quarta-feira, 18 de outubro de 2023

A criança palestina, o soldado israelense e o ramo de oliveira

 

Na faixa de Gaza, próximo a uma zona de confronto, uma criança estende um ramo de oliveira para um soldado israelense, que a olha, complacente, estende a mão, e pega o presente, solicitamente.

Pode parecer ficção, um delírio de um sonho de paz, mas é uma cena do documentário “5 câmeras quebradas”, filmado na vida real dos palestinos que nascem e crescem lá. Sabemos que não é uma cena comum naquela região, mas demonstra que, apesar de tudo, é possível outro tipo de relação humana!

Por que esta cena não se repete e é abafada por todo o tipo de violência? Acima das pessoas comuns, que apenas vivem, como as crianças, e aqueles que “só cumprem ordens”, como os soldados, estão as razões de Estado e os interesses de poder econômico e político, maquinando dia e noite para disfarçarem-se de distintas maneiras e venderem-se como “justos”.

Muita gente, cansada de ver e ouvir tanta mentira e violência, tende a simplificar uma situação complexa, com seus altos e baixos, e a igualar responsabilidades desiguais. Na tentativa de que a cena entre a criança palestina e o soldado israelense se torne a regra, e não a exceção, é imprescindível chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome, para que as “razões de Estado” não se disfarcem, sufocando e estrangulando tudo.

Parte das “razões de Estado” é sustentada pela narrativa da mídia Ocidental, que nos coloca num beco sem saída. Nesta narrativa parece não haver responsáveis reais, nem um início, mas uma culpabilização utilitária para esconder as reais causas, das quais depende também o seu futuro financeiro. Então, acaba parecendo que não há solução possível.

Analisar a situação com lucidez e compaixão, evitando tocar mais lenha na fogueira e tentando preservar as vidas inocentes, como for possível, é fundamental. Do contrário, apenas se mantém o ciclo num eterno retorno de violência e sofrimento.

O Estado de Israel foi fundado sob um barril de pólvora e imposto às comunidades árabes, sem discussão e sem planejamento humanista. O método de sua construção é um estado de guerra permanente, onde o massacre, a opressão, a humilhação, os bombardeios, a violência e os campos de concentração são realidades cotidianas. A resposta palestina, que não conta com um Estado organizado, nem com exército permanente, é também uma reação violenta numa escala menor, ainda que não unificada (pois o Hamas é só uma parte da população palestina).

Nenhuma vida inocente deveria ser perdida em meio a este “fogo cruzado”, mas qualquer garantia é impossível, uma vez que a violência do terrorismo de Estado quase sempre gera mais violência contra quem não tem nada a ver. Como as razões de Estado e os interesses econômicos não são permanentemente desmascarados, a tendência é que muito sangue inocente ainda seja derramado (com um número infinitamente maior do lado palestino; o que não significa minimizar o sangue inocente israelense).

Enquanto a população civil de Israel cresce e “se protege” em torno de um Estado armado até os dentes, com amplo apoio e financiamento dos países ricos do Ocidente (como EUA, Inglaterra e França); os palestinos são tratados como “animais humanos”, colocados em uma prisão a céu aberto, calados e massacrados de diversas formas, sob o silêncio inaceitável da comunidade internacional e da mídia Ocidental.

É comum a narrativa da mídia Ocidental insinuar ou mesmo afirmar que a defesa de Israel “é justa”, dado que o Hamas tem como objetivo “destruir o Estado de Israel”. O exército israelense está entre os mais modernos e poderosos do mundo. Isso significa o mesmo que justificar que um elefante esmague um rato porque o rato “jurou matar o elefante”. As “razões de Estado” de Israel não permitem negociações em relação ao seu projeto de expansão militar e assim tem sido há 70 anos. Os governos moderados são sabotados, chegando ao cúmulo de ter suas lideranças assassinadas, como foi o caso do primeiro-ministro Itzak Rabin. Nenhuma diplomacia e nenhum apelo humanista foram capazes de mudar a política de expansão militar das colônias israelenses: nem o sacrossanto direito à “propriedade privada”, nem os 10 mandamentos de Moisés do “não matarás”; tampouco as imagens inadmissíveis de crianças, mulheres e idosos feridos ou mortos (que deixaram de ser gradativamente veiculadas na mídia Ocidental).

A comunidade internacional liderada pelos EUA e pela ONU tem um discurso retórico e uma outra prática, que toleram e fingem não ver os sucessivos rompimentos de acordos, bem como as inúmeras violações de direitos humanos na faixa de Gaza.

Sem exército, sem Estado soberano, sofrendo massacres e bombardeios permanentes, despontam entre os palestinos diversos tipos de fundamentalismos religiosos, políticos e sociais, sintomas de um povo desesperado. O desenraizamento e o desespero das populações palestinas criam um espaço fecundo para o fundamentalismo islâmico e o terrorismo, que só podem redundar em mais violência e mais mortes de inocentes, já que há uma flagrante inviabilização de outros métodos e práticas políticas, onde os acordos internacionais são violados e o silêncio da grande mídia em “tempos normais” é quase sempre a regra.

O dilema do povo palestino se resume, então, a ser massacrado e morrer em silêncio ou tentar qualquer tipo de ação irrefletida e urgente, pautadas pela sede de vingança. Os políticos de Israel, dos EUA e os seus jornalistas muito bem pagos, sabem desta contradição aguda e contam com ela, mesmo que alguns civis israelenses venham a morrer. Não é necessário ser um gênio da sociologia ou um “vidente” para esperar novos atentados terroristas e a proliferação de “saídas” desesperadas. E “cobrir” com seu “jornalismo” peculiar um atentado terrorista é a especialidade da mídia Ocidental, usada como arma de guerra para os interesses econômicos e políticos, bem como justificando e defendendo – às vezes abertamente, às vezes disfarçadamente – as “razões” dos seus respectivos Estados.

 

Resultado dos atuais bombardeios de Israel sobre a faixa de Gaza

O assassinato do primeiro-ministro moderado e a ascensão política de Benjamin Netanyahu

Não é a primeira vez que um atentado terrorista do Hamas vem “salvar” Benjamin Netanyahu e o seu partido de extrema-direita, o Likud. Em 1995 ele é suspeito de instigar o referido assassinato do primeiro-ministro israelense Itzak Rabin, considerado pelo Likud como “moderado” e conciliador com os palestinos. Na esteira do assassinato, Netanyahu foi eleito como primeiro-ministro e sabotou a concretização dos planos de paz com os palestinos. Ou seja, foi uma mudança brusca, uma verdadeira sabotagem na linha política que vinha sendo adotada pelo Partido Trabalhista de Itzak Rabin[1].

Neste contexto também aconteceu um atentado terrorista providencial do Hamas, que “casualmente” serviu para reforçar a posição política do Likud, o que reforça a hipótese de que há algum tipo de ligação direta ou indireta – ou pelo menos um consentimento de atuação – entre a extrema-direita israelense e o Hamas[2]. O mesmo se passou agora, quando Netanyahu enfrentava uma séria crise política de resistência popular às suas “reformas” do judiciário e via com maus olhos uma aproximação da Arábia Saudita e do Irã intermediada pela China. O governo de Netanyahu “ignorou” os sucessivos alertas das autoridades egípcias sobre “grandes movimentações militares” na faixa de Gaza[3].

Uma questão importante a ser observada é que a maior parte da sociedade civil israelense, educada no medo e na manipulação permanente do seu sentimento de segurança (tal como a sociedade civil global), tende a apoiar as ações da extrema-direita, principalmente quando instigada pelos atentados terroristas do Hamas. Da mesma forma que a maioria da classe média brasileira “odeia pobre”, grande parte da classe média israelense é levada, por diversas razões e ações, a odiar e repudiar os palestinos – ainda que haja honrosas resistências entre ela às políticas de apartheid da extrema-direita.

 

Um atentado terrorista e um “conflito” providencial para o Estado de Israel, os EUA e a grande mídia

É possível que a mídia Ocidental utilize o massacre de palestinos e a crise humanitária decorrente, com suas imagens, polêmicas e apelos internacionais de “certo x errado”, como forma de ir mudando gradualmente o foco da atenção internacional da guerra da Ucrânia, que não apresenta possibilidade de solução real. Assim, evita-se fazer um balanço acerca do conflito militar russo-ucraniano, bem como o seu esgotamento sem saída, desviando os holofotes providencialmente para o Oriente Médio.

 

O governo Lula e o petismo frente à situação do Oriente Médio

O governo Lula, que atualmente preside o Conselho de Segurança da ONU, propõe uma resolução de “medidas humanitárias” apoiada por 12 países. Porém, bastou o veto de um único país, os EUA, para que a medida fosse rechaçada, o que demonstra bastante não apenas sobre a quem serve a ONU, como os interesses geopolíticos de Israel e EUA em manter a carnificina da limpeza étnica promovida pela política de Netanyahu. Cai de maduro que a intenção é manter a situação de desespero para que não haja nenhuma saída!

A declaração petista sobre a crise humanitária na faixa de Gaza é patética, pois apenas exige o cumprimento das resoluções da ONU e dos acordos de paz de Oslo. Se na guerra da Ucrânia o governo Lula cumpriu um papel razoável, com uma pequena independência discursiva que destoou muito do discurso Ocidental e incomodou o imperialismo, no atual massacre promovido por Israel ajuda a aumentar a cortina de fumaça e a manter as coisas como estão, inclusive condenando os “atentados terroristas” sem nenhum tipo de ponderação.

As perguntas que deveriam estar fazendo é: por que os acordos não são cumpridos? Por que a ONU nunca consegue deter Israel? Por que se centra apenas na condenação ao “terrorismo” do Hamas e não fala nada sobre o fato de não ser uma “guerra”, mas um genocídio?

A questão é que para se tentar evitar o genocídio e a limpeza étnica é necessário não reforçar a cortina de fumaça dos discursos hipócritas e inócuos da diplomacia oficial, que servem apenas para esconder e blindar as violências e evitar qualquer tipo de solução real. Para evitar ou encerrar uma suposta “guerra”, o primeiro passo é chamar as coisas pelo seu nome, evitar que razões de Estado se escondam em discursos sobre “justiça”, “autodefesa”, “lado correto da história”, etc. É uma maneira fundamental de constranger os agressores e evitar que se escondam atrás das narrativas midiáticas acobertadoras.

Assim, as razões de Estado e os poderosos interesses econômicos terminam sempre se sobrepondo à linda – e possível – cena do ramo de oliveira presenteado ao soldado israelense pela criança palestina. É nosso dever enxergar cenas como essa em um mundo que muitas vezes fica cego.

 

 

Referências


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