Nenhuma sociedade complexa é tão absurdamente desigual como a nossa.
Essa deveria ser a
vergonha nacional
(Jessé Souza, in “A tolice da inteligência
brasileira...”).
A
intelectualidade brasileira formou-se historicamente de costas para o povo. As
universidades nacionais assimilaram o cínico modus operandi da “modernização conservadora” e de “mudanças pelo
alto” na qual o país foi edificado. Procurando estar sempre de bem e em
harmonia com a elite nacional e, sobretudo, internacional, esta
intelectualidade colocou-se à sombra do poder, aceitando na maioria das vezes
se submeter à pressão conservadora.
É certo que a inexistência de um
movimento político-social relativamente forte deixou os intelectuais mais ou
menos “livres” e “independentes” para se submeter a esta pressão conservadora,
conforme já alertou muito bem Florestan Fernandes. Os que participam da vida
universitária e dos movimentos sociais se inclinam a cindir os seus papéis
intelectuais, como se esses dois eixos de atividade fossem estanques e
separados, só se encontrando no infinito.
Este não parece ser o caso do professor
Jessé Souza, formado pela Universidade de Brasília e com pós-graduação e
atividades acadêmicas em universidades europeias e norte-americanas, mas que busca
olhar para o povo pobre do Brasil e a sua relação com os privilégios das classes dominantes. A sua produção teórica é um
alento, que destoa do restante das universidades brasileiras (com outras raras
e honrosas exceções, é claro), ainda que peque em muitas análises, abrindo
precedentes pra perpetuar a ordem que supostamente combate. O ponto forte e a
justeza de suas posições estão exatamente neste descolamento da universidade burguesa, com os seus protocolos
cínicos e alheios à realidade da classe trabalhadora e do povo pobre, que
tornam qualquer produção acadêmica estéril, desprovida de compromissos com o
país.
Para Jessé, corretamente, a coragem de
afirmar certas conclusões está acima da erudição, usada pelos nossos
acadêmicos, na maioria das vezes, para esconder a sua total ausência de
conteúdo, reproduzindo apenas velhos valores completamente caducos e
reacionários com uma máscara de “novidade” (não sem o apoio da grande mídia
comercial). Nas palavras de Jessé: “a
compreensão da complexidade social não depende tanto de erudição, mas antes de
tudo, de ‘coragem’”[i]. E coragem é exatamente o que
falta para a maioria da intelectualidade brasileira, acostumada a servir como
mercenária das ideologias dominantes, perpetuando os interesses escusos da
elite.
É exatamente por isso que Jessé
consegue desenvolver uma inovadora análise sociológica, dando um sopro de vida
para o estudo da realidade brasileira. Isto já é motivo suficiente para que a
esquerda dê uma atenção especial às suas conclusões.
Jessé Souza durante uma entrevista |
Os
pontos fortes da contribuição teórica de Jessé
I.
Jessé Souza tem como principal
referência o sociólogo francês Pierre Bordieu, que buscou fazer uma síntese
entre os pensamentos de Max Weber, Karl Marx e Émile Durkheim. A novidade desta
abordagem permitiu uma aproximação inovadora com os fenômenos sociais que não podem
se restringir apenas à análise econômica, procurando também uma abordagem
psicológica, o que é de grande importância para explicar a complexidade da
realidade social brasileira. Jessé, partindo de boas conclusões de Bordieu, lança mão de um arsenal teórico
capaz de investigar além do capital econômico, penetrando nos “mistérios” do
capital cultural e simbólico – tão caros à classe média –; cabendo destacar,
dentre estes, o conceito de violência
simbólica, que nos permite conhecer de perto a “realidade invisível” da ralé brasileira, imperceptível ao senso
comum e ocultada sistematicamente pelos mecanismos institucionais, políticos e
midiáticos do país.
Esta “nova” visão sobre o povo pobre do
país, batizada provocativamente por ele de ralé
brasileira, é fundamental para a ação política futura por parte da esquerda. É,
certamente, uma das chaves para qualquer mudança social profunda em nosso país.
Nesta aproximação com a ralé, Jessé
sofreu influências importantes do sociólogo brasileiro, Florestan Fernandes, ao
qual rende grandes e merecidas homenagens. Para conseguir concretizar esta
análise, Jessé não fez uma releitura apenas de Florestan Fernandes – sobretudo
no seu livro A integração do negro na
sociedade de classes –, mas de toda a produção intelectual brasileira dos
últimos 100 anos. Deflagra uma verdadeira (e saudável) cruzada contra os mitos
brasileiros, expressos na sociologia de Sérgio Buarque de Holanda, Roberto
DaMatta, Raymundo Faoro, Gilberto Freyre e outros, acertando contas com as
fantasias nacionais baseadas no “homem cordial” e no “jeitinho brasileiro”.
Segundo Jessé, estes mitos conformam a base do senso comum nacional, que serve
para legitimar todas as ideologias modernas de dominação, como a meritocracia, “a
violência urbana e a corrupção na política”, vendidos como os principais e
únicos problemas do Brasil. Tais pensamentos do senso comum tornam possíveis a
naturalização e a reprodução infinita das desigualdades sociais do nosso país
geradas pelo nosso capitalismo periférico e dependente. Em relação a esta
crítica à intelectualidade brasileira não há nada a se objetar. Ao contrário, é
preciso conhecê-la para continuar enriquecendo-a.
A novidade da análise sobre a ralé brasileira está neste trecho, que
sintetiza todo o pensamento do autor sobre este assunto: “a sua não incorporação no mercado de trabalho, reservado às outras
classes, a torna um joguete impotente e passivo de uma lógica social excludente
que explora o trabalho não qualificado. Entre as mulheres da ‘ralé’, são as
empregadas domésticas, faxineiras, lavadeiras ou prostitutas – a perfeita
metáfora ‘real’ de quem só tem o corpo e é obrigado a vendê-lo – que trabalham
nas casas de classe média ou para a classe média. Essas mulheres permitem, a
baixo preço, toda uma posição privilegiada às classes médias e alta brasileiras
que pode, assim, ser poupada de grande parte do cotidiano e custoso trabalho
doméstico. É esse tempo de trabalho poupado por uma classe privilegiada que
pode, então, ser reinvestido em atividades reconhecidas e lucrativas ‘fora de
casa’. Os homens da ‘ralé’ estão envolvidos em atividades que exigem trabalho
muscular e não qualificado, como ambulante, biscateiro, lavador de carros,
vigia, transporte de carga pesada etc. [acrescentaria neste “etc.”
traficantes, assaltantes, cuidadores de carros...], e servem aos mesmos fins das mulheres. (...) Para os esmagados por uma ordem incompreensível cujo sofrimento não
pode deixar de ser vivido não só como natural mas acima de tudo como ‘merecido’,
pelo efeito da ‘culpa individualizada’ da ideologia meritocrática percebida
como verdade absoluta, resta o devaneio de ‘saídas mágicas’ ou o ressentimento
individualizado contra ‘pessoas’”[ii].
II.
Dentro desta mesma perspectiva, Jessé
desmascara a hipocrisia ideológica do jeitinho
brasileiro, demonstrando que ele não é apenas brasileiro, mas de todas as
classes precarizadas e desesperadas em qualquer lugar do mundo moderno. Segundo
ele, o “conto de fadas sociológico” do jeitinho
brasileiro apenas obscurece a verdadeira percepção de quais são os nossos
reais problemas sociais, além de misturar a absoluta dependência dos pobres com
a desfaçatez e o privilégio dos ricos e poderosos, chamando os dois pelo mesmo
nome de “jeitinho”, o que equivale a não compreender nem um, nem outro fenômeno
e ainda confundi-los num mesmo nome[iii].
Esta incapacidade de olhar a ralé brasileira como um produto do
capitalismo periférico é um impeditivo para encontrar uma política justa de
combate à sua situação social. Neste sentido, Jessé endereça uma boa crítica à
esquerda brasileira: “quando
interpretações ‘politicamente corretas’, que abundam entre nós, legitimam esse
tipo de expectativa irreal ‘idealizando o oprimido’, elas apenas jogam água no
moinho da reprodução continuada da opressão real dessa classe. A necessidade da ‘ralé’ de ‘fantasiar’ a
própria vida é compreensível e justificável. Afinal, só pode perceber com
clareza a própria miséria social e existencial quem possui, ao menos
potencialmente, os meios de superá-la. Que intelectuais, pretensamente de
esquerda, façam o mesmo é bem menos compreensível – ainda que se possa perceber
os ganhos em popularidade e aceitação imediata que possam advir disso – e menos
ainda justificável”[iv].
A esquerda que professa um “marxismo”
mecânico, desprovido de conteúdo e de vida, é incapaz de propor políticas de
enfrentamento a situação da ralé e,
muito menos, capaz de construir uma aliança política e social que possa
unificá-la com a luta geral da classe trabalhadora pelo socialismo. Ao
contrário disso, tende a reproduzir a opressão real que a ralé sofre cotidianamente. O Brasil contemporâneo e o seu
capitalismo periférico produziram esta classe social de desqualificados, humilhados e ofendidos, cuja aliança com
os demais trabalhadores é imprescindível para uma sociedade melhor, tal como os
camponeses o foram para os operários na Rússia do início do século 20. A
“esquerda” atual apenas reproduz determinados preconceitos ao ignorar os
“consensos inarticulados que legitimam esse tipo de prática na vida cotidiana”,
sobretudo quando endossam a má-fé institucional do país e determinados tipos de
senso comum.
Segundo Jessé, a maioria da ralé brasileira enxerga a política como
um espetáculo bizarro e inatingível (até mesmo indesejável), que,
contraditoriamente, pode “orientar a vida sem limites”, como se todo o “processo fosse percebido como produto de intenções
individuais” de um governo, justamente porque o sistema político brasileiro
concentra boa parte do poder no presidente, o que reforça esta visão. Segundo
Jessé, se a ralé não enxergasse a
política assim, não poderia consumi-la como um teatro, repleto de clichês de
novela, com mocinhos e bandidos, na qual ela é mera expectadora passiva e
principal vítima.
III.
Jessé desnuda a dinâmica da ideologia
do patrimonialismo, professada, dentre outros, por Raymundo Faoro, que tem as
seguintes consequências sobre o imaginário nacional: “o Brasil seria uma sociedade ‘pré-moderna’, porque reproduz a forma
‘patrimonialista’ de exercício do poder que vigorava em Portugal. Como Faoro
procura demonstrar nas várias centenas de páginas do seu livro, precisamente, a
correção histórica e sociológica de seu argumento, e é no embate com suas
ideias que poderemos perceber a fragilidade teórica dessas ideias
‘teleológicas’, ou seja, construídas para validar uma única tese política: a
ação intrinsecamente demoníaca do Estado contraposta à ação intrinsecamente
virtuosa do mercado. Essa é a ideia-força fundamental do liberalismo brasileiro
por boas razões, afinal, nas poucas vezes em que se verificou historicamente
qualquer preocupação política com as demandas das classes populares, estas
sempre partiram do Estado”[v].
Nesta grande sacada da ideologia
burguesa nacional, Jessé desnuda que por trás deste mito de Estado-ruim e
mercado-bom que remontaria supostamente as nossas raízes patrimonialistas, a
elite estaria apenas no Estado e não no mercado[vi]. Toda a construção
midiática e ideológica usa e abusa desta noção absurda e voltada unicamente a
manipular o povo contra si próprio. A corrupção endêmica do Brasil estaria, assim,
justificada como sendo o resultado dos “excessos do Estado”, tendo a sua
solução na radicalização das “medidas de mercado”.
A sua conclusão fundamental, desmentindo toda
esta baboseira, é que “quase sempre que
existe corrupção no Estado há também corruptores no mercado. A corrupção –
compreendida como vantagem ilegítima em um contexto de pretensa igualdade – é,
aliás, dado constitutivo tanto do mercado quanto do Estado em qualquer lugar do
mundo. A fraude é uma marca normal do funcionamento do mercado capitalista
sempre que este não seja estritamente regulado. A última crise financeira
apenas deixou isso claro como a luz do sol. O mercado financeiro mundial sem
regulação estatal usou títulos sem qualquer garantia, ‘maquiou’ incontáveis
balanços de empresas e até de países – como na recente crise da Grécia – e tem
usado de qualquer expediente que possa garantir maior lucro. Mas a cantilena
sobre o patrimonialismo só do Estado e a exaltação da ‘confiança’ somente do
mercado continua sendo repetida à exaustão ao arrepio da realidade. Minha tese
é que não existe outra saída para o liberalismo conservador brasileiro a não
ser repetir o mesmo discurso populista e manipulador da corrupção, supostamente
apenas estatal, já que esta foi a forma – que a falsa generalização dos
interesses particulares do lucro e do juro fáceis encontrou e construiu
cuidadosamente desde os anos 1930 – de encontrar algum eco nos setores
populares (...) Todos os problemas
sociais acontecem devido à corrupção supostamente estatal. Mas o ‘golpe de
mestre’ dessa tese é o ‘ganho efetivo’ conseguido ao tornar a ‘sociedade’ – ou
seja, todos a quem esta ideologia se dirige – tão virtuosa quanto o mercado,
expulsando todo o mal em um ‘outro’ bem identificado, uma elite estatal que
ninguém define e localiza precisamente. Ela pode ser todos e ninguém. Assim, a
tese do patrimonialismo oferece ‘boa consciência’ a todos que podem se imaginar
perfeitos e sem mácula, sem participação nenhuma em uma sociedade que humilha,
desqualifica e não reconhece grande parte de sua população, já que ‘todo o mal’
já tem endereço certo”[vii].
Esta contribuição, além de desmascarar
a ideologia que impera na grande mídia comercial abre uma grande perspectiva de
debate, agitação e propaganda para a esquerda nacional. Precisa ser confrontada
com a mentalidade de classe média que impera na sociedade – inclusive em largas
camadas da classe trabalhadora, da ralé
e, inclusive, da própria “esquerda” – reproduzindo essa falsa dicotomia entre Estado-ruim
versus mercado-bom.
IV.
Criticando o servilismo da
intelectualidade brasileira, profundamente colonizada pelas ideologias da
direita norte-americana, Jessé desfaz as mentiras de que a corrupção só existe
no Brasil, justamente porque nós, supostamente, dependeríamos muito mais do
Estado (patrimonialista e populista), enquanto que os EUA estariam livres deste
mal justamente porque se sustentam na “confiabilidade” do mercado. Nas palavras
dele: “O que separa o americano do
brasileiro é que o primeiro legaliza a corrupção de modo profissional, deixando
para os amadores do Brasil expedientes como esconder dinheiro ilegal na cueca.
Outra distinção é que o americano não atenta contra a própria economia, como
fez a Lava Jato”[viii].
Um intelectual universitário denunciar
hoje a operação Lava Jato quando o próprio PT capitula à ela vergonhosamente, é,
no mínimo, um ponto digno de atenção. Jessé parece compreender bem o papel
cínico em que caiu a maior parte da classe média brasileira, desmascarando a
sua função ideológica. Não apenas entendeu bem qual foi a função social desta
classe durante os protestos que culminaram no impeachment da presidente Dilma Rousseff, mas os fins de suas “reivindicações”.
Baseando-se em Max Weber, Jessé traduz a mentalidade desta pequena-burguesia, quando afirma: “durante toda a história humana, os ricos, charmosos, saudáveis e
cultos não querem apenas saber-se mais felizes e privilegiados, eles precisam
se saber como tendo ‘direito’ à sua felicidade e privilégio. Um dos fundamentos
de várias religiões do passado foi exatamente esse tipo de legitimação”[ix].
Ou seja, a classe média e a burguesia
precisam não apenas sentir-se plenamente merecedoras dos seus privilégios para
si, mas precisam fazer com que as classes exploradas legitimem e concordem com
o “direito” e a “justeza” destes privilégios, como se eles fossem, de fato, uma
conquista única ou principal do esforço individual de quem os possui. Toda esta
petulância da nossa decadente e retrógrada classe média encontra o seu lado
mais cínico na política, expresso, conforme já foi dito, durante as
manifestações pelo “Fora Dilma”.
V.
“A
corrupção e sua vagueza conceitual”, escreve Jessé, “é sempre o mote que galvaniza a solidariedade ‘emocional’ das classes
médias, que se imaginam moralmente superiores às outras classes. (...) Na verdade, é uma vontade de meia dúzia de
endinheirados que manipulam sua tropa de choque de uma classe média
infantilizada que se auto idealiza. (...) O moralismo da classe média no Brasil sempre foi extremamente seletivo
e antidemocrático ao mesmo tempo. Sua seletividade implica em ver o mal ‘fora
de si mesma’, e nunca na sua própria ação cotidiana de exploração de outras
classes de quem a classe média rouba o tempo, a energia e qualquer
possibilidade de redenção futura”[x].
Ficou famoso o caso de uma família de classe
média participando de um ato pelo “Fora Dilma” com sua babá oriunda da ralé, levando o carrinho dos filhos do
patrão e supostamente dando volume ao protesto. Esta desprezível capacidade de
ver o mal apenas fora de si mesma, auto-idealizando sua visão infantilizada e
egocêntrica de política e de mundo, buscando uma “virtude idealizada” que está
absolutamente fora de suas preocupações, serviu perfeitamente para os
interesses dos monopólios empresariais da grande burguesia, cortando os
escassos investimentos sociais e destinando quase todos os recursos do Estado
para os monopólios imperialistas, o sistema financeiro, os grandes empresários
e o agronegócio.
Esta descrição da classe média
brasileira, que se submete em grande parte voluntariamente à manipulação da
elite nacional e a da grande burguesia internacional, resume bem a história
recente do país, desde a queda de Vargas (1954), até o impeachment de Dilma (2016), passando pelo golpe militar de 1964
que derrubou Jango. Em todos estes movimentos sociais a classe média serviu de
aríete da elite nacional e internacional. As ideologias de classe média são
extremamente fortes e úteis para a burguesia brasileira, sobretudo no nosso atual
período histórico, onde impera o ódio como política, as manipulações
escancaradas do irracionalismo das pessoas, a institucionalização da
hipocrisia, da fake news, da apologia
à tortura e à ditadura militar, que sabidamente matou e torturou centenas de milhares
de brasileiros, cuja expressão maior foi Dilma Rousseff. Poderia haver
degeneração maior do que um deputado carreirista e inútil, corrompido até a
medula dos ossos, fazer apologia à tortura praticada pelo coronel Brilhante
Ustra como “argumento” em defesa do impeachment
da primeira mulher presidente do país, ser chamado de “mito” por esta classe
média e, logo depois, eleito presidente da República? Não estaria, de fato, mais
da metade de nossa sociedade (incluso largos setores de trabalhadores e da
própria ralé) completamente doente e
em avançado estágio de sofrimento?
VI.
Jessé conseguiu captar muito mais o drama
brasileiro do que a maior parte da nossa esquerda, como PSOL, PSTU, PCB e PCO.
Estes partidos fazem análises um tanto esquemáticas, muito envelhecidas e afastadas dos acontecimentos cotidianos.
Nesse sentido, PT e PCdoB já estavam muito mais cientes deste papel da classe
média do que aqueles partidos, não por uma sagacidade teórica dos seus
intelectuais, mas pelas necessidades “pragmáticas” de governar o Estado
burguês, no qual estiveram à frente por quase 15 anos. Jessé, mesmo como parte
simpatizante do campo petista, vai muito além do PT. Por este motivo, sua visão
“corajosa” consegue superar os intelectuais petistas e os intelectuais
universitários, que como bem observou Carlos Nelson Coutinho, vivem à “sombra
do poder”. A política de todos estes partidos de “esquerda” (incluso
organizações menores) não consegue desmascarar as ideologias burguesas
disseminadas pela classe média porque lhe falta uma visão mais profunda, que saiba traduzir a vida cotidiana para
desmascarar as pequenas hipocrisias.
O período histórico que se abre agora,
dominado pela direita mais reacionária, sem nenhum freio moral (nem mesmo “deus”), exige uma nova
abordagem que realize certas caracterizações sobre a classe média. A influência
desta classe sobre os trabalhadores e a ralé
tem se mostrado decisiva. Foi uma das armas ideológicas mais poderosas da elite
nacional usada no século 20. A última vez em que a classe média brasileira agiu
de maneira mais ou menos positiva foi durante a Revolução de 1930, o que
possibilitou quebrar a espinha dorsal da burguesia cafeicultora de São Paulo. Posteriormente,
a classe média brasileira só se alinhou com os interesses da burguesia paulistana
(FIESP) – lembrem-se do famigerado pato
amarelo –, expressando uma política reacionária e autocolonialista. Uma das
chaves para se combater a repulsa da ralé à ideia de socialismo, que nada mais
é do que um reflexo da repulsa da classe média a ele, está em explicar
pacientemente o papel cumprido por ambas as classes em nossa sociedade
periférica. Numa sociedade socialista de novo tipo ela perderia não apenas os
seus privilégios econômicos sobre a ralé,
mas também o “direito” de se sentir
superior e de bem com a sua própria
consciência.
Cabe relembrar, por fim, que foi a
burguesia proto-fascista quem influenciou massas nos últimos 5 anos aqui no
Brasil, não a esquerda. Esta tragédia nos força a tirar certas conclusões.
Os
pontos fracos e perigosos da contribuição teórica de Jessé
VII.
Todas estas preciosas contribuições teóricas
não seriam possíveis se Jessé Souza não tivesse rompido com o silêncio que as
universidades brasileiras impõem sobre a miséria do povo e as profundas
desigualdades de nossa sociedade; sem que ele quisesse honestamente passá-las a
limpo, demonstrando mais “coragem do que erudição”. Podemos constatar
claramente que Jessé simpatiza com a causa dos oprimidos do nosso país. Este é,
seguramente, o que lhe permite ter uma visão
além do alcance, superando a maioria dos intelectuais universitários e da
“esquerda”. Se ele perdesse esta qualidade, certamente cairia no senso comum de
reproduzir as ideologias estéreis, tipo um pós-modernismo obtuso, cujo objetivo
central é relativizar ou obscurecer os conflitos sociais e esconder os
privilégios da elite nacional e internacional.
Porém, apesar de todas estas
qualidades, Jessé paga um tributo à sua condição de acadêmico. Estas conclusões
e denúncias muito bem fundamentadas esbarram num perigoso limitador: seu culto
respeitoso ao liberalismo burguês. Nos seus livros faz uma perigosa apologia dele,
chegando ao ponto de reivindica-lo como o “fundamento
básico de qualquer regime democrático”[xi], sem perceber que o “liberalismo
conservador brasileiro” é o único possível no nosso capitalismo periférico,
onde a “nossa” burguesia nacional não pode (nem quer) praticar as doutrinas
econômicas que prega. O “livre mercado” é apenas uma ficção, onde os monopólios
e trustes internacionais controlam os principais ramos. A burguesia nacional age
desta forma não exclusivamente por
maldade ou perversidade (suas características intrínsecas), mas porque o
capitalismo e as potências imperialistas internacionais não permitem que aja de
outra forma. Sendo assim, a admiração de Jessé pelo liberalismo burguês é um
perigoso limitador de suas obras, capaz de fazer suas grandes conclusões
escorrerem pelos dedos, tornando-as absolutamente estéreis.
Segundo Jessé, a sociedade moderna
funciona de acordo com uma “segunda natureza” invisível que guia todas as
nossas ações mais importantes sem que sequer nos apercebamos disso. Este tipo
de funcionamento social se daria, em grande medida, por meio de um automatismo
pré-reflexivo que não nos faz perceber, nem compreender o que se passa. Ora,
tudo isso também vale para o liberalismo burguês (seja o político ou o
econômico), que nos molda dentro dos interesses da sociedade atual (nos dando
uma direção). Mesmo as “liberdades
individuais” do liberalismo burguês clássico são condicionadas por um
automatismo pré-reflexivo de uma “segunda natureza” invisível (no caso, a
“natureza do mercado”). Fazer apologia dele, portanto, não ajuda a emancipação
dos trabalhadores, muito menos da ralé.
Antes disso: possibilita novos grilhões ideológicos, com discursos mais
modernos e arrojados (como a omissão sobre a necessidade de organização para os trabalhadores e para
a ralé!).
VIII.
A sua denúncia apaixonada da estrutura social
brasileira e da condição da ralé
tenciona até o ponto inevitável que abre a perspectiva de uma revolução. Esta
necessidade cai de maduro a cada conclusão dolorosa que tira da situação da
“nossa” ralé. Porém, Jessé não quer
comprometer-se com ela. Aliás, foge dela desesperadamente, chegando a fazer
apologia do pacifismo como forma de “revoluções de consciência”, que seriam,
segundo ele, “muito mais eficientes”.
A base da sua crítica ao marxismo vai neste
sentido: “daí essa mania um pouco
ridícula dos marxistas sempre procurarem ‘consciência de classe’ e ‘atores
revolucionários’ quando esses são sempre construções improváveis e que existem
mais como exceção do que como regra”[xii].
Sim, as revoluções são exceções ao longo da
história, mas elas existem. Seria muito importante que Jessé apresentasse suas
experiências e pesquisas no movimento sindical e político dos trabalhadores
para embasar melhor estas colocações. É importante relembrar nosso professor
que o marxismo é uma ciência para a
revolução; isto é, para derrubar ordens sociais injustas e dar consciência
e organização aos oprimidos. Somente pode existir vida no marxismo se ele estiver de fato comprometido com a
organização de uma revolução (mesmo que esta seja hoje uma “causa perdida”). Ele não nasceu nas universidades; não
foi aceito nas universidades; foi combatido pela maioria das universidades.
Após ser canonizado pela esterilidade das teorias acadêmicas ou brutalmente
falsificado, foi finalmente “aceito”. A crítica de Jessé entende o marxismo
como uma teoria sociológica cuja finalidade é fazer a melhor interpretação em
uma concorrência com outras teorias universitárias. O marxismo vivo – o qual Jessé parece não conhecer
– procura “tentar” e “testar” formas de organizar os trabalhadores e o povo
oprimido (a ralé, muito bem descrita
e conhecida por ele) visando sua emancipação, mesmo que isso seja uma causa
perdida.
Jessé ainda acusa o marxismo de
“economicismo”, entendido como uma forma de submeter tudo à visão econômica. “Lembremos”
Jessé que a finalidade última do marxismo é a emancipação humana. Não existe mais possibilidade de uma ciência
social ou um humanismo que ignore os oprimidos de sua própria sociedade. O que
torna atribuir um economicismo ao marxismo, no mínimo, injusto. No entanto, não
restam dúvidas quanto a uma interpretação
economicista do marxismo por parte da maioria da “esquerda”, seja ela
reformista ou stalinista.
IX.
Já se disse que “uma gota de fel amarga um barril de mel”. Após uma denúncia
apaixonada em mais de um livro que tornaram-se best-sellers, culminando em inúmeros convites para as “mídias de
esquerda”, inclusive por redes de televisão, como a TVE e a TV Cultura, Jessé
parece ter medo das dolorosas conclusões que foi obrigado a tirar de suas pesquisas
sociológicas, afirmando que “não é
preciso ‘guerra civil’ ou grandes calamidades com banho de sangue e sofrimento”[xiii]. Cruzou todos os
limites que o academicismo oficial se nega a cruzar; mas se recusa a abandonar
todas as esperanças pacifistas que são características dele. Ao invés da
“revolução sangrenta”, Jessé aposta que uma análise teórica renovadora, como a
que professa, seria capaz de dialogar
com os setores sensíveis das classes
média e alta, que apoiariam “mudanças reais”. A grande questão é: onde estariam
estes setores e quem precisamente seriam eles?
Jessé aponta que muitos brasileiros
gostam de saídas “mágicas”, de “decretos
que mudam o mundo com uma penada, uma política pública salvadora ou genial”;
ou seja, tudo o que tenha a ver com mudanças “fora de nós”, que nunca acontecem
nos corações e mentes dos próprios indivíduos, bem como na forma em que cada um
de nós percebe o mundo[xiv]. Jessé está certo ao se
preocupar com as experiências revolucionárias que, derramando sangue e dispendendo
enormes quantidades de energia, não deram atenção ou não foram capazes de “mudar
corações e mentes”; isto é, que foram duras e perderam completamente a ternura.
Com relação a mudar os corações e as
mentes, a forma de agir e de se comportar dos seres humanos, não há o que se
objetar. Uma revolução que não seja capaz de levar os seres humanos a mudar suas
estruturas internas, tornando-os mais sensíveis com os dramas dos outros e da
humanidade; que traga o pão, mas se esqueça da poesia, não é uma autêntica revolução.
Hoje o percebemos claramente, e Jessé tem razão ao frisar este aspecto. A
esquerda já padeceu muito deste mal justamente por acreditar que as questões
econômicas resolveriam por si só as demandas psicológicas, emocionais e de
caráter. A revolução precisa trabalhar duro sobre a educação pública e as
relações cotidianas; não restam dúvidas! Porém, a consciência não é nada sem
uma mudança estrutural, política, econômica e institucional que lhe dê
sustentação a longo prazo.
Tampouco fará uma única mudança duradoura se
não tivermos coragem, ousadia... e uma direção
revolucionária!
X.
Como se dariam estas mudanças tão necessárias
para resgatarmos a ralé desta
subcidadania, subserviência e subexistência? É certo que não existem milagres e,
tampouco, passes de mágica. Todas estas mudanças serão um parto doloroso e
contraditório. Porém, não será apenas por uma “revolução de consciência” que
conseguiremos mudar a sociedade de fato. Além disso, a “revolução de
consciência” apresentada por Jessé é totalmente espontaneísta, sem organização
e programa político.
Jessé precisa escrever um novo best-seller preocupado em responder como
superar a ordem social descrita por ele, o capitalismo periférico e dependente
do Brasil, que “gera” a nossa ralé, a
partir de uma transição pacífica (de “revolução de consciência”), que dispense a violência revolucionária,
sendo que por muito menos a classe média brasileira já desencadeia toda a sua
fúria para humilhar, agredir e colocar a ralé
“no seu lugar”. Como fazer a ralé
acreditar numa mudança profunda e radical, que tenha a capacidade de instigá-la
a perceber a seriedade e a gravidade de sua situação e de uma proposta de
mudança sem combater de modo também radical e decisivo as instituições que a tratam
com “má-fé”? Um dos grandes papéis de um(a) revolucionário(a) é, sem dúvida,
instigar o povo a horrorizar-se consigo mesmo, para que em algum momento este
horror se transforme em ação.
No campo econômico, a necessidade premente do
nosso país é socializar a riqueza (ou distribuir
renda, no linguajar do economista burguês), possibilitando-lhe reais
condições de vida. Para isso, o socialismo é indispensável, pois a ralé brasileira é um produto inevitável
de um capitalismo periférico, o único incentivado e tolerado pela Europa e os
EUA. A sociologia de Jessé deixa subentendido a defesa de uma humanização do capitalismo, fato que,
como sabemos pela experiência com o reformismo, é impossível. É fundamental uma
revolução no país para instituir um governo formado por trabalhadores, que mude
todas as caducas instituições brasileiras, fazendo que com o povo consiga gerir
a economia de forma consciente e organizada. Não tem sido possível outro modo
de atingir as bases iniciais do socialismo que não por uma revolução violenta concreta, da maioria. Seria
muito melhor atingi-lo, se no geral isso
fosse possível, de forma pacífica, deixando a força da violência revolucionária
organizada apenas para o caso da classe dominante não nos deixar alternativas.
Admitir isso ainda é um grande tabu no meio acadêmico, que é especializado em mostrar mais erudição do que coragem.
Apesar das boas conclusões sociológicas
de Jessé, sobre as questões da macroeconomia não há uma única análise
inovadora. Apenas os velhos clichês do reformismo, da social-democracia, do
destaque apenas à “revolução de consciência”. Como fazer uma “revolução na
consciência” sem fazê-la no cotidiano
material? Existiria diferença desta proposta com o reformismo socialista,
tão duramente criticado pelo marxismo? O PT não teria apostado no diálogo com
os “setores sensíveis da classe média” e da burguesia? Seria, então, o método
da “revolução de consciência” apenas publicar livros, blogs, dar palestras e
conferências nas universidades e nos sindicatos? Formação política é sempre
importante, mas sozinha e descolada de um objetivo de mudanças profundas e,
sobretudo, descolada da ação cotidiana, pouco incomoda a estrutura social,
acostumada ao marasmo político, à desistência passiva ou à adaptação
oportunista.
O inspirador de Jessé Souza, Florestan
Fernandes, nos responde a todos estes questionamentos de forma muito mais
progressiva e muito mais séria: “O que se
destroçou? A ilusão de que um país como o Brasil possa expungir-se de
iniquidades seculares por meios pacíficos (…). A democracia exige uma revolução social. Uma revolução social rebenta
de baixo (ao contrário da contra-revolução) e vai da sociedade para o sistema
do poder (e a forma política do Estado) (…) Os caminhos pacíficos estão bloqueados e que as ‘esquerdas’ que ganharam
mas não levaram, precisam aprender a avançar revolucionariamente na direção de
sua organização institucional (…). É
preciso enraizar os desenraizados em seus partidos, em suas organizações de
luta, em seus meios ideológicos e políticos de atuação defensiva e ofensiva”[xv].
Nesta conclusão tão singela e tão
profunda de Florestan, a sociologia de Jessé Souza não apenas não representa
avanço algum, como, perigosamente, pode significar um retrocesso.
NOTAS
[i]
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira – Quem é e como vive? Editora UFMG, BH, 2009 (página
406).
[ii]
Idem (páginas 416 e 417).
[iii]
Idem (página 415).
[iv]
Idem (página 418).
[v]
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira – ou como o país se deixa
manipular pela elite. Editora Leya, São Paulo, 2015 (páginas 53 e 54).
[vi]
Idem (página 56).
[vii]
Idem (páginas 91 e 92).
[viii]
SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira, para entender o país além do jeitinho
brasileiro. Editora Leya, Rio de Janeiro, 2018.
[ix]
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira – Quem é e como vive? Editora UFMG, BH, 2009
(página 43).
[x]
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira – ou como o país se deixa
manipular pela elite. Editora Leya, São Paulo, 2015 (páginas 256 e 257).
[xi] Idem
(página 90).
[xii]
Idem (página 116).
[xiii]
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira – Quem é e como vive? Editora UFMG, BH, 2009
(página 430).
[xiv]
Idem (página 430).
[xv] FERNANDES,
Florestan. Que tipo de república? São Paulo: Brasiliense, 1986.