terça-feira, 19 de junho de 2018

A invasão dos bárbaros sádicos


Ao contrário da queda do Império Romano, não há um marco histórico para estudar quando nossas mentes foram invadidas pelos bárbaros sádicos, tal como o ano de 476 d.C. Talvez eles sempre estivessem ali, colonizando e formando novos e maiores reinos bárbaros sádicos, bem debaixo do nosso nariz, na nossa formação genética, exatamente dentro da nossa psique. O fato, contudo, é que os que se dizem e se tem por civilizados, muitas e muitas vezes são piores do que os piores bárbaros que invadiram Roma em 476 d.C.
        Posso me lembrar dos olhinhos das crianças agarrados às grades da escola, querendo um espacinho para ver uma briga entre colegas. Eu, como professor, nas minhas melhores aulas (ou nos meus melhores sonhos de aulas – que nunca efetivamente consegui concretizar), jamais pude ter estes olhinhos cintilantes cravados em mim, tal como os vira quando daquela fatídica tarde em que dois alunos se juraram de morte. 
          Este episódio histórico – a queda do Império Romano e as invasões bárbaras –, tão narrado nas inúmeras aulas de história no Brasil e no mundo, parece ser um pouco mal contado. Necessita, então, um novo olhar..

Uma tarde no Coliseu

        Os “bárbaros civilizados”, que atendem pelo nome de romanos e que souberam se vender muito bem para a posteridade como o farol da civilização, erigiram um monumento à barbárie: o Coliseu! Como vaso ruim não quebra, lá está ele, de pé, a nos relembrar as manhãs e tardes de barbarismo sádico, presenciado não apenas por imperadores, legionários e gladiadores, mas por adultos, jovens e crianças.
O exercício da história é como se pudéssemos ter uma máquina do tempo imaginária, onde entramos, saímos, vamos e voltamos para o passado ou, até mesmo, para o futuro. Um destes exercícios é o que nos permite voltar para a Roma Antiga, para a arena do Coliseu. Pensem os impactos psicológicos na mente de inúmeras gerações de cidadãos romanos, jovens e adultos, que cresceram vendo aquele “espetáculo” sanguinário, tido como “civilizado”.
De um lado da arena está Carpoforo, o gladiador que lutava exclusivamente contra animais. Foram várias batalhas e mais de 20 animais mortos entre leões, leopardos e rinocerontes. O espetáculo edificante que jogava seres humanos contra animais não raramente terminava em um banho de sangue de ambos os lados, acompanhado por centenas de olhinhos sádicos, desejosos de saírem da sua rotina sem graça e embrutecedora.
Foi o combate corpo a corpo entre os gladiadores Retarius e Secutor que o pequeno Quintus, de apenas 9 anos, acompanhou quase sem piscar, como se estivesse hipnotizado. Retarius acertou uma espadada na perna de Secutor, que caiu no chão, exausto, após cerca de 1h de combate. O talho aberto na coxa do gladiador vertia sangue aos borbotões e selou o seu destino. Estirou-se, largando o gládio e o escudo. Precisava de ar puro, por isso, com muita dificuldade, tirou o capacete. Olhou, complacente, cheio de piedade, para César, que se levantou do divã. Retarius insuflou os presentes contra o inimigo derrotado, como que querendo ganhar fama e reconhecimento, propiciando-lhes o momento mais esperado.
A massa ensandecida pedia a morte de Secutor. César postou-se, então, de fronte do alambrado da sua sacada. O ruído ensurdecedor da massa foi diminuindo até quase sumir-se por completo. O imperador lentamente ergueu a mão até a altura do peito. O pequeno Quintus teve sua respiração entrecortada por aquele momento mágico. Os presentes jubilaram-se ao ver César com o seu polegar suspenso no ar, como que tomados por um frenesi mudo. De repente, de um canto a outro do Coliseu começou a se ouvir: “Gaius ad mortem”! “Gaius ad mortem”! “Gaius ad mortem”! César ergueu o seu rosto e então o polegar tomou a posição que autorizava a morte do gladiador derrotado.
Os gladiadores e o escultor. Escultura do Museu d'Orsay, em Paris
Uma explosão de euforia por todos os lados contagiou Quintus, que sem saber bem o porquê, sorriu e começou a gritar também. Secutor engoliu seco. Elevou os olhos ao céu e pediu aos deuses de sua tribo que lhe confortassem. Ao ver a lâmina do gládio sobre seu pescoço, apavorou-se e então se pôs a chorar. Os milhares de olhinhos da barbárie civilizada, sádicos, extremamente felizes na sua sanha medíocre por sangue, se puseram a gritar e a xingar o gladiador derrotado.
De um golpe certeiro, rápido e impiedoso, Retarius cortou a cabeça de Secutor, fazendo jorrar sangue até formar uma poça. Segurando-a pelos cabelos, Retarius a erguia para mostra-la a massa, que gritava seu nome em uníssono, ecoando por todo o Coliseu.
Assim era saciado o prazer sádico daqueles que diziam ser o farol civilizatório do mundo antigo. Que forças exigiam tal ritual e que tipo de educação poderiam receber os seres humanos criados neste ambiente, como o pequeno Quintus?

Os cristãos que só batem na outra face de Cristo

        Passadas as edificantes tardes no Coliseu, presenciamos, durante a Idade Média cristã, os castigos e as execuções públicas, acompanhadas por centenas de fiéis que queriam degustar os suplícios dos infiéis, que tinham a coragem, de uma forma ou de outra, para afirmar que podíamos sentir prazer sem ser pecado; ou, ainda, que era saudável para o pensamento humano questionar dogmas.
        Não eram pequenas as romarias nas praças da França, Inglaterra, Portugal e Espanha para ver os condenados ardendo no fogo sagrado para receber a purificação dos seus pecados, ou simplesmente enforcados ou decapitados. Uma espécie de um delírio prazeroso tomava conta das mentes e dos corações dos fiéis, que antes da execução jogavam frutas e verduras podres nos condenados.
        O caso mais famoso se deu na morte de Giordano Bruno, na Piazza Campo de Fiori, em Roma, no ano de 1600. A Santa Inquisição, mexendo com estes sentimentos mal resolvidos na psique humana, reinou poderosa e praticamente sozinha, por séculos. Inúmeros fiéis descarregaram inconscientemente suas frustrações e privações sexuais nos linchamentos e execuções públicas durante toda a Idade Média. Foi assim que centenas de milhares destes indivíduos renderam sua homenagem e devoção aos “ensinamentos de Cristo”. Além disso, ainda existiram as guerras medievais, as cruzadas e o inesquecível e “edificante” cerco de Lisboa; todos liderados por cristãos interessados em pregar a “palavra de Cristo” pelas armas.
       
      O mais simbólico no caso de Giordano Bruno é que ele foi queimado na fogueira... por pensar! Qual não foi o prazer de um velho camponês sádico, surrado e humilhado pelo seu senhor por não cumprir adequadamente o pagamento da corveia, ao ver Giordano Bruno caminhando para o cadafalso? A sua vida de renúncias e a sua não realização pessoal agora encontravam um consolo de “prazer” distorcido naquele suplício. A recusa de Bruno em beijar a cruz ou implorar por misericórdia aos seus algozes o desconcertou um pouco e o encheu de vergonha, mas foi novamente reanimado com os xingamentos proferidos de todos os lados e a chuva de legumes e ovos podres sobre o condenado. Ver a chama consumir o corpo de Bruno o deixou extasiado, como se tivesse sido inebriado por um perfume suave. Junto com o velho camponês, muitas crianças acompanharam o suplício; algumas eram de colo.

Liberdade, igualdade e fraternidade para a burguesia!

        O advento do capitalismo, ainda que tenha representado progresso em muitas áreas, não eliminou o sadismo das massas humanas. Por um lado, não tomou conhecimento dele por muitos séculos; por outro, ao tomar conhecimento dele, percebeu que poderia tirar partido de tal “fenômeno”. A luta dos iluministas contra o irracionalismo das monarquias feudais e o grande desenvolvimento científico e tecnológico resultaram na consolidação do mercado mundial e, deste, nas guerras mundiais, comemoradas por banqueiros e empresários, com um saldo de mais de 30 milhões de mortos. O nazi-fascismo foi um grande monumento erigido a partir do cultivo cuidadoso de centenas de milhares de mentes humanas, que irracionalmente passaram a clamar por guerra e pelo extermínio de povos inteiros.
        Além das guerras, patrocinadas pela burguesia e a sua indústria bélica, vemos programas de TV que incentivam o sadismo, o ódio, a raiva; além da xenofobia, do racismo, do machismo, da homofobia: todas estas se apresentam como formas de deleitar o sadismo mal contido da classe média e de muitos outros setores. O que uma briga entre vizinhos não consegue consumir da energia deste sadismo, desloca-se para o bate-boca no trânsito, na fofoca entre colegas de trabalhos, amigos, familiares. Se tudo isso não dá conta, há ainda o morador de rua passando fome, o subempregado e a política para descontar as frustrações sociais e cotidianas. Se nada disso não der certo, sobra ainda os comentários nas redes sociais, que possuem o “grande mérito” de permitir falar o que quiser e não ter consequência nenhuma para o agressor! É o sadismo digital: grande culminância moral da sociedade burguesa.

A barbárie stalinista: o fascismo vermelho

        As revoluções são momentos extraordinários, que permitem a possibilidade de revisão de todo o passado humano. Porém, como nos demonstrou a experiência histórica, passado o frenesi, há a ressaca. Na Rússia, esta ressaca gerou o stalinismo como contra-revolução dentro do processo iniciado em 1917; surgiu o “fascismo vermelho”. O sadismo humano não foi combatido, mas aproveitado por uma rede de burocratas, que souberam muito bem se usar dele, alimentando-o e tornando-o um monstro. A criação de fanáticos, que acham que lutavam em nome de um ideal, matando, espionando, se infiltrando e assassinando, na verdade estavam dando continuidade às tardes no Coliseu.
        A miséria teórica da esquerda atual ainda não compreendeu este fenômeno em toda a sua profundidade. Está “apta” a continuar cometendo os mesmos erros e alimentando o sadismo, que deve ser identificado e combatido. Muitos ativistas mesmo se dizendo contra o stalinismo cometem os mesmos erros e, consciente ou inconscientemente, cultivam o sadismo no movimento dos trabalhadores.

Para além do bem e do mal

Como pode o ser humano ser tão ruim, fazer coisas tão horrendas e, ao mesmo tempo, coisas tão belas, sublimes e civilizadas? A psicanálise freudiana e a economia sexual reichiana têm muito a dizer sobre isso. A questão a ser analisada está no fato de que os seres humanos são multifacetados. Eles não possuem apenas 2 caras, mas muitas. Se manter fiel a si mesmo, a outra pessoa ou mesmo a uma causa é praticamente um trabalho de Hércules. Que dirá se manter fiel à vida viva, que passa pelos nossos sentidos cotidianamente. Não são poucas as vezes que nos traímos inconscientemente. E, no entanto, somos a mesmíssima pessoa.
        Com que facilidade não se planta a discórdia entre grupos de seres humanos? Com que singela tranquilidade não se desorganiza um trabalho que se levou anos para construir, mas apenas alguns dias ou horas para pôr tudo a perder? Uma briga – principalmente a que tenha sangue –, seja na escola, num bar ou no trânsito, chama muito mais a atenção do que qualquer aula, do melhor professor ou outro problema social, como um morador de rua passando fome e dormindo embaixo do viaduto.
        O inconsciente, que abriga inúmeras pulsões, contraditórias entre si, esconde, no mais recôndito da alma, os nossos recalcamentos, os desejos mal resolvidos e mal compreendidos pela sociedade, que terminam, geralmente, mal direcionados. Quem é capaz de sustentar que nunca desejou a morte de outra pessoa?
        O problema, contudo, não é ter estes desejos reprimidos (que felizmente, na maioria das vezes, não são colocados em prática), mas a máscara de hipocrisia que a sociedade veste para escondê-los, fazendo com que eles voltem por outros poros, em outras ocasiões e contextos, provocando o desentendimento e a cizânia em escala industrial. Muitos possuem consciência da sua dissimulação; outros tantos não a possuem, mas também não fazem a menor questão de procurar as raízes de sua postura irracional e doentia, sobretudo, para enfrentá-la. Acham que está tudo bem consigo mesmo e com a sociedade, cabendo encontrar algum “bárbaro” alheio a si próprio e ao seu modo de vida para despejar as suas culpas que o dilaceram por dentro e o paralisam.

A barbárie civilizada

A ascensão da direita a nível mundial tem nos trazido tipos peculiares, verdadeiros bárbaros sádicos em “pele de civilizados”: Donald Trump, é, de longe, o principal exemplo do sadismo moderno (Bolsonaro é outro). O imperialismo liderado por ele é ofensivo, ameaçador, destrutivo e beligerante. Ao mesmo tempo, diz representar a “civilização” contra a barbárie do Estado Islâmico, de Bashar Al Assad ou de Putin. Quem tem razão? Nenhum! Todos estes são representantes do “sadismo civilizado”.
Na disjuntiva de Rosa Luxemburgo “socialismo ou barbárie” temos visto a barbárie vencer assustadoramente (isso também se deve ao burocratismo e à miséria teórica e política da “esquerda”). O capitalismo em degeneração, em razão de suas crises permanentes, não pode deixar de cultivar o sadismo e o irracionalismo. Ou seja, está havendo uma institucionalização do que é sádico e do que é irracional, vendidos para o senso comum como “a civilização”! A luta revolucionária e socialista não pode deixar de se utilizar dos métodos psicanalíticos no sentido de fazer submergir estes verdadeiros monstros que são um dos principais bastiões do sistema econômico.
A luta política sem esta compreensão se torna inglória e até mesmo catastrófica. É a partir destes conflitos psicológicos sádicos e perversos que a burguesia consegue impor seus raciocínios políticos irracionais e angariar apoio das amplas massas (inclusive para projetos nazifascistas) no sentido de sustentar seu sistema em elevado nível de barbárie. Tudo fica invertido na cabeça dos sádicos. Assim, com extrema facilidade a burguesia passa do banco dos réus à condição de vítima. É uma fonte inesgotável de negação e de tergiversação sobre os problemas criados pelo seu sistema econômico.
Vemos, então, ela sustentar inúmeras ditaduras pelo mundo, mas a única que importa é a “ditadura comunista”. A sua economia e a sua indústria bélica matam milhões pelo mundo em guerras, pela fome, por doenças básicas (que há décadas já tem cura) ou mesmo pelo estresse, depressão ou suicídio, mas importa mais a morte dos “milhões” do regime stalinista, que é indistintamente relacionado ao “comunismo”. O barbarismo masoquista, por outro lado, faz surgir ainda os “pobres de direita”, que, em sua grande maioria, tornam-se evangélicos, servindo de base para que os pastores canalizem, via masoquismo, a sua energia sexual para sustentar o sistema, para fazer os trabalhadores se auto escravizarem, se auto flagelarem, etc.; enquanto que o barbarismo sádico na classe média destila seu ódio contra os pobres e idolatra a burguesia. Tem a propensão a sempre combater quem desmascara o seu sadismo e a sua sede insaciável de ódio. Reivindicam o fascismo a qualquer palavra sobre socialismo, e quando desmascarados relativizam ou negam seu barbarismo se apegando nos “fragmentos” de realidade, num pensamento metafísico e irracional.

A psicanálise, a economia sexual e os complexos humanos

Olhando com novas lentes, podemos concluir que os bárbaros que “invadiram” o Império Romano poderiam ter sentimentos “humanos” muito maiores que os “civilizados romanos”, que em nome da sua civilização, cultuaram o barbarismo através da luta de gladiadores, das conquistas militares, da escravidão; práticas repletas de sadismo, estupro, mortes, assassinatos, etc. O “espírito civilizador romano” dominou as civilizações e impérios ocidentais. Junto com ele, foi transmitido, de geração à geração, a semente do barbarismo sádico. Hoje, a sociedade capitalista a erigiu em instituições e leis que justificam e canonizam a exploração como “progresso”.
Fazendo um paralelo com o complexo de Édipo, existem outros “complexos” que agora precisam ser trazidos a tona e debatidos, buscando suas mais profundas e ocultas raízes psicológicas. Por exemplo, o “complexo de Rômulo e Remo”, que traz o germe do assassinato de irmãos, o que redunda em inúmeras guerras civis; a cruel repressão sexual, que se traduz no “complexo” católico da pedofilia e na perversão japonesa de velhos obcecados com saias colegiais (sabe-se o quão reprimida é a sociedade japonesa). A sexualidade humana está doente e o resultado é o seu extravasamento por outros meios, como o sadismo, o sadomasoquismo, a perversão, a obsessão, dentre outros.
        A história primitiva, condensada em mitos, nos costumes folclóricos, nas práticas das tribos e nas ações aparentemente irracionais das sociedades atuais (como os movimentos religiosos, os regimes fascistas, etc.), não é acessível ao pensamento sociológico marxista. Este trabalho de análise só poderá ser fecundo se contar com o apoio indispensável da psicanálise e da economia sexual. A “temperatura” individual das neuroses e sadismos de massa só deverão encontrar um campo de ação adequado na sociedade socialista, que precisa, mais do que nunca, levar tais análises e reflexões em conta.

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