O blog Consciência Proletária resgata e publica algumas das colunas O caos escritas pelo comunista, militante independente, cronista e cineasta italiano, Paolo Pasolini, ao jornal semanal O tempo, publicadas entre os anos de 1968 e 1970.
Tendo por esses dias experimentado a presença da multidão (em Zefferana, na Sicília, havia uma atmosfera de linchamento), ocorreu-me nauralmente responder de imediato a uma carta, assinada por Massimo Baldino, que me faz perguntas precisamente sobre a multidão (tema de sua tese de formatura). As perguntas são as seguintes:
1) Como definiria o fenômeno social "multidão"? Qual é a relação que intercorre entre esse fenômeno e o fenômeno "público "?
2) Qual é o seu juízo global sobre a multidão? A multidão é sempre organizada? Tem chefes? A multidão é sempre organizada? O indivíduo, na multidão, sofre transformações?
3) Já fez parte de uma multidão? Já a observou como espectador? O que mais o impressionou?
4) O que pensa do comportamento das mulheres na multidão?
E eis as minhas respostas:
1) a multidão é, antes de mais nada, um fenômeno urbano. A primeira multidão, acredito, ocorreu em Alepo, que é a cidade mais antiga (ou seja, o mercado mais antigo) do mundo. Por isso, a primeira característica da multidão é a de não estar só, mas de se mesclar com sua mercadoria: objetos de troca, de mercado e, hoje, de consumo. A segunda característica é a de ser um "grande número", mas não ser "massa": com efeito, trata-se de um grande número de indivíduos, enquanto estão presentes em carne e osso. A terceira característica é a de ter, por vezes, sentimentos comuns — reuniões, manifestações casuais, linchamento, etc. —, que são porém uma soma quantitativa e não sintética (e, portanto, abstrata) de sentimentos singulares.
O público do cinema é "massa"; com efeito, ele só é representável nas estatísticas ou nas prestações de contas, e obedece a regras reativas médias, identificadas por abstração. Ao contrário, o público do teatro é "multidão", porque cai sob o domínio da percepção dos sentidos, obedece a regras reativas concretas (diria mesmo: físicas). Por isso, o cinema pode ser medium de massa; o teatro, não, jamais, ainda que se dirigisse a "multidões" enormes.
2) Não se pode formular um juízo sobre a multidão: ela é, por sua natureza, algo ontológico, e, portanto, há que ser aceita ou sentida, não julgada.
As multidões não são úteis: existem.
São organizadas pela necessidade que as forma: por exemplo, na antiga Alepo, o mercado; hoje, a saída da escola ou da fábrica etc. Ou, em casos excepcionais, quando as multidões são guiadas por um sentimento comum — por exemplo, o linchamento —, é esse sentimento que as organiza: e, portanto, seria melhor dizer "que as estrutura".
Nesses últimos casos referidos (excepcionais), pode haver chefes, mas inteiramente extemporâneos, como é evidente. Se houver chefes não extemporâneos, eles terão sido evidentemente gerados fora da multidão, anteriormente a ela: digamos, na sede de um partido, numa igreja etc.
As características dos chefes extemporâneo são as de possuir uma excepcional capacidade de vivenciar sentimentos comuns: ou seja, de ser uma exata mistura de patologia e mediocridade.
As transformações que um indivíduo sofre numa multidão são, evidentemente, profundas: e essa é a pergunta que exigiria maior espaço e tempo. Portanto, limito-me a dizer que, em minha opinião, o homem no meio da multidão sofre o mesmo processo regressivo que sofre em certos sonhos interpretados segundo a psicanálise de Jung.
3) Certa feita, em 1937 (me parece), quando Vitório Emanuel III visitou Bolonha, eu "fazia parte" da multidão que se agrupara na Praça de São Petrônio para homenageá-lo. Tive uma tão terrível claustrofobia que, a partir de então, não quis mais "fazer parte" de uma multidão. Algumas vezes, acontece-me ficar no meio de uma, o que é diferente. Por exemplo: no tráfego. Ou num mercado, como o próximo de Kano, na Nigéria do Norte (que devia ser idêntico ao da antiga Alepo): mas, nesses casos, sinto-me inteiramente estranho, um puro observador.
Outras multidões que observo — porque já não posso mais fazer verdadeiramente parte delas — são as multidões dos estádios, numa partida de futebol. A única observação que me ocorreu fazer sobre tais multidões, enquanto multidões, é que as de 1969 são idênticas às de 1939.
4) As características de uma mulher numa multidão são análogas às que descrevi falando dos eventuais "chefes extemporâneos". Aliás, diria mesmo que, nas multidões, as mulheres são sempre, via de regra, chefes potenciais.
Nº42, ano XXXI, 18 de outubro de 1969.
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