sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
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sexta-feira, 3 de novembro de 2023
Uma nova tentativa de diálogo sobre o dogmatismo “religioso” do movimento socialista
Mal o texto Dogmatismo e omissões do movimento socialista em relação ao sexo e à religiosidade humana foi publicado e alguns dias depois já tinha recebido uma
pronta “resposta” do blog Coerência Marxista, que, ao que tudo indica, é um dos
poucos leitores assíduos de nosso blog.
É interessante notar como perdemos boas
oportunidades de trocas e de crescimento coletivo em nome de ataques
“teóricos”, muitas vezes de cunho pessoal, cuja finalidade maior é saciar o ego.
Apesar desse tipo de “diálogo”, digamos, um tanto viciado, vamos tentar pensar
juntos sobre o nosso texto e a resposta do blog Coerência Marxista, para ir mais
além.
Em primeiro lugar, queremos reconhecer
que o nosso texto foi, por vezes, arrogante, tal como é grande parte dos textos
“marxistas”, que usam um linguajar que pretende dar conclusivos “xeques-mates”
e coloca, às vezes, indistintamente muita gente em balaios de gato. Isso
certamente causou parte da ira e do descontentamento do Coerência Marxista.
Talvez o referido blog não veja problema nisso, tanto é que o reproduz; mas nós
vemos. Queremos ser melhores do que fomos ontem, nos aperfeiçoando e tentando
evitar a arrogância.
Ainda que a linguagem do nosso texto
tenha soado arrogante e em parte ofensiva, queremos sustentar de uma maneira
mais adequada e menos belicosa o conteúdo dele. A crítica ao nosso texto nos dá
a oportunidade de repensá-lo, é claro, desde que estejamos afim de pensar de
forma renovada.
Não conseguimos entender o porquê de
tamanha virulência contra o nosso blog, dado que a nossa influência social
sobre a classe trabalhadora – grande objetivo do blog Coerência Marxista – é
praticamente nula. Não podemos acreditar que pensem que influenciamos algum
tipo de “massas”. Por certo, tentamos, mas estamos muito longe disso. A
explicação mais plausível que encontramos para a resposta que recebemos é que,
de certa forma, o blog Coerência Marxista demonstra involuntariamente que o
nosso texto atingiu sua finalidade. Qual seja? A de demostrar como grande parte
da militância de esquerda vivencia o marxismo como um substituto para a
religião na psique humana, que ao ver parte de suas bases questionadas,
desencadeia uma série de ataques fundamentalistas visando manter a “pureza dos
seus princípios”, já que é deles que tiram um sentido para as suas vidas.
Um pequeno exemplo extraído das redes sociais
Tal tipo de “ataques fundamentalistas”
se dão desta forma porque são resultado de uma cegueira, que confunde o juízo,
movido, no mais das vezes, por uma raiva irracional que está presente dentro de
nós e que é desencadeada quando nossos valores que nos dão segurança pessoal
são questionados. A seguir vamos tentar explicar melhor algumas de nossas
conclusões ao blog Coerência Marxistas que, na sua resposta, apresentam muitas
omissões que falam muito!
1.
O blog Coerência Marxista pergunta “quem é a esquerda nova e quem é a velha?”,
dando a entender que foi um equívoco nosso blog não diferenciar, nem explicitar
a quem nos referíamos.
O texto que postamos é uma crítica
global à atual esquerda, em quase todas as suas esferas e níveis. Poucos
agrupamentos ou militantes não sofrem do mal que foi criticado. É, portanto,
uma crítica ao próprio marxismo, que é visto como perfeito (ou semiperfeito
pela maioria das organizações de esquerda – talvez Gramsci tenha sido um dos
pensadores marxistas que mais se preocupou com certas lacunas, como o problema
da religião).
Há diferenças políticas entre as
esquerdas sim. O restante dos vários artigos do nosso blog faz essa
diferenciação, porém, o que o texto que postamos no dia 13 de junho quis
criticar serve para quase toda ela, sem exceção. Se o nosso texto é severo, em
particular, para com o marxismo (e o trotskismo), isso não significa que não
reconheça nele(s) todos os seus méritos. Ao contrário, está criticando o que
considera os seus pontos fracos (ou ele está isento de pontos fracos?).
Por exemplo, no caso do nosso texto,
deu-se ênfase aos problemas teóricos negativos relacionados ao “espírito do
tempo” (existem também os positivos, que não foram abordados porque não era
esse o objetivo). Podemos destacar a excessiva ênfase no cientificismo como
“plena solução” e o completo menosprezo à intuição – algo que como falamos,
reflete bem o positivismo do século XIX (o mesmo excesso pode ser visto na
psicanálise freudiana).
As organizações menores sofrem com o
messianismo e o purismo “religioso” não declarado; já as organizações maiores,
como o PT e o PCdoB, mesclam-se oportunistamente às religiões organizadas e
surfam na sua onda, sem crítica alguma.
2.
Um problema central que apresentamos no
nosso texto e que compreendemos ser equivocado no marxismo, terminando por se
espraiar para distintas organizações de esquerda, é o caso do messianismo e da
cosmogonia.
Isso não significa que o marxismo como
teoria política e econômica deixe de ter valor. Só denota que seria
interessante depurá-lo de determinados excessos que tendem a fazê-lo exagerar – misticamente, sem o admitir! – alguns elementos
da realidade. Por exemplo, na espera pelo despertar do sujeito social, a forma
como ele se expressa e a redenção quase religiosa que “causará” – isso não é
parecido, para dizer o mínimo, à pregação pela vinda redentora de um messias?
O próprio texto de resposta do blog
Coerência Marxista é um atestado involuntário desse messianismo, reafirmado-o
inconscientemente por distintos meios. De certa forma o nosso texto foi um
pouco leviano no linguajar e ríspido demais em algumas colocações, uma vez que
questionar valores e a segurança pessoal de alguém (ou de organizações
inteiras) deve ser feito sempre de uma maneira mais refletida e serena, nunca
leviana.
3.
Um dos principais erros da resposta do
blog Coerência Marxista se dá em relação ao conceito de numinoso. Não conhecemos, nem nos referenciamos no autor que foi
citado por ele. O texto do nosso blog se baseia no conceito de Carl G. Jung, ao
qual certamente o Coerência Marxista não conhece – e, se por ventura o conhece,
provavelmente o menospreze.
O numinoso, para Jung, é um efeito que
se apodera e domina o sujeito humano, que passa a ser mais sua vítima do que
seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição
do sujeito, e é independente de sua vontade. O dado mais importante talvez seja
que o caráter numinoso consiste em que a pessoa se sinta subjugada por este
sentimento. De modo particular, o pensamento numinoso tem sua origem na
experiência vital. Assim, a imagem numinosa é muito mais uma expressão de
processos inconscientes do que o resultado de uma operação racional. Ela está
incluída na categoria das realidades
psicológicas, surgindo daí o problema relativo a seus pressupostos
psíquicos. Temos que pensar aqui num processo de formação de símbolos que se
estende por vários séculos e tende constantemente a tornar-se consciente. Todos
nós, em alguma medida, já sentimos os efeitos do numinoso.
Para o indivíduo, enquanto fenômeno
psíquico, o numinoso é sentido como objetivamente real. Nesta constatação
acham-se incluídas, naturalmente, todas as afirmações (até mesmo contrastantes)
que algum dia já foram ou ainda serão de caráter numinoso. A numinosidade do
objeto torna difícil que se lhe dê tratamento racional, pois é o caráter
afetivo que se destaca na mente.
Tudo isso não seria da mais alta
importância para militantes que se colocam como tarefa fazer uma revolução
socialista com a classe trabalhadora, hoje dominada pelos mais diversos tipos
de religiosidade com seus respectivos sentimentos numinosos? Ao que tudo
indica, para o blog Coerência Marxista a resposta é não!
Quem não tem concepções religiosas –
como é o caso do blog Coerência Marxista – não gosta de reconhecer-se como
portador de um déficit. Apela para a
sua mentalidade esclarecida. Quem se fixa nesse ponto de vista dificilmente
admite o caráter numinoso do objeto religioso, e este, não poucas vezes, o
impede de pensar criticamente, pois pode acontecer que sua fé na racionalidade
estrita, como no iluminismo, no cientificismo, no “ateísmo”, no “marxismo” –
isto é, em teorias e ideologias que podem
tomar o lugar psíquico da fé religiosa – seja abalada. Não apenas passa a
encarar a dúvida como coisa desagradável e penosa, como passará a temê-la. Se
chegar a temê-la, tenderá, então, a reforçar a sua fé inabalável nas teorias ou ideologias que podem tomar o lugar psíquico da fé religiosa com gritos e
declarações tonitruantes.
O blog Coerência Marxista ainda faz uma
pergunta sobre se a geografia seria uma ciência numinosa porque nós, seres
humanos, seríamos menores do que a Terra. O sentimento numinoso não está
relacionado apenas ou prioritariamente ao tamanho, mas, sobretudo, ao
sentimento psicológico relativo ao “sagrado”, ao transcendental. A própria
formulação da pergunta deixa evidente que o blog que nos criticou não entendeu
nada sobre o conceito de numinoso. Nesse caso, os melhores remédios seriam o
estudo dedicado e a humildade.
4.
Entender o conceito de numinoso como
Jung o entende não significa que “nada pode ser feito” ou que a ciência “para
nada serve”, mas tem a função de demonstrar certos limites do conhecimento
humano, que são visíveis a olho nu e precisam ser reconhecidos se queremos que
ele avance. Sobretudo demonstra como outras forças psíquicas entram em jogo na
formação intelectual da maioria das pessoas. Para o blog Coerência Marxista,
ainda que reconheça que existem “mistérios” que a química e a física não
explicam, isto é apenas um detalhe que não precisa causar preocupação.
No quesito da linguística e das
palavras, Coerência Marxista parece nunca ter refletido uma vírgula sobre os
limites da linguagem, pois pensa que tudo é acessível às palavras – e,
sobretudo, às explicações cartesianas baseadas em fórmulas. Bastaria o exemplo
de se tentar explicar as cores a um cego de nascença ou música a um surdo
através da fala ou mesmo da escrita para vermos as limitações das palavras.
Nestes casos, a experiência direta não pode ser substituída por uma narrativa.
Reduzir a complexidade do problema a
uma fórmula é justamente o que faz o pensamento mecânico. Grande parte da
esquerda resume tudo a fórmulas “supersimples”. Talvez este seja um dos
motivos pelo qual a influência da esquerda torna-se cada vez menor no mundo
atual.
Por mais importante que sejam as
fórmulas para o raciocínio matemático, físico e químico, elas não podem
solucionar o problema das lacunas da ciência e das questões transcendentais
(tampouco o podem nas questões da política revolucionária). A matemática é
apodítica, totalmente baseada na lei da causalidade. Esta última é questionável,
uma vez que, partindo de uma boa hipótese de David Hume, a causalidade não é
mais do que uma crença baseada na ação sobre o hábito, que deixa de perceber os fenômenos novos.
O blog Coerência Marxista afaga a doce
esperança de que com o acúmulo aleatório (ou semialeatório) de informações
científicas pela humanidade venhamos formar um dia um todo pleno de sentido – e
que explique tudo! Mas ninguém pode
ter certeza disso, uma vez que nenhum cérebro humano (nem a totalidade consciente de cérebros humanos) é capaz
de abranger a gigantesca soma final deste saber produzido em massa. Compreender
o desenvolvimento científico desta forma em nada o anula ou o menospreza, mas o
coloca sob uma perspectiva mais realista, já que problematiza os seus limites e
abre a possibilidade de se pensar em soluções e alternativas.
Os marxistas, a grosso modo,
consideram-se cientistas (o blog Coerência Marxista, por suposto, também). Um
cientista geralmente se esquece que a maneira objetiva de tratar um tema pode
ferir valores emocionais em proporções indesculpáveis (como fazendo uma análise
antropológica da religião de alguém, por exemplo, sem nenhuma preocupação com a
forma). No mais das vezes, o intelecto científico é desumano, e, com certa razão e até certo ponto, não pode permitir-se o privilégio de ser
diferente. Consequentemente, é inevitável que se torne insensível e sem
consideração, mesmo quando baseado em motivos positivos.
Muitas organizações e militantes agem
assim também nas suas vidas pessoais e no trato com o outro no dia-a-dia. A
arrogância desmedida e irrefletida rompe pontes entre nós, entre a classe
trabalhadora, entre a sociedade em geral, em prol de certezas políticas e
teóricas, no mínimo, questionáveis. Assim, erguem-se, estupidamente, barreiras
sectárias desnecessárias. As forças conservadoras da sociedade, ainda que
baseadas em interesses desprezíveis, prestam mais atenção nestes “detalhes”.
5.
Além de Jung, o blog Coerência Marxista
também ignorou o nome de Fritjof Capra, no qual grande parte das ideias do
nosso texto que foi “criticado” se baseia.
Capra dedicou sua vida à pesquisa e à
demonstração da semelhança – para não dizer plena identidade – entre as
conclusões da física moderna e do pensamento místico Oriental. As expressou em
duas obras capitais: O ponto de mutação
e O tao da física. Tirou daí conclusões
pertinentes sobre o esgotamento do tipo de evolução científica e civilizatória que
conhecemos.
Ele afirma: “No século XX os físicos penetraram a fundo no mundo submicroscópico,
em regiões da natureza muito afastados do mundo macroscópico em que vivemos. O
nosso conhecimento da matéria nesse nível já não provém da experiência
sensorial direta; em consequência, a linguagem comum já não é mais adequada
para descrever os fenômenos observados. Os físicos nucleares proporcionaram aos
cientistas os primeiros vislumbres da natureza essencial das coisas. Como os
místicos, os físicos passaram a lidar com experiências não sensoriais da
realidade e, também como eles, tiveram de enfrentar os aspectos paradoxais
dessas experiências. A partir desse momento, os modelos e as imagens da física
moderna tornaram-se vinculados aos da filosofia Oriental” (extraído de Sabedoria incomum).
Capra insiste na limitação e no
esgotamento da evolução científica baseada na visão newtoniana e cartesiana. A
ciência, em sua opinião, não deveria ficar restrita a medições e análises
quantitativas, mas basear-se, sobretudo, nos processos. Para ele, outros aspectos, como a quantificação ou o uso
da matemática, são frequentemente desejáveis, mas não fundamentais. Capra ainda
aponta que a teoria quântica mudou consideravelmente a concepção clássica de
ciência ao revelar o papel crucial da consciência do observador no processo de
observação e invalida, assim, a ideia de uma descrição objetiva da natureza.
O pensamento como processo e o papel do
observador também são características das tradições místicas do Oriente. Essa
teoria das partículas subatômicas da física quântica reflete a impossibilidade
de se separar o observador científico dos fenômenos observados. Os místicos
orientais nos afirmam e reafirmam que todas as coisas e eventos que percebemos
são construções da mente, surgindo de um estado particular de consciência e
dissolvendo-se novamente caso esse estado seja transcendido. Essas novas conclusões
trazem problemas ao debate filosófico do marxismo que precisam ser enfrentadas
seriamente, e não com citações canônicas de fragmentos de textos dos “mestres
inquestionáveis”.
No entanto, Capra não propõe que os
físicos comecem a meditar e se convertam à alguma religião, ou sequer sugere
uma síntese entre ciência e religião Oriental. Ele simplesmente advoga a ideia
de que é preciso desenvolver uma interação
dinâmica entre a intuição mística
e a análise científica. Isto é, o
mesmo que o texto do nosso blog originalmente propôs no campo da teoria
política e foi mal compreendido.
Desta conclusão difícil, mas bem
refletida, para a conclusão do blog Coerência Marxista de que a proposta para
solucionar os problemas analisados pelo nosso texto “é mais religião e mais
loucura”, ou de que tratamos o socialismo “como
artigo de luxo para servir aos seres dotados de atitudes místicas”, existe
não um fosso, mas um abismo que expressa diferenças forçadas e tolas de quem
sente medo porque os seus dogmas e suas seguranças foram questionados. Nem propusemos
que se crie qualquer tipo de religião ou solução religiosa. Quisemos apenas
destacar uma constatação de fatos observáveis em dois extremos dos movimentos
sociais, seja entre a militância de esquerda, seja na visão religiosa da maioria da
classe trabalhadora.
6.
A militância atual trata “a massa” da
classe trabalhadora como algo disforme, uma espécie de argila, em que a
vanguarda, o partido ou a teoria que estes detêm, conseguem modelar o pote ou o
artefato de cerâmica. Não há interação e compreensão numa relação nova,
recíproca, harmoniosa e criadora, mas, na prática, imposição daquilo que já se sabe,
desconsiderando uma série de fatores, tal como um lado sendo o portador da luz
da sabedoria e da “verdade plena”; e o outro, da total escuridão da ignorância.
Não há trocas, porque um lado se
superestima; enquanto o outro é desconsiderado completamente naquilo que de fato é.
Aqui não se trata de adotar um discurso
e uma prática “basista” ou espontaneísta, mas de perceber como os valores da
massa, bem como ela em si mesma, é vista como a encarnação da ingenuidade,
totalmente engada e manipulada inescrupulosamente por direções traidoras, sem
espaço algum, por menor que seja, para uma escolha livre que parta dela mesma.
Basta esperar um despertar da massa pela “política correta” das organizações de
esquerda, tal como um alinhamento dos astros, para ocorrer o terremoto
revolucionário.
Sim. Isso é o que todos nós,
socialistas, queremos: a mudança! Mas devemos reconhecer, humildemente, que
algo de errado vem sendo feito, não apenas na prática, mas também a partir das
insuficiências teóricas – incluindo a sua dogmatização pela militância de
esquerda, inconscientemente ávida por preencher o seu vazio existencial. Para
os dogmáticos não é necessário compreender a psicologia de massas. Tudo o que supostamente
precisamos saber já estão nos cânones. Bastaria, então, segui-los e não “traí-los”.
Séculos de cristianismo, com seus rituais, exegeses, heresias, excomunhões,
assassinatos, etc., não poderiam passar incólumes pelas práticas de organização
política e social.
A situação da classe trabalhadora hoje
é diferente do século XIX – é distinta ainda de país para país, de região para
região. Vivemos uma época de crises emocionais e existenciais, com altos
índices de depressão, ansiedade, suicídios, explosões de violência e de extrema
apatia. O iluminismo guilhotinou o cristianismo e a religião, deixando o espaço
psíquico humano desprovido de um substituto, obrigando-os a buscar em diversas
outras áreas, como os relacionamentos humanos, incluindo os abusivos e vazios,
as agremiações que são “maiores do que nós” (igrejas evangélicas, associações,
movimentos, partidos, sindicatos, torcidas de futebol, etc.); além das drogas,
remédios e do “recurso” ao suicídio. Dentro deste vácuo, a ciência tende a tornar-se,
de certa maneira, um substitutivo para a religião. Porém, como é muito técnica,
fria, “apolínea”, não pôde, até o momento, suprir algo que exige mais
humanidade, mais contato, que misture os limites e as fronteiras.
Assim, podemos dizer que o atual
individualismo transformou-se numa realidade subjetiva imperiosa muito maior do
que a coletividade era até então, ainda
que esta continue sendo determinante. Tanto para a construção do socialismo,
quanto para os dias atuais de capitalismo selvagem, compreender o funcionamento
da mente coletiva, consciente e inconsciente, e a que sofre individualmente, é decisivo.
O blog Coerência Marxista busca
refugiar-se nos textos clássicos, nos cânones das explicações dos grandes revolucionários
do passado. Sobre o stalinismo cita – provavelmente de cor – os livros de Trotski.
Em relação aos motivos que levaram à ascensão do stalinismo, está objetivamente
correto e bem decorado. Mas não é disso que estamos falando aqui. O pensamento
stalinista é grosso, arcaico, rígido. Para ele basta colocar em cima da entrada
das igrejas a frase “a religião é o ópio do povo” e a questão se resolve. Ou
seja, tudo o que precisamos saber já está contido na direção do partido e na
“teoria”. A religião que Stalin produziu de si mesmo endossa os argumentos do
texto que deu origem a este debate: não é possível extirpar a religiosidade da
mente humana – ela apenas mudará de forma e se infiltrará em outras esferas
psíquicas.
No caso específico da construção do
socialismo, a educação pública e a grande mídia “controlada pela classe
trabalhadora” não serão suficientes se
não dialogarem e não levarem em consideração as necessidades transcendentais da
psique humana, capaz de gerar um novo olhar de compaixão, afeto,
felicidade, integração com a natureza, com o universo e com a humanidade em
geral – isto é, uma relação com o infinito e o eterno. Sem este diálogo, as
pessoas tendem a se voltar para o hedonismo, para o autocentramento como fator
determinante de seu interesse no mundo, de seus relacionamentos fechados em si
mesmos, assim como dos seus estritos interesses econômicos pessoais e
familiares. Os interesses materiais, econômicos, são importantes, mas não podem
suprir todas as demandas subjetivas, que continuaram existentes e pulsantes.
A compaixão, como expressão de uma
mudança interior que seja ativa, não é um comportamento piedoso individual,
meramente contemplativo, mas uma inteligência lúcida e uma forma de atuação no
mundo. Falta isso à maioria dos militantes hoje em dia, que muitas vezes tratam
outros seres humanos como lixo por não conquistar sua concordância imediata; se
orgulham do seu intelecto, mas não tem a menor preocupação com a sua conduta
diária, com o respeito, a ponderação, a empatia. Pensam que se já detém a
compreensão do programa socialista, acham nisso alguma suposta razão para se julgarem
superiores.
Portanto, a preocupação em mudar o
interior das pessoas (algo subjetivo) é tão importante quanto mudar o exterior (socializar os meios de produção); e isso,
repetimos e reforçamos, é menosprezado pela militância atual, pois a mudança interior não se dá de forma
automática, sendo tratada como algo menor, sem valor, idealista, digno de
piedade e rechaço. O blog Coerência Marxista reforça a noção rasa e simplória
deste automatismo econômico: não é necessário se preocupar com as questões
subjetivas da psique humana, seus sofrimentos, que seguem caminhos tortuosos,
nem pensar soluções políticas para isso (até onde nos é possível); tudo de
fundamental ocorreria automaticamente com a expropriação dos meios de produção.
Na contramão da complexidade do
problema, o blog Coerência Marxista sugere resolver a questão da mudança
interior com palavras de ordem supersimples,
como os bolcheviques propuseram em 1917: pão, paz e terra. Isso não nos parece
uma “solução”, mas uma resposta pueril, decorada e pouco criativa. Em 1917 foi
decisivo para a mudança exterior.
Hoje não tem sido.
7.
Sobre o fato de nosso texto ter partido
de uma reflexão de Perry Anderson – e ele ser considerado um “socialista
reformista” –, parece apenas a repetição de um pensamento ortodoxo das
religiões organizadas, que na maioria das vezes manifesta rechaço e ojeriza aos
textos de outras tradições. Não sabem lidar com o diferente, nem pensar a
partir deles, a não ser rotulando-os, combatendo-os ou queimando-os na fogueira
da santa inquisição.
O fato de Perry Anderson ser reformista
não invalida partirmos de uma de suas reflexões.
8.
Outra questão abordada pelo blog
Coerência Marxista diz respeito ao sexo. Porém, a deixou reduzida apenas ao
ponto específico do relacionamento monogâmico ou “aberto”, pensando, com isso,
ter solucionado um debate extremamente complexo e inexplorado pelo marxismo.
O movimento socialista é, no geral,
omisso sobre este tema. Ou fala em linhas gerais sobre emancipação feminina,
igualdade social entre os sexos; ou se restringe a um silêncio profundo, como
se este tema fosse questão de foro íntimo, tal como a escolha religiosa de cada
pessoa.
As questões sexuais estão diretamente
relacionadas aos problemas emocionais e psicológicos da massa humana (e dos
seus indivíduos). A militância em geral – e o blog Coerência Marxista, em
particular – tende a reduzir tudo a
um debate hedonista: o sexo é para a libertação do prazer, sem fim e sem
limites. Coloca-se tudo abaixo e pronto! A questão está resolvida! Pra que
ficar “falando tanta asneira” por coisas tão simples e óbvias?
Mas a realidade insiste em ser muito
mais complexa do que quer os esquemas formais. Sexo mexe com a biologia
profunda, que desencadeia pulsões e forças psíquicas por vezes incontroláveis;
ele é considerado por pensadores ao estilo de Freud, Jung, Camille Paglia,
Erich Neumann, Willian Blake – dentre outros – como uma “força daimônica”, capaz
de reproduzir os terrores da natureza ctônica. Se esta força não for levada em
consideração, pode ser autofágica, paralisar ou destruir a sociedade,
incentivando o caos e a violência.
Segundo Camille Paglia, por exemplo, “o sexo é um poder muito mais sombrio do que
admite o feminismo. As terapias sexuais behavioristas julgam possível o sexo
sem culpa, impecável. Mas o sexo sempre foi cercado de tabu, independentemente
da cultura. O sexo é o ponto de contato entre o homem e a natureza, onde a
moralidade e as boas intenções caem diante de impulsos primitivos. (...) O erotismo é um reino tocaiado por
fantasmas. É o lugar além dos confins, ao mesmo tempo amaldiçoado e encantado.
(...) O sexo é daimônico. Este termo vem
do grego daimon, que significa um
espírito de divindade inferior à dos deuses do Olimpo. (...) O cristianismo transformou daimônico em
demoníaco. Os daimons gregos não eram maus – ou melhor, eram ao mesmo tempo
bons e maus, como a própria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud é
o domínio daimônico. De dia somos criaturas sociais, mas à noite mergulhamos no
mundo dos sonhos, onde reina a natureza, onde não existe lei, mas apenas sexo,
crueldade e metamorfose. O próprio dia é invadido pela noite daimônica.
(...). As operações do sexo são
convulsivas, do intercurso à menstruação e ao parto: tensão e distensão, espasmo,
contração, expulsão, alívio. O corpo é retorcido em inchação e abandono. Sexo
não é o princípio do prazer, mas a servidão dionisíaca do prazer-dor. Tanta
coisa é uma questão de superar resistência, no corpo ou no amado, que o estupro
será sempre um perigo presente” (Camille Paglia, Personas sexuais, Cia das
letras, páginas 15 e 37).
Reparem as contradições e complexidades
da questão sexual, reduzida à suposta liberação a partir do relacionamento
poligâmico. Que consequências podem advir de uma compreensão rasa e
reducionista do debate sexual?
Para além disso, há também a estreita
relação entre sexualidade e religiosidade, desenvolvida em uma luta permanente
de aceitação e repressão que se deu ao longo dos milênios. O livro intitulado
“A sexualidade sagrada”, de Georg Feuerstein, demonstra com argumentos eloquentes
a evolução das práticas religiosas e ritualísticas que envolviam o sexo desde a
pré-história, passando pelas civilizações antigas, medievais, até as modernas.
Este livro é recomendado porque faz um bom resumo do assunto, mas certamente
não é o único. A dissociação do sexo de sua dimensão sagrada não deixou de ter
consequências políticas, religiosas e psicológicas – em síntese, não deixou de
ter profundas consequências práticas que ainda povoam o inconsciente coletivo e
tem reflexos políticos e sociais ignorados.
9.
Na questão do casamento não monogâmico,
isto é, do “relacionamento aberto”, também é necessário pontuar grandes
diferenças.
Este caso é ilustrativo porque se trata
de um dos elementos importantes para a construção de uma nova sociedade,
evitando julgamentos destrutivos e trabalhando para a superação da moral atual.
O fato de muitas pessoas (e, principalmente, muitos militantes) propagarem e
supostamente já praticarem o “relacionamento aberto” não significa que estejam
necessariamente construindo uma nova forma de relacionamento “socialista”,
revolucionária ou, simplesmente, novas formas mais saudáveis de se relacionar. Tudo
tem que ser examinado com muito cuidado e critério, concretamente, sobretudo no
trato entre si e no grau de autonomia emocional e real que desenvolve nas
pessoas envolvidas.
Em muitos casos ocorre a infiltração de
pensamentos, sentimentos e utilitarismos burgueses, dado que vivemos no
capitalismo selvagem e bárbaro. Se não temos uma nova cultura moral tolerante e
acolhedora, na atual sociedade burguesa muito provavelmente esta modalidade de
relacionamento pode ser infiltrada por motivações narcisistas, hedonistas e
utilitaristas; muitas vezes se escondendo atrás de justificativas “modernas”, “progressistas”,
“socialistas”, “marxistas”.
Não há relacionamento aberto possível
sem se preocupar com o outro; sem ser sensível com suas demandas e tempos; sem
paciência e, sobretudo, sem que o entorno, a sociedade, a moral, o julgamento
alheio, estejam se modificando para melhor (por menor que seja este passo
adiante). É necessário, sobretudo, a autorreflexão, auto reconhecimento e
maturidade — artigos raros, em especial, a última, uma vez que a sociedade
capitalista, suas instituições, mídias e religiões organizadas, infantilizam as
massas de seres humanos, injetando-lhe incontáveis doses diárias de hedonismo e
narcisismo egocêntrico como forma de dominação e submissão.
10.
Parte fundamental da vida interior das
pessoas – sobretudo as que compõem a classe trabalhadora – diz respeito à
religiosidade, ao medo da morte, das inseguranças da vida, da visão errônea de
se sentirem sozinhas e pequeninas (o que as leva a se associarem a qualquer
coisa, incluindo às religiões organizadas, como as igrejas evangélicas, que
exploram o seu sentimento numinoso). Parte dessas inseguranças diz respeito,
sim, ao sistema econômico, ao desemprego, à miséria. A outra parte diz respeito
aos anseios congênitos da espécie, expressos nas buscas religiosas por sentido
e “contato com o eterno”, que podemos constatar em distintas épocas e
civilizações (e ainda hoje!). O debate sobre a mudança interior das pessoas pode se iniciar com a socialização dos
meios de produção, como “nos ensina” o blog Coerência Marxista, mas ele não é
automático, nem é inevitavelmente desencadeado se não for pensado, arquitetado
e estimulado conscientemente.
O “eu” (e o seu mundo interior, repleto
de “eus”) não está separado da realidade externa. Ao contrário. São partes de
um mesmo todo que se influenciam mutuamente. Ignorar este fato é mutilar a
mudança social; é condená-la a ser parcial e, portanto, ineficaz. Trata-se de
uma relação dialética entre os mundos exterior e interior que não pode ser
menosprezada.
O que se quer dizer com mudar o interior
das pessoas? Há importância alguma nisso ou se trataria apenas de mais um
discurso idealista, burguês, determinado a enrolar e a desviar o proletariado da
luta pela superação de suas direções traidoras?
Tudo o que você é, o que pensa, o que
sente, o que faz em sua vida diária, é projetado para fora, e acaba
constituindo parte do mundo a sua
volta.
Se somos infelizes, confusos,
arrogantes e intimamente caóticos, através da projeção, isso se torna o mundo e
a sociedade para nós. Se o nosso relacionamento é estreito, egocêntrico,
limitado, patriótico, preconceituoso – seja em que esfera for –, projetamos
isso para fora de nós e contribuímos com o caos no mundo. O mundo é parte do
que você vê e projeta nele, tal como nos demonstra a física quântica e o
pensamento místico Oriental. A realidade é uma coisa peculiar. Ela está aí
quando você não está olhando, mas quando você a olha com ganância, raiva ou
medo, aquilo que você capta é o sedimento de sua ganância, raiva ou medo, e não
a realidade.
A dificuldade consiste em que nunca
desejamos estar incertos e temos medo de perder tudo. A mente vendo-se incerta,
busca a certeza, criando assim o temor. Do temor nasce a imitação, o
estabelecimento da autoridade – política, teórica, religiosa, etc. – visto que a
mente exige um estado de continuidade, onde se veja e se sinta como certa. Mas a mente que corre atrás de
certezas, nunca tem espaço onde seja possível o aparecimento e o contato com o real.
Tomemos como exemplo o mal que cada um
sofre desde a infância. Você é magoado pelos próprios pais, depois na escola,
na universidade, no trabalho, através do julgamento, da comparação, da
competição. Durante toda a vida existe este processo de ser comparado, julgado,
magoado. Na maioria das vezes, de forma inconsciente.
O que se torna este “eu”, este “meu”?
Ele pode ser entendido como um nome,
uma forma, um fardo de memórias, de esperanças, frustrações, anseios,
sofrimentos, prazeres vivenciados e esperados, alegrias passageiras. Queremos
que esse “eu” evolua e veja além de si próprio; torne-se empático, sociável;
evite o egoísmo e o egocentrismo. A socialização dos meios de produção não cria
isso automaticamente.
Vendo o mundo, a sociedade e o “eu”
frente à necessidade de uma revolução, como resolver esta contradição? Provavelmente
ela só pode ser enfrentada quando o “eu interior” já não faz nenhum esforço
para mudar a si mesmo, mas ele próprio faz parte daquilo que tenta mudar. Se
você está consciente de toda a sua atividade interna, seus pensamentos, seus
sentimentos e suas reações, você descobrirá por si mesmo o quão condicionado é,
o quão limitado é! Isso é parte fundamental no caminho da autolibertação, tão
importante para estimular, de fato, uma revolução social.
Um ambiente materialmente favorável, sem
preocupações subjetivas, pode apenas fortalecer a perigosa tendência de se
esperar que tudo se origine de fora – inclusive a mudança interior que a
realidade externa não pode providenciar. Não há contradição e conflito entre o
interno e o externo. Isso precisa ser pensado desde agora, pois é necessário renovar
o arsenal teórico. Quem se nega a fazer isso contribui com a mesmície, que não
pode nos fazer sair deste mato sem cachorro em que estamos.
Não há nada de misterioso ou místico
nisso. Sabemos de tanta coisa que está se passando no mundo e tão pouco a
respeito de nós mesmos! Não comecemos pelo limite extremo do problema, que é o
fim do “eu”, mas pelas coisas pequenas, pelo dia-a-dia, pelas manifestações
miúdas do cotidiano. Deve-se tentar, em essência, observar sem um observador,
um julgador, um condenador que já tem tudo pronto de antemão. Esse é o primeiro
passo para poder se interferir nessas micro teias que ajudam a sustentar o
macro.
11.
Por acaso, para construir uma sociedade
sem Estado e sem classes sociais não é necessário desvendar o segredo do ego,
trazer à tona suas contradições, suas forças ocultas inconscientes, suas
influências egoístas e narcisistas, seus distintos medos e inseguranças?
Estimular a mudança e superação disso não é fundamental para uma sociedade
comunista? Tais mudanças, repetimos, não
chegaram nem perto de acontecer em Cuba, China ou Rússia apenas com a
socialização dos meios de produção. Ao contrário, com uma mudança inicial nos
meios de produção tudo veio de fora e o que se reforçou foi centralmente o
espírito de submissão e, portanto, de rebanho. A burocratização também é um
resultado desse processo e da ausência de tais preocupações.
Não seria muito importante que o
combate ao egocentrismo partisse das próprias organizações de esquerda, que deveriam
superar seu samba de uma nota só e buscassem novos caminhos, novas explicações,
novas relações? Sem recorrer ao processo de autoconhecimento de si mesmo, se
depurando permanentemente dos erros, dos medos, das inseguranças, dos ódios
desmedidos, da indiferença perante o outro, como poderia uma organização de
militantes adquirir as qualidades necessárias para estimular uma revolução? Nos
referimos aqui a tentar; a começar
uma caminhada que desbrave um novo roteiro, um novo caminho político, social e
psicológico! Quantos dirigentes políticos, sindicais e militantes apenas
alimentam o próprio ego e levam a “sua base” a alimentá-lo também? E para onde
isso tem nos levado?
Ao que tudo indica, para o blog
Coerência Marxista, nada disso tem relevância. Tudo já está contido nas bíblias
sagradas da esquerda e nas fogueiras das santas inquisições aos hereges. Não há
problema em sermos blogs adversários. Buscamos construir uma unidade na
diversidade cultural, de opiniões, de interpretações – desde que honestas e
comprometidas com a emancipação proletária, que ao fim e ao cabo, deve visar a
emancipação humana em geral. O blog Coerência Marxista busca a ridicularização
dos “oponentes” – de blogs como o nosso que influenciam menos de 1% da
sociedade!
O medo e a insegurança em relação às
dúvidas, ao novo, a aquilo que não conhecemos ainda, não é um bom conselheiro
para quem se pretende revolucionário, principalmente quando vemos que tudo está
estagnado e em crise. Faz parte da coragem revolucionária a capacidade de
encarar o não visto, o não vivido, o não respondido; mas, sobretudo, vale
encarar os nossos próprios medos interiores, que a gente projeta pra fora,
ofendendo e atacando os outros quase que gratuitamente, confundindo amigos com
inimigos, ao mesmo tempo em que tenta se defender destes medos escondendo-nos
atrás de imagens que fazemos de nós
mesmos como “campeões da interpretação correta da realidade externa e do
marxismo”. Não há nada de original nisso.
12.
Uma sociedade socialista mais
desenvolvida e plena não poderá solucionar todos os problemas humanos e
sociais. Isso seria irreal, dado que a natureza da vida é constituída num
equilíbrio entre prazer e dor, alegria e sofrimento, vida e morte, altos e
baixos. Portanto, não pode criar uma unidade coletiva que transporte o indivíduo
para um impossível estado de felicidade permanente, mas sim alertá-lo e
instruí-lo a adquirir firmeza e paciência diante do sofrimento e das
contradições que inevitavelmente persistirão. A vida acontece num equilíbrio
entre a alegria e a dor. Por certo que condições materiais melhores, mais
igualitárias, com garantias mínimas de dignidade, emprego, saúde, educação,
cultura, etc., fazem uma diferença considerável no sofrimento humano,
colocando-o num novo patamar, mas certamente não poderá erradicá-lo. O avanço
científico da medicina, por exemplo, ajudou a diminuir as dores do parto, mas
não a erradicou; tampouco acabou com inúmeros problemas pré e pós-parto.
É a sociedade capitalista que vende a
ideia de uma vida plenamente feliz a partir da compra da casa própria, do
último carro do ano, do emprego rentável e da ilusória imagem de “sucesso” e de
“ser alguém na vida”. Todos dão as mãos e sorriem como uma família eternamente
feliz, tal como aparecem nas propagandas de margarina. Uma sociedade
socialista, esperamos, não deve reproduzir os erros de cinismo e hipocrisia da
sociedade atual. Mais do que isso: não deve adaptar estas ilusões para ganhar
influências efêmeras sobre a classe trabalhadora com as mesmas peças
publicitárias falsas e cínicas.
A possibilidade de uma revolução
socialista depende da necessidade de que a classe trabalhadora pare de fugir de
si mesma e consiga olhar a verdade frente a frente, olho no olho. É nesse
sentido que a mudança interior é fundamental e precisa ser pensada, estudada,
estimulada pelas organizações de esquerda, sem o quê não existe revolução
possível. A busca pela plenitude da vida não se encerra na melhora das
condições materiais da sociedade, mas no aumento da liberdade de pensamento, de
segurança emocional e da capacidade de suportarmos a verdade nua e crua das
dúvidas e incertezas inevitáveis da vida, sabermos lidar com as frustrações
para pararmos de buscar desesperadamente lideranças, gurus e outros
subterfúgios que nos afastem dos nossos desafios interiores.
A rememorização decorada de toda a filosofia materialista não pode resolver o problema, que é muito mais complexo. Há que se aprender a respeitar humildemente todos os sentimentos interiores humanos e dialogar com eles, ampliando a nossa visão e a nossa lucidez. Com sua resposta, o blog Coerência Marxista julga estar “defendendo o marxismo” contra as “asneiras revisionistas, idealistas e loucas” do nosso blog.
Doce ilusão! O que está fazendo, na realidade, é empobrecendo o marxismo, as possibilidades que ele abre, e a própria capacidade reflexiva humana.
quarta-feira, 25 de outubro de 2023
A lei de Israel impede a paz e estimula a limpeza étnica
A
condição para a paz no Oriente Médio pressupõe a cooperação do Estado de Israel
e da comunidade internacional com a criação de um Estado palestino. No entanto,
é tudo o que não quer o governo israelense, com total apoio dos EUA, já que
ambos precisam do caos permanente na região para justificar não apenas os
interesses dos seus respectivos complexos industrial-militar, mas a intervenção
política e militar autoritária.
Exigir “paz” na Palestina sem
reconhecimento mundial de um Estado soberano, que seja respeitado internacionalmente,
mas, sobretudo, seja reconhecido por Israel, é uma contradição. Essa é a
essência da questão. Sem a criação deste Estado, com suas respectivas instituições
e soberania territorial, que tenha crescente inserção econômica mundial, deixa
a população palestina à mercê de Israel. Para tornar um Estado palestino viável
econômica e politicamente, seria necessário vontade política tanto de Israel,
quanto dos EUA. Mas estes países estão interessados em manter uma zona de
guerra permanente no Oriente Médio, tanto para atender os interesses do seu
complexo industrial-militar, quanto para sabotar, sempre que possível, as
ligações geográficas entre a China e a Europa.
Na política interna israelense se notam
duas perspectivas: uma, que é moderada e reconhecia a necessidade de tratados
de paz com os palestinos, respeitando a necessidade da construção de um Estado
independente, representada pelos trabalhistas; e a outra, de caráter fascista
(chamada eufemisticamente de “extrema-direita”), que não apenas não quer nenhum
tipo de independência para os palestinos, como precisa desta situação
“indefinida”, inclusive com a tolerância tácita de “movimentações terroristas”,
para justificar sua política permanente de guerra, representada pelo Likud,
partido de Benjamin Netanyahu.
Cada vez mais o partido fascista ganha
terreno na política interna de Israel, seja através da propaganda ou da
manipulação do inevitável sentimento de insegurança da população. Tomado por um
fundamentalismo sionista, não há diálogo possível, uma vez que usam diversas
manobras políticas para se recusar a ouvir e promover o caos do desentendimento,
até a utilização de “esconderijos institucionais” de órgãos regionais e
internacionais, como a ONU. Na condição de um Estado tolerado e patrocinado
pelas potências Ocidentais, como os EUA e a Inglaterra, Israel pode promover
livremente uma política belicista ininterrupta que impede qualquer tipo de paz
na região.
O Ocidente e a sua
tolerância tácita com a política interna de Israel
A visão utilitarista Ocidental espera cinicamente
uma paz impossível que não enfrenta a política interna de Israel, nem seu
projeto geral. Depois cai num desânimo providencial que termina por “esquecer”
daquela situação sem procurar chegar às suas raízes. Tal visão é pautada pelo
extremo individualismo da sociedade capitalista, que consome o espetáculo
midiático, no mais das vezes, acriticamente, se “comovendo” seletivamente e se
assustando.
Como se viu, não é possível paz na
região se há uma fonte que tensiona permanentemente para ações de guerra, como
a política interna de Israel, que não reconhece nenhum tipo de soberania
política e sabota qualquer tratado de paz, agindo no sentido de ofender,
humilhar e massacrar permanentemente os palestinos.
A situação política e econômica
internacional, bem como a propaganda da grande mídia Ocidental (chamada
erroneamente de “jornalismo”), condiciona nossas mentes e a nossa visão sobre a
situação da Palestina. Somos obrigados a raciocinar dentro de estreitos limites
e fica fora da equação as questões decisivas da política interna de Israel,
abençoada e sustentada, às vezes secretamente, às vezes abertamente, pelo
imperialismo estadunidense.
E querer paz para região ignorando
essas questões decisivas é o mesmo que querer apagar fogo com gasolina. É como
se houvesse um curto-circuito que impede um desfecho positivo e sobressai-se perante
nossos olhos uma aparente situação sem saída. Há um permanente trabalho ideológico
neste “jornalismo” para nos impedir de chegar às verdadeiras raízes do
problema.
Escondem ou minimizam a política
fascista de Netanyahu e seu partido para permanecer no poder e manter intacta as
suas sucessivas manobras militares de limpeza étnica. No seu quinto mandato
consecutivo, ele sofria com processos de corrupção e promovia, seguindo a linha
do neofascismo internacional, uma série
de ataques políticos ao judiciário, alegando excessivo poder de interferência.
Por isso, tentava concretizar o que
chamou de “reformas” para diminuir o seu poder. Em resposta, enfrentou uma
sequência de protestos populares há meses, o que levou o seu governo a uma
semi-paralia. O ataque do Hamas lhe deu providencialmente a justificativa para
unificar o governo e o país em torno da guerra, criando, finalmente, uma
“aliança de governo”. Como declarou que a “guerra será longa”, o caminho, fica
livre, na prática, para “reformar o judiciário” por meio de poderes marciais.
Enquanto bombardeia Gaza diariamente,
vende cinicamente a ideia de que isto estaria justificado porque Israel é “a
única democracia do Oriente Médio”. As suas declarações são reproduzidas aos
quatro cantos pela mídia Ocidental.
A propaganda da grande
mídia e da extrema-direita e a sua relação com o egocentrismo humano frente à
causas complexas
A mídia Ocidental também sabe lidar
muito bem com o “seu público”. A população Ocidental é levada, através do
discurso político oficial e da grande mídia comercial, a esperar uma paz “do
nada”, por uma “boa vontade política de ambos os lados”, esquecendo-se das
situações objetivas e fechando os olhos para ações políticas que acontecem nas
sombras, permanecendo, assim, muitas vezes, em uma ingenuidade forçada que
procura não ver para não se incomodar.
Isto segue uma lógica da psicologia de
massas. Se os observadores ocidentais acham que alguma coisa é possível, então
gastam uma grande abundância de energia nessa “solução”, se empenham, se
empolgam e até se tornam ativistas. Mas se sentem que algo é impossível, como supostamente é a situação da palestina,
veem tudo como um grande desperdício de energia e se largam na correnteza do
que existe, das coisas como elas são, e, então, vivem caindo de armadilha em
armadilha.
E como é fácil cair em armadilhas da
grande mídia Ocidental e da extrema direita – especialistas em criar novas
armadilhas –, uma vez que o discurso de ódio, que justifica a violência e a
cultura de guerra é sempre muito sedutor para os seres humanos dominados pelas
atividades egocêntricas. A sociedade capitalista é individualista, utilitária,
e incentiva o egotismo como forma de dominação. A extrema-direita e a grande
mídia sabem disso e incentivam tais “qualidades” na massa humana.
Assim, como a maior parte das pessoas é
dominada por estas atividades e preocupações egocêntricas, se importando
superficialmente por assuntos que não lhe dizem respeito diretamente, vemos uma
enxurrada de posições messiânicas, equivocadas, parciais ou interesseiras sobre
a questão de vida ou morte da Palestina. Tais posições tendem a aprofundar o
caos e a perpetuar a situação de violência sem fim na Palestina e no Oriente
Médio.
Temos visto que a política oficial de
EUA e Israel, bem como o “jornalismo” da grande mídia Ocidental, alimentam na
massa humana tendências animalescas, que a desumanizam. Criam e naturalizam
xenofobias, genocídios e violências reais e simbólicas nas mais diferentes
esferas; isto é, com sua narrativa ajudam a manter hordas de massas fanatizadas
incapazes de pensar de forma abrangente e que nada veem nem ouvem além da voz
do seu caudilho de ocasião, a letra da sua cartilha, da sua “cultura”.
Em nome da imposição de um tipo de
civilização – a sua –, desmerecem outras e as atacam se tentam resistir de
alguma forma. Como pode uma mente confusa descobrir e entender qualquer coisa
que não seja a projeção de sua própria confusão?
Por que, afinal, não há
paz no Oriente Médio?
Não há paz no Oriente Médio porque
existe uma força tensionando permanentemente pela manutenção de uma linha
política. Esta linha visa a imposição de uma vontade sobre as demais pela
força; no caso, trata-se da força promovida pelo Estado de Israel – amparada
pelos EUA –, sob o tacão político da extrema-direita, o Likud, que não mede
esforços para sabotar acordos de paz e impor sua política de guerra sustentada
por um terrível discurso de ódio, minimizado, ou mesmo ignorado, pela mídia
Ocidental, que ressalta e salienta apenas o discurso de ódio do Hamas. O
governo do Likud é, portanto, um centro permanente de sabotagem de qualquer
autonomia para a Palestina e promotor de um terrorismo
de Estado ininterrupto – minimizado ou tornado “natural e justo” pela
grande mídia Ocidental.
Do outro lado temos um povo sem Estado,
sem soberania sobre o seu território, sem exército; massacrado e desesperado.
Como se fossem “criados em laboratório”, suas experiências políticas
desesperadas tendem a desenvolver formas de fundamentalismo, como o terrorismo.
Se não há possibilidade de se manifestarem de outra forma; e se no cotidiano de
sofrimentos incontáveis, são ignorados pela comunidade internacional, o que
lhes resta? Se podemos “condenar o terrorismo” do Hamas, um tanto generoso com
as intenções de Netanyahu e o Likud, dada a ausência da correlação de forças,
não podemos deixar de reconhecer que é um reflexo de uma força maior, no caso,
da opressão permanente do Estado de Israel. Qualquer ser humano que tenha um
pingo de sensibilidade sabe que o terrorismo do Hamas poderia ser evitado ou,
pelo menos, minimizado, se houvesse outra orientação política do lado mais
forte, o que não é o caso.
A visão da “esquerda”
sobre a situação da palestina
O Hamas também dissemina um discurso de
ódio, que é amplamente utilizado pelo governo de Israel e pela grande mídia
Ocidental para acionar o lado sádico e violento das massas humanas.
Como sofrer uma agressão e não revidar?
Para isso, criam uma narrativa que
esconde os fatos sobre a opressão histórica de Israel em relação à Palestina.
Mesmo quando, por ventura, alguém saiba dos fatos, tende a tomar o lado da
retaliação, uma vez que o ódio e a violência são forças incentivadas,
disseminadas e valorizadas pela sociedade atual. A violência é admirada por si
mesma como uma demonstração de força; e, assim, entendem que é legítimo que o
lado mais forte prevaleça. Não é mais ou menos assim que funciona a mentalidade
meritocrática?
Então, a “esquerda”, no geral, tende a
apoiar as ações do Hamas, acriticamente, o que só pode reforçar o círculo
vicioso de violência desencadeado e sustentado pelo Estado de Israel.
Mais do que isso!
O governo de Israel, os EUA e a sua
grande mídia contam com isso. E tudo fica ainda mais embolado a partir de um
discurso frenético que reproduz a “teoria marxista” um tanto dogmaticamente,
mas ignora a realidade concreta da disputa da luta de classes na região. Ou
seja, se avaliza e se reforça direta ou indiretamente o discurso do Hamas.
Assim, Israel desencadeia inúmeras ofensivas militares “amparada” no discurso
de “auto defesa”, “justiça”, “liberação de reféns” (como se a faixa de Gaza não
fosse uma região inteira que mantém 2 milhões de reféns) e “combate ao
terrorismo”.
Tudo isso gera uma espiral sem fim de
violência e de cultura de guerra. O que redunda em mais massacre e, agora, numa
política consciente promovida pelo Likud de limpeza
étnica. Não existiriam “guerras” hoje em dia sem o apoio ativo da grande
mídia, que conquista o “consentimento” do “cidadão médio” dos países do mundo,
mas, em especial, de Israel. A contra-narrativa da esquerda tem reforçado e
facilitado a política fascista do Likud, pois não há cuidado com a forma, nem
com a realidade concreta.
Compete a um lado sensato e lúcido
romper com esta espiral de violência. O fundamentalismo islâmico e político
beneficia a política do Likud e o ajuda a se disfarçar. O primeiro passo é
nunca desviar a atenção da política interna de Israel, bem como de seus
objetivos gerais, que só podem promover a guerra e a limpeza étnica. Estar
consciente dela, nunca esquecê-la, denunciá-la em qualquer circunstância, mesmo
frente à pior onda de desinformação propagandística promovida pela grande mídia
Ocidental.
Esta é a chave!
No momento atual, de total
desarticulação da esquerda a nível regional e internacional, cabe entender a
situação e renovar a análise e denúncia da situação palestina da melhor forma
possível, evitando a repetição de jargões e frases soltas que só podem ajudar politicamente
o Likud, o Estado de Israel e os EUA, em decadência histórica.