sábado, 3 de novembro de 2018

O fascismo dos bichos

1.
            Era uma vez uma fazenda chamada Pindorama. Ela se estendia por terras grandes e férteis, tendo por principal atividade a suíno e avicultura. Criava animais de genética apurada, com bichos desenvolvidos para a produção de carnes nobres. Durante décadas foi administrada por uma união entre os proprietários humanos, os cachorros e os porcos mais fortes, chamados de “aristocratas”. A grande prosperidade para os humanos e os porcos aristocratas, no entanto, despertou a revolta nos porcos pobres e nos perus.
            Eles passaram, então, a desafiar essa autoridade. “Faremos uma revolução dos bichos!”, gritavam os porcos pobres e os perus. Para tentar controlar esse descontentamento, se criou uma nova administração entre os humanos, os cachorros, os porcos aristocratas e a união dos porcos pobres. Tudo se acalmou durante um tempo. Os humanos continuaram comendo bacon e lucrando, os cachorros os ossos e os porcos aristocratas as melhores rações, à base de milho e soja. Os porcos pobres, que se contentavam apenas com a lavagem e os restos, agora ganhavam a “bolsa ração”, implementada pelos representantes dos porcos pobres na nova administração.
            “Somos uma fazenda feliz, próspera e humana”, diziam os proprietários, repetiam os cachorros e os porcos. E a fazenda realmente enriquecia e centenas de milhares de reais afluíam de Pindorama, somado aos caminhões que saíam de lá levando carregamentos de bacon e de peito de peru.

2.
Sobreveio então uma crise econômica e o caos geral se instaurou. Os humanos se atolaram em dívidas com suas diversas fazendas de outras regiões e se esquecerem de Pindorama. A grama se transformou em mato alto; as máquinas enferrujaram; o ambiente das instalações se tornou insalubre e muitos porcos e perus morreram de fome, frio ou de doenças. Pra piorar, lobos ferozes passaram a atacar a fazenda, saqueando e devorando os porcos que sobreviveram. Apesar disso, Pindorama era resistente e tinha grande potencial natural. Por mais destruída e saqueada que fosse, sempre estava lá, de pé e pujante.
Como viviam na “casa grande”, os cachorros e os porcos aristocratas escapavam de todos os ataques dos lobos; ou mesmo da fome, do frio e das doenças. Mas como a ração começou a escassear lá também e por se verem totalmente desamparados pelos humanos, cachorros, porcos aristocratas e porcos pobres começaram a brigar entre si. Os cachorros e os aristocratas afirmavam que toda a culpa era dos porcos pobres na administração, que roubavam ração e estavam envolvidos nos escândalos de desvio de bacon.
Por mais que se esforçassem em dizer o contrário, a união dos porcos pobres tinha sido definitivamente excluído da “casa grande”.

3.
Os porcos pobres das pocilgas e dos chiqueiros e os perus começaram a se desesperar e a expressar certo descontentamento. Os porcos pentecostais rezavam e eram incitados pelos porcos pastores à acusar a união dos porcos pobres como o responsável pela situação. Nisso eram seguidos pelos porcos leigos e pelos perus, que tentavam encontrar alguma explicação em meio àquele caos.
Os porcos proletários, contudo, conscientes de toda aquela situação terrível e inconciliáveis com a união dos porcos pobres, procuravam alertar toda Pindorama: “Temos que fazer como na Granja do Solar: tomar o controle da administração, expulsar os humanos, os cachorros e os porcos aristocráticos”. Insistiam ainda que um dos grandes problemas era o consumo de carne dos humanos: “Enquanto forem carnívoros e quiserem apenas lucrar com a nossa carne, a nossa situação só vai piorar!”.
Muitos porcos imediatistas ficavam aflitos: “Como mudar tudo isso?”, diziam uns; “O melhor mesmo seria continuar levando a nossa vida, ganhando a nossa lavagem que, afinal de contas, estava garantida”, afirmavam outros. Os porcos pentecostais ganhavam terreno, pregando o paraíso no post-mortem, onde a lavagem jorraria como água desde que se trabalhasse e se aceitasse esse mundo tal como ele era.

4.
            Subitamente os humanos reapareceram e exigiram a mudança de toda a forma de organização e administração de Pindorama. Decretaram uma austeridade profunda visando um rendimento maior da fazenda: “Somente assim poderemos sair do vermelho e ter prosperidade novamente”, eles se justificavam. Tencionaram os cachorros para que começassem o trabalho, mas estes estavam velhos e cansados. Exigiu que os porcos aristocratas expulsassem os porcos pobres da administração: “Eles desviaram ração e bacon, ora bolas, onde já se viu uma coisa dessas?”.
            Então a união dos porcos pobres, depois de longos e profundos serviços prestados aos proprietários humanos, foram expulsos como porcos imundos e infames. Toda Pindorama falava sobre eles: “Roubaram ração e bacon, que absurdo”! “São ateístas, deus nos livre!”, diziam os porcos pentecostais. “Foi o maior escândalo de corrupção de Pindorama; talvez de todas as fazendas do mundo!”, diziam os porcos aristocratas.
            Os ventos estavam mudando. Os porcos proletários perceberam e denunciaram: “Estão sendo expulsos da ‘casa grande’ porque não servem mais; querem nos explorar de outras formas!”. A maioria dos porcos das pocilgas e dos chiqueiros ouvia tudo aquilo, mas não queria entender. Percebendo a agitação no meio dos porcos e dos perus, os humanos compreenderam que precisavam fazer algo urgentemente.

5.
            “Eu sou a mudança”, disse o lobo de cima do palanque improvisado, “os cachorros não servem mais e os porcos que estavam na administração estão totalmente corrompidos”. Parte dos ouvintes levantaram as orelhas e começaram a prestar atenção.
            Os porcos proletários, percebendo para onde as coisas estavam se encaminhando, interviram: “Este lobo não pode representar mudança alguma; até ontem estava nos atacando e devorando nossos irmãos”. Parte dos ouvintes ficou desconfortável. Um porco se levantou e disse: “O que vocês propõem, então?”.
            “Nós temos que tomar o poder dentro de Pindorama, tal como na Granja do Solar e criarmos um governo dos porcos, para os porcos, junto dos seus aliados perus; que cesse totalmente a carnificina animal; libertemos os porcos e os perus das suas prisões; proibamos a venda de carne”. Alguns porcos mais a frente ficaram completamente desnorteados. Um princípio de vaia começou a se ouvir.
            “Vocês são loucos”, um daqueles porcos da frente começou a falar, “isso não deu certo em lugar nenhum; olhem para a Granja do Solar; se lembram de como ela terminou?”. “Isso mesmo”, gritaram outros que nem sabia do que se estava falando, “Fora comunistas! Precisamos retomar Pindorama como ela era”. Um porco subiu num balde e proclamou: “Pindorama acima de tudo!”.

6.
            “Um dos grandes problemas foi que os cachorros e os porcos que administraram Pindorama estavam comendo bacon e peito de peru, enquanto que vocês passavam fome, com uma lavagem racionada”, disse o lobo, no comício do dia seguinte. Parte dos porcos começou a ovacioná-lo. “Em nome de deus, eu digo a todos vocês que vamos superar essa crise e fazer Pindorama voltar a ser grande!”, exaltou-se o lobo, abraçando um porco pentecostal.
            Os porcos proletários tentavam panfletear, conversar, alertar. Porém, foram esmagados por uma massa de porcos que estavam em torno do lobo, quase o cultuando. “Queremos bacon também!”, gritou um porco que estava do lado do lobo. “Sim, votem em mim e vocês terão bacon; muito bacon!”, falou o lobo com uma voz grave de locutor. “Chega dessa roubalheira aqui”, prosseguiu o lobo, “vamos transformar Pindorama num lugar humanizado e decente; não podemos mais tolerar gorgolejada desses perus”, bradou o lobo. “Sim, é isso mesmo!”, disseram os porcos quase em uníssono, para desespero dos porcos proletários, que estavam olhando tudo escanteados.
            Liderados pelo lobo, eles saíram com suas tochas medievais, adentraram a zona das gaiolas dos perus, que ficaram felizes em ver aquela rebelião, mas quando foram soltos começaram a ser mortos sem piedade e, logo a seguir, desossados. Foi uma grande carnificina de aves que encheu Pindorama com rios de sangue.

7.
            “O que vocês querem?”, gritava o lobo, observado pelos humanos da janela da “casa grande”. “Queremos bacon!”, os porcos gritavam, “É isso que vocês terão!”, ele respondia. Os cachorros foram definitivamente dispensados da “casa grande”, passando a morar na rua. Os porcos aristocratas tentavam se aproximar do lobo, para ver se conseguiam alguma função na nova administração. O lobo, por sua vez, os ignorava. Estava em êxtase; era o senhor de toda a situação. Já existiam quatro lobos em volta daquela assembleia, como sentinelas do lobo líder. “Vamos desossar toda essa peruzada”, já gritava o lobo líder para delírio dos porcos, que pulavam e clamavam por ele.
            “Vejam só”, alertavam os porcos proletários, “já temos mais quatro lobos a nos espreitar; vão nos devorar aqui mesmo”. “Calem a boca”, gritavam parcelas significativas de porcos, que estavam vidrados na figura do lobo líder. Outra parcela dos porcos começou a exigir a saída deles daquela assembleia: “fora daqui seus porcalhões; do jeito que Pindorama tava não dava mais”.

8.
            Então o lobo líder foi eleito com uma grande margem de votos, para o grande júbilo dos porcos de Pindorama e dos seus proprietários. Os mercados já acenaram com a alta das ações na bolsa. Pindorama voltaria aos seus tempos gloriosos.
            “Finalmente teremos bacon agora”, disse um porco para o outro na fila do matadouro.
“É bacon o que vocês querem?”, falou o lobo líder de cima da máquina que fazia a esteira do matadouro andar, sob o olhar atento dos humanos e dos porcos aristocráticos.
            “Siiiiiiiim!”, eles responderam em uníssono e cheios de admiração.
            “Pois então é bacon que vocês terão!”, disse o lobo líder apertando o botão.

FIM


Nenhum comentário:

Postar um comentário