terça-feira, 19 de junho de 2018

A invasão dos bárbaros sádicos


Ao contrário da queda do Império Romano, não há um marco histórico para estudar quando nossas mentes foram invadidas pelos bárbaros sádicos, tal como o ano de 476 d.C. Talvez eles sempre estivessem ali, colonizando e formando novos e maiores reinos bárbaros sádicos, bem debaixo do nosso nariz, na nossa formação genética, exatamente dentro da nossa psique. O fato, contudo, é que os que se dizem e se tem por civilizados, muitas e muitas vezes são piores do que os piores bárbaros que invadiram Roma em 476 d.C.
        Posso me lembrar dos olhinhos das crianças agarrados às grades da escola, querendo um espacinho para ver uma briga entre colegas. Eu, como professor, nas minhas melhores aulas (ou nos meus melhores sonhos de aulas – que nunca efetivamente consegui concretizar), jamais pude ter estes olhinhos cintilantes cravados em mim, tal como os vira quando daquela fatídica tarde em que dois alunos se juraram de morte. 
          Este episódio histórico – a queda do Império Romano e as invasões bárbaras –, tão narrado nas inúmeras aulas de história no Brasil e no mundo, parece ser um pouco mal contado. Necessita, então, um novo olhar..

Uma tarde no Coliseu

        Os “bárbaros civilizados”, que atendem pelo nome de romanos e que souberam se vender muito bem para a posteridade como o farol da civilização, erigiram um monumento à barbárie: o Coliseu! Como vaso ruim não quebra, lá está ele, de pé, a nos relembrar as manhãs e tardes de barbarismo sádico, presenciado não apenas por imperadores, legionários e gladiadores, mas por adultos, jovens e crianças.
O exercício da história é como se pudéssemos ter uma máquina do tempo imaginária, onde entramos, saímos, vamos e voltamos para o passado ou, até mesmo, para o futuro. Um destes exercícios é o que nos permite voltar para a Roma Antiga, para a arena do Coliseu. Pensem os impactos psicológicos na mente de inúmeras gerações de cidadãos romanos, jovens e adultos, que cresceram vendo aquele “espetáculo” sanguinário, tido como “civilizado”.
De um lado da arena está Carpoforo, o gladiador que lutava exclusivamente contra animais. Foram várias batalhas e mais de 20 animais mortos entre leões, leopardos e rinocerontes. O espetáculo edificante que jogava seres humanos contra animais não raramente terminava em um banho de sangue de ambos os lados, acompanhado por centenas de olhinhos sádicos, desejosos de saírem da sua rotina sem graça e embrutecedora.
Foi o combate corpo a corpo entre os gladiadores Retarius e Secutor que o pequeno Quintus, de apenas 9 anos, acompanhou quase sem piscar, como se estivesse hipnotizado. Retarius acertou uma espadada na perna de Secutor, que caiu no chão, exausto, após cerca de 1h de combate. O talho aberto na coxa do gladiador vertia sangue aos borbotões e selou o seu destino. Estirou-se, largando o gládio e o escudo. Precisava de ar puro, por isso, com muita dificuldade, tirou o capacete. Olhou, complacente, cheio de piedade, para César, que se levantou do divã. Retarius insuflou os presentes contra o inimigo derrotado, como que querendo ganhar fama e reconhecimento, propiciando-lhes o momento mais esperado.
A massa ensandecida pedia a morte de Secutor. César postou-se, então, de fronte do alambrado da sua sacada. O ruído ensurdecedor da massa foi diminuindo até quase sumir-se por completo. O imperador lentamente ergueu a mão até a altura do peito. O pequeno Quintus teve sua respiração entrecortada por aquele momento mágico. Os presentes jubilaram-se ao ver César com o seu polegar suspenso no ar, como que tomados por um frenesi mudo. De repente, de um canto a outro do Coliseu começou a se ouvir: “Gaius ad mortem”! “Gaius ad mortem”! “Gaius ad mortem”! César ergueu o seu rosto e então o polegar tomou a posição que autorizava a morte do gladiador derrotado.
Os gladiadores e o escultor. Escultura do Museu d'Orsay, em Paris
Uma explosão de euforia por todos os lados contagiou Quintus, que sem saber bem o porquê, sorriu e começou a gritar também. Secutor engoliu seco. Elevou os olhos ao céu e pediu aos deuses de sua tribo que lhe confortassem. Ao ver a lâmina do gládio sobre seu pescoço, apavorou-se e então se pôs a chorar. Os milhares de olhinhos da barbárie civilizada, sádicos, extremamente felizes na sua sanha medíocre por sangue, se puseram a gritar e a xingar o gladiador derrotado.
De um golpe certeiro, rápido e impiedoso, Retarius cortou a cabeça de Secutor, fazendo jorrar sangue até formar uma poça. Segurando-a pelos cabelos, Retarius a erguia para mostra-la a massa, que gritava seu nome em uníssono, ecoando por todo o Coliseu.
Assim era saciado o prazer sádico daqueles que diziam ser o farol civilizatório do mundo antigo. Que forças exigiam tal ritual e que tipo de educação poderiam receber os seres humanos criados neste ambiente, como o pequeno Quintus?

Os cristãos que só batem na outra face de Cristo

        Passadas as edificantes tardes no Coliseu, presenciamos, durante a Idade Média cristã, os castigos e as execuções públicas, acompanhadas por centenas de fiéis que queriam degustar os suplícios dos infiéis, que tinham a coragem, de uma forma ou de outra, para afirmar que podíamos sentir prazer sem ser pecado; ou, ainda, que era saudável para o pensamento humano questionar dogmas.
        Não eram pequenas as romarias nas praças da França, Inglaterra, Portugal e Espanha para ver os condenados ardendo no fogo sagrado para receber a purificação dos seus pecados, ou simplesmente enforcados ou decapitados. Uma espécie de um delírio prazeroso tomava conta das mentes e dos corações dos fiéis, que antes da execução jogavam frutas e verduras podres nos condenados.
        O caso mais famoso se deu na morte de Giordano Bruno, na Piazza Campo de Fiori, em Roma, no ano de 1600. A Santa Inquisição, mexendo com estes sentimentos mal resolvidos na psique humana, reinou poderosa e praticamente sozinha, por séculos. Inúmeros fiéis descarregaram inconscientemente suas frustrações e privações sexuais nos linchamentos e execuções públicas durante toda a Idade Média. Foi assim que centenas de milhares destes indivíduos renderam sua homenagem e devoção aos “ensinamentos de Cristo”. Além disso, ainda existiram as guerras medievais, as cruzadas e o inesquecível e “edificante” cerco de Lisboa; todos liderados por cristãos interessados em pregar a “palavra de Cristo” pelas armas.
       
      O mais simbólico no caso de Giordano Bruno é que ele foi queimado na fogueira... por pensar! Qual não foi o prazer de um velho camponês sádico, surrado e humilhado pelo seu senhor por não cumprir adequadamente o pagamento da corveia, ao ver Giordano Bruno caminhando para o cadafalso? A sua vida de renúncias e a sua não realização pessoal agora encontravam um consolo de “prazer” distorcido naquele suplício. A recusa de Bruno em beijar a cruz ou implorar por misericórdia aos seus algozes o desconcertou um pouco e o encheu de vergonha, mas foi novamente reanimado com os xingamentos proferidos de todos os lados e a chuva de legumes e ovos podres sobre o condenado. Ver a chama consumir o corpo de Bruno o deixou extasiado, como se tivesse sido inebriado por um perfume suave. Junto com o velho camponês, muitas crianças acompanharam o suplício; algumas eram de colo.

Liberdade, igualdade e fraternidade para a burguesia!

        O advento do capitalismo, ainda que tenha representado progresso em muitas áreas, não eliminou o sadismo das massas humanas. Por um lado, não tomou conhecimento dele por muitos séculos; por outro, ao tomar conhecimento dele, percebeu que poderia tirar partido de tal “fenômeno”. A luta dos iluministas contra o irracionalismo das monarquias feudais e o grande desenvolvimento científico e tecnológico resultaram na consolidação do mercado mundial e, deste, nas guerras mundiais, comemoradas por banqueiros e empresários, com um saldo de mais de 30 milhões de mortos. O nazi-fascismo foi um grande monumento erigido a partir do cultivo cuidadoso de centenas de milhares de mentes humanas, que irracionalmente passaram a clamar por guerra e pelo extermínio de povos inteiros.
        Além das guerras, patrocinadas pela burguesia e a sua indústria bélica, vemos programas de TV que incentivam o sadismo, o ódio, a raiva; além da xenofobia, do racismo, do machismo, da homofobia: todas estas se apresentam como formas de deleitar o sadismo mal contido da classe média e de muitos outros setores. O que uma briga entre vizinhos não consegue consumir da energia deste sadismo, desloca-se para o bate-boca no trânsito, na fofoca entre colegas de trabalhos, amigos, familiares. Se tudo isso não dá conta, há ainda o morador de rua passando fome, o subempregado e a política para descontar as frustrações sociais e cotidianas. Se nada disso não der certo, sobra ainda os comentários nas redes sociais, que possuem o “grande mérito” de permitir falar o que quiser e não ter consequência nenhuma para o agressor! É o sadismo digital: grande culminância moral da sociedade burguesa.

A barbárie stalinista: o fascismo vermelho

        As revoluções são momentos extraordinários, que permitem a possibilidade de revisão de todo o passado humano. Porém, como nos demonstrou a experiência histórica, passado o frenesi, há a ressaca. Na Rússia, esta ressaca gerou o stalinismo como contra-revolução dentro do processo iniciado em 1917; surgiu o “fascismo vermelho”. O sadismo humano não foi combatido, mas aproveitado por uma rede de burocratas, que souberam muito bem se usar dele, alimentando-o e tornando-o um monstro. A criação de fanáticos, que acham que lutavam em nome de um ideal, matando, espionando, se infiltrando e assassinando, na verdade estavam dando continuidade às tardes no Coliseu.
        A miséria teórica da esquerda atual ainda não compreendeu este fenômeno em toda a sua profundidade. Está “apta” a continuar cometendo os mesmos erros e alimentando o sadismo, que deve ser identificado e combatido. Muitos ativistas mesmo se dizendo contra o stalinismo cometem os mesmos erros e, consciente ou inconscientemente, cultivam o sadismo no movimento dos trabalhadores.

Para além do bem e do mal

Como pode o ser humano ser tão ruim, fazer coisas tão horrendas e, ao mesmo tempo, coisas tão belas, sublimes e civilizadas? A psicanálise freudiana e a economia sexual reichiana têm muito a dizer sobre isso. A questão a ser analisada está no fato de que os seres humanos são multifacetados. Eles não possuem apenas 2 caras, mas muitas. Se manter fiel a si mesmo, a outra pessoa ou mesmo a uma causa é praticamente um trabalho de Hércules. Que dirá se manter fiel à vida viva, que passa pelos nossos sentidos cotidianamente. Não são poucas as vezes que nos traímos inconscientemente. E, no entanto, somos a mesmíssima pessoa.
        Com que facilidade não se planta a discórdia entre grupos de seres humanos? Com que singela tranquilidade não se desorganiza um trabalho que se levou anos para construir, mas apenas alguns dias ou horas para pôr tudo a perder? Uma briga – principalmente a que tenha sangue –, seja na escola, num bar ou no trânsito, chama muito mais a atenção do que qualquer aula, do melhor professor ou outro problema social, como um morador de rua passando fome e dormindo embaixo do viaduto.
        O inconsciente, que abriga inúmeras pulsões, contraditórias entre si, esconde, no mais recôndito da alma, os nossos recalcamentos, os desejos mal resolvidos e mal compreendidos pela sociedade, que terminam, geralmente, mal direcionados. Quem é capaz de sustentar que nunca desejou a morte de outra pessoa?
        O problema, contudo, não é ter estes desejos reprimidos (que felizmente, na maioria das vezes, não são colocados em prática), mas a máscara de hipocrisia que a sociedade veste para escondê-los, fazendo com que eles voltem por outros poros, em outras ocasiões e contextos, provocando o desentendimento e a cizânia em escala industrial. Muitos possuem consciência da sua dissimulação; outros tantos não a possuem, mas também não fazem a menor questão de procurar as raízes de sua postura irracional e doentia, sobretudo, para enfrentá-la. Acham que está tudo bem consigo mesmo e com a sociedade, cabendo encontrar algum “bárbaro” alheio a si próprio e ao seu modo de vida para despejar as suas culpas que o dilaceram por dentro e o paralisam.

A barbárie civilizada

A ascensão da direita a nível mundial tem nos trazido tipos peculiares, verdadeiros bárbaros sádicos em “pele de civilizados”: Donald Trump, é, de longe, o principal exemplo do sadismo moderno (Bolsonaro é outro). O imperialismo liderado por ele é ofensivo, ameaçador, destrutivo e beligerante. Ao mesmo tempo, diz representar a “civilização” contra a barbárie do Estado Islâmico, de Bashar Al Assad ou de Putin. Quem tem razão? Nenhum! Todos estes são representantes do “sadismo civilizado”.
Na disjuntiva de Rosa Luxemburgo “socialismo ou barbárie” temos visto a barbárie vencer assustadoramente (isso também se deve ao burocratismo e à miséria teórica e política da “esquerda”). O capitalismo em degeneração, em razão de suas crises permanentes, não pode deixar de cultivar o sadismo e o irracionalismo. Ou seja, está havendo uma institucionalização do que é sádico e do que é irracional, vendidos para o senso comum como “a civilização”! A luta revolucionária e socialista não pode deixar de se utilizar dos métodos psicanalíticos no sentido de fazer submergir estes verdadeiros monstros que são um dos principais bastiões do sistema econômico.
A luta política sem esta compreensão se torna inglória e até mesmo catastrófica. É a partir destes conflitos psicológicos sádicos e perversos que a burguesia consegue impor seus raciocínios políticos irracionais e angariar apoio das amplas massas (inclusive para projetos nazifascistas) no sentido de sustentar seu sistema em elevado nível de barbárie. Tudo fica invertido na cabeça dos sádicos. Assim, com extrema facilidade a burguesia passa do banco dos réus à condição de vítima. É uma fonte inesgotável de negação e de tergiversação sobre os problemas criados pelo seu sistema econômico.
Vemos, então, ela sustentar inúmeras ditaduras pelo mundo, mas a única que importa é a “ditadura comunista”. A sua economia e a sua indústria bélica matam milhões pelo mundo em guerras, pela fome, por doenças básicas (que há décadas já tem cura) ou mesmo pelo estresse, depressão ou suicídio, mas importa mais a morte dos “milhões” do regime stalinista, que é indistintamente relacionado ao “comunismo”. O barbarismo masoquista, por outro lado, faz surgir ainda os “pobres de direita”, que, em sua grande maioria, tornam-se evangélicos, servindo de base para que os pastores canalizem, via masoquismo, a sua energia sexual para sustentar o sistema, para fazer os trabalhadores se auto escravizarem, se auto flagelarem, etc.; enquanto que o barbarismo sádico na classe média destila seu ódio contra os pobres e idolatra a burguesia. Tem a propensão a sempre combater quem desmascara o seu sadismo e a sua sede insaciável de ódio. Reivindicam o fascismo a qualquer palavra sobre socialismo, e quando desmascarados relativizam ou negam seu barbarismo se apegando nos “fragmentos” de realidade, num pensamento metafísico e irracional.

A psicanálise, a economia sexual e os complexos humanos

Olhando com novas lentes, podemos concluir que os bárbaros que “invadiram” o Império Romano poderiam ter sentimentos “humanos” muito maiores que os “civilizados romanos”, que em nome da sua civilização, cultuaram o barbarismo através da luta de gladiadores, das conquistas militares, da escravidão; práticas repletas de sadismo, estupro, mortes, assassinatos, etc. O “espírito civilizador romano” dominou as civilizações e impérios ocidentais. Junto com ele, foi transmitido, de geração à geração, a semente do barbarismo sádico. Hoje, a sociedade capitalista a erigiu em instituições e leis que justificam e canonizam a exploração como “progresso”.
Fazendo um paralelo com o complexo de Édipo, existem outros “complexos” que agora precisam ser trazidos a tona e debatidos, buscando suas mais profundas e ocultas raízes psicológicas. Por exemplo, o “complexo de Rômulo e Remo”, que traz o germe do assassinato de irmãos, o que redunda em inúmeras guerras civis; a cruel repressão sexual, que se traduz no “complexo” católico da pedofilia e na perversão japonesa de velhos obcecados com saias colegiais (sabe-se o quão reprimida é a sociedade japonesa). A sexualidade humana está doente e o resultado é o seu extravasamento por outros meios, como o sadismo, o sadomasoquismo, a perversão, a obsessão, dentre outros.
        A história primitiva, condensada em mitos, nos costumes folclóricos, nas práticas das tribos e nas ações aparentemente irracionais das sociedades atuais (como os movimentos religiosos, os regimes fascistas, etc.), não é acessível ao pensamento sociológico marxista. Este trabalho de análise só poderá ser fecundo se contar com o apoio indispensável da psicanálise e da economia sexual. A “temperatura” individual das neuroses e sadismos de massa só deverão encontrar um campo de ação adequado na sociedade socialista, que precisa, mais do que nunca, levar tais análises e reflexões em conta.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

O significado histórico do romance “O homem que amava os cachorros”


O romance intitulado O homem que amava os cachorros, escrito pelo cubano Leonardo Padura, retrata o assassinato de Leon Trotsky pelas mãos do agente stalinista, o espanhol Ramón Mercader. Pela amplidão do tema, a excelente reconstrução do contexto histórico e a qualidade da narrativa, transformou-se num romance reconhecido e aclamado a nível internacional. Faz jus, no geral, à figura de Leon Trotsky, reconstruindo parte de sua luta; ao mesmo tempo em que nos aproxima do lado humano de seu assassino, gerando um certo tipo de compaixão (um dos grandes embates pessoais do autor, que se reflete na obra).
         A mídia burguesa elogiou o romance, mas extraiu dele muito pouco, geralmente focando na ideia de que ele foi escrito sobre a “ruína de um sonho”, “o fim de uma utopia”, aproveitando-se para salientar algumas críticas de Padura aos “regimes comunistas” ou mesmo a Trotsky; quando não ficam em uma superficialidade assustadora. Querer, contudo, que a mídia burguesa consiga empreender uma crítica literária real a um romance cuja razão de ser é o assassinato de Trotsky – figura esta que traz consigo uma obra profunda e fundamental sobre o socialismo e a URSS – é o mesmo que querer que um dono de frigorífico faça uma crítica humana e vegetariana do consumo de carne.
         O assassinato de Trotsky tomou proporções históricas, sendo comparável, pela brutalidade e deslealdade, ao de Júlio César, Abraham Lincoln ou Mahatma Gandhi. A Folha de São Paulo elogiou o livro questionando como relatar uma trama policial cujo desfecho era conhecido por todos? Ora, justamente porque o motivo central não é o desfecho, mas sim os motivos que moveram o assassino. Mais do que isso: por trás deste assassinato está a chave para a compreensão do século XX. Este é, precisamente, o significado do romance de Padura. O enredo policial foi apenas o fio condutor do método narrativo, que está a serviço de desnudar um drama humano, seja do lado de Trotski, seja do lado de Mercader, ou seja do lado de centenas de milhares de militantes trotskistas e stalinistas ao longo do século XX.

1.
         O escritor cubano constrói sua narrativa intercalando epílogos e flashbacks, reconstituindo o assassinato a partir de um fundo histórico e romanceando não apenas a história do assassino, mas a sua própria. Segundo o autor, o contato com Ramón Mercader ocorreu realmente em uma praia de Cuba, onde se sugere que ele teria rogado veladamente para que alguém “escrevesse sua história” (pode ser interpretado, também, como um pedido de compaixão). A partir da junção de três histórias – a de Trotsky, a de Ramón e a do escritor fictício (o alter ego de Padura, Iván Cardenas Maturell) –, Padura critica o regime cubano ao mesmo tempo em que se reaproxima da obra trotskista. Mas não o faz com um romantismo acéfalo de “esquerda” ou um ódio aristocrático de “direita”. Nesse sentido, sua ficção é mais real do que muitas análises ditas realistas e imparciais.
Padura, no entanto, se diz e se mostra “neutro”, deixando transparecer em diversos trechos do livro doses homeopáticas de niilismo. Isso, obviamente, se reflete em sua obra, tendo desdobramentos positivos e negativos. À uma obra de arte – tal como um romance – cabe a possibilidade de uma narrativa “imparcial”, utilizando-se, até mesmo, de ingenuidade, dúvidas otimismos e pessimismos. Porém, em certos momentos, esta “imparcialidade” cobra um preço político, contribuindo para o status quo. As críticas literárias burguesas e seus entrevistadores geralmente nunca deixam de tirar proveito disso.
         A grande força do romance, no entanto, está no fato da releitura sobre o stalinismo e na crítica trotskista a ele. Ou seja, a grande questão é o rumo a ser seguido pelo “socialismo”. É revelador que a crítica literária burguesa nem toque no assunto, pois este é o principal motivo do assassinato e a principal razão de ser do trotskismo. Como sempre faz, a mídia burguesa tenta manter o debate nas raias de uma compreensão rasa sobre Trotsky e a sua luta: ele teria sido um personagem ordinário que tinha como principal finalidade disputar o poder e o perdeu (tendo, por isso mesmo, uma “ascensão” e uma “queda”, terminando por ser assassinado). É bem provável que estes “críticos literários” do jornalismo vigente não tenham lido uma única linha do que o velho revolucionário escreveu. A obra de Padura, ao contrário disso, não permanece na superficialidade da figura de Trotsky; reconhece seu valor histórico, ainda que cometa erros e injustiças nesta valoração.
         Por exemplo: a certa altura da obra demonstra o assassinato como “coisa inútil” e atribui excessos à figura de Trotsky e Lenin, muito além de Kronstadt, embora não cite nenhum outro. Certamente este assassinato não foi nada inútil para Stálin, pois dispendeu tempo e grande soma de dinheiro para planejar e financiar os assassinos; tampouco não o foi para a história: deixou Stálin livre para reinar até 1953, ano de sua morte, sem um crítico coerente, que corajosamente denunciou todas as suas traições. A questão do medo no regime stalinista é amplamente desnudada por Padura, que coloca o tema sob distintos holofotes. Trotsky foi praticamente o único adversário político de Stalin sem medo, o que para época não era pouca coisa.
         Stalin, ao contrário, foi o melhor presente que a burguesia poderia ter recebido. Justamente alcunhado por Trotsky de “o coveiro da revolução”, minou as bases populares e revolucionárias do poder soviético, assassinou toda a velha guarda da revolução e sabotou a possibilidade de outros triunfos revolucionários pelo mundo. Até hoje o socialismo é associado aos regimes construídos e mantidos por Stalin, que nada tem a ver com o socialismo real, como magistralmente reconhecem Mercader e Kotov (o mentor do assassino), anos depois do assassinato, nas páginas 544 e 545; enquanto a mídia burguesa e seus “críticos” se esforçam para não reconhecer nada disso. É justamente por isso que a “crítica literária” da grande mídia se torna parcial, tendenciosa e rasa, sendo incapaz de extrair toda a riqueza da obra. Estes trechos do livro talvez sejam o melhor reconhecimento de todo o trabalho e de toda a luta de Trotsky.
         Lenin e Trotsky não são santos (e nem queriam ser). Sempre deixaram claro que eram seres humanos e, enquanto tal, cometeriam erros. Porém, cometeram erros que podem ter se desdobrado em excessos, mas não eram, de forma alguma, crimes políticos, tal como os praticados por Stalin. O culto à personalidade de Lenin, feito pelo stalinismo, não teve outra finalidade do que fortalecer o poder burocrático, uma vez que as ações de Stalin significavam a negação do que preconizou Lenin, levando-o a um grau absurdo de distorções. Stalin tinha total clareza de que fazia o exato oposto do que supostamente glorificava em Lenin; tanto é assim que mandou matar toda a velha guarda dos bolcheviques com os argumentos mais cínicos e absurdos em “processos” reconhecidamente forjados. Trotsky foi assassinado justamente por que tinha plena consciência disso e o denunciava a cada passo. A mídia burguesa, ao tratar Trotsky da maneira descrita e o socialismo como sinônimo de “regime stalinista”, continua cumprindo, com novas desculpas, o mesmo papel do stalinismo, de distorcer, mentir e excluir aqueles que possuem consciência plena sobre o que foi a URSS deste debate, deixando-os restrito a um gueto político. Se é certo que o leninismo propõe um centralismo democrático dentro do movimento comunista, é muito mais certo que o centralismo proposto por Stalin é um distorção grosseira e criminosa, que nada tem a ver com o que escreveu Lenin (baste ler uma única obra sua e comparar com o que dizia Stalin – ou com o que ele pouco escreveu). O stalinismo exigia o centralismo baseado numa estrita obediência cega e total (exigências nunca feitas por Lenin): isso jamais poderá construir o socialismo, mas apenas novos tipos de fanatismos e, portanto, de stalinismos. Parte da “esquerda”, dentro de sua miséria teórica e filosófica assustadora, ainda continua cometendo esses erros, enquanto cinicamente critica o stalinismo, que é parte de sua prática cotidiana.
         A toda ação corresponde uma reação: isso vale não apenas na física, mas na história também. Ao grande esforço político de Lenin e Trotsky (além de centenas de milhares de outros militantes e operários com consciência de classe) para dar uma direção justa e vitoriosa à Revolução Russa de 1917, correspondeu o “esforço” de Stalin a partir de inúmeros crimes, distorções, mentiras e assassinatos para subverter a mesma revolução e conservar um poder totalmente descaracterizado. Foi a contra revolução surgida do seio da própria revolução, sustentando-se numa tradição hierárquica e burocrática russa não superada, além do atraso político, econômico e cultural do país, somado às consequências nefastas do isolamento internacional (de fora, imposto pelo imperialismo; e de dentro, a partir de uma opção política da própria burocracia stalinista), que mantiveram o poder de Stalin.

2.
         O romance constrói um grandioso cenário internacional, muito fiel a todos os países que relata (México, Espanha, França, Rússia, Noruega). Esta reconstrução reflete a vida de Trotsky, que foi, por sua atuação política, um personagem internacional. Ramón Mercader era uma figura desconhecida. Seu único “feito” foi assassinar Trotsky; e por “isso” foi condecorado na URSS. Sabemos, em razão do seu “feito”, que ele lutou na guerra civil espanhola e foi um “comunista convicto” (no sentido stalinista do termo), mas também um personagem internacional, que viveu em muitos países. Dada a sua missão de agente secreto, foi obrigado a assumir várias personalidades e a se aproximar de diversas culturas, o que o levou a aprender várias línguas. A narrativa, com todos os seus altos e baixos, consegue nos fazer viajar das páginas do livro para os países descritos; e isto, sem dúvida, é um mérito do escritor.
         A figura de Trotsky tende a possuir valor histórico-universal – eis aí toda a sua força política e teórica, que exigiu uma intervenção direta do “coveiro da revolução”. A de Ramón tende ao subjetivo-pessoal. Estranhamente, como ocorre com pessoas deste tipo de caráter, será o conflito de consciência após o assassinato que o fará romper com esta lógica amesquinhadora, embora não saibamos ao certo se ele realmente tenha modificado sua consciência.
         Padura falou em entrevistas posteriores que Trotsky tinha um caráter muito difícil e no fim terminava brigando com todo mundo. Por certo, Trotsky é conhecido por sua vaidade e pelo seu temperamento difícil, embora nem de longe possamos considerar isso como o central de sua personalidade. Felizmente essa declaração infeliz de Padura está em contradição com o Trotsky que ele nos apresenta em sua obra. Para o velho bolchevique, quando assumimos um ideal e ele é sinceramente compreendido e considerado por nós, como parte de uma disciplina livremente contratada, então, isso passa a fazer parte de nossa própria personalidade. E foi assim que Trotsky agiu desde a tomada do poder na Rússia, em 1917, até a sua morte em 1940. Não romper com “aliados políticos” significaria condescender com as atrocidades stalinistas. Se, por um lado, o temperamento de Trotsky tenha acelerado a ruptura com personalidades e amigos pessoais, levando-o a um brutal isolamento; por outro, esta ruptura se fazia necessária para manter a ética de suas posições políticas, que em nenhum caso eram movidas por picuinhas pessoais.
         Do ponto de vista psicológico o livro faz uma análise muito mais profunda de Mercader do que de Trotsky. Como este último é uma personalidade muito mais conhecida do que o primeiro, havendo inúmeros trabalhos historiográficos a respeito, Padura não explorou suficientemente as contradições psicanalíticas desta figura, embora tenha demonstrado sua relação conflituosa com os filhos e amigos, todas elas pautadas num profundo complexo de culpa (em parte real, em parte imaginário). Cabe destacar o grande papel cumprido pela esposa de Trotsky, Natália Sedova, que foi não apenas uma “fonte de ternura” (nas palavras do marido), mas, certamente, quem o manteve de pé. Sem ela, certamente Trotsky não seria o que foi e não teria resistido todo o tempo que resistiu. Sobre isso o livro é de uma clareza meridiana. Tudo isso, no entanto, não impediu Trotsky de ter uma relação extraconjugal com Frida Khalo, que feriu muito Natália e apenas não seguiu, segundo o livro, por uma decisão da pintora.
         Outra análise importante da personalidade de Trotsky foi o que Padura, seguindo uma definição do secretário van Heijenoort, descreveu como “o sopro de Trotsky na nuca”. Utilizando-se do episódio em que Trotsky encontrou-se com André Breton no México para redigirem juntos um manifesto sobre uma arte revolucionária e independente, no sentido de combater o que estava sendo produzido e vendido “como arte” pela URSS, Padura escreve que “nem todos conseguiam viver com um único pensamento na cabeça e que a paixão de Liev Davidovith [Trotsky] era inatingível” (página 370). Esta definição dada por Breton teria irritado muito o velho revolucionário, beirando até mesmo uma ruptura com o pintor. Este “sopro de Trotsky na nuca” se traduzia nas constantes cobranças de prazos e da realização prática dos encaminhamentos, chegando, até mesmo, a muitos conflitos com o seu filho Leon Sedov, que vivia em Paris e era um dos dirigentes da IV Internacional na França.

3.
         Mercader, por não ser uma figura conhecida e, possivelmente, por ter tido contato direto com Padura, é amplamente explorado do ponto de vista psicanalítico no romance, a começar pela sua relação conflituosa com a mãe, Caridad. Militante comunista (na acepção stalinista do termo) e uma mulher que refletia o seu meio social doentio, repleto de morais retrógradas e de uma ampla repressão, foi abusada inúmeras vezes pelo próprio marido, pai de Ramón, o que a jogou nos braços do movimento comunista, sem uma reflexão mais profunda além da raiva. A sua compreensão do “comunismo”, portanto, refletia o seu ódio e a sua necessidade de vingança e destruição. Todos estes sentimentos conflituosos e dolorosos passaram para os filhos; em especial, para Ramón, que também acabou tornando-se um “comunista” no melhor estilo de Caridad. A compreensão de ambos partia principalmente da necessidade de destruição – o que casava muito bem com as aspirações do stalinismo – e era pautado por um seguidismo cego, amplamente cultivado pelos soviéticos-stalinistas que “lutaram” na guerra civil espanhola.
         Para eles, ser “comunista” era obedecer às ordens de Moscou e não questionar nada, apenas executar. Foi percebendo estas atribuições tão caras ao stalinismo que o agente Kotov (um dos asseclas internacionais do stalinismo, de nome verdadeiro Pavel Anatolievich Sudoplatov) recrutou Ramón para o plano de Stalin. Kotov – que, assim como Ramon, assume vários nomes em suas diferentes missões e ao longo do romance – leva Mercader para Moscou onde o “treina” para torna-lo um assassino. O que a União Soviética tinha se tornado? Uma sociedade doentia, pautada pelo medo, empenhada em formar agentes secretos e assassinos profissionais.
         Mercader, então, sofre uma profunda lavagem cerebral e a sua personalidade escorre definitivamente pela latrina, transformando-se numa marionete da chantagem e do medo, embora um agente secreto empenhado, competente e seduzido pela fama e pela glória. Há que se destacar a sua decisão livremente contratada de assassinar Trotsky, a que se somou o aparelho persuasivo soviético. A URSS e o movimento comunista internacional dirigido por Stalin tinha atingido tal ponto de degeneração que assassinar Trotsky significava uma glória! E foi a partir desta sedução que Mercader assume suas novas identidades (ao que cabe perguntar se ele teria tido uma real identidade?). Além da busca por fama, Mercader também queria chamar a atenção de sua namorada, a militante comunista espanhola, guerrilheira na luta contra Franco, conhecida por África de las Heras, sua única e verdadeira paixão – que era uma “máquina de destruição”, segundo expressão do próprio Kotov. Todos estes conflitos psicológicos e aspirações levaram Mercader a desempenhar o seu nefasto papel histórico.

4.
         O agente Kotov tornou-se o mentor de Mercader, dando-lhe dinheiro, orientações políticas e amparo sentimental e psicológico. O medo foi a sua principal arma (assim como foi a principal arma do stalinismo). Envolveu-se com Caridad, tornando-se padrasto de Mercader. Esta relação incestuosa, que durou cerca de 3 anos, entre preparações, passos adiantes e para trás, resultaram no envolvimento da trotskista norte-americana, Sylvia Ageloff, que foi usada por Mercader para chegar até Trotsky numa verdadeira farsa amorosa que durou alguns anos.
         O atentado do Partido Comunista Mexicano contra Trotsky, cometido poucos meses antes do fatídico 20 de agosto de 1940, não obteve sucesso, mas teve um efeito destrutivo sobre o velho revolucionário, que parece ter se largado a própria sorte. Ramón, sob o pseudônimo do belga Jacques Monard, se aproximou de Trotsky em alguns encontros, até ser orientado por Kotov a lhe apresentar um artigo, no sentido de ganhar sua atenção e maior intimidade. Por duas vezes Ramon Mercader pôde ficar a sós com Trotsky, tendo a liberdade de vê-lo pelas costas por vários minutos. Este “desleixo” de um combatente que viveu a maior parte da sua vida na clandestinidade diante de um desconhecido demonstra, no mínimo, o seu cansaço. Alguns meses antes ele já tinha escrito seu testamento político.
         A segunda visita de Mercader foi fatal. Munido de uma picareta escondida em um sobretudo, Mercader desferiu um golpe certeiro e pelas costas, sintetizando a prática política do stalinismo: traiçoeira, sem olhar o oponente de frente e sem o menor direito à defesa. Trotsky ainda resistiu, dando um grito que iria marcar Ramón até o final dos seus dias e mordendo a mão do seu assassino. Segundo o livro, um dos objetivos de Stalin era que Mercader fosse morto pelos sentinelas e guardas que voluntariamente acompanhavam Trotsky na sua casa fortificada em Coyocán, mas a pedido dele a vida de Mercader foi poupada “para que ele falasse”.
         No entanto, por 20 anos Mercader não falou. Ele cumpriu sua pena, abaixo de tortura, sem dizer uma única palavra. Teria Mercader resistido a esta repressão se ele lutasse realmente por um ideal que valesse a pena sem o controle, o medo e as chantagens do stalinismo? Se tivesse sido preso por Franco na guerra civil espanhola, por exemplo? São estes tristes dilemas que fazem o gênero humano nos assustar com o seu lado sombrio. Logo após ser libertado, Ramón Mercader foi à União Soviética, onde foi condecorado como herói, não por Stalin (que já estava morto), mas por Kruschev. Isso demonstra, na prática, que o mito da “desestalinização” não passou de uma mentira muito bem contada.

5.
         O livro de Padura faz uma dura crítica ao regime cubano, herdeiro do stalinismo, embora não declaradamente. Não fala nada sobre o bloqueio econômico mantido pelos EUA, o que empobrece um pouco a complexidade da questão. A narração deixa claro que Trotsky não sofreu menos censura em Cuba do que na URSS. A rebeldia e o caráter político da obra de Padura, entretanto, está em reconstruir esta censura de Trotsky na ilha caribenha, ainda que suas conclusões não se aproximem do trotskismo e possamos ver até mesmo alguns traços niilistas em diversos trechos da obra. A crítica ao regime cubano se estende à URSS da era Kruschev e Brejnev, onde um homem estrangeiro, mas condecorado pelo governo, como Ramón Mercader (com uma condecoração, no mínimo, questionável), tinha mais direitos que trabalhadores e operários, que por medo, não expressavam seu descontentamento contra tal atitude. Anos de stalinismo geraram uma submissão profunda e privilégios inaceitáveis.
         À este excelente exame do regime stalinista feito por Padura, se somam grandes debates entre Mercader e Kotov, que reconhecem o papel do medo e do cinismo na construção e na manutenção da ordem social stalinista. Mesmo tirando grandes conclusões e indo além, afirmando que para executarem a tarefa de assassinar Trotsky assumiram “um ideal que não existia” e que “não lutavam pelo socialismo”, Padura não deixa de se reconhecer como parte dos “derrotados históricos” e de mandar todos os revolucionários, incluso Trotsky, para a “puta que pariu”. Se o escritor reconhece que “explicou um pouco sobre como e porque a utopia se perverteu”, há que reconhecer que havia força e um caminho na obra de Trotsky, e que parte desta força e deste caminho fez e faz falta para Cuba e para os demais países do mundo, todos subjugados pelo grande capital. Sabemos que o golpe contra a “utopia” foi forte, mas o seu testemunho a partir desta obra pode ajudar a esclarecer as suas causas mais profundas.
         Já com o nome do seu segundo e último pseudônimo no livro, Daniel Fonseca Ledesma, Padura expõe um novo desfecho niilista, afirmando que Trotsky, Stalin e todos os que participaram do movimento comunista, de forma indistinta, teriam ignorado “as pessoas em geral”, dando a entender que em muitos casos sequer chegaram a pensar alguma vez nelas. Conclui afirmando que ele e tantas outras pessoas não pediram para “fazer parte dessa história” (ou seja: fazer parte da “história do socialismo”).
         Da parte de Stalin e dos stalinistas é certo que não houve sensibilidade e sequer um único pensamento nas pessoas comuns. Da parte de Trotski e das centenas de militantes da oposição de esquerda torturados e mortos pelo aparato não devemos ter dúvidas de que não apenas tinham, como colocaram as suas vidas em prol destas pessoas. Também podemos responder a Padura dizendo que nós e tantas outras pessoas do mundo não pedimos para fazer parte da história da sociedade capitalista, mas, no entanto, fazemos, de forma totalmente arbitrária e contra a nossa vontade. Cabe a nós, percebermos a “perversão da utopia”, os erros, excessos e crimes das experiências revolucionárias do passado, para traçarmos uma linha pro futuro, onde fique cada vez mais difícil para os perversos cumprirem seu papel histórico de perverter, e abrir caminho para que o lado sensível dos seres humanos – em síntese, “dos homens que amam os cachorros” – possa dar a tônica do desenvolvimento histórico.
***
         PS: uma declaração curiosa dada por Padura a jornalistas contraria o que foi escrito nas últimas páginas do livro, já assinado com o seu verdadeiro nome (no capítulo Nota muito agradecida). Nesta nota ele afirma que esteve na casa museu de Leon Trotsky, em Coyoacán, no México, e que foi o seu amigo mexicano Ramón Arencibia que o levou “para visitar a casa onde viveu e morreu Leon Trotsky”. Desta visita “nasceu a ideia de escrever o romance”.
         Em entrevista ao porta Sul21, publicada no dia 13 de novembro de 2015, Padura afirmou o exato oposto. Nas suas palavras: “A casa de Trótski no México era um cenário fundamental e eu não pude conhecê-la. A altitude mexicana me afeta sobremaneira, minha saúde não permite que eu vá até lá, mas consegui fotografias de cada detalhe. Remontei a casa através de fotos”. Tudo isso soa, no mínimo, estranho.

domingo, 10 de junho de 2018

Como não mudar o mundo

Hobsbawm e os “atualizadores” do marxismo

        O historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012), consagrado pela mídia, pelas universidades e, até mesmo, por setores da “esquerda” com o título de “marxista”, escreveu um livro de sugestivo nome, chamado Como mudar o mundo, onde tenta traçar uma evolução da teoria marxista desde o século 19 até o 21. Hobsbawm foi membro do Partido Comunista Britânico até a restauração do capitalismo na ex-URSS, por volta de 1991. Já antes deste período, apresentava algumas críticas ao movimento “comunista”, o que não o fez romper com o PC. Apesar de ser crítico dos desvios stalinistas e do marxismo dogmático, levou consigo as marcas do programa stalinista. Isso se observa, sobretudo, em sua crítica incontida e injusta ao trotskismo, feita sutilmente em quase todas as suas obras. Assim como alguns autores, procura não bater de frente com o pensamento de Trotsky, embora o desmoralize sutil ou abertamente sempre que possível.       
       Talvez este seja um dos principais motivos de ser um historiador comemorado pela grande mídia, pelas universidades e, simultaneamente, por parte de setores da “esquerda” e, até mesmo, por empresários. Periódicos como a Revista Veja e jornalistas como Willian Waack recomendarem a leitura de Hobsbawm deveria servir, no mínimo, como alerta para qualquer trabalhador consciente.
         Também parece incorreto considerar que o seu método de análise da história seja o mesmo do marxismo; isto é, o método que parte da luta de classes. Hobsbawm é um crítico do que ele chama de “marxismo dogmático” e, nesta luta por supostamente renová-lo, joga a criança fora junto com a água suja da bacia. É um “comentarista” da história, na qual sempre acaba por apoiar capciosamente todo o tipo de social-democracia (inclusive o PT).
Em relação à tentativa de “atualizar” o marxismo para o século 21 não há nada o que se objetar. Uma revisão teórica é sempre necessária e salutar, desde que observados certos critérios. Parece, contudo, que Hobsbawm carrega uma série de preconceitos empresariais. Ao invés de trabalhar para criticar o “marxismo dogmático” e as experiências “socialistas” pela ótica dos trabalhadores, Hobsbawm inverteu a lógica, colocando óculos empresariais. Um breve olhar crítico sobre as principais teses do referido livro, elucidam posições que pretendem esvaziar o marxismo do seu sentido revolucionário, retirando-lhe princípios elementares e dando interpretações reacionárias para certas contradições do pensamento marxista.
***
         É bem provável que Hobsbawm reflita as condições materiais da Inglaterra, que desde o século 19 apresenta um “operariado-burguês”. Esta conclusão é de Marx e Engels, que por décadas estudaram a relação entre o movimento operário inglês e as particularidades imperialistas do capitalismo inglês.  
Em 7 de outubro de 1858, Marx escreveu a Engels o seguinte: “O proletariado inglês se aburguesa de fato cada vez mais; pelo que se vê, esta nação, a mais burguesa de todas, aspira ter, no fim de contas, ao lado da burguesia, uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês. Naturalmente, por parte de uma nação que explora o mundo inteiro, isto é, até certo ponto, lógico”.
Para além de “operários-burgueses”, a Inglaterra parece ter formado também historiadores “marxistas-burgueses”.

1.
         O marxismo foi fundado e mantido vivo por revolucionários; isto é, por aqueles que estavam na linha de frente da luta de classes. Hobsbawm é um historiador acadêmico. Ainda que tenha sido militante do PC, sua visão do marxismo – e, principalmente, sua crítica a ele – reflete esta condição. Para todos aqueles que fazem do marxismo um “guia para ação”, na luta de classes não pode haver dogmatismo, nem menosprezo aos alertas sobre as suas infiltrações burguesas, que pretendem lhe tirar a essência revolucionária e transformá-lo numa espoleta sem pólvora.
Eric Hobsbawm (1917-2012)
         Uma dessas principais infiltrações burguesas no marxismo foi o que Rosa Luxemburgo e Lenin definiram como “reformismo”, cujo principal expoente, reconhecido até mesmo por Hobsbawm, foi Edward Berstein, líder do Partido Social-Democrata alemão. O reformismo retira a essência do marxismo: substitui a revolução proletária, a tomada do poder e a ditadura do proletariado por uma estratégia meramente eleitoral, gradualista, evolucionista vulgar; como se os trabalhadores pudessem ir elegendo representantes que fariam modificações estruturais por dentro do Estado burguês, até chegar o momento de uma mudança em benefício dos trabalhadores, supostamente em direção ao socialismo. Todas as experiências reformistas na história (em especial as Frentes Populares) não apenas falharam, como abriram precedentes para uma reação sem tréguas por parte da burguesia. O atual golpe do impeachment contra o PT no Brasil (2016) é apenas mais uma triste confirmação.
         Esta questão, portanto, não é menor para o marxismo. A “atualização” pretendida por Hobsbawm, com a desculpa de fugir do dogmatismo, modifica sua essência, muda a qualidade do objeto. De revolucionário, o “marxismo” passa a tolerar a conciliação de classe, o abandono da estratégia revolucionária, a aceitação da estrutura social burguesa. Para uma vanguarda de trabalhadores conscientes, esta diferenciação do marxismo tem implicações profundas nas táticas a serem adotados e, certamente, um fim diferente para cada uma delas.
         Hobsbawm afirma que “para Marx, o importante não era saber se os partidos da classe operária eram reformistas ou revolucionários, ou mesmo o que esses termos implicavam. Ele não via nenhum conflito, em princípio, entre a luta cotidiana dos trabalhadores pela melhoria de suas condições sob o capitalismo e a formação de uma consciência política que previsse a substituição do capitalista pela sociedade socialista, ou as ações políticas que levavam a este fim” (página 65). Aqui há uma imprecisão perigosa. É certo que Marx nunca usou o termo “reformista”, pois este só foi introduzido posteriormente no movimento operário por Rosa Luxemburgo, em sua luta teórica contra a social-democracia alemã, sobretudo após 1900. Porém, toda a obra de Marx atesta a sua luta por uma linha política revolucionária justa, fazendo a junção entre as lutas cotidianas por melhorias e a consciência política que levavam ao fim do capitalismo. Aliás, se o marxismo tornou-se uma referência para os trabalhadores do mundo não foi por uma casualidade mística, mas sim por toda a coerência teórica e política mantida por Marx e Engels, apesar de todas as suas adversidades, contradições e erros.
         Trotsky escreveu um livro específico sobre o tema (que provavelmente deve ser conhecido por Hobsbawm), chamado Programa de Transição, que visa preparar a vanguarda dos trabalhadores para fazer a junção entre o programa mínimo (a luta cotidiana por melhorias) e o programa máximo (o socialismo; isto é, o fim do capitalismo). Trotsky argumentou que os reformistas desejavam manter a luta restrita a este programa mínimo, baseado no imediatismo e no espontaneísmo; os sectários, por sua vez, levantavam apenas o programa máximo, sem se atentar às questões diárias e imediatas. Os marxistas, segundo a análise de Trotsky, precisavam fazer a junção dialética dos dois. Seria impensável um marxismo dissociado da luta contra o imediatismo e o oportunismo.
Na passagem citada, Hobsbawm não crítica os erros da teoria de Marx, mas os seus méritos. As polêmicas de Marx com Proudhon, Louis Blanc, os diversos tipos de “socialismo” (expresso, sobretudo, no Manifesto Comunista), a célebre polêmica com o professor Duhring, Lassale, os chamados socialistas “verdadeiros” e os “utópicos”, bem como a sucinta, mas profunda, crítica ao programa de Gotha do Partido social-democrata alemão, seriam mero acaso em toda a literatura marxista?
A própria luta contra o “reformismo” – visto como uma desvirtuação do marxismo – é uma correta tentativa de “atualização” do marxismo para o início do século 20. Contudo, esta atualização está no mesmo espírito com o qual o marxismo foi fundado e mantido durante o século 19. Hobsbawm desconhecer ou minimizar esta diferença, a pretexto de evitar dogmatismos, é bastante arriscado. É certo que existem profundas tendências ao sectarismo e a uma visão mecanicista do pensamento marxista no movimento socialista atual, embora estes problemas não estejam apenas no campo dos “esquerdistas”, mas a quem pode beneficiar este relativização entre a visão reformista e revolucionária do socialismo, como se pudessem ser a mesma coisa para Marx?

2.
         Outro grande defeito do pensamento de Hobsbawm é a ausência (ou seu silêncio) a uma crítica séria ao stalinismo. Faz o oposto da sua crítica em relação à obra de Marx: critica apenas os aspectos secundários do stalinismo e silencia sobre os mais graves. Por décadas o stalinismo se vendeu como o “verdadeiro marxismo”. Muitos intelectuais burgueses e a sua mídia sabem bem que isso não é verdade, mas preferem propagar e reafirmar esta falsa consciência. Hobsbawm tem perfeita clareza sobre isso, mas não esmiúça estas falsificações, chegando em determinados momentos a silenciar completamente. Em algumas passagens é bastante obscuro, hermético, dúbio, endossando sutilmente esta compreensão. Seria isso uma forma de apoiar o stalinismo subjacentemente?
         Sempre que pode, Hobsbawm relembra o número pequeno de adeptos do trotskismo. Afirma que “grupos marxistas dissidentes” se sentiam atraídos pelo trotskismo, “mas esses grupos eram numericamente tão pequenos em comparação com os principais partidos comunistas que essa atração era desprezível do ponto de vista quantitativo” (página 239). Este trecho se repete em muitas outras passagens do referido livro e de outros. Desmerecer um pensamento, um programa político ou uma teoria pelo seu número de adeptos é um tanto contrário à lógica da filosofia marxista. O próprio Marx morreu em uma época em que tinha poucos adeptos, logo depois da dissolução da 1ª Internacional. Por mais importante que seja o número de adeptos, o trotskismo deve ser medido pelo valor, profundidade e coerência de sua crítica. Hobsbawm ignora todas as premissas da crítica trotskista e parece ter preocupação apenas pelo aspecto quantitativo, tal como os economistas burgueses que se preocupam somente com o crescimento do PIB e não com a condição real de vida das pessoas – sobretudo das classes mais pobres. Pior do que isso: Hobsbawm trata a teoria da Revolução Permanente (que foi a principal síntese teórica da experiência revolucionária russa) como ultraesquerdismo. E faz tudo isso para quê? Para apresentar a social-democracia - isto é, o reformismo - como alternativa.
O marxismo do nosso século é o trotskismo; e Hobsbawm ignora isso solenemente. Quer “atualizar” o marxismo renegando sua principal contribuição independente ao longo do conturbado século 20. É como querer falar da física moderna e excluir as polêmicas envolvendo Einstein. Do ponto de vista político, é inegável que Trotsky foi um fiel seguidor do método de elaboração de Marx e Lenin, enquanto Stalin, se utilizando de um rótulo “marxista”, deturpou grosseiramente inúmeros princípios dialéticos e políticos de ambos. Basta citar a questão do internacionalismo. Deste verdadeiro escândalo, Hobsbawm estranhamente não tira nenhuma conclusão. Este silêncio suspeito seria uma forma de apoio a Stálin?

3.
         Ao contrário do que faz com Trotsky, Hobsbawm, tal como a maior parte da esquerda institucionalizada na Europa e no Brasil, derrete-se em elogios a Antonio Gramsci e à sua obra, dedicando a ele dois capítulos inteiros do referido livro, enquanto não dedicou uma única análise séria e refletida à obra de Lenin e Trotsky. Antonio Gramsci foi um grande intelectual italiano, representante do Partido Comunista daquele país que lutou contra a ascensão do fascismo. Ele seguiu combatendo mesmo nas piores condições carcerárias, escrevendo e deixando um legado importantíssimo para o pensamento socialista. Suas contribuições são notáveis, fazendo sínteses importantes no campo da cultura, tendo um valor especial para os países do continente europeu.
Apesar da sua grande contribuição na questão cultural, sua estratégia política (as frentes populares) para o “ocidente” se demonstrou uma grande forma de conciliação, que se traduziu em novas traições políticas (republicanos na guerra civil espanhola, Mitterand na França, PT no Brasil, e tantos outros). As frentes populares foram, na verdade, propostas originalmente surgidas do próprio stalinismo, que Gramsci tomou como uma original estratégia socialista para os países do ocidente. Por mais que se procure em suas obras alguma proposta estratégica diferente, sempre acaba-se encontrando a mesma “saída”: a constituição de frentes populares (ou seja, a aliança entre a burguesia e o proletariado).
         O problema da obra gramsciana é que há profundas lacunas que abrem perigosos precedentes ao oportunismo. Por exemplo, analisemos a questão da “hegemonia” (termo caro ao pensamento gramsciano). É óbvio que hegemonia do proletariado precisa crescer sobre a sociedade civil para se quebrar a hegemonia burguesa. E isto precisa se dar antes, durante e depois da revolução (isto é, da tomada do poder). A tomada do poder é apenas um episódio que indica uma mudança de qualidade na luta de classes em prol do proletariado. Após a tomada do poder um novo ciclo de construção da hegemonia proletária sobre a sociedade se desenvolve em condições mais favoráveis. A questão é: devemos abrir mão da tomada do poder se não tivermos a hegemonia proletária totalmente construída na sociedade civil? Gramsci – apoiado por Hobsbawm e por todo o pensamento reformista – parece indicar que não!
         A sua conciliação no campo estratégico, não anula a sua contribuição teórica no campo cultural, literário e mesmo no campo político. Hobsbawm não diferencia estes campos, nem procura tirar maiores conclusões. Gramsci é exaltado como o maior continuador do pensamento marxista; ao mesmo tempo em que abafa e ignora as principais contribuições do pensamento de Trotsky “pelo seu peso numérico”.

4.
É bastante corriqueiro na obra de Hobsbawm o termo “colapso do comunismo” quando se refere ao fim da URSS. Não casualmente, repete o termo utilizado incessantemente pela mídia e pelas universidades burguesas. O termo “colapso” significa a redução brusca de eficiência, de capacidade (no caso de um colapso econômico); e a ruína, o estado daquilo que está desmoronando, do que está em crise ou prestes a acabar (no seu sentido mais figurado). Em todos os casos transparece a intenção de dizer que o sistema colapsou em si mesmo, é ineficiente por natureza e não dá certo. Ora, um historiador tão bem informado como Hobsbawm deveria buscar uma reflexão mais profunda dentro do campo do próprio proletariado. Mas ele faz exatamente o oposto, como já foi dito.
Ambos os termos amplamente utilizados por Hobsbawm – socialismo real e colapso – foram criados e são utilizados amplamente pela burguesia. Este “colapso”, na verdade, é uma isca para a intelectualidade, pois tem duas raízes mais profundas que nunca são abordadas: I - a burocracia stalinista, que se formou, cresceu e, por fim, dominou todo o aparato do estado soviético de 1930 até 1991, desenvolvendo uma orientação econômica catastrófica; e II - uma política aplicada por esta mesma burocracia entre 1989 e 1991, chamada de Perestroika, que teve a finalidade consciente de restauração do capitalismo, utilizando-se, para isso, de um discurso de “aprofundamento do socialismo”.
Após a restauração do capitalismo na URSS, leste europeu, China e Cuba, se abriu uma ofensiva ideológica que colocou o “socialismo” como algo irrealizável e indesejável, tal como se fosse um projeto de lunáticos. Por um lado, esta ofensiva se utilizava dos crimes stalinistas e das demais burocracias políticas de outros países “socialistas” como forma de assustar os trabalhadores (tal como fazem até hoje); por outro lado, procuravam manipular sentimentos, informações e, se utilizando do irracionalismo de amplos setores das massas, afirmava que o socialismo só pode “ser isso”.
O “marxista” Hobsbawm, ao invés de combater e desmistificar todas estas distorções, faz coro com elas, demonstrando-se um historiador e um economista muito respeitável... para a burguesia!

5.
         Não restam dúvidas que Hobsbawm é um grande conhecedor da teoria marxista. Domina os principais nomes do movimento operário de cada país europeu (e até mesmo mundial) que reivindicam o legado de Marx. Suas construções históricas não seriam possíveis se ele não fosse um real conhecedor da obra marxista. A despeito de toda a crítica que foi feita a ele até aqui, a sua produção historiográfica (“A era das revoluções”, “A era do capital” e “A era dos impérios”) possui valor e precisa ser conhecida por todos os militantes e trabalhadores conscientes, ainda que com criticidade, ressalvas e desconfiança.
         Embora o livro seja uma grande construção historiográfica, muito pouco contribui para se entender “como mudar o mundo”. No geral, o capítulo intitulado “A influência marxista (1890-1914)” é muito aborrecedor (literariamente falando) e desconectado. Este capítulo e o restante do livro servem mais para entendermos como adaptar uma teoria revolucionária à institucionalidade acadêmica do que utilizar o marxismo como um guia para ação no sentido de mudar o mundo realmente.
         O fato de Marx e Engels terem falado no Manifesto Comunista (1848) que o proletariado está predestinado a ser o coveiro da burguesia e do capitalismo – e isto não ter se concretizado até o presente momento – não invalida a análise e, muito menos, a dialética. Superar uma classe na história não é um passeio no parque ou um pulo de gato, mas um longo processo repleto de avanços e retrocessos. O marxismo é uma teoria viva. Apenas os “dogmáticos” ou aqueles que têm interesse em desmoralizar o pensamento socialista podem tratar esta afirmação como uma profecia religiosa e imutável.
         Num ponto há que se ter acordo com Hobsbawm: devemos combater o dogmatismo no marxismo! Mas como?
         Todo e qualquer tipo de autoritarismo ou dogmatismo devem ser estudados, dissecados; para logo a seguir serem denunciados, rebatidos e superados. O stalinismo foi o campeão do dogmatismo. Enlameou o nome do socialismo para os trabalhadores do mundo e vulgarizou no mais alto grau o pensamento marxista. O trotskismo (e outras vertentes do pensamento marxista) também apresentaram algum grau de dogmatismo, embora de uma forma bem distinta do que foi o stalinismo. Hobsbawm teve todos os elementos e possibilidades de reconhecer esta profunda diferença, mas em todo o livro tende a tratar tudo como uma coisa só, e o pensamento gramsciano como o “renovador oficial” do marxismo.
         Combater o dogmatismo no pensamento marxista deve levar em conta dois critérios fundamentais já levantados por Marx e Engels:
         I – Respeitar dialeticamente os princípios (sobretudo aqueles confirmados pela experiência mais dolorosa da luta de classes) e renovar as táticas;
         II – Procurar ligar o marxismo a todo o tipo de avanço científico que a humanidade conquistar (com especial destaque para as descobertas no campo psicanalítico).
         Em ambos os casos Hobsbawm deixa a desejar. Os princípios escorrem pela latrina junto com sua severa crítica ao “dogmatismo”. O seu livro, portanto, é um negativo; serve para demonstrar como não mudar o mundo!