segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Carta aberta à comunidade escolar do Alcides Cunha: balanço e perspectivas (2015-2018)

Esta carta é de responsabilidade de alguns membros do Conselho Escolar (gestão 2016-2018), não refletindo as opiniões da direção ou da maioria dos educadores da escola em questão. Surgiu, como se lerá abaixo, no contexto da luta contra uma direção autoritária e corrupta, tentando extrair todas as lições do processo. Faz uma síntese e uma série de propostas de como os Conselhos Escolares podem e devem atuar para, de fato, possibilitar a gestão democrática da educação pública. A Escola Estadual de Ensino Médio Professor Alcides Cunha localiza-se na zona leste de Porto Alegre. Esta carta aberta foi escrita originalmente em outubro de 2018 e publicada na página do facebook "A voz do Alcides" em novembro do mesmo ano.

A atual direção do Alcides Cunha se elegeu entre o final de 2015 e março de 2016, num processo conturbado, que polarizou a escola, envolveu o secretário de educação e deixou marcas positivas e negativas. Aquela vitória foi fruto de um esforço coletivo de inúmeros colegas e alunos que tinham visões e posições políticas distintas, mas que souberam trabalhar juntos. Esta união certamente teve um peso decisivo para a construção de “um Alcides melhor”. Abriu-se, então, um período de democracia dentro da nossa escola bastante diferente da esmagadora maioria das escolas públicas estaduais, onde impera o autoritarismo ditatorial de diretores, geralmente, em sintonia com a SEDUC.

            Porém, apesar destes inegáveis aspectos progressivos, houveram outros tantos problemas de ordem política e pedagógica que agora precisam ser enfrentados se queremos avançar.

 

1) Balanço 2015-2018:

            Analisando o Plano de Ação que foi apresentado pela chapa “Por um Alcides melhor” podemos ver todos os pontos positivos que foram alcançados, representando uma mudança profunda na escola, embora tenham outros tantos que não saíram do papel. O mais importante foi a derrota da camarilha de professores e “pais” que monopolizavam o CPM e a direção da escola, utilizando esta estrutura para fins pessoais. A corrupção de uma “dinastia” foi derrotada por um esforço decidido e coletivo de educadores e alunos, que começou no Conselho Escolar entre 2013 e 2015, ao qual se somaram novos colegas que compreenderam a gravidade da situação. Nem todos ficaram até a vitória final. Uns pediram pra sair, outros compreenderam equivocadamente o papel da nova direção (ao qual pensaram que seria um novo “grupo de amigos”). Virada esta página, se iniciou o trabalho de reconstrução.

            Sabemos pela experiência cotidiana que as políticas de governo criam as piores dificuldades para os educadores executarem seu trabalho, a começar pela questão salarial. A “gestão” da SEDUC e das CREs cria o caos, com informações atravessadas e confusas. Na verdade praticam cotidianamente um desserviço, gerando mais problemas do que soluções. Tudo isso é um empecilho para um bom desempenho, embora isso não deva nos paralisar. Aos problemas de governo há que se responder no campo da luta sindical e na unidade com toda a categoria e as demais escolas. Se é certo que a nossa escola foi vanguarda nesta luta, também é certo que existem problemas de concepções sindicais que mereceriam análise e debate, mas isto transcende os objetivos desta carta (deve ficar para um debate futuro). Houve, no geral, liberdade sindical na nossa escola que não foi bem aproveitado por nós, educadores, sobretudo no que diz respeito ao debate e à organização.

Há que se reconhecer que, apesar das políticas de governo, muitos problemas encontram-se no chão da escola, partindo dos próprios educadores e da sua relação com a comunidade escolar (desde as concepções pedagógicas e administrativas, até as concepções sindicais). Constatar isso nada tem a ver com o debate midiático de culpabilização dos educadores. O turbilhão de problemas que consomem a direção de uma escola se impôs e não se debateu seriamente uma política para superar isso. A “correria” do cotidiano foi uma desculpa, por parte da direção, para se evitar que um regime disciplinar mais sério e eficiente se estabelecesse na escola a partir dos organismos que tinha se proposto a construir no “Plano de Ação”. Se não se alinha o corpo docente através de uma disciplina livremente debatida e contratada, quem dá o ritmo do andamento da escola é o corpo discente através da “ditadura da preguiça”. A indisciplina e os problemas pedagógicos entram num círculo vicioso que é difícil conter. O trabalho educativo torna-se, então, mais pesado e dispendioso; e acumula-se, caindo sobre os ombros de poucos ou de ninguém.

            O Plano de Ação foi parcialmente cumprido. Não se criou uma tradição em que o Conselho Escolar passasse a gerir a escola em todas as suas questões essenciais conjuntamente com a direção. Houve meses em que ele não foi convocado; em outros, debateu apenas pautas aleatórias, não indo além de questões secundárias. Muitos problemas com alunos que deveriam ser resolvidos pela supervisão e orientação eram simplesmente jogados ao Conselho Escolar, que deveria debater apenas os casos extremos. Não se criou a tempo uma tradição de debate acerca do investimento financeiro, de ampliação da prestação de contas, bem como questões político-pedagógicas. O próprio PPP ainda é apenas uma esperança. Em inúmeros casos o método foi aquele em que se ignorava as decisões das reuniões (seja do Conselho Escolar, seja de professores), sendo que isso contrariava abertamente o que tinha sido exposto no Plano de Ação. Este método de funcionamento e a relação do Conselho Escolar e a direção precisa mudar se queremos avançar na democratização da escola; caso contrário, retrocederemos.

            A autoridade democrática, ora respeitada, ora não respeitada nos seus encaminhamentos, só não pôde se impor porque não encontrou respaldo geral no grupo de educadores (e estes não puderam e não quiseram construir essa autoridade conjuntamente aos alunos). Ou seja, preferiu-se o esconderijo atrás de individualidades, para que esta autoridade coletiva não pudesse funcionar plenamente. Sem esta autoridade da coletividade, que ainda precisa ser criada e consolidada, não será possível organizar um trabalho democrático a partir do Conselho Escolar, reunião de professores, sindical, etc. A tendência é “a correria do cotidiano” se impor e nos tragar totalmente. É preciso combater conscientemente esta tendência, que é sempre usada como desculpa. Mantêm-se apenas as reclamações sem ações concretas.

            No campo político pedagógico é importante superar certos problemas da relação aluno-professor a partir de um melhoramento nas questões relacionadas à supervisão e orientação educacional. Na gestão atual (2015-2018) a supervisão não trabalhou em sintonia com as reuniões dos professores. Grande parte disso se deveu a ausência de supervisão por quase 2 anos, mas houveram problemas de concepção tanto no campo da supervisão quanto da orientação. Até o presente momento tudo isso não foi debatido, portanto o resultado não poderia ser outro. Porém, agora que tomamos consciência desses problemas, se faz necessário que a futura direção mude a postura em relação a isso se quiser avanços.

            Por estes motivos, muitas das nossas reuniões pedagógicas e conselhos de classes foram improdutivos. Uma razão para isso é que os encaminhamentos que deveriam ser cobrados e acompanhados pela supervisão e orientação não aconteceram (muitos encaminhamentos eram conscientemente ignorados porque não havia responsáveis para isso ou, quando existia, não cobravam, “se esquecendo”). Cada setor acabou funcionamento de forma autônoma em relação ao outro, gerando uma verdadeira Torre de Babel. Supervisor educacional não é patrão. Não deve supervisionar trabalho como se fosse uma empresa privada, de onde as ordens partem sempre de algumas “cabeças iluminadas”. É, sobretudo, um trabalho de duas mãos. Observa os alunos e os problemas dos professores, organiza o debate coletivo e aplica as diretrizes que forem construídas democraticamente, em reuniões gerais e assembleias. Só aí pode ter autoridade para cobrar algo. A iniciativa da supervisão e orientação é sempre importante e bem vinda, desde que embasadas por debates democráticos.

            A orientação educacional de nossa escola deve construir, juntamente com os professores, uma nova relação com os alunos, verdadeiramente freiriana, visando a autonomia do indivíduo e não simplesmente impondo autoridade de cima pra baixo (ou os tratando agressivamente). Há que se debater e trabalhar também coletivamente, a partir de reuniões democráticas, que tenham seus encaminhamentos respeitados. A atual política-pedagógica executada, cuja diretriz principal é “aluno não sabe mais do que professor”, deve ser substituída por uma nova, em que cada caso é analisado nas suas especificidades e se crie uma possibilidade de crescimento coletivo para alunos e professores. Como a filosofia pedagógica da maioria do nosso corpo docente é avessa a isso, precisamos trabalhar no sentido de criar raiz na pedagogia freiriana, debatendo em formações pedagógicas e, mais do que isso, trabalhando permanentemente a nossa própria atividade prática a partir de uma profunda autocrítica. Só com esta conduta poderemos ter moral para cobrar alunos e pais.

            Todas estas críticas não excluem o fato de que muitos bons trabalhos foram feitos isoladamente por professores, mas isso não tira a responsabilidade de que precisamos melhorar a unicidade da escola e a nossa prática pedagógica. Sem esta mudança prática, não haverá avanço na democracia escolar, nem em relação às direções passadas. Ao invés de um “Alcides melhor”, teremos um “Alcides retrocendendo”. Basta lembrar que, com exceção das questões relacionadas à democracia e parte da prestação de contas, este funcionamento político-pedagógico era prática comum antes de 2015, que em quase nada foi modificado. Esta mudança não é fundamental apenas para a democratização da escola e da relação com os alunos e a comunidade escolar, mas para que haja um melhor andamento da escola e, portanto, o trabalho educativo seja menos pesado e tormentoso. Um trabalho bem feito e articulado, feito antecipadamente e se baseando numa democracia reconhecida, tende a aliviar o fardo coletivo. O oposto gera apenas o caos, o peso morto das intriguinhas e redobra o fardo.

            Outra questão que melhorou, mas que precisa melhorar ainda mais, diz respeito à prestação de contas, que ocorreu de forma parcial e a gestão financeira terminou restrita à direção. Apesar disso, vimos o dinheiro sonegado pela antiga direção aparecer e uma nova escola ressurgir com as “poucas verbas” que entram, desde a troca de vidros, pintura, portas, materiais e classes; até móveis e serviços de xerox. Tudo isso, é, sem dúvida, um ponto positivo. Porém, não se criou uma cultura de decisões coletivas e de prestações de contas permanentes, também como uma questão pedagógica e educativa para toda a comunidade – sobretudo em relação à verba da merenda. É claro que o problema não foi apenas do funcionamento da direção, mas esteve presente também na tendência ao “individualismo” do corpo docente para escapar às suas responsabilidades sociais. Isso se refletiu, inevitavelmente, nos alunos e pais, que não participaram como deveriam de todo este processo. Quem tem a responsabilidade de puxar estes fios condutores, como a experiência atesta, são, sem dúvida, os educadores e a direção da escola. Ficam estas lições para contribuir na superação destes problemas.

 

2) Perspectivas

            Como resumo de todo este balanço, há que se apontar algumas perspectivas para que o Alcides continue melhorando e não retroceda. São elas:

a) Respeitar e incentivar as decisões coletivas, com responsáveis que tenham autoridade para executá-las. Não dificultar tais execuções, mas debatê-las e construí-las com espírito coletivo. O Conselho Escolar é uma instância que precisa se abrir à toda a comunidade, portanto, deve ser respeitada e encarada enquanto tal (não ser apenas solucionadora de casos de alunos, mas que debata, com método, sobre todos os principais assuntos). Se isso for compreendido, a democracia será mantida na escola e ajudará a aliviar o fardo de alguns e da própria direção, socializando as decisões, mas também os problemas. Nesse sentido, é fundamental que o que for registrado nas atas seja cumprido (e não apenas letra morta, como acontece hoje e é reconhecido até mesmo pelos alunos). De que adiantam milhares de atas se elas terminam como letra morta? Disso tudo só pode resultar o caos e aquela sensação de que as reuniões não adiantam nada! Muitos conflitos profissionais e de outra ordem, desde que previamente avaliados, podem e devem ser levados ao Conselho Escolar para que se torne uma tradição democrática debatê-los e solucioná-los coletivamente. Porém, continuaremos perecendo se mantivermos a posição de falar uma coisa e fazer outra (sem respeitar o que é encaminhado). Muitos encaminhamentos de reuniões do conselho, de professores e de debates com o grêmio estudantil também não foram respeitados. A espinha dorsal dos nossos problemas de organização é a falta de compromisso com os encaminhamentos de debates COLETIVOS entre nós próprios e a direção da escola. Se isso não mudar, não teremos melhores condições entre nós, nem maior organização e, muito menos, uma democracia, pois se nos encontramos pra debater, mas os encaminhamentos não são levados a sério, então ela não é verdadeira, mas um clube estéril de discussão. Para isso, vencer o instinto de conservação pessoal e se propor a falar o que realmente pensa é indispensável. Sem isso não há democracia verdadeira. O espaço democrático que foi criado nestes 3 anos, ainda que tenha muitas debilidades e problemas, permite que isso ocorra.

b) É muito importante que a reunião da direção-supervisão esteja em consonância com o Conselho Escolar. A gestão que se encerra agora reuniu a direção apenas uma ou duas vezes. As diretrizes gerais devem ser dadas pelo debate com o conselho escolar e a reunião dos educadores gerais da escola. A reunião da direção deve ser a executora dessas medidas gerais, fazendo correções e alterações quando a realidade exigir e não houver alternativas. As reuniões de balanço devem acontecer seguidamente para que as lições possam ser tiradas. O grupo de professores também não foi consultado em muitos casos, embora não tenha assumido suas responsabilidades no sentido de garantir a democracia na escola e a divisão de tarefas. Se por um lado certamente houveram problemas em razão da falta de funcionários e de professores, por outro, muitas tarefas debatidas e encaminhadas não foram respeitadas por direção e corpo docente.

c) É preciso ainda organizar melhor os materiais, como chaves, utilização das salas (como o data show), equipamentos, etc.; muitas vezes há um bate cabeça em relação aos materiais ou chaves, que são pegos por um, entregues a outros e, muitas vezes, todos esses materiais e chaves são extraviados. Uma possível solução é estabelecer responsáveis por chaves, salas e materiais.

d) O calendário escolar precisa ser debatido democraticamente e toda a preparação prévia nos levar a falar uma única língua: semana de provas, entrega de boletins e atividades que envolvem muitas pessoas geralmente terminam sempre em muita confusão, fruto de toda esta desorganização. O método de indicar organizadores e respeitar suas orientações ajudaria muito.

e) Melhorar a relação humana entre nós, educadores, e com a comunidade. Maior preocupação e sensibilidade entre nós, entre corpo docente e discente, entre educadores e supervisão, entre alunos e orientação. É preciso trabalhar o reconhecimento às diferenças e procurar a solidariedade de classe, sempre! Segundo Nietzsche: “Nós somos, até a medula e desde o começo habituados a mentir”. Como falar de verdade o que sentimentos e pensamos, onde tudo é interpretação? Este é um dos desafios para a nossa relação profissional nos próximos 3 anos se queremos realmente “um Alcides melhor”.

f) Debater e aprovar um novo Plano Político Pedagógico (PPP) que esteja ancorado na comunidade e não na burocracia política e educacional. Debater e tentar inovações pedagógicas, como aulas diferentes, com horários flexíveis (algo como as oficinas que se tentaram durante as ocupações de escola), retomada de projetos comuns para além das divisões rígidas entre as áreas de conhecimento (que apenas criaram novas divisões e não chegaram nem perto de solucionar o problema da interdisciplinaridade).

g) Manter e aprofundar a liberdade sindical, respeitando suas deliberações e levando ao maior envolvimento dos educadores. Procurar criar as condições para que a decisão da maioria seja respeitada por todos (esta é a única e real democracia sindical). Criar as condições para que todos opinem e demonstrem seus descontentamentos, sempre de forma respeitosa.

h) Se a questão anterior a ser resolvida na eleição de 2015 era a democracia mínima e a prestação de contas, a de 2018 é o aprimoramento da nossa democracia, o respeito e o cumprimento das decisões e o melhoramento da relação aluno-professor-comunidade; isto é, o aperfeiçoamento da questão pedagógica.

***

            Muitos outros temas poderiam ser debatidos e acrescentados nessa carta. No entanto, penso que se estes pontos simples e, ao mesmo tempo, complexos, forem respeitados, teremos condições de avançar mais e evitar retrocessos, pois o que não avança certamente retrocede.


Assinam: Lucas Berton e Paulo Moacir - membros do Conselho Escolar (gestão 2016-2018)

Nenhum comentário:

Postar um comentário