O
romance intitulado O homem que amava os
cachorros, escrito pelo cubano Leonardo Padura, retrata o assassinato de
Leon Trotsky pelas mãos do agente stalinista, o espanhol Ramón Mercader. Pela
amplidão do tema, a excelente reconstrução do contexto histórico e a qualidade
da narrativa, transformou-se num romance reconhecido e aclamado a nível
internacional. Faz jus, no geral, à figura de Leon Trotsky, reconstruindo parte
de sua luta; ao mesmo tempo em que nos aproxima do lado humano de seu assassino,
gerando um certo tipo de compaixão (um dos grandes embates pessoais do autor,
que se reflete na obra).
A mídia burguesa elogiou o romance, mas
extraiu dele muito pouco, geralmente focando na ideia de que ele foi escrito
sobre a “ruína de um sonho”, “o fim de uma utopia”, aproveitando-se para
salientar algumas críticas de Padura aos “regimes comunistas” ou mesmo a
Trotsky; quando não ficam em uma superficialidade assustadora. Querer, contudo,
que a mídia burguesa consiga empreender uma crítica literária real a um romance
cuja razão de ser é o assassinato de Trotsky – figura esta que traz consigo uma
obra profunda e fundamental sobre o socialismo e a URSS – é o mesmo que querer
que um dono de frigorífico faça uma crítica humana e vegetariana do consumo de
carne.
O assassinato de Trotsky tomou
proporções históricas, sendo comparável, pela brutalidade e deslealdade, ao de
Júlio César, Abraham Lincoln ou Mahatma Gandhi. A Folha de São Paulo elogiou o livro questionando como relatar uma
trama policial cujo desfecho era conhecido por todos? Ora, justamente porque o
motivo central não é o desfecho, mas sim os motivos que moveram o assassino.
Mais do que isso: por trás deste assassinato está a chave para a compreensão do
século XX. Este é, precisamente, o significado do romance de Padura. O enredo
policial foi apenas o fio condutor do método narrativo, que está a serviço de
desnudar um drama humano, seja do lado de Trotski, seja do lado de Mercader, ou
seja do lado de centenas de milhares de militantes trotskistas e stalinistas ao
longo do século XX.
1.
O escritor cubano constrói sua
narrativa intercalando epílogos e flashbacks,
reconstituindo o assassinato a partir de um fundo histórico e romanceando não
apenas a história do assassino, mas a sua própria. Segundo o autor, o contato
com Ramón Mercader ocorreu realmente em uma praia de Cuba, onde se sugere que ele
teria rogado veladamente para que alguém “escrevesse sua história” (pode ser
interpretado, também, como um pedido de compaixão). A partir da junção de três
histórias – a de Trotsky, a de Ramón e a do escritor fictício (o alter ego de Padura,
Iván Cardenas Maturell) –, Padura critica o regime cubano ao mesmo tempo em que se reaproxima da obra trotskista. Mas não o faz com um romantismo
acéfalo de “esquerda” ou um ódio aristocrático de “direita”. Nesse sentido, sua
ficção é mais real do que muitas análises ditas realistas e imparciais.
Padura, no entanto, se diz e se mostra
“neutro”, deixando transparecer em diversos trechos do livro doses homeopáticas
de niilismo. Isso, obviamente, se reflete em sua obra, tendo desdobramentos
positivos e negativos. À uma obra de arte – tal como um romance – cabe a
possibilidade de uma narrativa “imparcial”, utilizando-se, até mesmo, de
ingenuidade, dúvidas otimismos e pessimismos. Porém, em certos momentos, esta
“imparcialidade” cobra um preço político, contribuindo para o status quo. As críticas literárias burguesas
e seus entrevistadores geralmente nunca deixam de tirar proveito disso.
A grande força do romance, no entanto,
está no fato da releitura sobre o stalinismo e na crítica trotskista a ele. Ou
seja, a grande questão é o rumo a ser seguido pelo “socialismo”. É revelador
que a crítica literária burguesa nem toque no assunto, pois este é o principal
motivo do assassinato e a principal razão de ser do trotskismo. Como sempre faz,
a mídia burguesa tenta manter o debate nas raias de uma compreensão rasa sobre
Trotsky e a sua luta: ele teria sido um personagem ordinário que tinha como
principal finalidade disputar o poder e o perdeu (tendo, por isso mesmo, uma
“ascensão” e uma “queda”, terminando por ser assassinado). É bem provável que
estes “críticos literários” do jornalismo vigente não tenham lido uma única
linha do que o velho revolucionário escreveu. A obra de Padura, ao contrário
disso, não permanece na superficialidade da figura de Trotsky; reconhece seu
valor histórico, ainda que cometa erros e injustiças nesta valoração.
Por exemplo: a certa altura da obra demonstra
o assassinato como “coisa inútil” e atribui excessos à figura de Trotsky e
Lenin, muito além de Kronstadt,
embora não cite nenhum outro. Certamente este assassinato não foi nada inútil
para Stálin, pois dispendeu tempo e grande soma de dinheiro para planejar e
financiar os assassinos; tampouco não o foi para a história: deixou Stálin
livre para reinar até 1953, ano de sua morte, sem um crítico coerente, que corajosamente denunciou todas as suas
traições. A questão do medo no regime stalinista é amplamente desnudada por
Padura, que coloca o tema sob distintos holofotes. Trotsky foi praticamente o
único adversário político de Stalin sem medo, o que para época não era pouca
coisa.
Stalin, ao contrário, foi o melhor
presente que a burguesia poderia ter recebido. Justamente alcunhado por Trotsky
de “o coveiro da revolução”, minou as bases populares e revolucionárias do
poder soviético, assassinou toda a velha guarda da revolução e sabotou a
possibilidade de outros triunfos revolucionários pelo mundo. Até hoje o
socialismo é associado aos regimes construídos e mantidos por Stalin, que nada tem
a ver com o socialismo real, como magistralmente reconhecem Mercader e Kotov (o
mentor do assassino), anos depois do assassinato, nas páginas 544 e 545; enquanto
a mídia burguesa e seus “críticos” se esforçam para não reconhecer nada disso.
É justamente por isso que a “crítica literária” da grande mídia se torna parcial,
tendenciosa e rasa, sendo incapaz de extrair toda a riqueza da obra. Estes
trechos do livro talvez sejam o melhor reconhecimento de todo o trabalho e de
toda a luta de Trotsky.
Lenin e Trotsky não são santos (e nem
queriam ser). Sempre deixaram claro que eram seres humanos e, enquanto tal, cometeriam
erros. Porém, cometeram erros que
podem ter se desdobrado em excessos, mas não eram, de forma alguma, crimes políticos, tal como os praticados
por Stalin. O culto à personalidade de Lenin, feito pelo stalinismo, não teve
outra finalidade do que fortalecer o poder burocrático, uma vez que as ações de
Stalin significavam a negação do que preconizou Lenin, levando-o a um grau
absurdo de distorções. Stalin tinha total clareza de que fazia o exato oposto
do que supostamente glorificava em Lenin; tanto é assim que mandou matar toda a
velha guarda dos bolcheviques com os argumentos mais cínicos e absurdos em
“processos” reconhecidamente forjados. Trotsky foi assassinado justamente por
que tinha plena consciência disso e o denunciava a cada passo. A mídia
burguesa, ao tratar Trotsky da maneira descrita e o socialismo como sinônimo de
“regime stalinista”, continua cumprindo, com novas desculpas, o mesmo papel do
stalinismo, de distorcer, mentir e excluir aqueles que possuem consciência
plena sobre o que foi a URSS deste debate, deixando-os restrito a um gueto
político. Se é certo que o leninismo propõe um centralismo democrático dentro
do movimento comunista, é muito mais certo que o centralismo proposto por Stalin
é um distorção grosseira e criminosa, que nada tem a ver com o que escreveu
Lenin (baste ler uma única obra sua e comparar com o que dizia Stalin – ou com
o que ele pouco escreveu). O stalinismo exigia o centralismo baseado numa
estrita obediência cega e total (exigências nunca feitas por Lenin): isso
jamais poderá construir o socialismo, mas apenas novos tipos de fanatismos e,
portanto, de stalinismos. Parte da “esquerda”, dentro de sua miséria teórica e
filosófica assustadora, ainda continua cometendo esses erros, enquanto
cinicamente critica o stalinismo, que é parte de sua prática cotidiana.
A toda ação corresponde uma reação:
isso vale não apenas na física, mas na história também. Ao grande esforço
político de Lenin e Trotsky (além de centenas de milhares de outros militantes
e operários com consciência de classe) para dar uma direção justa e vitoriosa à
Revolução Russa de 1917, correspondeu o “esforço” de Stalin a partir de
inúmeros crimes, distorções, mentiras e assassinatos para subverter a mesma revolução
e conservar um poder totalmente descaracterizado. Foi a contra revolução
surgida do seio da própria revolução, sustentando-se numa tradição hierárquica
e burocrática russa não superada, além do atraso político, econômico e cultural
do país, somado às consequências nefastas do isolamento internacional (de fora,
imposto pelo imperialismo; e de dentro, a partir de uma opção política da
própria burocracia stalinista), que mantiveram o poder de Stalin.
2.
O romance constrói um grandioso cenário
internacional, muito fiel a todos os países que relata (México, Espanha,
França, Rússia, Noruega). Esta reconstrução reflete a vida de Trotsky, que foi,
por sua atuação política, um personagem internacional. Ramón Mercader era uma
figura desconhecida. Seu único “feito” foi assassinar Trotsky; e por “isso” foi
condecorado na URSS. Sabemos, em razão do seu “feito”, que ele lutou na guerra
civil espanhola e foi um “comunista convicto” (no sentido stalinista do termo),
mas também um personagem internacional, que viveu em muitos países. Dada a sua
missão de agente secreto, foi obrigado a assumir várias personalidades e a se
aproximar de diversas culturas, o que o levou a aprender várias línguas. A
narrativa, com todos os seus altos e baixos, consegue nos fazer viajar das
páginas do livro para os países descritos; e isto, sem dúvida, é um mérito do escritor.
A figura de Trotsky tende a possuir
valor histórico-universal – eis aí toda a sua força política e teórica, que
exigiu uma intervenção direta do “coveiro da revolução”. A de Ramón tende ao
subjetivo-pessoal. Estranhamente, como ocorre com pessoas deste tipo de
caráter, será o conflito de consciência após o assassinato que o fará romper
com esta lógica amesquinhadora, embora não saibamos ao certo se ele realmente
tenha modificado sua consciência.
Padura falou em entrevistas posteriores
que Trotsky tinha um caráter muito difícil e no fim terminava brigando com todo
mundo. Por certo, Trotsky é conhecido por sua vaidade e pelo seu temperamento
difícil, embora nem de longe possamos considerar isso como o central de sua
personalidade. Felizmente essa declaração infeliz de Padura está em contradição
com o Trotsky que ele nos apresenta em sua obra. Para o velho bolchevique,
quando assumimos um ideal e ele é sinceramente compreendido e considerado por
nós, como parte de uma disciplina livremente contratada, então, isso passa a
fazer parte de nossa própria personalidade. E foi assim que Trotsky agiu desde
a tomada do poder na Rússia, em 1917, até a sua morte em 1940. Não romper com
“aliados políticos” significaria condescender com as atrocidades stalinistas.
Se, por um lado, o temperamento de Trotsky tenha acelerado a ruptura com
personalidades e amigos pessoais, levando-o a um brutal isolamento; por outro,
esta ruptura se fazia necessária para manter a ética de suas posições
políticas, que em nenhum caso eram movidas por picuinhas pessoais.
Do ponto de vista psicológico o livro
faz uma análise muito mais profunda de Mercader do que de Trotsky. Como este
último é uma personalidade muito mais conhecida do que o primeiro, havendo
inúmeros trabalhos historiográficos a respeito, Padura não explorou
suficientemente as contradições psicanalíticas desta figura, embora tenha
demonstrado sua relação conflituosa com os filhos e amigos, todas elas pautadas
num profundo complexo de culpa (em parte real, em parte imaginário). Cabe
destacar o grande papel cumprido pela esposa de Trotsky, Natália Sedova, que
foi não apenas uma “fonte de ternura” (nas palavras do marido), mas,
certamente, quem o manteve de pé. Sem ela, certamente Trotsky não seria o que
foi e não teria resistido todo o tempo que resistiu. Sobre isso o livro é de
uma clareza meridiana. Tudo isso, no entanto, não impediu Trotsky de ter uma
relação extraconjugal com Frida Khalo, que feriu muito Natália e apenas não
seguiu, segundo o livro, por uma decisão da pintora.
Outra análise importante da
personalidade de Trotsky foi o que Padura, seguindo uma definição do secretário
van Heijenoort, descreveu como “o sopro de Trotsky na nuca”. Utilizando-se do
episódio em que Trotsky encontrou-se com André Breton no México para redigirem
juntos um manifesto sobre uma arte revolucionária e independente, no sentido de
combater o que estava sendo produzido e vendido “como arte” pela URSS, Padura
escreve que “nem todos conseguiam viver
com um único pensamento na cabeça e que a paixão de Liev Davidovith
[Trotsky] era inatingível” (página
370). Esta definição dada por Breton teria irritado muito o velho
revolucionário, beirando até mesmo uma ruptura com o pintor. Este “sopro de
Trotsky na nuca” se traduzia nas constantes cobranças de prazos e da realização
prática dos encaminhamentos, chegando, até mesmo, a muitos conflitos com o seu
filho Leon Sedov, que vivia em Paris e era um dos dirigentes da IV
Internacional na França.
3.
Mercader, por não ser uma figura
conhecida e, possivelmente, por ter tido contato direto com Padura, é
amplamente explorado do ponto de vista psicanalítico no romance, a começar pela
sua relação conflituosa com a mãe, Caridad. Militante comunista (na acepção
stalinista do termo) e uma mulher que refletia o seu meio social doentio,
repleto de morais retrógradas e de uma ampla repressão, foi abusada inúmeras vezes
pelo próprio marido, pai de Ramón, o que a jogou nos braços do movimento
comunista, sem uma reflexão mais profunda além da raiva. A sua compreensão do
“comunismo”, portanto, refletia o seu ódio e a sua necessidade de vingança e
destruição. Todos estes sentimentos conflituosos e dolorosos passaram para os
filhos; em especial, para Ramón, que também acabou tornando-se um “comunista”
no melhor estilo de Caridad. A compreensão de ambos partia principalmente da
necessidade de destruição – o que casava muito bem com as aspirações do
stalinismo – e era pautado por um seguidismo cego, amplamente cultivado pelos
soviéticos-stalinistas que “lutaram” na guerra civil espanhola.
Para eles, ser “comunista” era obedecer
às ordens de Moscou e não questionar nada, apenas executar. Foi percebendo
estas atribuições tão caras ao stalinismo que o agente Kotov (um dos asseclas
internacionais do stalinismo, de nome verdadeiro Pavel Anatolievich Sudoplatov)
recrutou Ramón para o plano de Stalin. Kotov – que, assim como Ramon, assume
vários nomes em suas diferentes missões e ao longo do romance – leva Mercader
para Moscou onde o “treina” para torna-lo um assassino. O que a União Soviética
tinha se tornado? Uma sociedade doentia, pautada pelo medo, empenhada em formar
agentes secretos e assassinos profissionais.
Mercader, então, sofre uma profunda
lavagem cerebral e a sua personalidade escorre definitivamente pela latrina,
transformando-se numa marionete da chantagem e do medo, embora um agente
secreto empenhado, competente e seduzido pela fama e pela glória. Há que se
destacar a sua decisão livremente contratada de assassinar Trotsky, a que se
somou o aparelho persuasivo soviético. A URSS e o movimento comunista
internacional dirigido por Stalin tinha atingido tal ponto de degeneração que
assassinar Trotsky significava uma glória! E foi a partir desta sedução que
Mercader assume suas novas identidades (ao que cabe perguntar se ele teria tido
uma real identidade?). Além da busca por fama, Mercader também queria chamar a
atenção de sua namorada, a militante comunista espanhola, guerrilheira na luta
contra Franco, conhecida por África de las Heras, sua única e verdadeira paixão
– que era uma “máquina de destruição”, segundo expressão do próprio Kotov.
Todos estes conflitos psicológicos e aspirações levaram Mercader a desempenhar
o seu nefasto papel histórico.
4.
O agente Kotov tornou-se o mentor de
Mercader, dando-lhe dinheiro, orientações políticas e amparo sentimental e
psicológico. O medo foi a sua principal arma (assim como foi a principal arma
do stalinismo). Envolveu-se com Caridad, tornando-se padrasto de Mercader. Esta
relação incestuosa, que durou cerca de 3 anos, entre preparações, passos
adiantes e para trás, resultaram no envolvimento da trotskista norte-americana,
Sylvia Ageloff, que foi usada por Mercader para chegar até Trotsky numa
verdadeira farsa amorosa que durou alguns anos.
O atentado do Partido Comunista
Mexicano contra Trotsky, cometido poucos meses antes do fatídico 20 de agosto
de 1940, não obteve sucesso, mas teve um efeito destrutivo sobre o velho
revolucionário, que parece ter se largado a própria sorte. Ramón, sob o
pseudônimo do belga Jacques Monard, se aproximou de Trotsky em alguns
encontros, até ser orientado por Kotov a lhe apresentar um artigo, no sentido
de ganhar sua atenção e maior intimidade. Por duas vezes Ramon Mercader pôde
ficar a sós com Trotsky, tendo a liberdade de vê-lo pelas costas por vários
minutos. Este “desleixo” de um combatente que viveu a maior parte da sua vida
na clandestinidade diante de um desconhecido demonstra, no mínimo, o seu
cansaço. Alguns meses antes ele já tinha escrito seu testamento político.
A segunda visita de Mercader foi fatal.
Munido de uma picareta escondida em um sobretudo, Mercader desferiu um golpe certeiro
e pelas costas, sintetizando a prática política do stalinismo: traiçoeira, sem
olhar o oponente de frente e sem o menor direito à defesa. Trotsky ainda
resistiu, dando um grito que iria marcar Ramón até o final dos seus dias e
mordendo a mão do seu assassino. Segundo o livro, um dos objetivos de Stalin
era que Mercader fosse morto pelos sentinelas e guardas que voluntariamente
acompanhavam Trotsky na sua casa fortificada em Coyocán, mas a pedido dele a
vida de Mercader foi poupada “para que ele falasse”.
No entanto, por 20 anos Mercader não
falou. Ele cumpriu sua pena, abaixo de tortura, sem dizer uma única palavra.
Teria Mercader resistido a esta repressão se ele lutasse realmente por um ideal
que valesse a pena sem o controle, o medo e as chantagens do stalinismo? Se
tivesse sido preso por Franco na guerra civil espanhola, por exemplo? São estes
tristes dilemas que fazem o gênero humano nos assustar com o seu lado sombrio.
Logo após ser libertado, Ramón Mercader foi à União Soviética, onde foi condecorado
como herói, não por Stalin (que já estava morto), mas por Kruschev. Isso
demonstra, na prática, que o mito da “desestalinização” não passou de uma
mentira muito bem contada.
5.
O livro de Padura faz uma dura crítica
ao regime cubano, herdeiro do stalinismo, embora não declaradamente. Não fala
nada sobre o bloqueio econômico mantido pelos EUA, o que empobrece um pouco a
complexidade da questão. A narração deixa claro que Trotsky não sofreu menos
censura em Cuba do que na URSS. A rebeldia e o caráter político da obra de
Padura, entretanto, está em reconstruir esta censura de Trotsky na ilha
caribenha, ainda que suas conclusões não se aproximem do trotskismo e possamos
ver até mesmo alguns traços niilistas em diversos trechos da obra. A crítica ao
regime cubano se estende à URSS da era Kruschev e Brejnev, onde um homem
estrangeiro, mas condecorado pelo governo, como Ramón Mercader (com uma
condecoração, no mínimo, questionável), tinha mais direitos que trabalhadores e
operários, que por medo, não expressavam seu descontentamento contra tal
atitude. Anos de stalinismo geraram uma submissão profunda e privilégios
inaceitáveis.
À este excelente exame do regime
stalinista feito por Padura, se somam grandes debates entre Mercader e Kotov,
que reconhecem o papel do medo e do cinismo na construção e na manutenção da
ordem social stalinista. Mesmo tirando grandes conclusões e indo além,
afirmando que para executarem a tarefa de assassinar Trotsky assumiram “um
ideal que não existia” e que “não lutavam pelo socialismo”, Padura não deixa de
se reconhecer como parte dos “derrotados históricos” e de mandar todos os
revolucionários, incluso Trotsky, para a “puta que pariu”. Se o escritor
reconhece que “explicou um pouco sobre como e porque a utopia se perverteu”, há
que reconhecer que havia força e um caminho na obra de Trotsky, e que parte
desta força e deste caminho fez e faz falta para Cuba e para os demais países
do mundo, todos subjugados pelo grande capital. Sabemos que o golpe contra a
“utopia” foi forte, mas o seu testemunho a partir desta obra pode ajudar a
esclarecer as suas causas mais profundas.
Já com o nome do seu segundo e último
pseudônimo no livro, Daniel Fonseca Ledesma, Padura expõe um novo desfecho
niilista, afirmando que Trotsky, Stalin e todos os que participaram do
movimento comunista, de forma indistinta, teriam ignorado “as pessoas em
geral”, dando a entender que em muitos casos sequer chegaram a pensar alguma
vez nelas. Conclui afirmando que ele e tantas outras pessoas não pediram para
“fazer parte dessa história” (ou seja: fazer parte da “história do
socialismo”).
Da parte de Stalin e dos stalinistas é
certo que não houve sensibilidade e sequer um único pensamento nas pessoas
comuns. Da parte de Trotski e das centenas de militantes da oposição de
esquerda torturados e mortos pelo aparato não devemos ter dúvidas de que não
apenas tinham, como colocaram as suas vidas em prol destas pessoas. Também
podemos responder a Padura dizendo que nós e tantas outras pessoas do mundo não
pedimos para fazer parte da história da sociedade capitalista, mas, no entanto,
fazemos, de forma totalmente arbitrária e contra a nossa vontade. Cabe a nós,
percebermos a “perversão da utopia”, os erros, excessos e crimes das
experiências revolucionárias do passado, para traçarmos uma linha pro futuro,
onde fique cada vez mais difícil para os perversos cumprirem seu papel
histórico de perverter, e abrir caminho para que o lado sensível dos seres
humanos – em síntese, “dos homens que amam os cachorros” – possa dar a tônica
do desenvolvimento histórico.
***
PS: uma declaração curiosa dada por
Padura a jornalistas contraria o que foi escrito nas últimas páginas do livro,
já assinado com o seu verdadeiro nome (no capítulo Nota muito agradecida). Nesta nota ele afirma que esteve na casa
museu de Leon Trotsky, em Coyoacán, no México, e que foi o seu amigo mexicano
Ramón Arencibia que o levou “para visitar
a casa onde viveu e morreu Leon Trotsky”. Desta visita “nasceu a ideia de escrever o romance”.
Em entrevista ao porta Sul21, publicada
no dia 13 de novembro de 2015, Padura afirmou o exato oposto. Nas suas
palavras: “A casa de Trótski no México
era um cenário fundamental e eu não pude conhecê-la. A altitude mexicana me
afeta sobremaneira, minha saúde não permite que eu vá até lá, mas consegui
fotografias de cada detalhe. Remontei a casa através de fotos”. Tudo isso
soa, no mínimo, estranho.
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