendo
práticas autoritárias, formamos alunos submissos, não-questionadores,
paralisados, quase “múmias”; protótipos perfeitos para “serem alguém” no nosso desregulamentado mercado de trabalho. Assim, estamos enfraquecendo o povo que supostamente deveríamos fortalecer para “mudar
o mundo”. Sabemos que há um grande déficit
educacional nas nossas universidades, que formam professores com inúmeras
debilidades e lacunas pedagógicas. A sensibilidade humana, contudo, não se
aprende nas universidades; deve ser buscada na prática cotidiana – por mais
individualizada que esta tenha se tornado.
Algum falso polemista, movido por sentimentos
infantis mal resolvidos, deve estar pensando que estamos propondo aceitar
quietos a indisciplina real dos
alunos e a omissão da maioria dos pais. Não!
De forma alguma. Temos que saber separar preocupações justas das injustas; isso
faz parte do crescimento intelectual autônomo dos nossos alunos e dos próprios
pais. É nosso dever ensiná-los a
reivindicar com responsabilidade social: a toda grande reivindicação, cabe
grandes responsabilidades de conduta ética para com a nossa própria
reivindicação.
6.
A nossa categoria, bem como a maior
parte da sociedade brasileira, padece de um pensamento político imediatista e
utilitarista, que descamba para um hedonismo
pernicioso. Não se trata de ser contra uma vida prazerosa e feliz, mas do
reconhecimento de que a mudança real das nossas condições de trabalho e de vida
não poderão ser feitas sem uma luta muito trabalhosa, que exigirá muito mais do
que vem sendo feito.
A começar pelo desafio de superar as
dificuldades de tomar iniciativa sindical e profissional com base à responsabilidade social, longe da espera
passiva por algum dirigente sindical, pelo próprio sindicato, pela direção de
uma escola, etc.
Muitas vezes nossos colegas – os mesmos
que reclamam dos políticos e da “politicagem no sindicato” – se submetem
acriticamente a direções de escola que são extremamente autoritárias e
perniciosas, sabotando qualquer luta sindical e chegando ao cúmulo de desviar
verbas públicas, em troca de um “horário melhor” e pequenas vantagens pessoais;
e até mesmo a compor diretorias de escolas, na base do próprio toma-lá-dá-cá com manobras entre “rabos
presos” – o que só reproduz mais da vulnerabilidade e violência política
que já sofremos cotidianamente.
7.
Outro problema que surge de nossas
compreensões imediatistas e utilitaristas é o que cria concepções sindicais
bizarras, como, por exemplo, fazer paralisação sempre se preocupando com
“recuperar em janeiro”; ou seja: a preocupação
com as férias é maior do que com a gravidade da situação que nos leva a
deflagrar uma greve. Em síntese: preferem uma luta de faz de contas,
rápida, com garantias de vitórias sem esforço! Esse pensamento está
disseminado a tal ponto em nossa categoria que o governo e a mídia comercial
sabem perfeitamente jogar com ele.
Não são poucas as “preocupações” dos
dirigentes sindicais do CPERS que visam “paralisações” e “greves” previsíveis e
com dias determinados para datas próximas dos finais de semana ou de feriadões.
O seu objetivo é claro: lotar os atos de rua com uma massa útil. Será possível derrotar governos decididamente
empenhados em nos retirar direitos, que além de tudo contam com o apoio da
grande mídia e do empresariado, fazendo uma “luta” com esta disposição e estado
de espírito?
8.
A nossa categoria grita contra a
meritocracia que os governos querem nos impor visando a destruição dos planos
de carreiras e a demissão de servidores. É justo gritar! Mas o grito se perde
quando percebemos que a mentalidade meritocrática está enraizada em nossa
própria categoria nas mais distintas formas.
A legitimação do mundo moderno como
“justo” e “igualitário” está fundamentada na meritocracia; ou seja, na crença
de que superarmos as barreiras de nascimento das sociedades antigas é possível pelo “esforço individual”. Assim, todos poderiam conquistar uma “vida digna”. É a ideologia da meritocracia que permite culpar o pobre pelo “próprio fracasso” e fazer com que o rico se sinta bem com a sua própria consciência.
A defesa do mercado como regulador
absolutista o toma por “justo” porque ele supostamente daria remuneração
“justa”, verdadeiramente equivalente ao desempenho. O Estado também prega o
mesmo: eu faço concursos públicos abertos para todos, e o melhor deve vencer. Quando
não vamos até as últimas consequências do nosso raciocínio, ele é passível de
manipulação; principalmente se não levamos em consideração o resto da
realidade.
É exatamente isso que acontece no caso dos
contratos “emergenciais”. Diversos governos vêm adotando a contratação
emergencial como forma preferencial de ingresso no magistério público; não por opção dos educadores contratados,
mas por um fato objetivo criado por
quem detém o poder do Estado seguindo uma política econômica ditada pelo
mercado, visando precarizar as relações de trabalho. O resultado é uma sangria
desatada de contratação totalmente por fora de qualquer plano de carreira e de
congelamento de concursos públicos que leva a uma terrível divisão da nossa
categoria com reflexos nefastos sobre a luta sindical.
É tão difícil perceber isso? Parece que sim para
uma grande parte de nossa categoria, que, incitada pelas últimas direções do
CPERS, incentivam ocultamente o discurso meritocrático contra si própria!
E transformam este raciocínio raso numa nova
forma de pensamento binário: “quem
defende a efetivação dos atuais contratados é contra o concurso público”!
Os defensores do concurso público seriam os justos, os corretos, os bons; e os
defensores da efetivação dos contratados os maus, os diabólicos, os
aproveitadores. No mundo não existe apenas o preto e o branco, mas uma
infinidade de cores. Defender os direitos e as condições de trabalho de sua
própria categoria é um dever de qualquer sindicato, renegado pelo CPERS, que se
baseia numa visão meritocrática rasa de grande parte da nossa categoria, que se
sente ofendida na sua “legitimação” do concurso público (ou seja, no seu
“direito” de se julgar melhor do que outros), sem considerar que se trata de
uma política consciente de governos neoliberais que precisa ser combatida
também consciente e decididamente.
Não é difícil notar em muitos casos, que
neste debate sobre bandeiras sindicais para os contratados, tal como muitos
argumentos da direita fascista, não são considerações estratégicas ou mesmo
racionais que movem a nossa categoria. Muitos colegas são como que imunes ao
aprendizado da luta sindical concreta, negando-se a acreditar que, assim, cavam
uma cova coletiva que também lhes está destinada. Tudo em nome da manutenção
das aparências e sem um pingo de
consciência de classe!
9.
A força da nossa luta e a real
possibilidade de vitórias sobre os ataques dos governos do Estado só serão
duradouras e, até mesmo, possíveis, se mantivermos uma firme coerência entre
nossos direitos e deveres: a famosa correspondência entre as nossas
reivindicações e ações cotidianas.
Não poderemos ter força nas nossas reivindicações
de melhores salários junto à comunidade escolar enquanto colegas usam “desculpas”
como as nossas péssimas condições de trabalho para despreocuparem-se de fazer
um trabalho mais criterioso. A nossa categoria idealiza a si própria (não sem a
ajuda do sindicato e de suas correntes majoritárias, que a bajulam): “somos
excelentes professores, detentores do saber e cumprimos perfeitamente a nossa
nobre função”.
Não!
Precisamos aprender a nos olhar no nosso próprio espelho!
Que essas duras críticas sirvam para uma
reflexão profunda e um novo recomeço. Ninguém ignora o quanto é difícil
questionar o tipo de vida que levamos, mas sem isso não pode haver luta séria e
consequente. No atual estágio em que vivemos, uma auto-ilusão destruída vale
mais para a luta da nossa categoria do que 10 greves mal preparadas e mal
conduzidas.
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