*Por Rafaela Lima
Nada escapa à morte degradante. Nas
histórias literárias, assim como na vida, é comum tratarmos desse tema. Em
algumas histórias é possível o renascimento das personagens, mas noutras, assim
como na realidade, não. Apesar da empatia estabelecida entre leitor e obra, se
a personagem morre dentro do contexto da história, o leitor não morre na
realidade junto. O que morre (o que poderia morrer no leitor) é algo simbólico,
mas que nem por isso deixa de ser sentido. O que Machado de Assis nos mostra é
a perda, mas como forma de renascimento de um Eu mais consciente das próprias
sombras e das coletivas – as que individualmente estão presentes em todos nós.
Ou, dito de outra forma e mais precisamente, o que Machado de Assis nos mostra
através da perda são as nossas sombras e daí, a partir da tomada de consciência
delas que podemos mudar de fato, embora nos contos que analisaremos, não se
transpareça essa função de “causa” e “efeito”, mas sim, função de “fato” e
“impacto” (o que está na mira aqui, é a função sentir). Desta forma,
analisaremos 4 contos desse autor: “Pai contra mãe”, “Pílades e Orestes”, “A
causa secreta” e “A cartomante”. Todos estes têm em comum a morte como fator
marcante e por isso desenvolveremos as aproximações e os afastamentos entre as
histórias seguindo esse fio condutor.
Em “Pai contra mãe” temos o acúmulo
de três situações que são caras a sociedade: a escravidão, a pobreza e o
aborto. É um dos únicos textos em que Machado fala abertamente sobre a
escravidão. Pode se dizer que uma parte de quem lê morre junto ao feto abortado
da mãe escrava. Há a empatia em relação à morte simbólica da mulher, que ocorre
diante da dupla violência brutal: desde sua captura até a agressão feita pelo
seu senhor – que culmina no aborto – e o aborto em si. Simbolicamente, temos,
nesse caso, a morte da vontade, da liberdade, da possibilidade de ser dona de
si – desde o momento da captura traumática dela por Cândido Neves, homem branco
e pobre – e o que toma esse lugar é o sentimento da
nossa própria incapacidade de defesa, nossa vulnerabilidade e o sentimento de
injustiça frente ao mundo em que vivemos. A nossa “criança interior” morre,
assim como a criança dessa mãe. E, por isso, a imagem criada é a de um aborto,
pois a verdadeira morte é a covardia contra a inocência. E, assim, morremos juntos. Nos fragmentamos pelo laço de identificação
gerado, e isso, não apenas neste, mas, também, nos próximos contos.
Já, no conto “Pílades e Orestes”, a questão não é apenas sobre o que morre, o que também aparece evidente é o estremecimento na relação de amizade de Quintanilha e Gonçalves – quando da paixão de Quintanilha por sua prima-segunda e a confissão disso ao amigo, que empalideceu no mesmo instante – cujo motivo se esconde no não-dito. A circunstância narrada é passível da interpretação de que havia entre ambos trocas homoafetivas – essa que seguiremos. (Aqui, assim como nos próximos dois contos, há uma situação de desejo proibido que influi no transcorrer da história). Então, Quintanilha assombrado desconfia que o amigo goste da mesma mulher e arranja o casamento para eles (cedendo a sua vontade inicial). Nesta parte conseguimos perceber a complexidade dessa relação. A expressão do mal entendido emocional pode ter se dado no seguinte diálogo:
“-Entendo, disse Quintanilha subitamente; ela será tua.–Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou suas razões de embargo.”
No fim, Quintanilha faz o testamento
dando a sua herança ao melhor amigo. Até que um dia após o casal ter tido dois
filhos, o padrinho das crianças morre com uma bala “revoltosa".
Aparentemente algo acidental, mas o fato se demonstra no final indiferente ao
amigo. Quintanilha se apresenta como o amigo fiel e sempre colaborativo,
nutrindo o laço de ambos, às vezes até de forma subserviente. A indiferença que
Gonçalves teve quanto a sua morte indica o seu desapontamento por ter tido que
morrer em vida ao se casar com a prima dele, não podendo confessar o sentimento
ao amigo. A infelicidade pode ter feito de seu peito abrigo por longa
temporada. O casamento foi a morte da satisfação dos impulsos de vida tanto
pela abnegação de Quintanilha ao desistir de Camila, quanto de Gonçalves por
ter se casado com ela, mesmo que pudesse estar desejando-o. Tudo isso por
consequência de um mal estar social causado pela repressão da homossexualidade.
Essas interações até hoje ficam, por vezes, no não-dito.
Em “A cartomante” o desejo e a morte
mais uma vez são colocados em foco. Dessa vez, a traição de Rita, esposa de Vilela,
com seu melhor amigo (Camilo), resultou em mais uma tragédia. Primeiro, é importante abordar que
o desejo dos amantes atesta contra a visão romântica de casamento perfeito.
Segundo, é a espontaneidade das relações que morre, assim como o romantismo que
existiu entre os amantes. Quanto ao momento de tensão, por Camilo não saber se
Vilela havia descoberto o seu caso, o rapaz, assim como Rita, anteriormente,
consultou uma cartomante que ao tentar alegrar o rapaz o mandou direto para os
braços da morte. Camilo ia ao encontro de Vilela que o foi solicitado, mas ao
chegar repara no corpo morto de Rita e logo em seguida é morto também. O
desejo, a pulsão de vida, é
derrotado/morto pelas pulsões mais sombrias do ser humano. O sentimento de
vingança pelo sentimento de posse destrói um amor espontâneo e belo. Mais uma
vez o espelho das virtudes é quebrado e resta amostra apenas os ombros nus de
um ser humano selvagem. A cartomante parece que apenas nutriu ilusões. A
esperança morreu no final junto ao casal.
O último conto é “A causa secreta''.
Logo no primeiro parágrafo o escritor nos revela que os três personagens já
estão mortos e enterrados. No entanto, fisicamente, é apenas Maria Luíza que
falece de tísica. Nessa história entramos em contato com as ironias do
triângulo amoroso irrealizado, pois Garcia havia se apaixonado por Maria Luiza
que é casada com Fortunato, um homem muito frio, e no entanto nunca se
declarou. O enfoque nesse texto é, certamente, a crueldade humana por simples
vaidade. Os impulsos sádicos e de morte ganham um pedestal. A cena mais
estarrecedora se dá ao final quando a mulher morre de doença e Garcia chora a
sua morte junto ao cadáver ,enquanto Fortunato olha a cena com profundos prazer
e felicidade. Há, aqui, exploração do cruel como uma patologia, ou seja, de um
ser humano sem capacidade de empatia, com uma profunda frieza emocional, que
sente prazer em ver dor e sofrimento. Os aspectos doentios são expostos
novamente, e um mundo de possibilidades
e a esperança (representados por Maria Luísa), nesse caso, foram senão as
únicas, as primeiras a morrer.
Em suma, tivemos no primeiro conto a
captura da mãe que simboliza a morte do direito de escolha e perda do filho que
representa a morte da criança interior dela, a morte simbólica dela mesma em
última análise. No segundo, o casamento entre Gonçalves e Camila foi a morte
para ele e para Quintanilha, e diante disso a morte real do segundo, já era,
para o primeiro indiferente. Nesses dois primeiros, temos o que parece ser uma
crítica social de Machado à sua época. O terceiro conto mostra,
simbolicamente, a vingança destruindo a
espontaneidade e a paixão. E no quarto
conto temos uma demonstração da crueldade e do sadismo por vaidade própria. Ou
seja, a maldade pela maldade – a doença.
Elementos que em maior ou menor proporção todos temos mas que sempre conduzem, nessas histórias a tragédia, elevados à máxima potência para que possamos rever as ideias: pois identificar fora de nós é mais fácil do que reconhecer em nós mesmos. Portanto o que une esses quatro contos é a morte, tanto em sua forma literal quanto na simbólica. Junto à morte de personagens – por causa da identificação que temos a partir das características que eles têm ou expressam no contexto – temos a morte de ideais. Nesse sentido, a morte na literatura nos degrada: deteriora a personalidade colocando em cheque a forma como enxergamos a vida. A deteriora tal como a própria natureza degrada a matéria. Dessa forma, Machado de Assis ao destruir os ideais elevados, faz sobressair o realismo e a crueza dissolvendo as nossas ilusões, para que consigamos olhar para os aspectos sombrios: é um chamado a revisitação dos porões da alma trancados por nós mesmos.
Referências:
SILVA, J. W. da. Pílades e Orestes: o homoerotismo sob o véu da amizade romântica. 2018. 40f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras)- Universidade Estadual da Paraíba, Guarabira, 2018. >http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/123456789/17709<.
MORICONI, Italo. Os cem melhores contos brasileiros do século; Rio de Janeiro: Editora Objetiva LTDA, 2000.
JUNG, Carl Gustav (org.). O homem e seus símbolos. 2ª edição . ed. [S. l.]: Harper Collins, 2016. 448 p.
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