segunda-feira, 29 de abril de 2019

O “anarco-marxismo” de Ivo Tonet


Vem ganhando uma relativa influência sobre a vanguarda de “esquerda” o nome do professor Ivo Tonet, que tem uma teoria bastante peculiar sobre o marxismo e a luta de classes. Se dizendo devoto do “marxismo ortodoxo”, que trata as contribuições de marxistas posteriores (Lenin, Trotsky, etc.) como “deturpações” do marxismo clássico, defende que a vanguarda dos trabalhadores deve permanecer fiel aos textos “marxinianos”. Além disso, Ivo Tonet é contrário à organização dos trabalhadores em partido revolucionário, caracterizando isso como um dos principais problemas que afligem a luta pelo socialismo.
Já é hora de fazer uma análise do seu pensamento e, sobretudo, das suas consequências sobre a vanguarda que influencia. A base destas análises são as palestras proferidas por ele em Porto Alegre, em outubro de 2018, no SIMPA e no Sintrafuje-RS, bem como o seu texto Os descaminhos da esquerda: da centralidade do trabalho à centralidade da política, escrito com a parceria de Adriano Nascimento. Julgamos ser fundamental uma reflexão sobre as principais teses apresentadas por ele nesta oportunidade e neste texto.

a) O método de debate remonta à burocracia sindical e à velha esquerda (não há forma dissociada de conteúdo)
         O tipo de debate imposto pelo palestrante, quando da sua referida vinda à Porto Alegre em outubro de 2018, denota que havia problemas de conteúdo. Desde o início impôs o ritmo e a forma das intervenções. Este método remonta as práticas das burocracias sindicais e políticas que não podem ser debatidas, esmiuçadas ou dar-se voz à base. Há o controle das divergências para que não saiam de certos limites. Isso ficou mais evidente no sábado, dia 27 de outubro, no Sintrajufe-RS, embora já estivesse claro na sexta feira, dia 26, no SIMPA.
         Tal controle, com interrupções do próprio Ivo Tonet para qualquer fala que expressasse divergências de fundo, afirmando que ele “não tinha dito” tal ou qual coisa, apenas denota uma recusa em aprofundar o debate; em ouvir contrapontos dos temas que ele mesmo levantou. Que diferença há neste método com o praticado pelas burocracias sindicais ou pelos partidos políticos de “esquerda”? O fato de serem mais sutis e realizadas por um “militante independente” que “não defende partido”, não apaga o fato de conterem, em germe, as mesmas práticas burocráticas da “esquerda” institucionalizada.
         A partir destas conclusões, a questão a se perguntar é: por que Ivo Tonet agiu desta forma?

b) A questão do Estado e do poder: Marx seria anarquista?
         A tese central apresentada por Ivo Tonet nas suas palestras diz respeito à destruição do Estado no processo revolucionário. Em relação a ideia geral não há nada a se objetar. Os trabalhadores organizados e conscientes devem destruir o Estado burguês através de uma revolução para instaurar um Estado revolucionário proletário, sem o quê, é praticamente impossível resistir à contra-revolução burguesa. Ivo Tonet apresenta uma tese anarquista quando sustenta que “é uma ilusão achar que o Estado pode voltar a ser um Estado ‘livre’”, defendendo abertamente que um dos problemas da Revolução Russa, por exemplo, foi a própria utilização do Estado. Isto, segundo ele, teria sido uma das principais causas da sua degeneração. Nesse sentido, não se difere em nada da tese anarquista (e seria bem mais honesto admiti-lo). Em diversas passagens escritas e faladas, Ivo Tonet combate com desdém a possibilidade de construção de um Estado proletário, chegando a afirmar que isso “nada tem a ver com socialismo” e que alteraria “definitivamente a teoria revolucionária”. Reconhece, da boca pra fora, todos os problemas enfrentados pelos bolcheviques como “um período extremamente complexo e sem precedentes” (“Descaminhos...”, página 17), aos quais, quando descritos, são conclusões praticamente copiadas das obras de Trotsky, mas sem referências bibliográficas e sem tirar maiores conclusões.
         Interpreta de forma rasa e oportunista determinadas citações de Lenin, as quais estão em contradição com a análise em que afirmou que a Revolução Russa enfrentou “problemas de um período extremamente complexo e sem precedentes”. Nas palavras de Ivo: “Tratava-se segundo ele [Lenin] de um Estado com profundas deformações, com enormes deficiências. Mesmo assim, ele considerava que se tratava de um Estado Operário e não de um Estado burguês. Portanto, de um instrumento positivo para a construção da sociedade socialista” (“Descaminhos...”, página 21). Ora, tamanha distorção não é saudável para um debate franco entre revolucionários, ainda mais quando não é possível uma resposta de tempo livre. Fica claro, assim, a tentativa de criminalizar e culpar os bolcheviques pelos erros que foram consequência de um processo histórico com “problemas extremamente complexos e sem precedentes”. Está claro que Lenin e Trotsky nunca fizeram das tripas coração; isto é: nunca acharam que um Estado deste tipo seria “positivo para a construção de uma sociedade socialista”. Ambos morreram afirmando o contrário e apontando todos os seus problemas.
         Mas ainda falta conferir as colocações de Marx sobre o Estado, que estão em contradição com o que afirmou Ivo. O que disse Marx a respeito do Estado? No debate do dia 27 de outubro se tentou apontar um trecho fundamental escrito por Marx em 1875 (portanto, na sua fase de maturidade intelectual e política) acerca do Estado, do livro Crítica ao programa de Gotha, mas infelizmente fomos interrompidos pelo palestrante, que afirmou capciosamente que ele não defendia o que se estava criticando. Conforme ficou claro acima, Ivo Tonet defende exatamente o que se criticava. A tese central dos “Descaminhos...” está em franca contradição com o pensamento de Marx, conforme se pode ver: “Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período de transição, cujo Estado não pode ser outro que não a ditadura revolucionária do proletariado” (Crítica ao programa de Gotha – grifos nossos).
         Fica claro como a luz do dia que Marx e Engels defendiam a necessidade de um Estado que serviria como forma de transição de um tipo de sociedade para outra. Por certo que esta forma de Estado não é o Estado burguês, com suas instituições e a politicagem burguesa que lhes correspondem, mas nem por isso deixa de ser um Estado. Marx e Engels insistiram que a Comuna de Paris seria essa forma de Estado proletário, ou de ditadura do proletariado. Em nenhum caso renunciou a uma forma de organização estatal ou de política (proletária), afirmando que sua função era preparar as bases materiais para a sua extinção. Esta foi uma das principais polêmicas entre Marx e os anarquistas na 1ª Internacional. Qualquer pessoa que conhece a literatura proletária do século XIX sabe disso, incluindo o professor Ivo Tonet.
         O Estado proletário soviético, organizado a partir dos sovietes, representou a forma encontrada pelos revolucionários russos no início do século XX para organizar a sua revolução, destruir o Estado burguês e preparar a construção do Estado proletário. Ivo Tonet quer encontrar um talismã ou uma pedra filosofal que impeça a degeneração, simplesmente apagando ou ignorando os “problemas extremamente complexos e sem precedentes” da construção do socialismo (problemas absolutamente difíceis e intrincados de se resolver, que somente pessoas honestas e muito conscientes podem admitir e se debruçar) e colocando fórmulas simples como o “trabalho associado comunista” e a “centralidade do mundo do trabalho” para milagrosamente “resolvê-los”.
         Cai de maduro, portanto, que Ivo Tonet despreza a estratégia da organização de um Estado revolucionário, da política proletária e de uma organização política para os trabalhadores. Que fique claro: se fosse possível desprezar um Estado revolucionário de antemão, seríamos os primeiros a renegá-lo “da noite para o dia”, como querem os anarquistas e o nosso professor. Mas dentro do campo marxista fica a pergunta: é possível fazê-lo sem renunciar a própria revolução, que se verá em maus lençóis frente a contra-revolução que sempre desencadeará “problemas complexos e sem precedentes”?

c) Centralidade da política e do trabalho ou centralidade do espontaneismo? As distorções grosseiras sobre a Revolução Russa
         Ivo Tonet declara que há profundas diferenças entre as concepções de Marx e dos revolucionários russos, igualando indistintamente Lenin, Trotsky e Stalin. Forja uma diferença na questão do Estado. Para ele, os revolucionários soviéticos (e aqui nos referimos exclusivamente a Lenin e Trotsky) não se interessaram em “estabelecer o trabalho associado comunista”, o que supostamente impediu o êxito da revolução e o fim do Estado. Ou seja: a questão central não foram os “problemas complexos e sem precedentes” da Revolução Russa e da própria revolução internacional, mas uma má orientação política, que “divergia” dos textos originais de Marx e Engels. Ivo Tonet menospreza, relativiza, vai e volta quando convém para não reconhecer estes problemas complexos sem precedentes e, quando reconhece, os joga para as nuvens, como se bastasse a “livre vontade” dos bolcheviques e não as condições historicamente determinadas, que eram conhecidamente graves.
         Para o nosso professor, a tomada do poder até se justificaria se fosse para a destruição do poder burguês e para a preparação imediata da extinção do próprio Estado (colocado indistintamente e omitido seu caráter de classe), tal como preconizam os anarquistas. Segundo ele, os bolcheviques “não quiseram fazer isso” porque optaram pela “centralidade da política”, que leva à centralidade do Estado, e abandonaram a “centralidade do trabalho”. Na nossa avaliação, claro está que os bolcheviques procuraram seguir este caminho conforme lhes foi possível, mas os obstáculos foram muito maiores do que pensaram, a começar pelo atraso secular da Rússia e o espírito de rebanho presente no seio dos movimentos dos trabalhadores e praticamente não estudado pela esquerda. Ao invés de relacionar o estudo destes problemas, bem como suas graves consequências, com a psicologia de massas dos trabalhadores e os “problemas complexos e sem precedentes”, Ivo Tonet levanta fórmulas e tantras que jogam fora as principais conclusões da primeira experiência exitosa de tomada do poder pelos trabalhadores na história.
         Chama a atenção que Ivo não faz uma única menção aos problemas de degeneração ocasionados pelo surgimento do stalinismo, que é consequência e, dialeticamente, o aprofundamento das causas desses “problemas complexos e sem precedentes”, que se alimentam mutuamente. Como é possível simplesmente ignorar ou mesmo renegar todas as caras conclusões sobre a burocratização do Estado soviético presentes no pensamento trotskista do livro A Revolução Traída (1937)?
         Em diversos trechos da política expressa por Ivo Tonet fica claro que a conquista do poder pelos trabalhadores seria algo indesejável, pois prepararia o que ele chama de deslocamento da centralidade do trabalho para a centralidade da política. Em relação aos problemas e traições ocasionados pela compreensão reformista, não há nada a se objetar! De fato o reformismo desvia, objetivamente, a luta de classes do caminho revolucionário para o beco sem saída do poder nas instituições burguesas e, portanto, para o Estado burguês. Indo além disso, porém, encontramos uma nova contradição com o pensamento de Marx e Engels, que se torna flagrante na medida que confrontamos estas conclusões com trechos da própria obra dos fundadores do marxismo, expressos no Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores: “Art 7º. Em sua luta contra o poder reunido das classes possuidoras, o proletariado só pode se apresentar como classe quando constitui a si mesma num partido político particular, o qual se confronta com todos os partidos anteriores formados pelas classes possuidoras. Essa unificação do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e seu fim último – a abolição das classes. (...) Como os senhores do solo e do capital se servem dos seus privilégios políticos para proteger e perpetuar seus monopólios econômicos, assim como para escravizar o trabalho, então a conquista do poder político torna-se uma grande obrigação do proletariado” (grifos nossos).
         Lendo este trecho devemos concluir, forçosamente, que ou Marx e Engels estavam se distanciando da centralidade do trabalho a caminho da centralidade da política (organização em partido) e do Estado (conquista do poder político e ditadura do proletariado) ou, então, Ivo Tonet está atribuindo suas próprias conclusões a Marx e Engels. Soa, no mínimo, estranho e curioso sua verdadeira ojeriza ao Estado proletário e à organização política dos trabalhadores.
         Sendo assim, uma das principais conclusões dos revolucionários marxistas do século XX é jogada fora por Ivo Tonet, senão totalmente confundida com uma crítica feita pela própria burguesia à Revolução Russa; qual seja: a necessidade de organização dos trabalhadores em partido político (ou qualquer outra forma análoga de organização) que, como vimos, deita suas raízes em Marx e Engels. Se os partidos proletários irão degenerar ou não isto é algo que não se pode controlar de antemão. Não existe talismã contra isso – nem mesmo a mágica da “centralidade do trabalho”. Só o desenrolar da luta de classes pode garanti-lo. O fato, contudo, é que a organização política dos trabalhadores em partido revolucionário não apenas está de acordo com a literatura marxista como é de fundamental importância para os tempos em que vivemos, marcados por um forte espontaneismo, de repulsa a qualquer organização política (isto é: aonde os partidos operários e revolucionários sofrem com o desgaste dos partidos burgueses, como se fossem a mesma coisa). Este espontaneismo não é apenas tolerado por Ivo Tonet, mas transformado na sua principal tese. A degeneração não é o resultado direto da simples organização em partido político, mas, sim, o resultado do seu programa, da sua prática e dos interesses de classe que representa, combate ou sustenta.
A “centralidade do trabalho”, tal como nos é apresentada nos textos escritos e nas conferências, faz das tripas coração, transformando o “trabalho associado” numa idealização da classe tal como ela é hoje, que não necessitaria de nenhum tipo de organização política (visto por Ivo apenas como um estorvo), descambando totalmente para o espontaneismo. Assim, a “centralidade do trabalho” se transformaria na “centralidade do espontaneismo”. Acredito que o trabalho associado comunista não poderá nascer dissociado de uma longa luta política, revolucionária, realizada por uma organização política extremamente consciente e capaz, que, sendo parte do proletariado, ajudará os trabalhadores mais atrasados a edificar um Estado proletário para resistir às investidas da contra revolução burguesa; e, neste processo, conseguirá (ou não) desenvolver uma nova forma de organização do trabalho, correspondente à sociedade comunista.
Nesse caminho tortuoso e difícil será indispensável superar as técnicas de trabalho desenvolvidas pela sociedade burguesa. Isso geralmente se dará em meio a “problemas complexos e sem precedentes” de uma “resistência desesperada e violenta” contra as ofensivas da classe dominante. Durante todo o século XX, a classe dominante internacional não deu um minuto de trégua à existência da União Soviética. Isto é preciso ser lembrado numa época em que o pós-modernismo, as universidades e a mídia comercial afirmam que o “socialismo colapsou em si mesmo”. Por tudo isso, soa muito cínica a crítica de que Lenin abandonou os objetivos do trabalho associado comunista quando quis “se apropriar das técnicas e dos conhecimentos científicos acerca do trabalho desenvolvidos pelo sistema capitalista”, aumentando a “exploração sobre o operariado russo”. O trabalho comunista só nascerá superando o trabalho capitalista. Isto inclui a incorporação da experiência e da técnica do trabalho capitalista. Assim, constatamos tristemente que todos os pilares do marxismo são destruídos por Ivo Tonet em nome do próprio marxismo.

d) O grande ausente: o partido revolucionário!
         Historicamente o espontaneismo tem efeitos nefastos sobre toda a esquerda. Ivo Tonet é mais um teórico não declarado do espontaneismo, apresentando a sua teoria peculiar de menosprezo da organização política revolucionária. Várias organizações de “esquerda” demonstram os mesmos rechaços, porém, com argumentos diferentes. Num texto recente ele chega a afirmar que “a propaganda e a agitação em torno dessas ideias [isto é, da propaganda do comunismo] são absolutamente fundamentais para que, em momentos de intensificação das lutas sociais, elas não se resumam à defesa ou conquista de interesses parciais, mas avancem para uma transformação radical da sociedade”.
Porém, não nos fala quem fará essa agitação. Seriam os trabalhadores isolados? Independentes? Por categorias? Organizados apenas em sindicatos ou em oposições? Afinal, seria necessário para isso uma organização em partido revolucionário ou não? Sobre isso não lemos uma única palavra! Apenas evasivas que dificultam ainda mais a nossa situação, criticando inclusive as importantes caracterizações sobre o nível de consciência, organização e disposição de luta dos trabalhadores na conjuntura atual, de avanço da direita mais reacionária, como sendo “argumentos surrados”.
A despeito destas graves omissões, concordamos com o fato de que é necessário ir além da defesa ou conquista de interesses parciais, o que significa ir além das categorias e, principalmente, do espontaneismo mais imediatista de todos os trabalhadores, procurando dar a consciência da totalidade das tarefas e dos objetivos revolucionários. Porém, para o marxismo, a questão do partido revolucionário é fundamental para a superação deste sindicalismo estrito e rasteiro, fechado em si mesmo nas reivindicações corporativistas de cada categoria (e às vezes até mesmo reacionárias).
Marx e Engels, nos referidos Estatutos da 1ª Internacional, assim se expressam: “A união das forças dos trabalhadores, que já é obtida mediante a luta econômica [sindical, de categoria], tem de tornar-se, nas mãos dessa classe, uma alavanca em sua luta contra o poder político de seus exploradores”. O início deste trecho – já citado antes – afirma a necessidade de um “partido político particular”, de novo tipo, e, logo a seguir, afirma a necessidade de conquistar “o poder político”. Em síntese: tudo aquilo que Ivo Tonet condena!
Portanto, a crítica marxista deve ser feita em relação ao programa, a conduta e a ação dos partidos que se dizem socialistas e de esquerda; e não à forma de organização partidária em si mesma ou a necessidade de conquista do poder político visando a destruição do Estado burguês e a criação de um Estado proletário.

e) Descaminhos da esquerda “tonetiana”: quais são as implicações prática da teoria da centralidade do trabalho?
A massa trabalhadora se conta por centenas de milhares. Não pode atingir o socialismo de forma desorganizada. A sua força reside exatamente na sua organização numérica. Nesse sentido, precisa contar com vários tipos de organizações: sindicais, culturais, associativas, políticas. É claro que não se trata de construir partidos burgueses (como é o PT) e, tampouco, de manter o Estado burguês (como quer o reformismo social-democrata). Porém, é necessário organização! Elas não serão perfeitas e nem eternas, mas são mais do que necessárias.
O proletariado se subdivide em vários segmentos, como vanguarda e retaguarda. Isto é um fato sociológico. Não se pode igualar a sua vanguarda com a sua retaguarda, ainda que se tenha que levar em consideração os anseios da retaguarda. Ignorar, menosprezar ou, o que é pior, lutar contra a organização política dos trabalhadores vai contra todo o espírito do marxismo! O que Ivo propõe para o seu lugar? Um espontaneismo não declarado, mas que cai de maduro para qualquer observador arguto.
Para não cair neste espontaneismo, Ivo Tonet precisa responder quais são as implicações práticas da teoria da “centralidade do trabalho”: que formas de organização e intervenção na luta de classes ela deve assumir? Quais serão as formas de participação e organização dos sindicatos e movimentos sociais que é diferente do que os revolucionários realizam hoje? Para manter a pureza da “centralidade do trabalho” devemos abdicar da intervenção política, das palavras de ordem, da construção de organizações e partidos revolucionários?
Desgraçadamente Ivo Tonet não responde nenhuma dessas perguntas que surgem logicamente das suas próprias afirmações, nem nos seus textos e, tampouco, nas suas palestras. Sendo assim, a “centralidade do trabalho” torna-se a “centralidade do espontaneismo”, da aceitação da “classe tal como ela é” (“centralizar pela classe” mesmo que ela esteja completamente perdida, fragmentada, correndo atrás do próprio rabo), da ojeriza à organização política (como a expressada pelos anarquistas em 2013, por vários setores de classe média na Espanha e em outras mobilizações pelo mundo). Está, portanto, em franca contradição com toda a história do marxismo.

f) Conclusões: a crise de direção e a teoria de Ivo Tonet
         Durante o debate do dia 27 de outubro, um dos camaradas presentes na palestra chegou a expressar uma ideia de que a teoria de Ivo Tonet não estaria em total contradição com o pensamento de Trotsky. O presente texto demonstrou que a teoria de Ivo Tonet está não apenas em contradição com o trotskismo – que defende claramente a necessidade de uma direção revolucionária para as massas –, mas com o próprio marxismo clássico.
         Cabe destacar que o trotskismo entende o partido revolucionário como uma direção que desenvolve uma relação dialética com a massa (e não de opressão, tal como o stalinismo). Não podemos idealizar as massas – tal como faz toda a esquerda hoje; inclusive nosso professor. A autoridade é parte concedida pelos subordinados e parte construída em cima dos medos (medo da punição, da demissão, da perseguição, da desagregação – o chamado “espírito de rebanho”). Um partido revolucionário, para receber esse nome, necessita desenvolver a ideia de que as massas não devem seguir nenhuma liderança ou partido por medo (inclusive ele próprio), mas por convicção, por compreender as suas ideias e perceber a justeza de suas posições. Foi precisamente este o papel do bolchevismo sob Lenin – que Ivo Tonet tentou transformar na mesma coisa que o stalinismo, tal como faz a mídia comercial e a intelectualidade burguesa.
Somente este método de construção partidária pode preparar as condições para dissolver a necessidade de uma direção e criar coragem e capacidade para que as massas avancem para a autogestão. Em suma: precisam ser ensinadas, desde a mais tenra infância e durante toda a militância, a agir desse modo; a revolução entra como parte deste elo (antes e depois dela). É uma calúnia atribuir ao bolchevismo a intenção de “centralizar tudo em si, obrigar as massas a obedecê-los, tratá-las como crianças”. Isto é, precisamente, o stalinismo. O bolchevismo exigia disciplina e respeito às decisões da maioria (ou tudo isso não é necessário para uma revolução?); tampouco idealizava as massas e, muito menos, o seu espontaneismo.
Nesse sentido, acreditamos que a teoria de Ivo Tonet está em franca contradição com o marxismo. Não há uma contribuição dele que, de fato, aponte para a superação dos erros do passado, mas apenas a ressurreição de críticas burguesas à experiência soviética, feitas sob pretensão de “encontrar uma explicação” para a degeneração soviética. A teoria do camarada Ivo Tonet aponta para o espontaneismo e, portanto, para o passado (para antes do Que fazer?). Não critica os erros do bolchevismo, mas os seus acertos.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Dum spiro spero!

Dum spiro spero! [Enquanto há vida, há esperança!]
Escrito por Trotsky no final do século 19, falando sobre as perspectivas para o século 20.
Se eu fosse um dos corpos celestiais, eu olharia com completo desapego para esta bola miserável de sujeira e poeira ... Eu brilharia indiferente entre o bem e o mal ...
Mas eu sou um homem. A história do mundo que para você, desapaixonado cálice de ciência, para você, guarda-livros da eternidade, parece apenas um momento insignificante no equilíbrio temporal, para mim é tudo!
Enquanto eu respirar, eu lutarei pelo futuro, este radiante futuro no qual o homem, poderoso e belo, se tornará mestre do fluxo incerto da História e irá direcioná-lo para um horizonte sem fim de beleza, alegria e felicidade!
O século dezenove de muitas formas satisfez e de ainda mais formas enganou as esperanças do otimista ...
Ele o compeliu a transferir a maioria das suas esperanças para o século vinte. Sempre que o otimista se confrontava com um fato de atrocidade, ele exclamava: Como pode isso acontecer no limiar do século vinte! Quando ele imaginasse maravilhosamente desenhado um futuro harmonioso, ele o colocava no século vinte.
E agora este século chegou! O que trouxe com ele em sua inauguração?
Na França – o escarcéu venenoso do ódio racial; na Áustria – disputa nacionalista...; na África do Sul – a agonia de um povo pequeno, que está sendo assassinado por um colosso; na própria “ilha da liberdade” – o canto triunfante da vitoriosa avareza de agiotas chauvinistas; dramáticas “complicações” no leste; rebeliões de massas populares famintas na Itália, Bulgária, Romênia ... ódio e morte, fome e sangue ...
Parece até que o novo século, este gigante recém-chegado, está determinado mesmo no momento do seu surgimento a levar o otimista ao absoluto pessimismo e a um nirvana cívico.
– Morte à Utopia! Morte à fé! Morte ao amor! Morte à esperança! Esbraveja o século vinte em salvas de fogo e ao retumbar das armas.
– Renda-se seu patético sonhador. Aqui estou eu, o seu tão esperado século vinte, o seu “futuro”.
– Não, responde o inabalado otimista: Você, você é apenas o presente."

terça-feira, 23 de abril de 2019

Os sem censura

A direita neofascista tem usado e abusado da falácia da "liberdade de expressão". Sustenta que ser machista, racista, homofóbico e nazi-fascista é uma questão de "opinião" e de "direito à liberdade de expressão".
Ora, meus amigos, a liberdade de expressão não pode significar em nenhuma circunstância uma justificativa para a opressão, exploração, preconceito ou tortura de outras pessoas, etnias ou seres. Trump e Bolsonaro são os campeões destas bizarrices.
Qualquer charlatão, político, "filósofo" (ao estilo olavista), religioso ou demagogo mal intencionado se esconde atrás da sua "liberdade de expressão", pois tem garantia de que ninguém exigirá provas do que afirmam, mas de que se trata apenas "de sua opinião". As suas afirmações estariam supostamente protegidas pelo direito democrático inviolável de “liberdade de expressão”. Nenhum critério é imposto a tais embusteiros, chegando ao ponto de Jair Bolsonaro fazer apologia da tortura durante a ditadura militar brasileira e se esconder atrás do direito à “liberdade de expressão”.
A liberdade irrestrita de opinião individual não existe. Devem ser medidas pelas suas consequências. As "opiniões" de Bolsonaro e da direita neofascista estão em sintonia com os 80 tiros na família negra da periferia, com os assassinatos na escola de Suzano, as crianças imigrantes na gaiola do Trump e a cultura do estupro.
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A questão envolvendo o comediante de direita, Danilo Gentili, não trata de "liberdade de expressão", mas de "liberdade de ofensa".

quarta-feira, 17 de abril de 2019

A proposta de greve geral e a da LBI em particular

Prefácio
        O texto a seguir foi escrito em maio de 2009 pela organização Luta Marxista para responder a uma polêmica com a Liga Bolchevique Internacionalista (LBI), uma organização de militantes que tem como núcleo principal o nordeste. Esta resposta visava esclarecer um documento publicizado por um militante desta organização que atacava duramente a Luta Marxista, dentre outros motivos, porque ela se negava a defender acriticamente a palavra de ordem de “greve geral”. 
        Em 2009 apenas a LBI agitava tão enfaticamente esta palavra de ordem como um fim em si mesmo. Ainda não se via a “greve geral” como uma bandeira permanente agitada por toda a esquerda. Vivíamos, então, o fim do governo Lula e a CUT estava totalmente domesticada, não ousando fazer nem mesmo um teatro por ela. Hoje a palavra de ordem de “greve geral” está amplamente disseminada, sendo agitada por todas as burocracias sindicais e políticas do Brasil e do mundo.
        “Popularizou-se” na Europa e na Argentina as “greves gerais de 1 dia”. Não tardou para que CUT, CTB, Força Sindical e CSP-Conlutas abraçassem o mesmo método por aqui. Dentro do CPERS praticamente quase todas as correntes e muitos ativistas independentes levantam a “greve geral” como uma tarefa a ser realizada para amanhã. Por tudo isso se faz necessário uma reflexão acerca dela. Este texto contém um valioso estudo a respeito da “greve geral”, indo desde a posição teórica de Rosa Luxemburgo e Trotsky até a posição prática da LBI, que hoje está disseminada em todas as outras organizações da esquerda brasileira.


Introdução
A questão da greve geral é sempre motivo de polêmica. A esquerda oportunista encara, em geral, essa proposta como aventura ultra-esquerdista. No entanto, a burocracia internacional, e a latino americana em especial, com freqüência, recorrem a greves gerais domesticadas, anti-greves gerais. Nesses casos, o oportunismo costuma mudar de posição e as apoia. O doutrinarismo de esquerda faz da proposta de greve geral uma receita permanente, independentemente de conjuntura, razão porque também apoia veladamente as falsas greves gerais. A LBI é a maior candidata ao troféu de campeã de propostas artificiais de greve geral. Recentemente, em carta ao CCR – a título de rompimento com este de uma militante que aderiu à LBI – nos critica pelas supostas influências exercidas sobre essa organização, que as teriam desviado da defesa “progressiva” da greve geral.
Sem pretendermos aprofundar o assunto, procuraremos abordá-lo de um ponto de vista mais amplo que a crítica às posições da LBI. Combatemos as propostas abstratas de greve geral da mesma forma que qualquer política deslocada da realidade. No entanto, a posição da LBI sobre a questão é mais do que um erro, porque a mesma tem plena consciência do seu doutrinarismo. Faz uma confusão proposital para encobrir que a sua proposta, da forma em que é feita, leva água ao moinho dos nossos inimigos de classe.

Breve história das greves gerais
A idéia da greve geral remonta aos cartistas ingleses. A Primeira Internacional falou da “greve dos povos contra a guerra”. Os bakuninistas entendiam a greve geral como um método contra a miséria e para derrubar a burguesia. A Bélgica foi o palco da primeira greve operária de massas, em 1891, pelo sufrágio universal. Em seqüência, aconteceram outras greves semelhantes na Suécia, França, Itália e na própria Bélgica. Entretanto, foi na Rússia do fim do Século 19 e início do Século 20 que as greves de massa se generalizaram, culminando com a revolução de 1905. Desde então têm sido uma arma de que o proletariado tem se valido em circunstâncias especiais. Ficaram na História as greves gerais na França, de 1934 a 1936 e 1968. A América Latina foi palco de inúmeras greves gerais, no Uruguai, Argentina, Bolívia, Brasil, etc. No nosso país, no início do Século 20, greves gerais pararam alguns estados brasileiros: SP, RS, RJ. Na época atual, a CUT chamou diversas greves gerais demonstrativas diversionistas, a exemplo das suas similares uruguaias e argentinas.

O papel da greve geral
A propagação das greves operárias de massa na Rússia, no período citado, propiciou o estudo marxista do seu papel. Trotsky e Rosa Luxemburgo dedicaram especial atenção a essa tarefa, cujas conclusões coincidem em grande parte, apesar de Trotsky entender que Rosa exagerou o papel da greve geral para a revolução. No fundamental, coincide com ela. A defendeu contra o stalinismo: “É uma calúnia contra a grande revolucionária. Se Rosa Luxemburgo superestimou a importância da greve geral para a questão do poder, compreendeu muito bem que não se pode provocar arbitrariamente a greve geral” (Revolução e Contra-revolução na Alemanha). Para Rosa: “A revolução russa nos ensina que a greve de massas não é nem ‘fabricada’ artificialmente nem decidida ou ‘propagada’ num espaço imaterial e abstrato, senão que representa um fenômeno histórico (...). É tão impossível ‘propagar’ a greve de massas como meio abstrato de luta como ‘propagar’ a revolução. (...) Empreender uma propaganda em regra em favor da greve de massas como forma de ação proletária, querer estender essa ‘idéia’ para ganhar pouco a pouco a classe operária seria uma ocupação tão ociosa, tão vã e insípida como empreender uma campanha de propaganda pela idéia da revolução ou do combate de barricadas” (Greve de massas, partido e sindicatos).
Para ambos, a greve geral pressupõe uma situação revolucionária, é o prenúncio da revolução. “A greve geral, como todos os marxistas sabem, é um dos meios de luta mais revolucionários. A greve geral não se torna possível senão quando a luta de classes se eleva sobre todas as exigências particulares e corporativas (...). Acima da greve geral não pode haver senão a insurreição armada (...). Em outras palavras: a greve geral não é possível a não ser em condições de extrema tensão política e, por isso mesmo, é sempre expressão indiscutível do caráter revolucionário da situação” (Aonde Vai a França). Nesse sentido, Rosa Luxemburgo diz: “Finalmente os acontecimentos na Rússia nos mostram que a greve de massas é inseparável da revolução (...). Na realidade, não é a greve de massas  que produz a revolução, senão a revolução que produz a greve de massas (...). Se ela não significa um ato isolado senão todo um período de luta de classes, se este período se confunde com o período revolucionário, é evidente que não se pode desencadear arbitrariamente, ainda que a decisão emane das instâncias supremas do mais poderoso dos partidos socialistas” (Rosa, idem).
Quando Rosa afirma: “A greve de massas é simplesmente a forma que adota a luta revolucionária (...). É o pulso da revolução e ao mesmo tempo seu motor mais poderoso” (idem), quem sabe esteja incorrendo no exagero mencionado por Trotsky, porque a greve geral é apenas uma das formas da luta revolucionária, não a única. Nesse sentido, Trotsky diz: “A greve geral é um meio de luta muito importante, mas não é um meio universal. Há casos em que a greve geral pode enfraquecer os operários mais do que os seus inimigos diretos” (Revolução e Contra-revolução na Alemanha). A seguir argumenta que a greve geral não ajuda na luta contra a ascensão do fascismo e não se cogitou dela para a Revolução de Outubro. No entanto, a revolução russa de 1905, foi quase um subproduto da greve geral, à semelhança da revolução de fevereiro de 1917, onde o elemento espontâneo teve uma enorme importância, fato reconhecido por Trotsky na sua História da Revolução Russa.
É preciso entender a relação do espontâneo e do consciente de uma forma dialética, ambos fatores não se excluem mutuamente. A própria Rosa, muito caluniada como espontaneísta pelo stalinismo, reconhece isso: “Uma tática socialista conseqüente, resoluta, avançada, provoca nas massas um sentimento de segurança, de confiança, de combatividade; uma tática vacilante, débil, fundada em uma superestimação das forças do proletariado, paralisa e desorienta as massas. (...) o caráter e a orientação política geral do partido, em todo o período que acaba de começar, eram decisivos para o desencadeamento e o alcance das grandes lutas que se anunciavam” (idem).
A caracterização trotskista de que a nossa época se caracteriza pela crise de direção, deve ser bem entendida. Isso não significa que a existência do partido eliminaria a necessidade dos outros elementos objetivos, independentes dele. Significa que esses outros elementos ou estão dados ou se repetem com freqüência. O grande ausente é o partido. Mas, em si mesmo, ele não pode tudo. Nesse sentido podemos dizer com Rosa: “Enquanto não esteja ao alcance da social democracia por em ação ou anular revoluções a gosto, nem sequer o entusiasmo e a impaciência mais fogosa das tropas socialistas lograrão suscitar um período de greves de massa que constitua um movimento popular potente e vivo” (idem). A greve geral é o resultado, além do partido, de “uma infinidade tal de fatores econômicos, políticos, sociais, gerais e locais, materiais e psicológicos, que nenhum deles pode definir-se, nem calcular-se como um exemplo aritmético”.
Na nossa época, de avançada degeneração social, de desemprego estrutural crônico, em geral, o elemento espontâneo perde importância. Pelo mesmo motivo, o papel do partido sobressai-se ainda mais. Mas isso não anula a necessidade de conjunção de todos os fatores: objetivos – “econômicos, políticos, sociais, materiais e psicológicos” – e subjetivos, o partido e a organização das massas. As próprias lutas econômicas, salariais, tornam-se muito mais difíceis. Geralmente, as massas não se dispõem a arriscar o seu emprego por um resultado pequeno e incerto. Daí porque essas lutas tornam-se mais escassas e preferencialmente entre os funcionários públicos e as categorias com maior poder de barganha. As grandes massas mais exploradas estão ausentes das lutas salariais e dos sindicatos. Eventualmente, em condições muito especiais, esses setores podem explodir, como um raio em céu sereno. Assim foram as insurreições na Argentina (2001), Bolívia (1952, 1971, 2003, 2005), Equador, Cordobaço, Caracaço, Los Ângeles, França, Grécia. Etc.      
A mesma idéia de Rosa – “não é a greve de massas que produz a revolução, senão a revolução que produz a greve de massas” – encontramos em Trotsky: “A tese marxista geral – as reformas sociais não são mais do que subproduto da luta revolucionária – em época de declínio capitalista, tem importância mais candente e imediata” (Aonde Vai a França). Hoje, esse método é ainda mais obrigatório. Por esse motivo, o economicismo atual torna-se uma caricatura ainda mais grotesca. Toda luta importante e conseqüente – material ou política – tende a desencadear um processo revolucionário. E a greve geral, mais do que então, tornar-se-ia a ante-sala da revolução. Pelo mesmo motivo, as anti-greves gerais burocráticas são o seu freio.
Toda greve geral é uma luta de classe contra classe. O seu resultado é a vitória ou derrota do proletariado. Sendo assim, é absurda a idéia da greve geral como método de acumulação de forças. Seria brincar com a sorte dos trabalhadores, transformados em laboratório de experiências burocráticas. Na ausência do partido e de uma conjuntura revolucionária, a proposta de greve geral torna-se uma aventura irresponsável, fator de desmoralização dos trabalhadores. Como diz Rosa: “No espaço imaterial da análise lógica, abstrata, se pode provar, com o mesmo rigor, tanto a impossibilidade absoluta, a derrota indubitável da greve de massas, como sua possibilidade absoluta e sua vitória segura” (idem). A política marxista declara guerra ao pensamento abstrato: “O pensamento marxista é concreto, quer dizer, considera todos os fatores decisivos e importantes em torno de uma questão determinada, não somente em suas relações recíprocas, senão também em seu desenvolvimento (...) A política começa precisamente com essa análise concreta. O pensamento oportunista, assim como o pensamento sectário, tem em comum o fato de extrair , (...), um ou dois fatores que lhes parecem ser mais importantes, (...), os isolam da realidade complexa e lhes atribuem uma força sem limites nem restrições” (Os ultra-esquerdistas em geral e os incuráveis em particular - Leon Trotsky).
Devemos analisar a realidade como ela é. Isso significa uma criteriosa análise de conjuntura. Numa conjuntura não revolucionária, o eixo da nossa política se desloca da ofensiva para a defensiva; de questões como a organização da insurreição, da greve geral, do abaixo o governo, para os métodos e tarefas que os preparam: a construção do partido, a organização de base, a autodefesa, a unificação das lutas, a frente única, a propaganda do socialismo com base na experiência das massas, a denúncia da burocracia, do centrismo, do governo. Todo atalho é pernicioso, não nos aproxima das nossas tarefas futuras, mas nos afasta delas.
Entretanto, podem se criar situações complexas, como aquelas em que a burocracia chama uma greve geral exatamente para abortar as mobilizações ou para apoiar os planos da burguesia. Nesse caso, o que se faz? Não existe uma resposta única. Devemos analisar a situação. No caso em que a burocracia chame uma greve artificial de vanguarda, numa situação não revolucionária, por objetivos burgueses, não devemos participar. Caso houver paralisações parciais efetivas, devemos participar na medida exata dessas mobilizações independentes de nós. Não somos fortes o suficiente para boicotá-las ou impedi-las. Então, não podemos abandonar as massas nas mãos dos pelegos. Devemos estar onde as mesmas estiverem para desmascarar essas direções, contrapondo as propostas concretas do trabalhadores às suas. Mas a nossa ação localizada não tem força para modificar o caráter geral e nacional da mobilização, que continuará sendo pró-burguesa independentemente de nós.  Por esse motivo, não precisamos nem devemos reforçar o movimento geral chamando greves ou mobilizações nas categorias que dirigimos. Um exemplo desse tipo de situação, foram as greves chamadas pela burocracia contra a Emenda 3, em 2007. Nas categorias em que a burocracia chamou greve, devíamos estar presentes propondo que a greve fosse contra o conjunto da Super-receita (da qual a Emenda 3 era apenas um artigo) e contra a política do governo Lula. Mas não devíamos chamar greve ou mobilização nas nossas categorias, como fez o PSTU em São José dos Campos, mesmo que fosse pelas nossas reivindicações, porque no plano nacional, pela nossa pouca força, estaríamos objetivamente reforçando a mobilização pró-Lula.
Além dessas, pode existir uma outra situação. A burocracia chama uma greve geral num momento de ascenso de massas, exatamente para contê-lo através dos seus métodos burocráticos, sendo obrigada a levantar as reivindicações dos trabalhadores. Estes, muitas vezes, mesmo não confiando na burocracia, aderem em massa ao seu chamado, procurando através dele atingir os seus próprios objetivos. Esse é um caso em que devemos não somente participar, mas convocar amplamente as nossas categorias, no sentido de reforçar os seus objetivos contra os da burocracia.
O doutrinarismo de esquerda faz da proposta de greve geral um objetivo permanente, um remédio universal, sem qualquer contra-indicação. Nivela todas as situações conjunturais. Dos variados fatores a considerar, elege apenas um: a necessidade abstrata da greve geral. Aplica uma espécie de denominador comum a todas as greves gerais, incluídas as pró-burguesas: de alguma forma todas seriam positivas. Não distingue as cores, além do branco e do preto. Com esse critério, participa e convoca todas elas. Objetivamente coloca-se como apêndice dos agentes da burguesia.

As greves gerais da LBI
Este título está no plural porque a LBI não tem uma proposta de greve geral, mas muitas, para todos os gostos. É impossível analisá-las todas. Vamos nos restringir à análise apenas de alguns aspectos mais representativos e constantes da sua política a respeito.
Sobre o chamado à greve geral, há duas posições: “greve geral já” e “construir a greve geral”, coisas muito diferentes usadas indistintamente. Entretanto, de uma coisa não pode haver dúvida: sobre a oportunidade da greve geral. Para a LBI, sempre é momento, sempre existem condições. Propôs greve geral desde a sua fundação até hoje. E a tem proposto também para a Argentina, Bolívia, Indonésia. Pelo que parece, é adequada para qualquer país em qualquer momento.
Sobre os objetivos que atribui à greve geral, a lista é grande. Os principais são ou foram: Abaixo FHC, Abaixo Lula, derrotar Lula, Abaixo o regime burguês, defesa das nossas reivindicações históricas, derrotar as reformas, manutenção dos direitos sindicais, reaquecer as campanhas salariais, contra a condenação de José Rainha, pela libertação de Diolinda (militantes do MST), avançar na consciência política, convocar uma verdadeira greve geral.
E sobre a direção da greve geral, quem a convocaria? Segundo a carta ao CCR, nós temos “fobia crônica da greve geral”, e usamos “o estapafúrdio argumento de que não haveria condições objetivas nem direção para construir a greve geral”. Em primeiro lugar, de que fala a LBI? De chamar a “greve geral já” ou de “construir a greve geral”? Ela usa um ou outro desses conceitos quando convém. Na sua história, costumava propor explicitamente que a CUT convocasse a “greve geral já”, e mais recentemente se omite sobre essa questão insinuando até que possa ser a Conlutas ou o suposto Congresso Nacional de Base. Ora, pela lógica elementar, se, como afirma, existem condições objetivas para a greve geral, significa que a mesma deve ser convocada já e não apenas construída, mesmo porque também existiria direção. A greve geral deve ser convocada por alguém e a LBI diz que é “estapafúrdio” dizer que não existe direção. Então, que direção é essa? Somente pode ser a CUT. Há alguns anos não tinha vergonha de propor e afirmar isso. Para o marxismo, a questão da direção é fundamental, não pode haver ambigüidade a respeito. Trotsky diz que nas greves de categorias, os sindicatos assumem o primeiro plano, mas na greve geral é o partido. Porque a LBI não é clara sobre isso? Porque a sua proposta é para ser cumprida pela burocracia e a falta de clareza faz parte da sua impostura.
Pela carta ao CCR, “o propósito da greve geral é justamente denunciar nas bases dos trabalhadores suas direções, para avançar a consciência política da classe trabalhadora”. Por esta frase, parece que a proposta de greve geral não seria para ser levada à prática, seria uma tática de desmascaramento da burocracia e de conscientização dos trabalhadores. Não tem sentido pretender desmascarar a burocracia através de uma proposta artificial de greve geral. Esta, à sua maneira, pode encampar qualquer proposta, como efetivamente tem feito. Quantas greves gerais chamou a CUT nos últimos anos? Nesse sentido, sobre suas parceiras uruguaias e argentinas, uma chamou 11 greves gerais num ano e a outra cerca de 10. Burocratas competentes assumem até mesmo a proposta de revolução e a tomada do poder pelos trabalhadores, como fez a COB boliviana em 2003, sem mover um dedo para tanto. A burocracia somente pode ser desmascarada com propostas concretas, adequadas ao momento, que decorram da situação objetiva, não com propostas fantasiosas. Esse método apenas fornece argumentos para a burocracia posar de combativa e melhor iludir as massas. O fato é que a LBI não usa essa proposta apenas como tática de desmascaramento, mas para ser levada à prática pela CUT. Essa proposta está em frontal contradição com a sua própria análise de conjuntura, como sendo de ofensiva da burguesia. A sua análise, mesmo quando está correta, não lhe serve de nada. Esperar coerência da LBI é uma expectativa inglória.
Diante das greve gerais da CUT, a LBI é obrigada a admitir que são pró burguesas. Isso não a impede de participar em todas elas, mesmo daquelas onde não há massas. Nessas oportunidades, aproveita para levantar uma bandeira preciosa: “por uma verdadeira greve geral”, como se os trabalhadores, após uma derrota e sob a mesma direção pelega, fossem capazes de realizar a tal “verdadeira greve geral”. Já propôs, até mesmo, que a CUT convocasse uma paralisação de 48 horas, como um passo para a “verdadeira greve geral”. Se isso não é escarnecer dos trabalhadores, o que será?
No que diz respeito a Cuba, perfeitamente de acordo com o método marxista, concreto, a LBI combate o “Abaixo Castro”, levantado pelo centrismo, alegando ser uma bandeira burguesa porque, não havendo um partido revolucionário, Castro somente pode ser derrubado pela burguesia. Essa também é a nossa posição, o que não a impede de nos chamar de morenistas. Mas, a propósito, porque a LBI não usa o mesmo método para Lula? Que sentido tem o “Abaixo Lula? Somente pode ser o “Viva  Alencar”.
Diante da traição da CUT, a LBI tem uma proposta milagrosa para viabilizar, não mais a greve geral, mas a “verdadeira greve geral”: o Congresso Nacional de Base. Esse Congresso multiuso teria as seguintes tarefas: impulsionar a greve geral, unificar as mobilizações, organizar a ofensiva, ser alternativa de poder, etc. Que fantástico! Mas quem convocaria o tal Congresso? A própria CUT. Essa já foi a sua proposta: “que a CUT convoque um Congresso Nacional de Base”. Hoje, doura um pouco a pílula e inclui o “ativismo classista”, a Conlutas, entre outros. Mesmo com boa vontade, desconsiderando a nova burocracia da Conlutas, esta não teria as mínimas condições, mesmo que quisesse, de convocar um congresso com tamanhas ambições. Novamente, essa é mais uma delegação que a LBI atribui à CUT. Pelo visto, a sua política é semelhante a do cachorro correndo atrás do rabo: a CUT trai e ela mesma é chamada a corrigir a sua traição. Mais concretamente: a LBI propõe que a CUT chame uma greve geral; sai uma greve geral “fajuta”; então, a LBI propõe que a CUT chame um Congresso Nacional de Base que convoque uma “verdadeira greve geral”. Com semelhante política “genial” os trabalhadores estariam “ferrados”.
A esse respeito, o método de exigências da LBI à CUT é muito semelhante ao do morenismo, ou seja, lhe atribui um papel que não é dela, mas de uma direção revolucionária. No caso, exige da CUT:  convocar uma greve geral, convocar um Congresso Nacional de Base, elaborar um grande plano de lutas, romper com as centrais pelegas, etc. Como se fosse possível exigir de uma direção patronal que deixasse de sê-lo. Em As Lições de Outubro, Trotsky define o método marxista de exigências: podemos exigir da burguesia ou dos seus prepostos reivindicações que estejam “na lógica das reformas”, ou seja, questões específicas respaldadas por um movimento, mas não podemos exigir aquilo que é tarefa exclusiva do proletariado.
Não discordamos que a greve geral seja uma necessidade, da mesma forma que a revolução também o é. Na verdade, esta última é a única necessidade estratégica. Tanto a greve geral como a revolução dependem de condições objetivas e subjetivas. Numa situação não revolucionária e na ausência de direção do proletariado, o eixo da nossa política deve se voltar no sentido de criar essas condições. Não existe atalho que nos exima dos passos concretos, rotineiros, a longo prazo, difíceis. Certamente, a propaganda do socialismo é nossa tarefa mais importante, no momento. Mas isso não se faz através de propostas deslocadas da realidade, mas com propostas que decorram da situação e sirvam para desmascarar o capitalismo com base na experiência das massas.
A greve geral é apenas um método de luta, ao lado de outros tantos. Não é um método universal válido para todos os momentos, nem um objetivo. A LBI transforma esse método em objetivo e o prioriza sobre todos os outros métodos. Isola artificialmente um elemento da realidade. Substitui a propaganda do socialismo pela da greve geral, mesmo que fale em governo operário, porque o seu discurso dá a entender que é a greve geral a solução e não um meio circunstancial para ela. Se a greve geral é a solução para tudo, então para quê socialismo? Não temos “fobia crônica da greve geral”. Temos “fobia crônica” da sua fantasia oportunista e artificial de greve geral.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Ordem e milícias

As informações da edição do Greg News sobre as milícias vão direto ao ponto. Ele diz: "A Milícia é uma ideologia"! Sim. Está corretíssimo. E esta ideologia está no poder, prestes a se legalizar completamente. O neofascismo se baseará exatamente nestas milícias, que estão sendo totalmente respaldadas pelas ações do atual ministro da "justiça".
Olhem a gravidade das declarações de Bolsonaro:
"Queria dizer aos companheiros da Bahia, que agora pouco veio um parlamentar aqui criticar os grupos de extermínios. Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, esses grupos de extermínio no meu entender, são muito bem vindos. E se não tiver espaço na Bahia, pode ir pro Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o apoio".
Aí está a prova insofismável da vinculação de Bolsonaro com as milícias. Bolsonaro ainda disse para o Jornal "O Globo", no dia 8 de julho de 2018 (quando era candidato): "Elas oferecem segurança, conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidades. É o que se chama de milícia. O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes de drogas. E, talvez, no futuro, deveria legalizá-las".
A confusão é gigante, já que as milícias são compostas por traficantes de todos os tipos (inclusive de drogas). O estrago já está sendo feito. Esta é a base do atual governo, que tende a fazer as milícias se proliferarem, inclusive contra os movimentos sociais.
Quem sabe disso e continua apoiando este governo, passa a ser cúmplice dos assassinatos e da bandidagem que vai tomar conta cada vez mais do Estado.

O programa está disponível no endereço:

terça-feira, 2 de abril de 2019

Escuta, categoria!


O brasileiro é vaidoso e guloso de títulos ocos e honrarias chochas.
(Lima Barreto)

O que cada um mais procurar e aprecia, não apenas na simples convenção,
mas sobretudo no serviço público, é a inferioridade do outro.
(A. Schopenhauer)

1.
O magistério estadual do Rio Grande do Sul é a maior categoria do funcionalismo público. Isto é uma realidade não apenas do nosso Estado, mas de quase todo o Brasil.
Por aqui, impera a nobre convicção de que a docência é uma vocação laureada por méritos e louvores. É ainda, sem dúvida, receptora de muito reconhecimento social. Muitos dos representantes desta categoria e, até mesmo, de outras profissões enchem a boca para dizer “é a educação que muda o mundo”; ou ainda: “a educação é a base de tudo”, “respeitem os professores”.
Está fora de questão que a educação é muito importante para a sociedade. No entanto, há que se perguntar: que tipo de educação é capaz de “mudar a sociedade” e “ser a base de tudo”? Por acaso a maior parte dos atuais educadores da escola pública está preocupada em mudar a sociedade?
        
2.
A pior alienação é a do oprimido! Diz, corretamente, o senso comum “de esquerda”. Mas existe uma alienação pior do que esta: a do professor da escola pública!
Ao contrário do que se pensa e se dissemina, o magistério público estadual do RS não é exatamente a categoria mais oprimida das que existem hoje. É triste constatar isso, porque somos terrivelmente desvalorizados e humilhados pelos governos do nosso Estado e pela mídia comercial quase que diariamente, mas todos nós sabemos que existe uma classe de subempregados em situação muito pior do que a nossa, da qual fazem parte as empregadas domésticas, os trabalhadores diaristas, os subempregados que são explorados em diversos pequenos e grandes serviços; enfim, existe toda uma subclasse no Brasil, conhecida pejorativamente pela elite como ralé. Estes “sub-seres-humanos”, tornados invisíveis pela grande mídia e pelo pacto da moral meritocrática que impera na sociedade brasileira – sobretudo entre a pequena-burguesia –, lamentavelmente estão numa condição muito pior do que a nossa. Por mais que distintos governos estaduais estejam parcelando e atrasando nossos salários visando forçar uma “demissão em massa”, esta subclasse e outros setores da classe trabalhadora estão em piores condições do que nós. São exatamente estes setores que atendemos na escola pública.
         Não, isso não é uma apologia das nossas péssimas condições de trabalho e de remuneração. E sim... estamos mal, muito mal!
No entanto, constatar que existem categorias profissionais e subclasses muito piores do que nós é um importante ingrediente da consciência de classe que, diga-se de passagem, nos falta muito! Aliás, a consciência de classe é um dos motivos por estarmos nesta situação deplorável. Por pensarmos apenas do ponto de vista da nossa categoria, reproduzimos, muitas vezes, uma visão pequeno-burguesa da vida, tratando colegas, alunos e pais como inferiores, com preconceito e ignorância. É nesse sentido triste, mesquinho e inaceitável que pesa muito a alienação da nossa categoria; já que ela não abre mão de se sentir superior à ralé sempre que pode – e, em alguns casos, até mesmo de explorá-la!
         Não é preciso conhecer história ou sociologia profundamente para entender que este pensamento mesquinho e que, talvez, esteja presente na maioria dos nossos colegas, é responsável também pela situação lamentável em que se encontra o nosso sindicato, o CPERS. O tipo de “luta” praticado pelo CPERS, ainda que tenha arrancado conquistas no passado e imponha uma relativa preocupação aos governos no presente, é, na prática, totalmente estéril: reflete essa má consciência geral de nossa categoria, que encontra eco na direção central do CPERS e o resultado é a atual perda de direitos, desvalorização, parcelamento, remoções, demissões... humilhações!

3.
         Mas a alienação da nossa categoria não traz problemas apenas para a vida sindical. O espírito patrimonialista de muitos colegas, que se traduz na busca de um cargo público pela estabilidade (hoje seriamente ameaçado pela direita neofascista), impede o envolvimento sincero com a sua comunidade escolar. Evidentemente existem muitas honrosas exceções (e estas são mais que conhecidas e sentidas por alunos, pais e colegas), mas esta “lei do menor esforço”, esta aceitação dos desvios problemáticos no próprio país por um culto ao patrimonialismo, cria inúmeros empecilhos contra si próprio. Examinem a motivação da maioria das pessoas que querem fazer concurso público no Brasil: a estabilidade pela estabilidade!
         É evidente que em um país tão desigual como o Brasil, repleto de violências e misérias, o emprego no serviço público é uma das poucas garantias de segurança. Porém, desprovida de escrúpulos, passa a ser uma fonte de justificação de pequenos privilégios (que sempre servem para sustentar os grandes); de aceitação passiva da triste e decadente realidade impingida à maioria do nosso povo.
         Grande parte dos servidores concursados não usa a estabilidade no serviço público para lutar, mas para levar uma vida um pouco mais confortável. Dentro desta perspectiva, é inevitável que a qualidade do serviço decaia. Muitas justificativas são dadas: salários, descasos dos governos, péssimas condições de trabalho, violência urbana. Tudo isso é verdade, mas já faz um certo tempo que transcendeu as justificativas e se tornou uma forma de desvio de conduta; um jeito de abdicar de tentar fazer o melhor possível dentro de determinadas condições precárias.
Assim, se facilita o serviço da propaganda da grande mídia comercial (em especial da RBS, Record e Band) contra a “ineficiência” dos serviços públicos e ajuda a preparar o caminho para as privatizações e retirada de direitos. Além disso, abre o caminho para direções autoritárias se perpetuarem nas escolas, reproduzindo práticas populistas, anti-democráticas e corruptas.

4.
         Esta visão pequeno-burguesa de nossa categoria também leva a uma distorção na sua concepção sindical, o que atrapalha qualquer luta consequente contra os governos do Estado (que como sabemos, em sua maioria, são inimigos da educação pública). O primeiro grande equívoco é compreender a luta sindical como ganho pessoal, meramente salarial, em detrimento de outras categorias e áreas sociais; ou seja, uma visão curta, mesmo quando expressa em linguagem econômica e corporativa.
         Não foram poucas vezes em que o CPERS foi criticado por colegas apenas por participar de atos com o MST ou por destacar pautas de outras categorias, refletindo a má consciência midiática (em especial a disseminada pela RBS). O nosso sindicato tem graves falhas e desvios sérios, mas não deveria ser criticado por isso. Esta subcultura corporativa leva a uma atitude passiva: espera “que o sindicato faça por nós”. Tal como uma criança espera os pais resolverem suas necessidades. Pensa que lutar é fazer ações judiciais contra o governo. Não vê o sindicato como seu espaço, que necessita da sua participação o mais frequentemente possível. Faz como o avestruz: “o sindicato está cheio de partidos e correntes que só querem defender os seus interesses políticos”, aí enfia a cabeça na terra.
         Sim, de fato o CPERS tem problemas dessa gravidade, que precisam ser seriamente combatidos. Porém, não querem enxergar o papel de sua omissão individual nisso, nem o lado positivo das atuações político-partidárias de esquerda no CPERS enquanto organizações e forças. Se por um lado estas correntes e partidos estão cheios de interesses políticos que, não raro, entravam e sabotam a luta da nossa categoria, por outro, são os seus militantes que estão sempre alertas e dispostos a se mobilizar quando grande parte da categoria está na praia, descansando ou cuidando da sua vida pessoal. Estes partidos e correntes precisam ser criticados por sua política, pelo seu programa, por sua atuação prática, não simplesmente por estarem organizados em partidos ou correntes.
         Nada justifica a politicagem e o burocratismo que impera no CPERS, mas quando a crítica da base da categoria ao nosso sindicato não a leva a se olhar no próprio espelho e ver o quanto deixou de cumprir, estará usando a entidade sindical como “bode expiatório” de frustrações acumuladas – e mesmo que toleremos fazer de nossos ouvidos “psicólogos anônimos”, tamanha ignorância “classista” não é admissível, sobretudo na nossa conjuntura política.

5.
         E essa mania feia de desviar o olhar quando estamos de frente para o próprio espelho não tem consequências nefastas apenas em relação à categoria ou ao CPERS, mas, também, em relação às comunidades escolares nas quais estamos inseridos. Se por um lado é bastante complicada a indisciplina dos alunos, por outro, é a própria concepção pedagógica autoritária e a total falta de sensibilidade e interesse pelos alunos que ajudam a manter a indisciplina (dentro de outros problemas maiores que dizem respeito, evidentemente, a falta de condições infra estruturais).
Em não poucos casos, percebemos uma completa despreocupação com os alunos, reproduzindo o autoritarismo da sociedade e práticas que se voltarão contra si próprio. Uma turma não compreendida em suas reivindicações simples e justas, tende a se tornar indisciplinadas e a infernizar a vida dos próprios professores, funcionários, direção e o patrimônio da escola, dali por diante.
E não se trata apenas disso!
Quando se vira as costas aos alunos, mantendo práticas autoritárias, formamos alunos submissos, não-questionadores, paralisados, quase “múmias”; protótipos perfeitos para “serem alguém” no nosso desregulamentado mercado de trabalho. Assim, estamos enfraquecendo o povo que supostamente deveríamos fortalecer para “mudar o mundo”. Sabemos que há um grande déficit educacional nas nossas universidades, que formam professores com inúmeras debilidades e lacunas pedagógicas. A sensibilidade humana, contudo, não se aprende nas universidades; deve ser buscada na prática cotidiana – por mais individualizada que esta tenha se tornado.
Algum falso polemista, movido por sentimentos infantis mal resolvidos, deve estar pensando que estamos propondo aceitar quietos a indisciplina real dos alunos e a omissão da maioria dos pais. Não! De forma alguma. Temos que saber separar preocupações justas das injustas; isso faz parte do crescimento intelectual autônomo dos nossos alunos e dos próprios pais. É nosso dever ensiná-los a reivindicar com responsabilidade social: a toda grande reivindicação, cabe grandes responsabilidades de conduta ética para com a nossa própria reivindicação.

6.
         A nossa categoria, bem como a maior parte da sociedade brasileira, padece de um pensamento político imediatista e utilitarista, que descamba para um hedonismo pernicioso. Não se trata de ser contra uma vida prazerosa e feliz, mas do reconhecimento de que a mudança real das nossas condições de trabalho e de vida não poderão ser feitas sem uma luta muito trabalhosa, que exigirá muito mais do que vem sendo feito.
         A começar pelo desafio de superar as dificuldades de tomar iniciativa sindical e profissional com base à responsabilidade social, longe da espera passiva por algum dirigente sindical, pelo próprio sindicato, pela direção de uma escola, etc.
         Muitas vezes nossos colegas – os mesmos que reclamam dos políticos e da “politicagem no sindicato” – se submetem acriticamente a direções de escola que são extremamente autoritárias e perniciosas, sabotando qualquer luta sindical e chegando ao cúmulo de desviar verbas públicas, em troca de um “horário melhor” e pequenas vantagens pessoais; e até mesmo a compor diretorias de escolas, na base do próprio toma-lá-dá-cá com manobras entre “rabos presos” – o que só reproduz mais da vulnerabilidade e violência política que já sofremos cotidianamente.

7.
Outro problema que surge de nossas compreensões imediatistas e utilitaristas é o que cria concepções sindicais bizarras, como, por exemplo, fazer paralisação sempre se preocupando com “recuperar em janeiro”; ou seja: a preocupação com as férias é maior do que com a gravidade da situação que nos leva a deflagrar uma greve. Em síntese: preferem uma luta de faz de contas, rápida, com garantias de vitórias sem esforço! Esse pensamento está disseminado a tal ponto em nossa categoria que o governo e a mídia comercial sabem perfeitamente jogar com ele.
         Não são poucas as “preocupações” dos dirigentes sindicais do CPERS que visam “paralisações” e “greves” previsíveis e com dias determinados para datas próximas dos finais de semana ou de feriadões. O seu objetivo é claro: lotar os atos de rua com uma massa útil. Será possível derrotar governos decididamente empenhados em nos retirar direitos, que além de tudo contam com o apoio da grande mídia e do empresariado, fazendo uma “luta” com esta disposição e estado de espírito?

8.
         A nossa categoria grita contra a meritocracia que os governos querem nos impor visando a destruição dos planos de carreiras e a demissão de servidores. É justo gritar! Mas o grito se perde quando percebemos que a mentalidade meritocrática está enraizada em nossa própria categoria nas mais distintas formas.
         A legitimação do mundo moderno como “justo” e “igualitário” está fundamentada na meritocracia; ou seja, na crença de que superarmos as barreiras de nascimento das sociedades antigas é possível pelo “esforço individual”. Assim, todos poderiam conquistar uma “vida digna”. É a ideologia da meritocracia que permite culpar o pobre pelo “próprio fracasso” e fazer com que o rico se sinta bem com a sua própria consciência. 
         A defesa do mercado como regulador absolutista o toma por “justo” porque ele supostamente daria remuneração “justa”, verdadeiramente equivalente ao desempenho. O Estado também prega o mesmo: eu faço concursos públicos abertos para todos, e o melhor deve vencer. Quando não vamos até as últimas consequências do nosso raciocínio, ele é passível de manipulação; principalmente se não levamos em consideração o resto da realidade.
É exatamente isso que acontece no caso dos contratos “emergenciais”. Diversos governos vêm adotando a contratação emergencial como forma preferencial de ingresso no magistério público; não por opção dos educadores contratados, mas por um fato objetivo criado por quem detém o poder do Estado seguindo uma política econômica ditada pelo mercado, visando precarizar as relações de trabalho. O resultado é uma sangria desatada de contratação totalmente por fora de qualquer plano de carreira e de congelamento de concursos públicos que leva a uma terrível divisão da nossa categoria com reflexos nefastos sobre a luta sindical.
É tão difícil perceber isso? Parece que sim para uma grande parte de nossa categoria, que, incitada pelas últimas direções do CPERS, incentivam ocultamente o discurso meritocrático contra si própria!
E transformam este raciocínio raso numa nova forma de pensamento binário: “quem defende a efetivação dos atuais contratados é contra o concurso público”! Os defensores do concurso público seriam os justos, os corretos, os bons; e os defensores da efetivação dos contratados os maus, os diabólicos, os aproveitadores. No mundo não existe apenas o preto e o branco, mas uma infinidade de cores. Defender os direitos e as condições de trabalho de sua própria categoria é um dever de qualquer sindicato, renegado pelo CPERS, que se baseia numa visão meritocrática rasa de grande parte da nossa categoria, que se sente ofendida na sua “legitimação” do concurso público (ou seja, no seu “direito” de se julgar melhor do que outros), sem considerar que se trata de uma política consciente de governos neoliberais que precisa ser combatida também consciente e decididamente.
Não é difícil notar em muitos casos, que neste debate sobre bandeiras sindicais para os contratados, tal como muitos argumentos da direita fascista, não são considerações estratégicas ou mesmo racionais que movem a nossa categoria. Muitos colegas são como que imunes ao aprendizado da luta sindical concreta, negando-se a acreditar que, assim, cavam uma cova coletiva que também lhes está destinada. Tudo em nome da manutenção das aparências e sem um pingo de consciência de classe!

9.
         A força da nossa luta e a real possibilidade de vitórias sobre os ataques dos governos do Estado só serão duradouras e, até mesmo, possíveis, se mantivermos uma firme coerência entre nossos direitos e deveres: a famosa correspondência entre as nossas reivindicações e ações cotidianas.
         Não poderemos ter força nas nossas reivindicações de melhores salários junto à comunidade escolar enquanto colegas usam “desculpas” como as nossas péssimas condições de trabalho para despreocuparem-se de fazer um trabalho mais criterioso. A nossa categoria idealiza a si própria (não sem a ajuda do sindicato e de suas correntes majoritárias, que a bajulam): “somos excelentes professores, detentores do saber e cumprimos perfeitamente a nossa nobre função”.
Não! Precisamos aprender a nos olhar no nosso próprio espelho!
Que essas duras críticas sirvam para uma reflexão profunda e um novo recomeço. Ninguém ignora o quanto é difícil questionar o tipo de vida que levamos, mas sem isso não pode haver luta séria e consequente. No atual estágio em que vivemos, uma auto-ilusão destruída vale mais para a luta da nossa categoria do que 10 greves mal preparadas e mal conduzidas.