Na faixa de Gaza, próximo a uma zona de confronto,
uma criança estende um ramo de oliveira para um soldado israelense, que a olha,
complacente, estende a mão, e pega o presente, solicitamente.
Pode parecer ficção, um delírio de um sonho de paz,
mas é uma cena do documentário “5 câmeras quebradas”, filmado na vida real dos
palestinos que nascem e crescem lá. Sabemos que não é uma cena comum naquela
região, mas demonstra que, apesar de tudo, é possível outro tipo de relação
humana!
Por que esta cena não se repete e é
abafada por todo o tipo de violência? Acima das pessoas comuns, que apenas
vivem, como as crianças, e aqueles que “só cumprem ordens”, como os soldados,
estão as razões de Estado e os interesses de poder econômico e político,
maquinando dia e noite para disfarçarem-se de distintas maneiras e venderem-se
como “justos”.
Muita gente, cansada de ver e ouvir
tanta mentira e violência, tende a simplificar uma situação complexa, com seus
altos e baixos, e a igualar responsabilidades desiguais. Na tentativa de que a
cena entre a criança palestina e o soldado israelense se torne a regra, e não a
exceção, é imprescindível chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome, para que
as “razões de Estado” não se disfarcem, sufocando e estrangulando tudo.
Parte das “razões de Estado” é
sustentada pela narrativa da mídia Ocidental, que nos coloca num beco sem
saída. Nesta narrativa parece não haver responsáveis reais, nem um início, mas
uma culpabilização utilitária para esconder as reais causas, das quais depende
também o seu futuro financeiro. Então, acaba parecendo que não há solução
possível.
Analisar a situação com lucidez e
compaixão, evitando tocar mais lenha na fogueira e tentando preservar as vidas
inocentes, como for possível, é fundamental. Do contrário, apenas se mantém o
ciclo num eterno retorno de violência e sofrimento.
O Estado de Israel foi fundado sob um
barril de pólvora e imposto às comunidades árabes, sem discussão e sem
planejamento humanista. O método de sua construção é um estado de guerra
permanente, onde o massacre, a opressão, a humilhação, os bombardeios, a
violência e os campos de concentração são realidades cotidianas. A resposta
palestina, que não conta com um Estado organizado, nem com exército permanente,
é também uma reação violenta numa escala menor, ainda que não unificada (pois o
Hamas é só uma parte da população palestina).
Nenhuma vida inocente deveria ser
perdida em meio a este “fogo cruzado”, mas qualquer garantia é impossível, uma
vez que a violência do terrorismo de Estado quase sempre gera mais violência
contra quem não tem nada a ver. Como as razões de Estado e os interesses
econômicos não são permanentemente desmascarados, a tendência é que muito
sangue inocente ainda seja derramado (com um número infinitamente maior do lado
palestino; o que não significa minimizar o sangue inocente israelense).
Enquanto a população civil de Israel
cresce e “se protege” em torno de um Estado armado até os dentes, com amplo
apoio e financiamento dos países ricos do Ocidente (como EUA, Inglaterra e
França); os palestinos são tratados como “animais humanos”, colocados em uma
prisão a céu aberto, calados e massacrados de diversas formas, sob o silêncio
inaceitável da comunidade internacional e da mídia Ocidental.
É comum a narrativa da mídia
Ocidental insinuar ou mesmo afirmar que a defesa de Israel “é justa”, dado que
o Hamas tem como objetivo “destruir o Estado de Israel”. O exército israelense
está entre os mais modernos e poderosos do mundo. Isso significa o mesmo que
justificar que um elefante esmague um rato porque o rato “jurou matar o
elefante”. As “razões de Estado” de Israel não permitem negociações em relação
ao seu projeto de expansão militar e assim tem sido há 70 anos. Os governos
moderados são sabotados, chegando ao cúmulo de ter suas lideranças
assassinadas, como foi o caso do primeiro-ministro Itzak Rabin. Nenhuma
diplomacia e nenhum apelo humanista foram capazes de mudar a política de
expansão militar das colônias israelenses: nem o sacrossanto direito à “propriedade
privada”, nem os 10 mandamentos de Moisés do “não matarás”; tampouco as imagens
inadmissíveis de crianças, mulheres e idosos feridos ou mortos (que deixaram de
ser gradativamente veiculadas na mídia Ocidental).
A comunidade internacional liderada
pelos EUA e pela ONU tem um discurso retórico e uma outra prática, que toleram
e fingem não ver os sucessivos rompimentos de acordos, bem como as inúmeras
violações de direitos humanos na faixa de Gaza.
Sem exército, sem Estado soberano,
sofrendo massacres e bombardeios permanentes, despontam entre os palestinos
diversos tipos de fundamentalismos religiosos, políticos e sociais, sintomas de
um povo desesperado. O desenraizamento e o desespero das populações palestinas
criam um espaço fecundo para o fundamentalismo islâmico e o terrorismo, que só
podem redundar em mais violência e mais mortes de inocentes, já que há uma
flagrante inviabilização de outros métodos e práticas políticas, onde os
acordos internacionais são violados e o silêncio da grande mídia em “tempos
normais” é quase sempre a regra.
O dilema do povo palestino se resume,
então, a ser massacrado e morrer em silêncio ou tentar qualquer tipo de ação
irrefletida e urgente, pautadas pela sede de vingança. Os políticos de Israel,
dos EUA e os seus jornalistas muito bem pagos, sabem desta contradição aguda e
contam com ela, mesmo que alguns civis israelenses venham a morrer. Não é
necessário ser um gênio da sociologia ou um “vidente” para esperar novos
atentados terroristas e a proliferação de “saídas” desesperadas. E “cobrir” com
seu “jornalismo” peculiar um atentado terrorista é a especialidade da mídia
Ocidental, usada como arma de guerra para os interesses econômicos e políticos,
bem como justificando e defendendo – às vezes abertamente, às vezes
disfarçadamente – as “razões” dos seus respectivos Estados.
Resultado dos atuais bombardeios de Israel sobre a faixa de Gaza |
O assassinato do
primeiro-ministro moderado e a ascensão política de Benjamin Netanyahu
Não é a primeira vez que um atentado
terrorista do Hamas vem “salvar” Benjamin Netanyahu e o seu partido de
extrema-direita, o Likud. Em 1995 ele é suspeito de instigar o referido assassinato
do primeiro-ministro israelense Itzak Rabin, considerado pelo Likud como “moderado”
e conciliador com os palestinos. Na esteira do assassinato, Netanyahu foi
eleito como primeiro-ministro e sabotou a concretização dos planos de paz com
os palestinos. Ou seja, foi uma mudança brusca, uma verdadeira sabotagem na
linha política que vinha sendo adotada pelo Partido Trabalhista de Itzak Rabin[1].
Neste contexto também aconteceu um
atentado terrorista providencial do Hamas, que “casualmente” serviu para
reforçar a posição política do Likud, o que reforça a hipótese de que há algum tipo de ligação direta ou indireta – ou pelo menos um consentimento de atuação –
entre a extrema-direita israelense e o Hamas[2]. O mesmo se passou agora,
quando Netanyahu enfrentava uma séria crise política de resistência popular às
suas “reformas” do judiciário e via com maus olhos uma aproximação da Arábia
Saudita e do Irã intermediada pela China. O governo de Netanyahu “ignorou” os
sucessivos alertas das autoridades egípcias sobre “grandes movimentações
militares” na faixa de Gaza[3].
Uma questão importante a ser
observada é que a maior parte da sociedade civil israelense, educada no medo e
na manipulação permanente do seu sentimento de segurança (tal como a sociedade
civil global), tende a apoiar as ações da extrema-direita, principalmente
quando instigada pelos atentados terroristas do Hamas. Da mesma forma que a maioria da
classe média brasileira “odeia pobre”, grande parte da classe média israelense
é levada, por diversas razões e ações, a odiar e repudiar os palestinos – ainda
que haja honrosas resistências entre ela às políticas de apartheid da extrema-direita.
Um atentado terrorista e um “conflito” providencial para o Estado de
Israel, os EUA e a grande mídia
É possível que a mídia Ocidental
utilize o massacre de palestinos e a crise humanitária decorrente, com suas
imagens, polêmicas e apelos internacionais de “certo x errado”, como forma de
ir mudando gradualmente o foco da atenção internacional da guerra da Ucrânia,
que não apresenta possibilidade de solução real. Assim, evita-se fazer um
balanço acerca do conflito militar russo-ucraniano, bem como o seu esgotamento
sem saída, desviando os holofotes providencialmente para o Oriente Médio.
O governo Lula e o petismo frente à situação do Oriente Médio
O governo Lula, que atualmente
preside o Conselho de Segurança da ONU, propõe uma resolução de “medidas
humanitárias” apoiada por 12 países. Porém, bastou o veto de um único país, os
EUA, para que a medida fosse rechaçada, o que demonstra bastante não apenas
sobre a quem serve a ONU, como os interesses geopolíticos de Israel e EUA em
manter a carnificina da limpeza étnica promovida pela política de Netanyahu.
Cai de maduro que a intenção é manter a situação de desespero para que não haja
nenhuma saída!
A declaração petista sobre a crise
humanitária na faixa de Gaza é patética, pois apenas exige o cumprimento das
resoluções da ONU e dos acordos de paz de Oslo. Se na guerra da Ucrânia o
governo Lula cumpriu um papel razoável, com uma pequena independência
discursiva que destoou muito do discurso Ocidental e incomodou o
imperialismo, no atual massacre promovido por Israel ajuda a aumentar a cortina
de fumaça e a manter as coisas como estão, inclusive condenando os “atentados
terroristas” sem nenhum tipo de ponderação.
As perguntas que deveriam estar
fazendo é: por que os acordos não são cumpridos? Por que a ONU nunca
consegue deter Israel? Por que se centra apenas
na condenação ao “terrorismo” do Hamas e não fala nada sobre o fato de não ser
uma “guerra”, mas um genocídio?
A questão é que para se tentar evitar
o genocídio e a limpeza étnica é necessário não reforçar a cortina de fumaça
dos discursos hipócritas e inócuos da diplomacia oficial, que servem apenas
para esconder e blindar as violências e evitar qualquer tipo de solução real.
Para evitar ou encerrar uma suposta “guerra”, o primeiro passo é chamar as
coisas pelo seu nome, evitar que razões de Estado se escondam em discursos
sobre “justiça”, “autodefesa”, “lado correto da história”, etc. É uma maneira
fundamental de constranger os agressores e evitar que se escondam atrás das
narrativas midiáticas acobertadoras.
Assim, as razões de Estado e os
poderosos interesses econômicos terminam sempre se sobrepondo à linda – e
possível – cena do ramo de oliveira presenteado ao soldado israelense pela
criança palestina. É nosso dever enxergar cenas como essa em um mundo que muitas
vezes fica cego.
Referências
[1]
Ver: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-37843377 e, também, https://www.dw.com/pt-br/1995-assassinato-do-premi%C3%AA-israelense-itzak-rabin/a-666789
Nenhum comentário:
Postar um comentário