segunda-feira, 25 de abril de 2022

O Anti-imperialismo na era da Rivalidade das Grandes Potências - RCIT

Os Fatores por trás da Aceleração da Rivalidade entre os EUA, a China, a Rússia, a UE e o Japão

Uma crítica da análise da esquerda e um esboço da perspectiva marxista


Autor: Michael Pröbsting, Secretário Internacional da Corrente Comunista Revolucionária Internacional (CCRI - RCIT, Revolutionary Communist International Tendency), janeiro de 2019 www.thecommunists.net

Tradutor: Joao Evangelista



Introdução do livro

 

Um dos maiores problemas do nosso tempo é a crescente rivalidade entre as Grandes Potências imperialistas - os EUA, a China, a UE, a Rússia e o Japão. Então, as disputas diplomáticas, as sanções, as guerras comerciais, as tensões militares e, em última análise, as grandes guerras entre essas Grandes Potências são características marcantes do período histórico que se aproxima. A iminente Guerra Global do Comércio entre os EUA e a China, as tensões no Mar do Sul da China, as sanções entre o Ocidente e a Rússia - tudo isso demonstra a atualidade maior da questão da rivalidade entre as Grandes Potências.


Estes desenvolvimentos estão intimamente relacionados com a crescente agressão das Grandes Potências contra os povos oprimidos - um fenômeno que tem massivamente se acelerado desde 2001 sob o disfarce da "Guerra ao Terror".


Por estas razões, sempre enfatizamos a importância crucial de compreender a natureza do sistema mundial imperialista. Sem essa compreensão da teoria marxista na época moderna, é impossível reconhecer o caráter imperialista das Grandes Potências. Esta é uma questão especialmente urgente, dado o surgimento de novas potências imperialistas - China e Rússia - que estão a desafiar os antigos senhores da antiga ordem imperialista mundial (os EUA, como hegemônico, e a UE e o Japão como potências aliadas).


Consequentemente, uma correta compreensão teórica das principais contradições do capitalismo mundial é o pré-requisito para os socialistas adotarem uma posição anti-imperialista inequívoca - uma das tarefas mais importantes para os marxistas hoje, em especial para aqueles que atuam no coração da besta fera imperialista.


Tal programa marxista de luta anti-imperialista dentro dos próprios países imperialistas tornou-se conhecido como Derrotismo, ou, para ser mais preciso, como Derrotismo Revolucionário. Este programa significa, resumindo-o numa fórmula simples, rejeitar qualquer tipo de apoio a toda e qualquer Grande Potência imperialista, apoiar todas as lutas de libertação contra qualquer uma dessas potências e utilizar todas as dificuldades e crises para fazer avançar a luta de classes para derrotar a classe dominante imperialista em todos os países. Nossa organização, a Corrente Comunista Revolucionária Internacional (CCRI), publicou recentemente um documento substancial sobre esta questão ("Teses sobre Derrotismo Revolucionário em Estados Imperialistas"). Este documento programático é republicado aqui como um apêndice. [1]


O presente livro é basicamente estruturado em quatro partes principais. Na primeira parte, lidamos com várias características do imperialismo que são relevantes para o nosso tópico, com foco na rivalidade entre as Grandes Potências. Portanto, não é uma análise abrangente de todos os aspectos do imperialismo, mas se concentra em alguns deles. Nós nos permitimos tal procedimento também porque já lidamos com numerosas questões do imperialismo atual em outros livros e panfletos da CCRI. [2]


Na segunda parte, discutimos a análise da rivalidade entre as Grandes Potências, como foi elaborada por vários partidos e organizações de esquerda. Ao criticar a posição deles, defendemos e aprimoramos nossos argumentos. Neste processo, apresentamos uma série de fatos históricos e reais. Também comparamos os argumentos dessas organizações de esquerda com a teoria marxista sobre o imperialismo, tal como foi elaborada por Lênin e Trotsky.


A terceira parte elabora os componentes essenciais do programa do derrotismo - sobre as questões de conflitos entre as Grandes Potências, assim como entre os estados imperialistas e os países semicoloniais, respectivamente, as minorias nacionais e os migrantes. Nós explicamos o que os clássicos marxistas disseram sobre esse assunto e por que ele é relevante hoje. Além disso, também analisamos quais mudanças políticas e sociais ocorreram desde os tempos de Lênin e Trotsky e quais são suas consequências para o programa do derrotismo.


Na quarta parte do presente trabalho, discutimos sobre a abordagem de várias organizações de esquerda sobre a questão da luta anti-imperialista. Mais uma vez, submetemos suas posições a uma crítica do ponto de vista marxista e elaboramos nossos argumentos com numerosos exemplos. Demonstramos que várias forças, embora afirmem ter uma posição anti-imperialista, na prática estão do lado de uma ou outra Grande Potência. Em outras palavras, eles não são anti-imperialistas, mas sim social-imperialistas abertos ou disfarçados.


Nós encerramos o livro com um resumo das tarefas dos marxistas na luta contra a guerra imperialista e as agressões.


Finalmente, um “aviso”: este livro não é escrito do ponto de vista “neutro”. Não é indiferente às crescentes rivalidades entre as Grandes Potências e a agressão imperialista contra os povos oprimidos. É preciso uma posição - uma posição contra todas as Grandes Potências no sentido de apoiar todas as lutas de libertação dos trabalhadores e oprimidos! Por isso, polemizamos contra as organizações de esquerda que, a nosso ver, fracassam em tomar uma posição anti-imperialista. Portanto, este trabalho não é escrito com o propósito de se tornar um sucesso comercial, mas sim como uma diretriz para os ativistas anti-imperialistas. Já existem milhares de best-sellers no mercado. O que é necessário é uma autêntica literatura marxista! Lênin gostava de dizer que "sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário" [3]. Essa verdade intrínseca não perdeu sua importância.


Estamos plenamente conscientes de que as questões discutidas neste trabalho nem sempre são fáceis de entender. Isto é especialmente verdade quando estamos a discutir fenômenos que surgiram recentemente (como, por exemplo, o surgimento da China e da Rússia como Grandes Potências imperialistas). Muitos socialistas podem preferir manter a velha fórmula tendo a ideia de que apenas os EUA, a Europa Ocidental e o Japão são estados imperialistas. No entanto, consideramos esse “conservadorismo” como altamente perigoso, uma vez que se perde sobre as mudanças cruciais na política mundial na última década. A observação de Trotsky sobre a importância de manter a análise teórica em sintonia com os desenvolvimentos objetivos permanece plenamente válida.


“A vasta importância prática de uma orientação teórica correta é manifestada de forma mais impressionante em um período de conflito social agudo de rápidas mudanças políticas, de mudanças abruptas na situação. Nesses períodos, concepções políticas e generalizações são rapidamente usadas e requerem uma substituição completa (o que é mais fácil) ou sua concretização, precisão ou retificação parcial (o que é mais difícil). É justamente nesses períodos que todo tipo de situações e combinações transitórias e intermediárias surgem, por motivo de necessidade, que perturbam os padrões costumeiros e exigem duplamente uma atenção teórica sustentada. Em suma, se no período pacífico e “orgânico” (antes da guerra) ainda se pudesse viver da receita de algumas abstrações prontas, em nosso tempo, cada novo evento traz força à lei mais importante da dialética: A verdade é sempre concreta.” [4]


Esperamos que este livro ajude a esclarecer as complexas questões teóricas e táticas relacionadas às crescentes rivalidades entre as Grandes Potências. Terá cumprido o seu propósito se ajudar os ativistas e todos os interessados em compreender estas questões para obter uma compreensão mais abrangente de uma das questões mais importantes do nosso tempo e extrair as conclusões necessárias a partir disso.


Finalmente, este livro beneficiou-se de discussões coletivas que o autor teve com vários companheiros na CCRI. Em especial, quero agradecer à camarada Nina Gunić, com quem tenho o privilégio de desenvolver ideias e argumentos conjuntos desde há anos e que desempenha um papel central na elaboração do quadro programático da nossa teoria. Além disso, quero expressar minha gratidão ao camarada Petr Sedov, que ajudou na elaboração deste livro não apenas com uma série de comentários perspicazes, mas também com a tradução de muitas citações de fontes de língua russa.


Leia o livro na íntegra no link:

https://www.thecommunists.net/home/portugu%C3%AAs/livro-o-anti-imperialismo-na-era-da-rivalidade-das-grandes-potencias-conteudo/ 



Notas de rodapé

1) Veja também no nosso website: https://www.thecommunists.net/home/portugu%C3%AAs/teses-sobre-o-derrotismo-revolucionario-nos-estados-imperialistas/

2) Para referências da literatura da CCRI nesses temas veja relevantes capítulos neste panfleto.

3) in: LCW Vol. 5, p. 369. Muitos trabalhos de Marx, Engels, Lenin, Trotsky e outros clássicos Marxistas estão publicados no website Marxist Internet Archivewww.marxists.org, que é uma fonte valiosa para qualquer pessoa interessada no Marxismo.

4) Leon Trotsky: Bonapartismo e Fascismo (July 1934), in: Trotsky Writings 1934-35, p. 35

terça-feira, 19 de abril de 2022

Balanço do Conselho Escolar do Alcides Cunha (gestão 2019-2021)

Parte fundamental dos interesses deste blog está em tentar encontrar um caminho justo para a educação pública. Muitas das reflexões expressas neste balanço representam tais tentativas. Ao término do texto abaixo se encontram links de artigos que trazem as visões já publicadas sobre os problemas fundamentais da escola pública brasileira.


O que fizemos enquanto Conselho Escolar?

A chapa Democracia Real, eleita ao Conselho Escolar do Alcides Cunha para os anos de 2019 a 2022, apresenta à comunidade um breve balanço de sua gestão:
1) Considerando que partimos de uma realidade de baixa participação de pais, estudantes e educadores, onde impera uma cultura de descaso geral e de formalismos vindos desde a SEDUC, a parte ativa do nosso Conselho Escolar lutou brava e solitariamente contra essa cultura, que é uma das principais bases dos problemas da educação pública. Lutamos pela democratização das decisões da escola e pela ampla participação da comunidade. Enfrentamos a resistência dos setores interessados em manter o funcionamento desta cultura, que de alguma forma lhes beneficiava. Além disso, grande parte da nossa gestão foi marcada pelas restrições da pandemia de Covid-19.
2) O nosso projeto de escola se caracterizava por tentar concretizar o básico, expresso na lei de gestão democrática; isto é: democratizar as decisões pedagógicas, administrativas e financeiras através da instância correta, o Conselho Escolar (tais ações estão disponíveis para serem consultadas nas postagens da Voz do Alcides no período referente a nossa gestão) e assembleias da comunidade. A maior parte das reuniões do Conselho Escolar foram totalmente abertas a qualquer interessado. Este projeto singelo se enfrentou com a prática e a compreensão daqueles que aceitam ou querem o formalismo burocrático, de apenas assinar papéis e de confirmar o que já havia sido decidido por poucos (incluso o que vem imposto de cima, via SEDUC e CRE). Isto é, a manutenção da cultura de baixa participação vigente na maioria das escolas públicas do Estado e do país.
3) Lutamos contra a pedagogia do "cada um por si", que é uma das expressões dessa cultura do descaso. Insistimos para que houvesse reuniões pedagógicas do Conselho Escolar e que fossem amplas, atingindo todos os segmentos e desenvolvendo real poder deliberativo sobre a supervisão e o corpo de professores. Apesar de nos esforçarmos bastante e com poucas pessoas, infelizmente não obtivemos sucesso neste campo, o que serve de alerta para a comunidade escolar (se ela tiver vontade e interesse em resolver este assunto importante); e fica como um ponto em aberto para futuras gestões do Conselho Escolar comprometidas com a comunidade.
4) Sobre as questões financeiras houveram alguns avanços importantes, como a abertura por parte da direção para as decisões envolvendo o dinheiro público que entra periodicamente. Foram realizadas 3 reuniões (algumas estão gravadas e disponíveis na Voz do Alcides) para debater onde investir as verbas destinadas à nossa escola. O problema maior neste caso foi a baixa participação dos segmentos, que não entenderam a importância de socializar e abrir estas decisões. Apesar disso, o resultado foi parcialmente positivo, aparecendo melhorias materiais em muitos espaços do colégio, como por exemplo: reformas, reconstruções, aquisições (ventiladores, data shows, etc.). Neste aspecto, começamos a mudar uma cultura há muito arraigada de apenas assinar decisões já tomadas, muitas vezes, apenas no âmbito da direção. Com o término desta gestão do conselho, a tendência predominante é que as medidas até aqui conseguidas, com bastante esforço e dedicação, acabem retrocedendo. Muito mais precisa ser feito nesse campo, por isso fica o exemplo para as futuras gestões da direção e do Conselho Escolar. Para esta boa prática seguir e se consolidar, vai depender da orientação política e social que a futura gestão do Conselho Escolar seguir e de como as futuras direções da escola a encarar.
5) Sabemos que existem muitos problemas nas instituições públicas brasileiras. Em alguns casos, se forma uma espécie de "má-fé". A tarefa de combater estes problemas não é apenas dos governos (que, como sabemos, nada fazem, já que essa cultura de baixa participação lhes beneficia), mas de todas as pessoas que possuem consciência de classe e a compreensão de que para a maioria absoluta da população brasileira os serviços públicos oferecidos por estas instituições são sua única alternativa. As "melhores intenções" não se concretizam se não se definem soluções institucionais adequadas para a sua implementação. Compreendemos que as próprias soluções para os problemas institucionais exigem a ampliação prévia do espaço democrático. Foi por isso que lutamos nessa última gestão.
6) Quando vemos a qualidade das sugestões referentes à educação brasileira, e as confrontamos com a realidade, percebemos uma certa "impotência institucional". Os governos e a grande mídia querem que pensemos assim, que não há saída, e muitos profissionais que atuam nessas instituições também se acomodam nestas condições de "impotência". Quando boas ideias e pessoas bem intencionadas e com poder formal (o que foi o caso do nosso Conselho) não conseguem resultados, é preciso avaliar de forma mais ampla os mecanismos de decisão e a dimensão institucional e pessoal do problema. Não há dúvida de que os grupos dominantes do nosso país, que dirigem os governos e as SEDUCs, são profundamente retrógrados e dificultam qualquer progresso real, bem como impedem, na prática, a democracia nessas instituições de base. Contudo, quando estamos diante de um consenso não debatido, que é agradável para o corpo dirigente do país, da SEDUC ou da própria escola, e, principalmente, quando os atores sociais que deveriam ser consultados permanentemente (como a comunidade escolar) não o são (ou são consultados de maneira "pró-forma"), estamos diante de um problema grave. Foi precisamente esta cultura que tentamos enfrentar de maneira decidida.
7) Sobre a questão administrativa da escola cabe refletirmos sobre alguns argumentos usados contra o atual Conselho Escolar. Durante muito tempo foi afirmado, erroneamente, que o nosso Conselho "apenas reclamava de tudo" e "não estava satisfeito com nada". Isso, como demonstramos em muitas reuniões, não tinha nada a ver com "reclamar", mas com o papel legal que qualquer Conselho Escolar deve cumprir. Nossas críticas nunca deixaram de reconhecer que houveram realizações positivas da direção da escola, nem que houve um relativo respeito "democrático" ao Conselho Escolar (dado que existem escolas em que as direções agem no sentido de impedir o seu funcionamento livre); porém, sempre deixamos evidente que nosso compromisso assumido com a comunidade na eleição de 2019 foi mudar a cultura antidemocrática e burocrática vigente desde a SEDUC até o chão da maioria das escolas públicas. Como afirmava nosso programa de campanha: nosso objetivo central era desenvolver democracia real! Além disso, nossas críticas eram feitas nos espaços correspondentes, nas instâncias corretas e sempre de forma construtiva, no sentido de mudar nossa escola para melhor. O que não avança, retrocede. E as críticas construtivas são fundamentais para avançar.
8) Nossa gestão deixou um exemplo, apesar de todos os problemas e incompreensões que enfrentamos. Darcy Ribeiro disse certa vez que a "crise da educação pública não é uma crise, mas um projeto político". Lutamos contra esse projeto, seja nas idas à SEDUC, nas greves, nos atos de rua, dando voz ao grêmio estudantil; seja na democratização do acesso da comunidade às decisões da escola. Tal "projeto de educação", nas palavras de Darcy Ribeiro, reforça e dá base a essa cultura de descaso que lutamos para mudar.
9) Não poderíamos deixar de registar neste breve balanço que tivemos uma "oposição" desleal com a chapa 2 que disputou o pleito de 2019 conosco. Não houve preocupação em apoiar nenhuma ação do Conselho Escolar, mas apenas exagerar as críticas e pessoalizá-las, baixando o nível geral da discussão. Dentro da lógica da cultura do descaso e burocrática que vigora, muitas pessoas confudem convenientemente "democracia" com a vitória de posições que refletem apenas os seus interesses pessoais. Por isso compreenderam a derrota da antiga direção da escola em 2015, que desviava dinheiro e era por natureza antidemocrática, tendo por resultado uma sindicância branda, como a possibilidade de ter uma vida tranquila, decidindo tudo de acordo com os interesses do segmento de professores, à revelia da comunidade, sem se preocupar com os interesses coletivos e mais gerais da própria escola pública. Infelizmente, dada a cultura de não-participação e descaso, às vezes este mesmo erro também ocorre dentro do próprio segmento de pais e alunos.
10) Por fim, deixamos registrados os problemas da nossa gestão no que tange a baixa participação do conjunto do Conselho Escolar eleito, onde apenas uma parcela sua funcionou ativamente. A cultura de "dar nomes" para fechar as chapas ainda é um problema sério e muitas pessoas estão acostumadas apenas a reclamar e não a trabalhar coletivamente nas instâncias correspondentes para a mudança da realidade. São reflexões que deixamos para que os futuros Conselhos Escolares possam agir mais coerentemente e sirvam de exemplo não apenas para os estudantes, mas para toda a comunidade que depende do bom funcionamento da nossa escola.


Leia mais textos sobre os problemas da educação pública já publicados por este blog:

segunda-feira, 11 de abril de 2022

A lei da selva na nossa categoria: a “reforma” do Ensino Médio e as consequências sobre as contratadas – ninguém solta a mão de ninguém?

Panfleto virtual escrito para a assembleia geral do CPERS ocorrida no dia 1º de abril de 2022 pelo coletivo Contratadas pela Efetivação – representada pelos setores mais precarizados da categoria do magistério público estadual do RS – e publicado originalmente na página Educadores Contratados do RS: https://www.facebook.com/educadorescontratadosdors


Qual o significado da palavra “colega”? Não deveria ser algo com um grande significado para nós, que nos levasse a cultivar um grande espírito de camaradagem, solidariedade e lealdade para com os colegas?
O que aconteceu com o lema de 2018 sobre “ninguém soltar a mão de ninguém”?
Que consequências tem para a luta da nossa categoria palavras vazias, que são desmentidas por uma prática onde uns são mais “colegas do que outros”?
Reparem a Assembleia Geral chamada para o dia 1º de abril: onde está a pauta para o setor mais precarizado da nossa categoria – cerca de 50%? Nada! Nenhuma vírgula!
A crise econômica jogada sobre a classe trabalhadora se intensifica. Nas escolas tem imperado a lei da selva, onde o mais forte esmaga o mais fraco – e tudo isso com a total conivência do CPERS, dos seus núcleos e de muitas direções de escola que diziam antes “ninguém solta a mão de ninguém” ou “somos todos colegas”, mas que agora lavam aos mãos e deixam imperar a lei do mais forte. Que consequências advirão disso? Quando vemos o que se passa nas escolas com a remoção de colegas contratadas – sem tentar o menor diálogo, apenas deixando rolar o “direito” do mais forte esmagar o mais fraco – e mesmo demissões, podemos constatar que a palavra “colega” ou “consciência de classe” não fazem o menor sentido dentro do CPERS.
A mentalidade de classe média, de benefício pessoal, se impõe a partir da letra fria da lei – que só vale em alguns casos e sempre pra prejudicar a parte mais fraca. Um sindicato – para receber esse nome honroso – deveria primar pela unidade da classe na prática, não nos discursos vazios. Os discursos de nomeados sem consciência de classe que atacam as contratadas com consciência de classe são inadmissíveis (e a conivência das diretorias do CPERS a esses ataques mais ainda)!
O debate, de baixo nível político e teórico, beira à psicose alucinatória: argumentos políticos, econômicos e teóricos extremamente embasados são desconsiderados para serem transformados em ataques pessoais e, em particular, para se levantar a mesma palavra de ordem de sempre: “concurso público”. Já falamos mil vezes – e até escrevemos uma tese ao Congresso do CPERS – que isso não pode resolver sozinho o problema: é preciso casar com palavras de ordem com consciência de classe e diversas reivindicações que unifique a categoria, criando e gerando outra mentalidade baseada na solidariedade de classe.
A conjuntura é a pior possível, pois o que nos espera é o despejo da crise sobre os ombros da classe trabalhadora. O atual sindicalismo do CPERS, que tolera a divisão entre nomeados e contratados, reforçando a mentalidade de classe média, não pode fazer frente a ela. A nossa atual situação miserável é o resultado desse sindicalismo – e o governo só pode agradecer.
Não haverá luta enquanto não vencermos este odioso sentimento mesquinho de imediatismo, de “direito” entendido como privilégio individual; e se não houver luta unificada, com uma política sindical correta, não haverá resistência...
Não podemos apenas esperar as próximas eleições para eleger o “menos pior”. Precisamos organizar a classe trabalhadora para questionar a estrutura de poder político e econômico.
O que a maioria das correntes do CPERS querem é que contratadas e contratados aceitem passivamente sua condição e a ditadura escravocrata da SEDUC e do governo, disseminando docilidade frente a situação de precarização, semeando terra arrasada!
Não somos contra o concurso público. A defesa apenas disso como “solução única” para o problema tem o significado, na prática, de compactuar com a continuidade da contratação “emergencial”. É preciso uma conjunção de reivindicações gerais e parciais, dentre as quais, misto de concurso público, efetivação e defesa do direito ao emprego, com muitas outras que surgirão no calor da luta e devemos estar atentos. Enfim, devemos tornar a contratação “emergencial” desprovida de sentido. A questão é, principalmente, abrir o sindicato às reivindicações dos setores precarizados, o que não acontece atualmente.
Além disso, quando o CPERS reivindica “concurso público” se lixa para as suas consequências: número total de vagas, garantir que as contratadas e os contratados sejam realmente levados em consideração, nem acompanha a sua formulação, aplicação e resultados. É por isso que essa reivindicação é tão vazia quanto as demais, deixando o setor mais precarizado da categoria largado à própria sorte.
***
Infelizmente vemos setores que se dizem pela efetivação, como MLS, PSTU-DL, CST-Psol, etc., defenderem praticamente a mesma posição da direção central (PT, PCdoB, PP; CUT e CTB). Então como construir um movimento forte pelo reajuste salarial para toda a categoria se ela está sofrendo uma das piores divisões internas dos últimos anos, com os “com direitos” esmagando os “sem direitos”?
Existem outras possibilidades além da remoção e demissão que um sindicato com consciência de classe poderia e deveria incentivar. Exemplos aconteceram e acontecem em escolas de Porto Alegre e Canoas, de colegas nomeados que negociaram com direções e contratados como ajeitar a situação. O CPERS, com o seu velho legalismo-burguês, não pode enfrentar essa situação, mas aprofundar o caos e a lei do mais forte, enquanto grita hipocritamente “ninguém solta a mão de ninguém”... desde que não seja um colega precarizado!
As “oposições”, ao invés de atacarem este estado de coisas, repetem envergonhadamente a política oficial. Até quando?
Outros temas não menos importantes:
I) Quem autorizou a direção central do CPERS a reajustar o desconto do sindicato? A maioria da categoria está insatisfeita com o sindicato e sabem que esse reajuste tem mais a ver com uma lógica empresarial do que com o retorno que ele dá aos seus associados. O “reajuste” salarial foi de cerca de 32%; e o do CPERS de mais de 100%! A situação é ainda pior para as contratadas, que tem um aumento no desconto, sem nenhum retorno na defesa das suas bandeiras sindicais – esta é a única “igualdade” que a burocracia sindical concede ao setor mais precarizado de sua própria categoria: a igualdade na mensalidade! Cabe perguntar: por que a direção central não trouxe para a assembleia geral o debate sobre um reajuste do desconto?
II) Esta assembleia geral é para “inglês ver”. Sua pauta é confusa e nada pode encaminhar frente ao caos de remoções e ameaças de demissões nas escolas. Um estudo prévio sobre o FUNDEB deveria ser feito, para se desencadear uma possível campanha com a finalidade de desmascarar os governos estadual e municipais, dado que com o ensino remoto ao longo da pandemia houve uma economia considerável destes recursos – como atesta estudo feito pelos companheiros do sindicato dos servidores municipais de Alvorada.

- Que as pautas das contratados e dos contratados sejam acolhidas e ouvidas pelo sindicato: abaixo a ditadura sindical contra os precarizados! Dar e ouvir a voz daqueles que não tem voz! Sem solucionar o problema de divisão entre nomeados e precarizados não teremos movimento sindical unificado!
- Por uma política classista e não patronal para a questão do contrato “emergencial”!

- Revogação imediata do "reajuste" do desconto da mensalidade do CPERS! 

domingo, 3 de abril de 2022

O que é ser cidadão? Um conceito, muitas facetas

 *Por Rafaela Lima



Este trabalho busca entender e explorar, a partir de entrevistas, os significados que são atribuídos ao termo cidadão. Foram entrevistados, para isso, três homens de semelhante perfil e a cada um deles foi feita a seguinte pergunta: O que é ser cidadão? Com o objetivo de perceber as semelhanças, diferenças, as aproximações e afastamentos entre as respostas dadas, faremos o exercício de análise dessas concepções à luz de suas dimensões políticas, humanísticas e filosóficas. Com isso, verificaremos que por mais que partamos da mesma indagação, as respostas entre si, são bem amplas e com diferentes abordagens/ênfases – todas igualmente enriquecedoras. A partir dessas percepções poderemos chegar em uma ideia mais sucinta do que expressa esse conceito.

 

O que é ser cidadão? Um conceito, muitas facetas.

 

Apresentando as entrevistas

 

Num primeiro momento, foi entrevistado um homem branco, heterossexual de 38 anos. Graduado em História pela PUCRS, é professor contratado da rede estadual de ensino público e militante independente de partidos, que constrói resistências políticas dentro do CPERS Sindicato:

 

Eu acho que ser cidadão deve nos remeter a Revolução Francesa de 1789, porque é um conceito que surgiu pela aquela época e havia um ideal de… de… de ser humano que seria a encarnação de “citoyen” que é o cidadão dentro da lógica francesa e que… significa ser uma pessoa atuante no ponto de vista político e social: que exige seus direitos, cumpre seus deveres, dá o exemplo – um habitante da pólis que cumpre, teoricamente com suas obrigações. Então, do ponto de vista mais genérico, era isso que se esperava que o cidadão ou “citoyen”, né, francês, fizesse/ representasse a partir da Revolução Francesa. Mas com o passar do tempo se viu que esse era um conceito um tanto abstrato e aí se… a partir do século dezenove, se… se colocou uma outra questão que seria: cidadania ou classe? (ou classe social né) é, então, ficou um pouco abstrato. Em termos resumidos, me parece que ser cidadão é ser atuante na sociedade. É tentar cumprir seus deveres e exigir os seus direitos, ser atuante em todas esferas quando julgar que tenha alguma coisa errada, fora da ordem, alguma injustiça, enfim…

Eu acho que o conceito de cidadania como eu falei antes se tornou muito abstrato e na realidade principalmente nos países periféricos do capitalismo, a cidadania se tornou um conceito vazio de significado, porque, na verdade, a população só tem deveres e praticamente não tem mais nenhum direito ou têm poucos direitos. E quando reivindica ou avança para além de algum limite imposto pela sociedade é reprimido, é caluniado, enfim. E o sociólogo brasileiro Jessé Souza escreveu um livro a respeito chamado “Subcidadania brasileira”*, eu acho que define bem. A cidadania hoje é uma, uma… um conceito desprovido de concretude porque a sociedade como a gente conhece hoje, a sociedade capitalista, no caso, ela é um tanto… ela subtraiu a cidadania da maior parte dos seus membros.

 

Após essa primeira entrevista, foi questionado um homem branco (mestiço) de 26 anos, heterossexual com ensino superior incompleto, sendo seu ingresso anterior no curso de Pedagogia, pela UFPel, onde permaneceu por um ano e meio. Nascido em Porto Alegre, socializado dos 4 aos 10 anos em Salvador, ele entende “O que é ser cidadão” da seguinte forma:


Então, pra mim, eu fui pesquisar né, o que queria dizer literalmente a palavra cidadão e fala que quer dizer o… habitante de um … Estado que tem… de um Estado/cidade, que tem direito a voto, que usufrui dos direitos pautados na lei né. É… então, mas pra mim o cidadão, assim, ele é muito mais do que cumprir um papel né, esse papel de cumprir a lei, ele é usar o bom senso para a comunhão da cidade poder ser gerada de maneira mais eficaz, né. É… que a cidade possa evoluir de uma maneira que as pessoas ganhem com isso, saiam ganhando com isso, tipo: ninguém ganhe mais do que ninguém. É usar o bom senso, a empatia. Isso pra mim é o cidadão íntegro.

Eu não quis dizer “ninguém ganhe mais que ninguém”, né, eu quis dizer: ninguém pisa em cima de ninguém, sabe? As pessoas, elas, tão ganhando algumas mais que as outras, mas que o básico disposto pra todo mundo. E.. um cidadão íntegro, ao meu ver, ele vive de acordo com isso, tipo: buscando essa equidade. E a ideia de “ninguém ganha mais do que ninguém” é ninguém ganhar mais oportunidade do que ninguém, só por ter mais influência, mais dinheiro… (Grifos nossos).

 

O último entrevistado, é também um homem branco (mestiço), de classe média, com igualmente 26 anos, bissexual, nascido e crescido em Salvador, que cursa LLCER Anglais (Línguas, Literaturas, Civilizações Estrangeiras e Regionais Inglês) na faculdade Rennes 2 Université Alta Bretanha, em Rennes, na França. Esse, quando perguntado, respondeu:

–“Para mim, cidadão, antes de mais nada, para poder pensar[rrr] a  ideia de ser cidadão, é necessário pensar[rrr] no século vinte e um… hã… uma série de problemáticas, uma série de… de toda maneira, uma série de pontos de vista… (Éinn). Inicialmente, penso do ponto de vista sociológico, né… da consciência, da necessidade de um cidadão ser consciente das questões sociológicas, dos grupos sociais que se encontram dentro da sociedade, dos grupos, das chamadas minorias e das… das questões que estão ligadas a termos de injustiça dentro da sociologia, as, as… por exemplo, as disparidades entre um bairro rico e bairro pobre, como na cidade de São Paulo, estando eles colados um ao outro. Em seguida, há a necessidade, ao meu ver, de pensar a cidadania também como uma questão de… de ser… Vamos assim dizer: "paisagística", né. Digo isso no sentido de que, ser cidadão é também poder ter o direito de poder incrementar, de poder criar novas coisas para a cidade, sem que necessariamente você seja um profissional da área da arquitetura, ou que seja, eu quero dizer: paisagístico, eu quero dizer a capacidade de poder inovar a dimensão paisagística. Então eu acredito que tenha essa questão… Vou, vou continuar já para a próxima etapa:

Depois da perspectiva, vamos dizer, entre aspas: "paisagística e arquitetônica" aonde eu queria só abrir um parênteses e dar exemplo: (seria por exemplo, a possibilidade de você criar, de você desenvolver projetos de muros, de muros sustentáveis, você pudesse plantar comida, você pudesse plantar frutas, ou não frutas, mas legumes, né… É… tipo: cheiro verde, coisas comestíveis nos muros de prédios, de forma que pudesse ter comida pra todo mundo né. Por exemplo, se você quisesse plantar uma árvore frutífera no meio da cidade, que você pudesse tipo, mandar uma requisição pra cidade podendo dizer: “Pôh! Eu quero plantar tal árvore aqui” e você poder fazer isso… em termos de cidadania).

Em seguida, passando para o lado da… vamos assim dizer… acho que da moral né, porque acho que isso acaba sendo sempre uma questão moral: ter como princípio a comunicação para qualquer litígio, para qualquer “désagrément”, para qualquer momento onde você não consegue encontrar um ponto comum ou uma base comum com quem você conversa e de aprender a conceder, no sentido de que é necessário que todo cidadão tenha os utensílios da retórica. Eu digo por aí, a capacidade de entrar em diálogo com outras pessoas, indiferente de diálogos, por exemplo: um debate sobre um assunto mais abstrato, ter essa possibilidade de ter discussão. Mas também, no momento onde não houver, onde as pessoas não estiverem de acordo, elas assumirem o princípio, a ideia de sempre encontrar uma maneira de negociar, sabe? tipo… ter como princípio a negociação como maneira de resolver as coisas, e não… partir para a violência, né. De ver o que cada um quer naquele momento e encontrar maneira de não deixar o ego se aflorar e querer provar algo ao outro ou querer se mostrar viril, por exemplo, e encontrar uma maneira de se dizer: “Poxa, a outra pessoa que tá na minha frente quer algo e eu também quero algo diferente do que a pessoa que tá na minha frente quer”, e seguir isso a partir dos princípios, das leis, do quadro legal vigente, né. No sentido de que algo como transmitir falsas informações ou discurso de ódio, isso não tem nem aonde começar a se defender, aonde começar a falar… porque é um crime né.

Fora isso, fora essa perspectiva moral, que acaba se encaminhando para a parte mais legal, acho que também tem uma questão climática, uma questão de toda a mudança nos ecossistemas que está acontecendo e que, para mim, [que sou um cidadão] cidadão, significa ter uma consciência do seu impacto e da necessidade que nós temos como cidadãos de aceitar mudar nossa maneira de viver. Quando eu digo isso, sobretudo, países como a França, como os EUA onde as pessoas consomem muito e muitas coisas: uma vida em torno do consumo, né… mudar os paradigmas que se atrelam a esse consumismo e por em prática coisas mais sustentáveis, né. Coisas que possam/maneiras de viver em sociedade que possam ser mais verdes, por exemplo… realmente, ter… viver… ter a possibilidade de viver em cidades aonde haja a possibilidade de andar mais de bicicleta, de utilizar menos o carro, até mesmo ter mais a possibilidade de fazer percursos a pé. Assim… ter a possibilidade de viver em cidades de um tamanho mais humano… de quebrar com esse princípio das megalópoles/das grandes cidades e talvez de construir mais uma… um sistema de redes, né. Onde as cidade sejam menores, claro que as grandes não vão deixar de ser grandes, mas, no sentido de que possa haver uma descentralização das grandes cidades e que se possa ter por exemplo todo um sistema de internet e até mesmo nos interiores possa ter acesso a internet e que as grandes cidades deixem de ser…. deixem de ter a lógica que elas têm. Porque como há uma necessidade/uma carência de, muitas vezes… da natureza nas  grandes cidades, é algo que eu acredito que causa um impacto na vida dessas pessoas que vivem nessas cidades em termos de saúde mental, de bem estar, né. Porque se a gente for considerar, se poxa!... Todo mundo, se as pessoas têm acesso a condições mais agradáveis de vida e condições mais humanas de vida, onde você pode se sentir melhor, há muito menos problemas sociais, né – quando todo mundo é respeitado. Então acho que tem essa perspectiva aí também que talvez seja um pouco misturada. (eu sei que eu devo ter misturado um pouco as coisas…). fora isso eu, eu penso também que, que ser cidadão, acho que tem uma parte também ligada com a língua, com uma, uma, um objetivo de trazer uma mudança na língua, criar, assim: um ideal de reciclagem das línguas, sabe?... de mudança das línguas. Porque se você for pensar as línguas são… a mudança quando eu digo são as incorporações de novas palavras, menos formalidade, menos forma na linguagem também, eu acho que seria ser cidadão, no sentido de que você não precisa mais ter todo um aparato formal para poder se expressar em público… uma evolução mais para a simplificação das formas, e da consideração do fundo, porque no final das contas o mais importante é o conteúdo. Então, assim, cidadania é também não julgar o outro porque ele não utiliza determinados termos elaborados ou (como eu digo isso?) ou utilizar termos rebuscados para dizer alguma coisa. Acho que cidadania também é isso, né, a linguagem simples.

E acho que tem uma última aí, não sei se a gente… Pode botar aí!: ahhh, uma dimensão filosófica. Pra mim, a cidadania ela é/tem uma perspectiva filosófica humanista, aonde o humano ele tem de estar no centro né, já que... vivemos o que vivemos hoje graças aos vários humanos que existiram no passado e que a lógica financeira, a lógica que “ cada um tem seu dinheiro”, de “cada um batalhar pelo seu”, tem seu certo nível de validade, mas que  a desproporcionalidade de que vive, na que vive, né, parte do mundo… é um desequilíbrio que acaba impactando com a vida do outro. Então, tem esse lado também de equilíbrio.”

 

Desbravando o tema

Pouco se discute publicamente sobre esse tema. Nos dicionários formais, como no Oxford Language, o significado jurídico atribuído ao conceito de cidadania significa a “condição de pessoa que, como membro de um Estado, se acha no gozo de direitos que lhe permitem participar da vida política”. Nesse mesmo dicionário, a definição de cidadão[1] abrange dois significados formais, o primeiro designado como “habitante da cidade” e o segundo como o “indivíduo que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e políticos por este garantidos e desempenha os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos. Em suma, cidadão, formalmente, diz respeito ao indivíduo que participa de um Estado ou cidade e que cumpre com seus deveres e usufrui de seus direitos civis e políticos.

Mas, hoje, o conceito de cidadania, enfrenta nesse sistema econômico, as dificuldades de sua própria realização, tendo em vista fatores basilares e socioeconômicos, como a separação da sociedade em classes e a consequente distribuição desigual de renda. Mesmo o Brasil sendo um país com grande território e possibilidade de desenvolvimento econômico, na conjuntura mundial, cumpre ainda o papel de colônia dos países “desenvolvidos”. Isto é, assim como os outros países da América Latina ou como a África, sofre com um período  de intensa exploração de recursos e da classe trabalhadora, caracterizado pelo aumento da jornada de trabalho e perda de direitos mínimos antes previstos em lei, em detrimento da promoção de privilégios para a classe burguesa nacional e da garantia de privilégios, como a diminuição da carga horária, somado ao aumento salarial, em países “desenvolvidos”, a nível mundial. Um bom exemplo disso é a Holanda, que segundo dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a média de trabalho é 5,8 horas por dia – ou 29,2 horas semanais e o salário correspondente em reais é de, em média, R$ 17.155 por mês[2]. Com isso, a realidade social, política e econômica brasileira nos leva ao seguinte questionamento: existe, realmente, cidadania no Brasil? Esta ideia é posta na mesa para a reflexão quando o primeiro entrevistado nos diz: “Eu acho que o conceito de cidadania como eu falei antes se tornou muito abstrato e na realidade, principalmente nos países periféricos do capitalismo, a cidadania se tornou um conceito vazio de significado, porque, na verdade, a população só tem deveres e praticamente não tem mais nenhum direito ou têm poucos direitos. E quando reivindica ou avança para além de algum limite imposto pela sociedade é reprimido, é caluniado, enfim. [...] uma, uma… um conceito desprovido de concretude porque a sociedade como a gente conhece hoje, a sociedade capitalista, no caso, ela é um tanto… ela subtraiu a cidadania da maior parte dos seus membros”.

 Essa pergunta é intrigante, pois estamos acostumados com a ideia de que “porque votamos somos cidadãos”. Essa relação de causa e consequência, pelas concepções apresentadas sobre cidadania, não contempla a inteireza da palavra e do ato de ser cidadão ou cidadã. Como nos mostra esse entrevistado, o direito à cidadania está constantemente sendo atacado pelo projeto político e ideológico neoliberal de retirada de direitos dos trabalhadores. Essa contradição entre ideal de cidadania e como ela se dá na prática, para esse professor, anula o sentido e razão de ser desse termo. Pois deixa de ser uma realidade para a classe trabalhadora e passa a ser um ideal – esperamos que não utópico – na medida em que nos privam dos direitos. A verdadeira cidadania só existe se for assegurada na prática. Mas acho que a questão aqui não é se existe ou não. A pergunta que deve ser feita é: Existe para quem? Seguida pela consciência de que enquanto os direitos forem retirados e não assegurados praticamente, é um dever de classe lutar por cidadania.

Além da questão sócio-política mencionada acima, outros argumentos surgiram nas entrevistas, como, por exemplo, a necessidade de valores como equidade, bom senso e empatia para a construção de uma sociedade que seja pautada pela coletividade como forma de estruturação, e não pelo individualismo. Esses são elementos que caracterizam, para o segundo entrevistado, um cidadão íntegro ou que busca integridade. A integridade para este, deve ser inerente ao cidadão. A nível individual e profundo isso significa ter ética, mas a nível social isso exige uma nova cultura que modifique a moral vigente – e essa deve ser permanentemente construída.

Posteriormente, outros valores surgem no terceiro relato como fundamentais às intervenções desse cidadão-protagonista no mundo. Suas ações serão mediadas por valores  éticos/virtudes como o respeito (tanto às pessoas, quanto aos animais, meio ambiente, etc…), o não julgamento, a amorosidade, a escuta e a maturidade (emocional, intelectual, etc.). Nesse sentido, parece que ambos os relatos se complementam, pois “integridade”, nesse contexto, diz respeito a um conjunto de valores que medeiam as intervenções dos indivíduos dentro das relações humanas, na mesma medida em que ela é percebida através das atitudes desses agentes.

Agora, veremos um pouco mais sobre esses valores e o aspecto consciencial mencionado nas entrevistas.

 

A consciência

A necessidade de consciência foi expressa de alguma forma em todos relatos. Geralmente, como pré-requisito para atuação na realidade social. Por não vivermos isolados no mundo, a coletividade tem papel extremamente importante na concepção de consciência, pois nós não somos/ o Eu não é sem os outros. O ego não se desenvolveria historicamente e nem se desenvolve sozinho. A consciência também foi trazida na última fala no sentido de maneirar o ego, de equilibrar as relações para que as pessoas possam ser.  Por isso, também, é promovida a ideia de uma comunicação mais simples. Não no sentido de empobrecer o vocábulo, mas no sentido de aprendermos a ser humanos humanizados e sensíveis uns com os outros. Pois, dentro dessa concepção, são os princípios e valores que garantem uma comunicação efetiva, um diálogo verdadeiro, assim como relações humanas saudáveis. 

Como vimos, também, a consciência sociológica (das desigualdades, das minorias, ou seja, essa consciência social), é colocada como fator fundamental para ser um cidadão. Saber que nem todos temos, nessa sociedade, nossos direitos fundamentais, direitos humanos, respeitados e concretizados. E, que, dessa forma, devemos lutar para garantir tanto os nossos direitos como os dos outros, que quanto a privação dos direitos fundamentais devemos lutar, não é uma opção, é uma necessidade para recuperarmos a totalidade de nossa cidadania ou desenvolvê-la (lato-sensu).

 Pensando também em termos de coletividade, a totalidade de pessoas não existiria sem o ambiente, o que nos leva a uma conclusão última sobre a importância da consciência dentro da noção de cidadania e do que é ser cidadão/cidadã. É necessário o desenvolvimento de uma consciência de si, do outro e do meio em que vivemos para intervir na sociedade. Na coletividade o sentimento de empatia é valioso, porque nos faz pensar em ideais como equidade.

O capitalismo, infelizmente, não é compatível com o ideal de coletividade, muito pelo contrário, se baseia no individualismo e tende a mercantilizar todas as coisas. A lógica da acumulação do capital que fortalece a “meritocracia”, outro conceito problemático se compararmos teoria e realidade, criou uma problemática que veta a evolução da consciência, na medida em que os valores valorizados são o inverso dos que almejamos para o amadurecimento individual e social/coletivo. Essa lógica individualista e mercantilizadora que o terceiro entrevistado rebate e tenta reverter ao abordar a cidadania pela dimensão filosófica humanista – fazendo o movimento reflexivo de retirar do centro a mercadoria e enfocar novamente o ser humano, pelo menos em raciocínio – atrapalha o desenvolvimento de valores reais e da função sentir, sendo, realmente, fundamental criticá-la e debater sobre.


Em suma…

O conceito de cidadania pode ser interpretado por várias perspectivas que geralmente se misturam. Nas entrevistas tivemos bons exemplos de como se articulam essas áreas em conjunto para formar as interpretações subjetivas de cada um sobre o conceito. Como vimos, ser cidadã/ão envolve direitos e deveres, mas não apenas isso, as apreensões vão além do âmbito jurídico, perpassando o histórico, político, sociológico, filosófico, humanista, ético, moral, etc. As respostas dadas demonstram a ligação direta ou indireta com a questão chave: "Que tipo de sociedade queremos?" uma vez que se compreende que o cidadão teria poder de atuar e intervir na construção da mesma.

A cidadania, sendo assim, está entre o mundo que se apresenta concretamente e o mundo que queremos viver – e pensando bem, ela talvez seja, nessa composição, um ponto de interrogação, pois, se só quem pode mudar a realidade são os agentes, a pergunta que fica é: Que tipo de atitude estou tomando hoje para atingir o ideal de  mundo que desejo e sonho? uma sociedade mais avançada: humana, ética e política, etc.

E no que tange a dialética entre direitos e deveres, não podemos nos esquecer da luta para garantia dos direitos quanto classe, luta essa fundamental para nossa existência. A cidadania, no Brasil, é atacada todos os dias conforme atacam os nossos direitos e lutar por ela é uma necessidade. À cidadania e aos cidadãos é necessária a consciência para fazerem funcionar a dinâmica dos direitos e deveres, mas essa não é uma consciência instantânea ou imediata – uma cultura diferente precisa ser fortalecida todos os dias. Pois como vimos, a conjuntura atual ajuda no esvaziamento do conceito de cidadania, uma vez que não consegue garantir o funcionamento e dinâmica, pois na prática esbarra em limites que fazem parte da própria base do sistema capitalista.

 

Referências:

*SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira: Para entender o país além do jeitinho brasileiro. 1. ed. rev. Rio de Janeiro: Casa da palavra/Leya, 2018. 287 p. ISBN 978-85-441-0728-7.