domingo, 19 de abril de 2015

Dois poemas modernistas

O Rebanho

Oh! minhas alucinações!
Vi os deputados, chapéus altos,
Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,
Saírem de mãos dadas do Congresso...
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos salvadores do meu Estado amado!...

Desciam, inteligentes, de mãos dadas,
Entre o trepidor dos taxis vascolejantes,
A rua Marechal Deodoro...
Oh! minhas alucinações!
Como um possesso num acesso em meus aplausos
Aos heróis do meu Estado amado!...

E as esperanças de ver tudo salvo!
Duas mil reformas, três projetos...
Emigram os futuros noturnos...
E verde, verde, verde!...
Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados, chapéus altos,
Mudavam-se pouco a pouco em cabras!
Crescem-lhe os cornos, descem-lhe as barbinhas...
E vi que os chapéus altos do meu Estado amado,
Com os triângulos de madeira no pescoço,
Nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,
Se punham a pastar
Rente do palácio do senhor presidente...
Oh! minhas alucinações!

(Mário de Andrade, in Paulicéia Desvairada, 1922)

Erro de português

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

(Oswald de Andrade, in Pau-Brasil, 1926).

Os poemas “O Rebanho” e “erro de português” dos poetas modernistas Mário de Andrade e Oswald de Andrade abordam o tema da situação política brasileira, tanto do ponto de vista da sociedade “independente” pós-colonização portuguesa, quanto do início da própria colonização. A análise da situação de dependência do Brasil é uma preocupação recorrente na obra dos dois autores, que procuram ajudar na emancipação cultural e política do Brasil, bem como na criação de uma identidade nacional. Tanto um quanto outro poema contribuem para o encontro desta identidade.

No poema de Oswald percebemos claramente esta preocupação, quando logo se constata no primeiro verso uma referência à chegada dos portugueses ao Brasil. O ato de "vestir" e de "despir", expostos naqueles versos, sugere a relação de poder entre o povo dominante e o povo dominado. Vestindo os indígenas, o colonizador tinha a intenção de impor sua cultura: catequese, língua, vestimentas, etc. A maneira em que nos vestimos é uma reflexão da influência da sociedade a que pertencemos. As vestimentas de uma população refletem seus hábitos, sua cultura. O poema refere-se também às condições da chegada dos portugueses: "debaixo duma bruta chuva", que é usada para simbolizar os tempos sombrios que estavam por vir e que “nublariam” o sol da vida simples e idílica dos povos indígenas.

Já em "O rebanho", a alucinação ganha foro de “iluminação”. O tema da loucura, também presente em outros poemas de “Paulicéia Desvairada”, traduz os ritmos das negociatas políticas, captados em meio às alucinações do poeta. No primeiro verso da primeira estrofe, podemos ler "Oh! Minhas alucinações!”, trecho que se repete mais de três vezes ao longo do poema, incluindo no seu último verso. Tal frase não emoldura um texto em vão. Ela certamente remete à ideia de imaginação e desejo de algo diferente da realidade vivenciada, a qual percebemos ser a realidade política da época em questão. A seguir, o restante da primeira estrofe descreve a atitude e a pose arrogante de políticos de nosso país sob a visão irônica do poeta.

Ao aplaudir os deputados deixando o Congresso, o “eu poético” vê os distintos políticos transformados em “cabras”. Investido da liberdade pela “alucinação”, a voz lírica satiriza os políticos, que, sob a face distinta dos “chapéus altos”, envergam trejeitos, trajes e costumes de pessoas mandadas, comandadas e dirigidas, como cabras ou gado em seus rebanhos, que seguem a “correnteza”. Aqui, novamente, vemos a alegoria dos trajes estrangeiros presentes na definição da dominação e na aculturação. O parlamento brasileiro, que deveria ser soberano e “original”, além de ter de debater mais de duas mil reformas e aprovar meros três projetos, segue a imagem semelhança de um parlamento europeu, mais especificamente do parlamento britânico. As roupas para o frio, típicos do clima europeu, com os seus “chapéus altos”, cartolas, ternos e sobretudos, são trazidas mecanicamente para a realidade brasileira, onde impera um calor infernal que contrasta com tudo aquilo. Ser “civilizado” e “progressista” para eles é copiar o que vem das metrópoles européias, inclusive a vestimenta. Ainda é possível estabelecer um laço de continuidade entre “O rebanho” e “Ode ao burguês” (poema famoso que também consta em "Pauliceia Desvairada"), uma vez que se afinam como sátira, como escárnio expressionista ao burguês e à sua sociedade, criada à imagem e semelhança da sociedade burguesa européia.

O senhor presidente, por sua vez, surge com a sua figura mítica de um verdadeiro fazendeiro, dono do rebanho. O seu palácio seria uma espécie de casa grande da fazenda, dispondo de um amplo campo verde, onde os deputados-cabras pastariam conforme a vontade do dono. O uso da palavra “esperança” enche o poema de expectativa incerta sobre o futuro de nossa nação, a de “ver tudo salvo!”. Como se algo estivesse perdido, mas tivesse solução. No entanto, não é o poeta que pode agir e resolver os problemas que vê, mas aqueles que poderiam por em prática seus “projetos”. O poeta só pode esperar que eles ocorram através de suas “verdes alucinações”, onde deixa evidente que o verde é a cor da esperança.

Podemos constatar com os dois poemas analisados que eles não apenas criticam o passado colonial e a “atualidade” de repetições dos padrões e modas políticas das metrópoles européias, mas, sobretudo, investem em uma ruptura com o passado literário nacional. Ou seja, procuram a experimentação de novas técnicas e, principalmente, da liberdade poética para criticar o passado colonial e aquela realidade brasileira ainda não superada.

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