quinta-feira, 30 de maio de 2024

Quem tem que reconstruir Porto Alegre e o RS?

 


A "reconstrução" de Porto Alegre e do RS deixa visível muitas contradições para quem tiver coragem [e honestidade] para ver:
>> Lucros privatizados, prejuízos socializados: o aeroporto Salgado Filho foi privatizado (inclusive com o apoio e incentivo do governo Dilma); após a enchente a empresa beneficiada fala em relaxamento do pagamento de suas parcelas junto ao governo. Ou seja, nos momentos de crise depende do Estado para a sua reconstrução. O que pode beneficiar um país de dimensões continentais a privatização de um ponto chave da infraestrutura de seus transportes tão importante quanto um aeroporto?
>> A "onda de solidariedade" não comove a propriedade privada e a especulação imobiliária: vemos vários imóveis vazios e centenas de desabrigados. Muito se fala da solidariedade das pessoas e do Brasil com o povo atingindo. Mas isso tem um limite bem evidente: a propriedade privada e o lucro do mercado imobiliário são insensíveis às imagens dramáticas que vemos todos os dias nas redes sociais e intocáveis; portanto, são mais importantes que as vidas humanas atingidas, que as lágrimas e as emoções filmadas e disseminadas pelos quatro cantos do país e do mundo. Por que a tragédia das enchentes e a suposta solidariedade que despertam não é capaz de sequer arranhar e colocar em questão a propriedade privada? Não seria isso a demonstração de que a solidariedade é seletiva e vai até certo ponto?
>> A seletividade da solidariedade também se dá no caso dos animais: muitos foram encontrados mortos nas lojas no centro de Porto Alegre e no shopping Praia de Belas. Enquanto se exaltou o resgate de pets na grande mídia (incluindo o do cavalo caramelo, em cima de um telhado), a busca pela explicação deste fato gravíssimo — um verdadeiro crime ambiental — passa quase despercebido.
Por que um dos resgates prioritários de pets não se deu no arrombamento das portas dessas lojas para os libertar com a maior urgência possível? Seria respeito e medo das consequências de "violar uma sagrada propriedade privada"? Por que os próprios comerciantes (que foram avisado previamente sobre a possibilidade de alagamento de suas lojas) não exigiram ajuda para resgatar estes animais? Ou eles estariam calculando no seu íntimo que talvez "suas mercadorias" pudessem sobreviver e, depois que a água baixasse, o comércio poderia ser retomado?
>> A dependência e a falta de soberania até mesmo para a reconstrução do país: a prefeitura de Porto Alegre e o governo do Estado anunciaram a contratação de uma empresa ianque para a suposta reconstrução do pós-alagamento. A empresa é a Alvarez & Marsal, que já atuou na reconstrução de New Orleans após a passagem do furacão Katrina. Basta dizer que nesta cidade todo o sistema educacional público foi privatizado, com as orientações e bênçãos da Escola de Chicago.
Certamente já podemos ver a influência dessa empresa na nomeação do novo secretário de educação do município, que era ex-diretor da Carris (empresa de transporte) e responsável pelo início do seu processo de desmonte privatista. Ele não entende nada de educação, mas é expert em privatização e gestão neoliberal. Há muito tempo os projetos educacionais públicos no Brasil vêm sendo geridos e propostos por pessoas assim.
Se um país e um Estado não possuem capacidade, projetos, recursos e instituições capazes de promover e incentivar a sua reconstrução e, portanto, depende de uma intervenção de uma empresa estrangeira, como podemos falar em soberania? Como poderemos nos preparar para outros desafios climáticos?



sábado, 25 de maio de 2024

Até onde vai a tua solidariedade?

 

Frente às tragédias dos alagamentos no RS e em Porto Alegre vemos se espalhar uma grande onda de solidariedade por entre as pessoas. Soa bonito e sublime — e de fato até é.
No entanto, podemos ver também uma contradição!
No dia a dia, somos egoístas e medíocres. No meio de uma calamidade, rugimos como leões frente às exigências da sobrevivência coletiva. Subitamente nos lembramos de que existem outras pessoas para além do nosso umbigo — lembramos, até mesmo, dos animais!
Contudo, a solidariedade humana tem sido seletiva, para alguns e em momentos críticos.
Não podemos ser e vivenciar realmente a solidariedade se nos preocuparmos com os outros apenas diante das catástrofes. E o dia a dia? E a nossa família, como a tratamos? E os moradores de rua que vegetam fora de abrigos permanentemente? E os vizinhos, como os escutamos e reagimos a eles? E aquelas pessoas que não gostamos no trabalho? E aquele colega que falamos mal pelas costas, sem se preocupar com os efeitos maléficos da fofoca, como fica?
A solidariedade seletiva e ocasional pode nos redimir disso tudo? Ou seria a solidariedade seletiva apenas um alívio imediatista para a nossa própria consciência — isto é, uma percepção individualista e egoísta de que precisamos "cuidar do outro" porque somos "animais sociais" e morreremos juntos se a coletividade destruir-se?
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O que os momentos de crise, como enchentes e pandemia, trazem à tona?
No mercado público de Porto Alegre, tomado pelas águas do Guaíba, as baratas jorram pelos canos e esgotos, e, sobretudo, a classe média (mas não apenas ela), que sempre assiste tudo de longe e joga a sujeira para o debaixo do tapete, fica chocada.
Barata, sujeira, fedor, é tudo o que evitamos olhar no dia a dia. É tudo aquilo que queremos dizer que não faz parte de nós, da nossa moral, da nossa sociedade. Mas a sujeira está ali. As baratas estão ali, cotidianamente; as manutenções não feitas em todas as esferas também estão ali. Da mesma forma estão ali os trabalhos não feitos; a crítica não feita ou ignorada; a mentira assimilada e tratada como verdade.
Tudo isso jorra pra fora nos momentos de crise. A hipocrisia da "doação preocupada consigo mesma" (tipo religioso que dá esmola pensando na "retribuição" da vida eterna), que ignora a política econômica aplicada no dia a dia, que gera os baixos investimentos sociais (inclusive na manutenção das bombas e nos sistemas antienchentes dos bairros pobres), que não tem preocupação ambiental e animal real — só consumismo! —, que não resgata ninguém em situação de rua, que só faz PIX, mas não está interessado em escutar ninguém de fato; não seria a mesma preocupação que vai ao supermercado saquear os galões de água, os sacos de arroz e os potes de álcool com a sua rica poupança para estocar, pensando só no próprio umbigo e nos seus?
Foi assim na pandemia. Está sendo assim nas atuais enchentes que "comovem o Brasil inteiro e o mundo"!
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Quando vemos uma catástrofe — sobretudo as naturais — recebemos um recado bem claro da natureza: recomeçar a pensar e repensar tudo (repensar a nossa vida inteira!).
A solidariedade de muita gente — infelizmente! — vai até o reestabelecimento da "normalidade", das antigas relações sociais, das propriedades, etc., para voltarmos à antiga forma de funcionamento, que não é nada solidária!
Aprender a ter empatia real fora dos momentos de catástrofe, a ouvir os outros, a natureza, àquilo que não gostamos é sempre um bom primeiro passo; mas quem realmente está a fim de dá-lo?

segunda-feira, 13 de maio de 2024

E no sétimo dia a verdade desapareceu

 


*Por Lázaro Leal Barbosa

Quantos dias são necessários para transformar uma tragédia nacional em um cenário político? No Brasil, foi necessário apenas sete dias.

No primeiro dia, desabou chuva no Rio Grande do Sul. No segundo dia, a água tomou as ruas, bairros e cidades do interior do Estado. No terceiro dia, o Rio Jacuí recebeu uma enxurrada de águas, deixando um rastro de destruição que era fruto da indignação da natureza contra um sistema explorador e exportador, até chegar ao Rio Guaíba e iniciar a enchente.
No quarto dia, o Rio Guaíba e o Rio Gravataí começaram sua invasão, engolindo Porto Alegre e a região metropolitana. Em resposta, o povo lutou pela sua própria vida. Não havia governo nem empresários: apenas pessoas humildes apertando a mão uns dos outros para que todos se salvassem ou para que ninguém morresse sozinho.
No quinto dia, o governo acordou. Um governo liberal, enfraquecido por acreditar no Estado mínimo, demonstrou ser um governo sem força e sem vontade de salvar o seu povo. Durante seis anos, professou uma política centrada no bem-estar comercial, enquanto o bem-estar social ficou em segundo plano.
No sexto dia, os senhores capitalistas, os grandes empresários e os super ricos burgueses da alta sociedade brasileira chegaram vestidos com suas heroicas capas de Superman. Após garantir a segurança de seus bens e certificar que o Rio Grande do Sul tinha potencial como palco para suas apresentações, eles trouxeram caminhões, jet-skis, barcos, grandes doações de roupas, alimentos e itens de higiene. Tudo isso, naturalmente, fruto da exploração do sangue e suor do povo, e subsidiado por um governo liberal.
O que parecia ser solidariedade, logo se mostrou uma tentativa de comprar a opinião pública. Os empresários começaram a denunciar a falta de preparação do governo e se apresentaram como a única salvação. E assim tentaram cumprir a história de Édipo: a classe empresarial, fruto do governo liberal, tentou matar o pai.
No sétimo dia, a verdade desapareceu. A guerra de narrativas políticas e o jogo da desinformação tomaram o centro do palco na tragédia gaúcha para decidir quem está certo. Vidas perdidas, sonhos destruídos e agonia das massas ficaram em segundo plano. Primeiro, é essencial decidir quem foi melhor: empresários ou governo liberal? Porque no sistema capitalista, a vida das pessoas pode esperar.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Não foram as chuvas


 *Por Artigas Osores


Não foram as chuvas e as tempestades
Foram os abutres e as aves de rapina que mataram o meu povo
Não foi a fúria das águas que arrastou suas casas
Foi a avareza de um sistema que destrói a Amazônia
O aquecimento global de um monstro chamado capitalismo
Milhares de famílias que perderam tudo...
Poucas famílias que ganham milhões...
Solidariedade, tristeza e lágrimas de um povo que chora em silêncio
Bancos e empresas contabilizando os lucros
Multinacionais do agronegócio festejando as exportações
Governos e políticos que sorriem de costas para o seu povo
Ninguém os culpa
Ninguém os aponta...
Em um abrigo, com colchões no chão, traumatizados pela desgraça tentam dormir as crianças
Nos palácios e nas mansões dormem os filhos daqueles que destruíram o meio ambiente
Falta comida, roupa, luz, água...
Não foram as tempestades
Foi um sistema e a avareza da classe dominante, porque para ela a vida da gente não vale nada.