sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Javier Milei eleito presidente da Argentina


Hegel diria que os povos do mundo são incapazes de aprender uns com os outros.
O povo argentino, constituído de uma elite tipicamente colonial e uma massa miserável, possui, em seu interior, razões distintas para eleger Milei.
Para a elite argentina e estadunidense, Milei é uma arma de guerra — sobretudo contra os BRICs. Para o povo, uma esperança manipulada e, portanto, furada — reforçando e mexendo em crenças esotéricas e religiosas bizarras.
Muita gente no Brasil e no mundo culpa o "desgaste do peronismo", o que "justificaria" a eleição de Milei. Certamente contribuiu o impasse político que o peronismo representa (o mesmo vale para o petismo no Brasil), mas não foi a única causa. Talvez nem a principal.
A estrutura econômica da Argentina, sua crônica crise financeira, resultado de sua evolução histórica; e a manipulação da psicologia de massas — não combatida e não debatida pela esquerda, que sempre reproduz o mesmo ramerrão político — são os motivos centrais, visto que o neofascismo já construiu uma espécie de "internacional" em diversos países e regiões. Milei faz parte disso.
Em geral, os estados latino-americanos — e o Estado argentino em especial —, que emergiram do processo de internacionalização da economia entre os séculos XIX e XX, apresentaram uma débil capacidade extrativa própria e uma forte dependência do financiamento externo. Como sempre, os recursos do Estado passam a ser disputados por "projetos nacionais": de um lado a elite procurando manter um projeto excludente, de enriquecimento de poucas famílias e, geralmente ligado às burguesias internacionais mais dinâmicas; de outro, projetos "desenvolvimentistas" de cunho "distributivo", que buscam a conciliação com setores golpistas e arrivistas, que mantém o alto preço do dólar e a dependência extrema desta moeda, pois lhes garante lucros maiores e mais imediatos. Seu "projeto de país" passa a ser, então, manter esta dependência internacional.
O peronismo sempre representou uma ameaça para estas bases de acumulação dos setores economicamente dominantes na Argentina. Milei, como Bolsonaro no Brasil e Trump nos EUA, segue a mesma receita: utiliza a confusão, o misticismo, as fake news, declarações bizarras e tonitruantes, o suposto "combate à corrupção" e à "gastança do ineficiente Estado" para confundir, dividir e reinar.
Nada do que é realmente essencial no discurso e na prática neofascista é combatido pela atual militância de "esquerda", seja em que esfera for. A "esquerda" atual a nível mundial não está preparada para enfrentar este movimento internacional. Precisa se reciclar, mas não dá mostrar de caminhar nesse sentido. Enquanto isso, os monstros nascem e crescem nesta recusa da esquerda em se renovar e na repetição do "mais do mesmo".

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Uma nova tentativa de diálogo sobre o dogmatismo “religioso” do movimento socialista


A ciência Ocidental é produto da mente apolínea:
espera que, pela denominação e classificação, pela fria luz do intelecto,
a noite arcaica seja repelida e derrotada. (...)
Caminhando em meio à natureza, vemos, identificamos, nomeamos, reconhecemos.
Esse reconhecimento é nosso apotropaion, ou seja, nosso isolamento do medo.
(Camille Paglia).

Olhar por trás da segurança
Da história consagrada nos textos,
dar meia volta
e olhar sobre o ombro
até o primitivo terror
(T.S.Elliot).

Quem se dedica à pesquisa do inconsciente se depara com coisas insólitas,
que um racionalista evita com horror, afirmando depois nada ter visto.
O lado irracional da vida ensinou-me a não rejeitar o que quer que seja,
mesmo que isso vá de encontro a todas as nossas teorias
(aliás, de vida tão curta)
ou pareça, por outro lado, momentaneamente inexplicável.
Isso nos deixa inquietos: não temos plena certeza
de que a bússola esteja apontando na direção verdadeira;
mas não é na segurança, na certeza e na tranquilidade
que se fazem as descobertas.
(C.G. Jung).

 

         Mal o texto Dogmatismo e omissões do movimento socialista em relação ao sexo e à religiosidade humana foi publicado e alguns dias depois já tinha recebido uma pronta “resposta” do blog Coerência Marxista, que, ao que tudo indica, é um dos poucos leitores assíduos de nosso blog.

         É interessante notar como perdemos boas oportunidades de trocas e de crescimento coletivo em nome de ataques “teóricos”, muitas vezes de cunho pessoal, cuja finalidade maior é saciar o ego. Apesar desse tipo de “diálogo”, digamos, um tanto viciado, vamos tentar pensar juntos sobre o nosso texto e a resposta do blog Coerência Marxista, para ir mais além.

         Em primeiro lugar, queremos reconhecer que o nosso texto foi, por vezes, arrogante, tal como é grande parte dos textos “marxistas”, que usam um linguajar que pretende dar conclusivos “xeques-mates” e coloca, às vezes, indistintamente muita gente em balaios de gato. Isso certamente causou parte da ira e do descontentamento do Coerência Marxista. Talvez o referido blog não veja problema nisso, tanto é que o reproduz; mas nós vemos. Queremos ser melhores do que fomos ontem, nos aperfeiçoando e tentando evitar a arrogância.

         Ainda que a linguagem do nosso texto tenha soado arrogante e em parte ofensiva, queremos sustentar de uma maneira mais adequada e menos belicosa o conteúdo dele. A crítica ao nosso texto nos dá a oportunidade de repensá-lo, é claro, desde que estejamos afim de pensar de forma renovada.

         Não conseguimos entender o porquê de tamanha virulência contra o nosso blog, dado que a nossa influência social sobre a classe trabalhadora – grande objetivo do blog Coerência Marxista – é praticamente nula. Não podemos acreditar que pensem que influenciamos algum tipo de “massas”. Por certo, tentamos, mas estamos muito longe disso. A explicação mais plausível que encontramos para a resposta que recebemos é que, de certa forma, o blog Coerência Marxista demonstra involuntariamente que o nosso texto atingiu sua finalidade. Qual seja? A de demostrar como grande parte da militância de esquerda vivencia o marxismo como um substituto para a religião na psique humana, que ao ver parte de suas bases questionadas, desencadeia uma série de ataques fundamentalistas visando manter a “pureza dos seus princípios”, já que é deles que tiram um sentido para as suas vidas.

Um pequeno exemplo extraído das redes sociais

         Tal tipo de “ataques fundamentalistas” se dão desta forma porque são resultado de uma cegueira, que confunde o juízo, movido, no mais das vezes, por uma raiva irracional que está presente dentro de nós e que é desencadeada quando nossos valores que nos dão segurança pessoal são questionados. A seguir vamos tentar explicar melhor algumas de nossas conclusões ao blog Coerência Marxistas que, na sua resposta, apresentam muitas omissões que falam muito!

 

1.

         O blog Coerência Marxista pergunta “quem é a esquerda nova e quem é a velha?”, dando a entender que foi um equívoco nosso blog não diferenciar, nem explicitar a quem nos referíamos.

         O texto que postamos é uma crítica global à atual esquerda, em quase todas as suas esferas e níveis. Poucos agrupamentos ou militantes não sofrem do mal que foi criticado. É, portanto, uma crítica ao próprio marxismo, que é visto como perfeito (ou semiperfeito pela maioria das organizações de esquerda – talvez Gramsci tenha sido um dos pensadores marxistas que mais se preocupou com certas lacunas, como o problema da religião).

         Há diferenças políticas entre as esquerdas sim. O restante dos vários artigos do nosso blog faz essa diferenciação, porém, o que o texto que postamos no dia 13 de junho quis criticar serve para quase toda ela, sem exceção. Se o nosso texto é severo, em particular, para com o marxismo (e o trotskismo), isso não significa que não reconheça nele(s) todos os seus méritos. Ao contrário, está criticando o que considera os seus pontos fracos (ou ele está isento de pontos fracos?).

         Por exemplo, no caso do nosso texto, deu-se ênfase aos problemas teóricos negativos relacionados ao “espírito do tempo” (existem também os positivos, que não foram abordados porque não era esse o objetivo). Podemos destacar a excessiva ênfase no cientificismo como “plena solução” e o completo menosprezo à intuição – algo que como falamos, reflete bem o positivismo do século XIX (o mesmo excesso pode ser visto na psicanálise freudiana).

         As organizações menores sofrem com o messianismo e o purismo “religioso” não declarado; já as organizações maiores, como o PT e o PCdoB, mesclam-se oportunistamente às religiões organizadas e surfam na sua onda, sem crítica alguma.

 

2.

         Um problema central que apresentamos no nosso texto e que compreendemos ser equivocado no marxismo, terminando por se espraiar para distintas organizações de esquerda, é o caso do messianismo e da cosmogonia.

         Isso não significa que o marxismo como teoria política e econômica deixe de ter valor. Só denota que seria interessante depurá-lo de determinados excessos que tendem a fazê-lo exagerar – misticamente, sem o admitir! – alguns elementos da realidade. Por exemplo, na espera pelo despertar do sujeito social, a forma como ele se expressa e a redenção quase religiosa que “causará” – isso não é parecido, para dizer o mínimo, à pregação pela vinda redentora de um messias?

         O próprio texto de resposta do blog Coerência Marxista é um atestado involuntário desse messianismo, reafirmado-o inconscientemente por distintos meios. De certa forma o nosso texto foi um pouco leviano no linguajar e ríspido demais em algumas colocações, uma vez que questionar valores e a segurança pessoal de alguém (ou de organizações inteiras) deve ser feito sempre de uma maneira mais refletida e serena, nunca leviana.

 

3.

         Um dos principais erros da resposta do blog Coerência Marxista se dá em relação ao conceito de numinoso. Não conhecemos, nem nos referenciamos no autor que foi citado por ele. O texto do nosso blog se baseia no conceito de Carl G. Jung, ao qual certamente o Coerência Marxista não conhece – e, se por ventura o conhece, provavelmente o menospreze.

         O numinoso, para Jung, é um efeito que se apodera e domina o sujeito humano, que passa a ser mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. O dado mais importante talvez seja que o caráter numinoso consiste em que a pessoa se sinta subjugada por este sentimento. De modo particular, o pensamento numinoso tem sua origem na experiência vital. Assim, a imagem numinosa é muito mais uma expressão de processos inconscientes do que o resultado de uma operação racional. Ela está incluída na categoria das realidades psicológicas, surgindo daí o problema relativo a seus pressupostos psíquicos. Temos que pensar aqui num processo de formação de símbolos que se estende por vários séculos e tende constantemente a tornar-se consciente. Todos nós, em alguma medida, já sentimos os efeitos do numinoso.

         Para o indivíduo, enquanto fenômeno psíquico, o numinoso é sentido como objetivamente real. Nesta constatação acham-se incluídas, naturalmente, todas as afirmações (até mesmo contrastantes) que algum dia já foram ou ainda serão de caráter numinoso. A numinosidade do objeto torna difícil que se lhe dê tratamento racional, pois é o caráter afetivo que se destaca na mente.

         Tudo isso não seria da mais alta importância para militantes que se colocam como tarefa fazer uma revolução socialista com a classe trabalhadora, hoje dominada pelos mais diversos tipos de religiosidade com seus respectivos sentimentos numinosos? Ao que tudo indica, para o blog Coerência Marxista a resposta é não!

         Quem não tem concepções religiosas – como é o caso do blog Coerência Marxista – não gosta de reconhecer-se como portador de um déficit. Apela para a sua mentalidade esclarecida. Quem se fixa nesse ponto de vista dificilmente admite o caráter numinoso do objeto religioso, e este, não poucas vezes, o impede de pensar criticamente, pois pode acontecer que sua fé na racionalidade estrita, como no iluminismo, no cientificismo, no “ateísmo”, no “marxismo” – isto é, em teorias e ideologias que podem tomar o lugar psíquico da fé religiosa – seja abalada. Não apenas passa a encarar a dúvida como coisa desagradável e penosa, como passará a temê-la. Se chegar a temê-la, tenderá, então, a reforçar a sua fé inabalável nas teorias ou ideologias que podem tomar o lugar psíquico da fé religiosa com gritos e declarações tonitruantes.

         O blog Coerência Marxista ainda faz uma pergunta sobre se a geografia seria uma ciência numinosa porque nós, seres humanos, seríamos menores do que a Terra. O sentimento numinoso não está relacionado apenas ou prioritariamente ao tamanho, mas, sobretudo, ao sentimento psicológico relativo ao “sagrado”, ao transcendental. A própria formulação da pergunta deixa evidente que o blog que nos criticou não entendeu nada sobre o conceito de numinoso. Nesse caso, os melhores remédios seriam o estudo dedicado e a humildade.

 

4.

         Entender o conceito de numinoso como Jung o entende não significa que “nada pode ser feito” ou que a ciência “para nada serve”, mas tem a função de demonstrar certos limites do conhecimento humano, que são visíveis a olho nu e precisam ser reconhecidos se queremos que ele avance. Sobretudo demonstra como outras forças psíquicas entram em jogo na formação intelectual da maioria das pessoas. Para o blog Coerência Marxista, ainda que reconheça que existem “mistérios” que a química e a física não explicam, isto é apenas um detalhe que não precisa causar preocupação.

         No quesito da linguística e das palavras, Coerência Marxista parece nunca ter refletido uma vírgula sobre os limites da linguagem, pois pensa que tudo é acessível às palavras – e, sobretudo, às explicações cartesianas baseadas em fórmulas. Bastaria o exemplo de se tentar explicar as cores a um cego de nascença ou música a um surdo através da fala ou mesmo da escrita para vermos as limitações das palavras. Nestes casos, a experiência direta não pode ser substituída por uma narrativa.

         Reduzir a complexidade do problema a uma fórmula é justamente o que faz o pensamento mecânico. Grande parte da esquerda resume tudo a fórmulas “supersimples”. Talvez este seja um dos motivos pelo qual a influência da esquerda torna-se cada vez menor no mundo atual.

         Por mais importante que sejam as fórmulas para o raciocínio matemático, físico e químico, elas não podem solucionar o problema das lacunas da ciência e das questões transcendentais (tampouco o podem nas questões da política revolucionária). A matemática é apodítica, totalmente baseada na lei da causalidade. Esta última é questionável, uma vez que, partindo de uma boa hipótese de David Hume, a causalidade não é mais do que uma crença baseada na ação sobre o hábito, que deixa de perceber os fenômenos novos.

         O blog Coerência Marxista afaga a doce esperança de que com o acúmulo aleatório (ou semialeatório) de informações científicas pela humanidade venhamos formar um dia um todo pleno de sentido – e que explique tudo! Mas ninguém pode ter certeza disso, uma vez que nenhum cérebro humano (nem a totalidade consciente de cérebros humanos) é capaz de abranger a gigantesca soma final deste saber produzido em massa. Compreender o desenvolvimento científico desta forma em nada o anula ou o menospreza, mas o coloca sob uma perspectiva mais realista, já que problematiza os seus limites e abre a possibilidade de se pensar em soluções e alternativas.

         Os marxistas, a grosso modo, consideram-se cientistas (o blog Coerência Marxista, por suposto, também). Um cientista geralmente se esquece que a maneira objetiva de tratar um tema pode ferir valores emocionais em proporções indesculpáveis (como fazendo uma análise antropológica da religião de alguém, por exemplo, sem nenhuma preocupação com a forma). No mais das vezes, o intelecto científico é desumano, e, com certa razão e até certo ponto, não pode permitir-se o privilégio de ser diferente. Consequentemente, é inevitável que se torne insensível e sem consideração, mesmo quando baseado em motivos positivos.

         Muitas organizações e militantes agem assim também nas suas vidas pessoais e no trato com o outro no dia-a-dia. A arrogância desmedida e irrefletida rompe pontes entre nós, entre a classe trabalhadora, entre a sociedade em geral, em prol de certezas políticas e teóricas, no mínimo, questionáveis. Assim, erguem-se, estupidamente, barreiras sectárias desnecessárias. As forças conservadoras da sociedade, ainda que baseadas em interesses desprezíveis, prestam mais atenção nestes “detalhes”.

 

5.

         Além de Jung, o blog Coerência Marxista também ignorou o nome de Fritjof Capra, no qual grande parte das ideias do nosso texto que foi “criticado” se baseia.

         Capra dedicou sua vida à pesquisa e à demonstração da semelhança – para não dizer plena identidade – entre as conclusões da física moderna e do pensamento místico Oriental. As expressou em duas obras capitais: O ponto de mutação e O tao da física. Tirou daí conclusões pertinentes sobre o esgotamento do tipo de evolução científica e civilizatória que conhecemos.

         Ele afirma: “No século XX os físicos penetraram a fundo no mundo submicroscópico, em regiões da natureza muito afastados do mundo macroscópico em que vivemos. O nosso conhecimento da matéria nesse nível já não provém da experiência sensorial direta; em consequência, a linguagem comum já não é mais adequada para descrever os fenômenos observados. Os físicos nucleares proporcionaram aos cientistas os primeiros vislumbres da natureza essencial das coisas. Como os místicos, os físicos passaram a lidar com experiências não sensoriais da realidade e, também como eles, tiveram de enfrentar os aspectos paradoxais dessas experiências. A partir desse momento, os modelos e as imagens da física moderna tornaram-se vinculados aos da filosofia Oriental” (extraído de Sabedoria incomum).

         Capra insiste na limitação e no esgotamento da evolução científica baseada na visão newtoniana e cartesiana. A ciência, em sua opinião, não deveria ficar restrita a medições e análises quantitativas, mas basear-se, sobretudo, nos processos. Para ele, outros aspectos, como a quantificação ou o uso da matemática, são frequentemente desejáveis, mas não fundamentais. Capra ainda aponta que a teoria quântica mudou consideravelmente a concepção clássica de ciência ao revelar o papel crucial da consciência do observador no processo de observação e invalida, assim, a ideia de uma descrição objetiva da natureza.

         O pensamento como processo e o papel do observador também são características das tradições místicas do Oriente. Essa teoria das partículas subatômicas da física quântica reflete a impossibilidade de se separar o observador científico dos fenômenos observados. Os místicos orientais nos afirmam e reafirmam que todas as coisas e eventos que percebemos são construções da mente, surgindo de um estado particular de consciência e dissolvendo-se novamente caso esse estado seja transcendido. Essas novas conclusões trazem problemas ao debate filosófico do marxismo que precisam ser enfrentadas seriamente, e não com citações canônicas de fragmentos de textos dos “mestres inquestionáveis”.

         No entanto, Capra não propõe que os físicos comecem a meditar e se convertam à alguma religião, ou sequer sugere uma síntese entre ciência e religião Oriental. Ele simplesmente advoga a ideia de que é preciso desenvolver uma interação dinâmica entre a intuição mística e a análise científica. Isto é, o mesmo que o texto do nosso blog originalmente propôs no campo da teoria política e foi mal compreendido.

         Desta conclusão difícil, mas bem refletida, para a conclusão do blog Coerência Marxista de que a proposta para solucionar os problemas analisados pelo nosso texto “é mais religião e mais loucura”, ou de que tratamos o socialismo “como artigo de luxo para servir aos seres dotados de atitudes místicas”, existe não um fosso, mas um abismo que expressa diferenças forçadas e tolas de quem sente medo porque os seus dogmas e suas seguranças foram questionados. Nem propusemos que se crie qualquer tipo de religião ou solução religiosa. Quisemos apenas destacar uma constatação de fatos observáveis em dois extremos dos movimentos sociais, seja entre a militância de esquerda, seja na visão religiosa da maioria da classe trabalhadora.

 

6.

         A militância atual trata “a massa” da classe trabalhadora como algo disforme, uma espécie de argila, em que a vanguarda, o partido ou a teoria que estes detêm, conseguem modelar o pote ou o artefato de cerâmica. Não há interação e compreensão numa relação nova, recíproca, harmoniosa e criadora, mas, na prática, imposição daquilo que já se sabe, desconsiderando uma série de fatores, tal como um lado sendo o portador da luz da sabedoria e da “verdade plena”; e o outro, da total escuridão da ignorância. Não há trocas, porque um lado se superestima; enquanto o outro é desconsiderado completamente naquilo que de fato é.

         Aqui não se trata de adotar um discurso e uma prática “basista” ou espontaneísta, mas de perceber como os valores da massa, bem como ela em si mesma, é vista como a encarnação da ingenuidade, totalmente engada e manipulada inescrupulosamente por direções traidoras, sem espaço algum, por menor que seja, para uma escolha livre que parta dela mesma. Basta esperar um despertar da massa pela “política correta” das organizações de esquerda, tal como um alinhamento dos astros, para ocorrer o terremoto revolucionário.

         Sim. Isso é o que todos nós, socialistas, queremos: a mudança! Mas devemos reconhecer, humildemente, que algo de errado vem sendo feito, não apenas na prática, mas também a partir das insuficiências teóricas – incluindo a sua dogmatização pela militância de esquerda, inconscientemente ávida por preencher o seu vazio existencial. Para os dogmáticos não é necessário compreender a psicologia de massas. Tudo o que supostamente precisamos saber já estão nos cânones. Bastaria, então, segui-los e não “traí-los”. Séculos de cristianismo, com seus rituais, exegeses, heresias, excomunhões, assassinatos, etc., não poderiam passar incólumes pelas práticas de organização política e social.

         A situação da classe trabalhadora hoje é diferente do século XIX – é distinta ainda de país para país, de região para região. Vivemos uma época de crises emocionais e existenciais, com altos índices de depressão, ansiedade, suicídios, explosões de violência e de extrema apatia. O iluminismo guilhotinou o cristianismo e a religião, deixando o espaço psíquico humano desprovido de um substituto, obrigando-os a buscar em diversas outras áreas, como os relacionamentos humanos, incluindo os abusivos e vazios, as agremiações que são “maiores do que nós” (igrejas evangélicas, associações, movimentos, partidos, sindicatos, torcidas de futebol, etc.); além das drogas, remédios e do “recurso” ao suicídio. Dentro deste vácuo, a ciência tende a tornar-se, de certa maneira, um substitutivo para a religião. Porém, como é muito técnica, fria, “apolínea”, não pôde, até o momento, suprir algo que exige mais humanidade, mais contato, que misture os limites e as fronteiras.

         Assim, podemos dizer que o atual individualismo transformou-se numa realidade subjetiva imperiosa muito maior do que a coletividade era até então, ainda que esta continue sendo determinante. Tanto para a construção do socialismo, quanto para os dias atuais de capitalismo selvagem, compreender o funcionamento da mente coletiva, consciente e inconsciente, e a que sofre individualmente, é decisivo.

         O blog Coerência Marxista busca refugiar-se nos textos clássicos, nos cânones das explicações dos grandes revolucionários do passado. Sobre o stalinismo cita – provavelmente de cor – os livros de Trotski. Em relação aos motivos que levaram à ascensão do stalinismo, está objetivamente correto e bem decorado. Mas não é disso que estamos falando aqui. O pensamento stalinista é grosso, arcaico, rígido. Para ele basta colocar em cima da entrada das igrejas a frase “a religião é o ópio do povo” e a questão se resolve. Ou seja, tudo o que precisamos saber já está contido na direção do partido e na “teoria”. A religião que Stalin produziu de si mesmo endossa os argumentos do texto que deu origem a este debate: não é possível extirpar a religiosidade da mente humana – ela apenas mudará de forma e se infiltrará em outras esferas psíquicas.

         No caso específico da construção do socialismo, a educação pública e a grande mídia “controlada pela classe trabalhadora” não serão suficientes se não dialogarem e não levarem em consideração as necessidades transcendentais da psique humana, capaz de gerar um novo olhar de compaixão, afeto, felicidade, integração com a natureza, com o universo e com a humanidade em geral – isto é, uma relação com o infinito e o eterno. Sem este diálogo, as pessoas tendem a se voltar para o hedonismo, para o autocentramento como fator determinante de seu interesse no mundo, de seus relacionamentos fechados em si mesmos, assim como dos seus estritos interesses econômicos pessoais e familiares. Os interesses materiais, econômicos, são importantes, mas não podem suprir todas as demandas subjetivas, que continuaram existentes e pulsantes.

         A compaixão, como expressão de uma mudança interior que seja ativa, não é um comportamento piedoso individual, meramente contemplativo, mas uma inteligência lúcida e uma forma de atuação no mundo. Falta isso à maioria dos militantes hoje em dia, que muitas vezes tratam outros seres humanos como lixo por não conquistar sua concordância imediata; se orgulham do seu intelecto, mas não tem a menor preocupação com a sua conduta diária, com o respeito, a ponderação, a empatia. Pensam que se já detém a compreensão do programa socialista, acham nisso alguma suposta razão para se julgarem superiores.

         Portanto, a preocupação em mudar o interior das pessoas (algo subjetivo) é tão importante quanto mudar o exterior (socializar os meios de produção); e isso, repetimos e reforçamos, é menosprezado pela militância atual, pois a mudança interior não se dá de forma automática, sendo tratada como algo menor, sem valor, idealista, digno de piedade e rechaço. O blog Coerência Marxista reforça a noção rasa e simplória deste automatismo econômico: não é necessário se preocupar com as questões subjetivas da psique humana, seus sofrimentos, que seguem caminhos tortuosos, nem pensar soluções políticas para isso (até onde nos é possível); tudo de fundamental ocorreria automaticamente com a expropriação dos meios de produção.

         Na contramão da complexidade do problema, o blog Coerência Marxista sugere resolver a questão da mudança interior com palavras de ordem supersimples, como os bolcheviques propuseram em 1917: pão, paz e terra. Isso não nos parece uma “solução”, mas uma resposta pueril, decorada e pouco criativa. Em 1917 foi decisivo para a mudança exterior. Hoje não tem sido.

 

7.

         Sobre o fato de nosso texto ter partido de uma reflexão de Perry Anderson – e ele ser considerado um “socialista reformista” –, parece apenas a repetição de um pensamento ortodoxo das religiões organizadas, que na maioria das vezes manifesta rechaço e ojeriza aos textos de outras tradições. Não sabem lidar com o diferente, nem pensar a partir deles, a não ser rotulando-os, combatendo-os ou queimando-os na fogueira da santa inquisição.

         O fato de Perry Anderson ser reformista não invalida partirmos de uma de suas reflexões.

 

8.

         Outra questão abordada pelo blog Coerência Marxista diz respeito ao sexo. Porém, a deixou reduzida apenas ao ponto específico do relacionamento monogâmico ou “aberto”, pensando, com isso, ter solucionado um debate extremamente complexo e inexplorado pelo marxismo.

         O movimento socialista é, no geral, omisso sobre este tema. Ou fala em linhas gerais sobre emancipação feminina, igualdade social entre os sexos; ou se restringe a um silêncio profundo, como se este tema fosse questão de foro íntimo, tal como a escolha religiosa de cada pessoa.

         As questões sexuais estão diretamente relacionadas aos problemas emocionais e psicológicos da massa humana (e dos seus indivíduos). A militância em geral – e o blog Coerência Marxista, em particular – tende a reduzir tudo a um debate hedonista: o sexo é para a libertação do prazer, sem fim e sem limites. Coloca-se tudo abaixo e pronto! A questão está resolvida! Pra que ficar “falando tanta asneira” por coisas tão simples e óbvias?

         Mas a realidade insiste em ser muito mais complexa do que quer os esquemas formais. Sexo mexe com a biologia profunda, que desencadeia pulsões e forças psíquicas por vezes incontroláveis; ele é considerado por pensadores ao estilo de Freud, Jung, Camille Paglia, Erich Neumann, Willian Blake – dentre outros – como uma “força daimônica”, capaz de reproduzir os terrores da natureza ctônica. Se esta força não for levada em consideração, pode ser autofágica, paralisar ou destruir a sociedade, incentivando o caos e a violência.

         Segundo Camille Paglia, por exemplo, “o sexo é um poder muito mais sombrio do que admite o feminismo. As terapias sexuais behavioristas julgam possível o sexo sem culpa, impecável. Mas o sexo sempre foi cercado de tabu, independentemente da cultura. O sexo é o ponto de contato entre o homem e a natureza, onde a moralidade e as boas intenções caem diante de impulsos primitivos. (...) O erotismo é um reino tocaiado por fantasmas. É o lugar além dos confins, ao mesmo tempo amaldiçoado e encantado. (...) O sexo é daimônico. Este termo vem do grego daimon, que significa um espírito de divindade inferior à dos deuses do Olimpo. (...) O cristianismo transformou daimônico em demoníaco. Os daimons gregos não eram maus – ou melhor, eram ao mesmo tempo bons e maus, como a própria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud é o domínio daimônico. De dia somos criaturas sociais, mas à noite mergulhamos no mundo dos sonhos, onde reina a natureza, onde não existe lei, mas apenas sexo, crueldade e metamorfose. O próprio dia é invadido pela noite daimônica. (...). As operações do sexo são convulsivas, do intercurso à menstruação e ao parto: tensão e distensão, espasmo, contração, expulsão, alívio. O corpo é retorcido em inchação e abandono. Sexo não é o princípio do prazer, mas a servidão dionisíaca do prazer-dor. Tanta coisa é uma questão de superar resistência, no corpo ou no amado, que o estupro será sempre um perigo presente” (Camille Paglia, Personas sexuais, Cia das letras, páginas 15 e 37).

         Reparem as contradições e complexidades da questão sexual, reduzida à suposta liberação a partir do relacionamento poligâmico. Que consequências podem advir de uma compreensão rasa e reducionista do debate sexual?

         Para além disso, há também a estreita relação entre sexualidade e religiosidade, desenvolvida em uma luta permanente de aceitação e repressão que se deu ao longo dos milênios. O livro intitulado “A sexualidade sagrada”, de Georg Feuerstein, demonstra com argumentos eloquentes a evolução das práticas religiosas e ritualísticas que envolviam o sexo desde a pré-história, passando pelas civilizações antigas, medievais, até as modernas. Este livro é recomendado porque faz um bom resumo do assunto, mas certamente não é o único. A dissociação do sexo de sua dimensão sagrada não deixou de ter consequências políticas, religiosas e psicológicas – em síntese, não deixou de ter profundas consequências práticas que ainda povoam o inconsciente coletivo e tem reflexos políticos e sociais ignorados.

 

9.

         Na questão do casamento não monogâmico, isto é, do “relacionamento aberto”, também é necessário pontuar grandes diferenças.

         Este caso é ilustrativo porque se trata de um dos elementos importantes para a construção de uma nova sociedade, evitando julgamentos destrutivos e trabalhando para a superação da moral atual. O fato de muitas pessoas (e, principalmente, muitos militantes) propagarem e supostamente já praticarem o “relacionamento aberto” não significa que estejam necessariamente construindo uma nova forma de relacionamento “socialista”, revolucionária ou, simplesmente, novas formas mais saudáveis de se relacionar. Tudo tem que ser examinado com muito cuidado e critério, concretamente, sobretudo no trato entre si e no grau de autonomia emocional e real que desenvolve nas pessoas envolvidas.

         Em muitos casos ocorre a infiltração de pensamentos, sentimentos e utilitarismos burgueses, dado que vivemos no capitalismo selvagem e bárbaro. Se não temos uma nova cultura moral tolerante e acolhedora, na atual sociedade burguesa muito provavelmente esta modalidade de relacionamento pode ser infiltrada por motivações narcisistas, hedonistas e utilitaristas; muitas vezes se escondendo atrás de justificativas “modernas”, “progressistas”, “socialistas”, “marxistas”.

         Não há relacionamento aberto possível sem se preocupar com o outro; sem ser sensível com suas demandas e tempos; sem paciência e, sobretudo, sem que o entorno, a sociedade, a moral, o julgamento alheio, estejam se modificando para melhor (por menor que seja este passo adiante). É necessário, sobretudo, a autorreflexão, auto reconhecimento e maturidade — artigos raros, em especial, a última, uma vez que a sociedade capitalista, suas instituições, mídias e religiões organizadas, infantilizam as massas de seres humanos, injetando-lhe incontáveis doses diárias de hedonismo e narcisismo egocêntrico como forma de dominação e submissão.

 

10.

         Parte fundamental da vida interior das pessoas – sobretudo as que compõem a classe trabalhadora – diz respeito à religiosidade, ao medo da morte, das inseguranças da vida, da visão errônea de se sentirem sozinhas e pequeninas (o que as leva a se associarem a qualquer coisa, incluindo às religiões organizadas, como as igrejas evangélicas, que exploram o seu sentimento numinoso). Parte dessas inseguranças diz respeito, sim, ao sistema econômico, ao desemprego, à miséria. A outra parte diz respeito aos anseios congênitos da espécie, expressos nas buscas religiosas por sentido e “contato com o eterno”, que podemos constatar em distintas épocas e civilizações (e ainda hoje!). O debate sobre a mudança interior das pessoas pode se iniciar com a socialização dos meios de produção, como “nos ensina” o blog Coerência Marxista, mas ele não é automático, nem é inevitavelmente desencadeado se não for pensado, arquitetado e estimulado conscientemente.

         O “eu” (e o seu mundo interior, repleto de “eus”) não está separado da realidade externa. Ao contrário. São partes de um mesmo todo que se influenciam mutuamente. Ignorar este fato é mutilar a mudança social; é condená-la a ser parcial e, portanto, ineficaz. Trata-se de uma relação dialética entre os mundos exterior e interior que não pode ser menosprezada.

         O que se quer dizer com mudar o interior das pessoas? Há importância alguma nisso ou se trataria apenas de mais um discurso idealista, burguês, determinado a enrolar e a desviar o proletariado da luta pela superação de suas direções traidoras?

         Tudo o que você é, o que pensa, o que sente, o que faz em sua vida diária, é projetado para fora, e acaba constituindo parte do mundo a sua volta.

         Se somos infelizes, confusos, arrogantes e intimamente caóticos, através da projeção, isso se torna o mundo e a sociedade para nós. Se o nosso relacionamento é estreito, egocêntrico, limitado, patriótico, preconceituoso – seja em que esfera for –, projetamos isso para fora de nós e contribuímos com o caos no mundo. O mundo é parte do que você vê e projeta nele, tal como nos demonstra a física quântica e o pensamento místico Oriental. A realidade é uma coisa peculiar. Ela está aí quando você não está olhando, mas quando você a olha com ganância, raiva ou medo, aquilo que você capta é o sedimento de sua ganância, raiva ou medo, e não a realidade.

         A dificuldade consiste em que nunca desejamos estar incertos e temos medo de perder tudo. A mente vendo-se incerta, busca a certeza, criando assim o temor. Do temor nasce a imitação, o estabelecimento da autoridade – política, teórica, religiosa, etc. – visto que a mente exige um estado de continuidade, onde se veja e se sinta como certa. Mas a mente que corre atrás de certezas, nunca tem espaço onde seja possível o aparecimento e o contato com o real.

         Tomemos como exemplo o mal que cada um sofre desde a infância. Você é magoado pelos próprios pais, depois na escola, na universidade, no trabalho, através do julgamento, da comparação, da competição. Durante toda a vida existe este processo de ser comparado, julgado, magoado. Na maioria das vezes, de forma inconsciente.

         O que se torna este “eu”, este “meu”?

         Ele pode ser entendido como um nome, uma forma, um fardo de memórias, de esperanças, frustrações, anseios, sofrimentos, prazeres vivenciados e esperados, alegrias passageiras. Queremos que esse “eu” evolua e veja além de si próprio; torne-se empático, sociável; evite o egoísmo e o egocentrismo. A socialização dos meios de produção não cria isso automaticamente.

         Vendo o mundo, a sociedade e o “eu” frente à necessidade de uma revolução, como resolver esta contradição? Provavelmente ela só pode ser enfrentada quando o “eu interior” já não faz nenhum esforço para mudar a si mesmo, mas ele próprio faz parte daquilo que tenta mudar. Se você está consciente de toda a sua atividade interna, seus pensamentos, seus sentimentos e suas reações, você descobrirá por si mesmo o quão condicionado é, o quão limitado é! Isso é parte fundamental no caminho da autolibertação, tão importante para estimular, de fato, uma revolução social.

         Um ambiente materialmente favorável, sem preocupações subjetivas, pode apenas fortalecer a perigosa tendência de se esperar que tudo se origine de fora – inclusive a mudança interior que a realidade externa não pode providenciar. Não há contradição e conflito entre o interno e o externo. Isso precisa ser pensado desde agora, pois é necessário renovar o arsenal teórico. Quem se nega a fazer isso contribui com a mesmície, que não pode nos fazer sair deste mato sem cachorro em que estamos.

         Não há nada de misterioso ou místico nisso. Sabemos de tanta coisa que está se passando no mundo e tão pouco a respeito de nós mesmos! Não comecemos pelo limite extremo do problema, que é o fim do “eu”, mas pelas coisas pequenas, pelo dia-a-dia, pelas manifestações miúdas do cotidiano. Deve-se tentar, em essência, observar sem um observador, um julgador, um condenador que já tem tudo pronto de antemão. Esse é o primeiro passo para poder se interferir nessas micro teias que ajudam a sustentar o macro.

 

11.

         Por acaso, para construir uma sociedade sem Estado e sem classes sociais não é necessário desvendar o segredo do ego, trazer à tona suas contradições, suas forças ocultas inconscientes, suas influências egoístas e narcisistas, seus distintos medos e inseguranças? Estimular a mudança e superação disso não é fundamental para uma sociedade comunista? Tais mudanças, repetimos, não chegaram nem perto de acontecer em Cuba, China ou Rússia apenas com a socialização dos meios de produção. Ao contrário, com uma mudança inicial nos meios de produção tudo veio de fora e o que se reforçou foi centralmente o espírito de submissão e, portanto, de rebanho. A burocratização também é um resultado desse processo e da ausência de tais preocupações.

         Não seria muito importante que o combate ao egocentrismo partisse das próprias organizações de esquerda, que deveriam superar seu samba de uma nota só e buscassem novos caminhos, novas explicações, novas relações? Sem recorrer ao processo de autoconhecimento de si mesmo, se depurando permanentemente dos erros, dos medos, das inseguranças, dos ódios desmedidos, da indiferença perante o outro, como poderia uma organização de militantes adquirir as qualidades necessárias para estimular uma revolução? Nos referimos aqui a tentar; a começar uma caminhada que desbrave um novo roteiro, um novo caminho político, social e psicológico! Quantos dirigentes políticos, sindicais e militantes apenas alimentam o próprio ego e levam a “sua base” a alimentá-lo também? E para onde isso tem nos levado?

         Ao que tudo indica, para o blog Coerência Marxista, nada disso tem relevância. Tudo já está contido nas bíblias sagradas da esquerda e nas fogueiras das santas inquisições aos hereges. Não há problema em sermos blogs adversários. Buscamos construir uma unidade na diversidade cultural, de opiniões, de interpretações – desde que honestas e comprometidas com a emancipação proletária, que ao fim e ao cabo, deve visar a emancipação humana em geral. O blog Coerência Marxista busca a ridicularização dos “oponentes” – de blogs como o nosso que influenciam menos de 1% da sociedade!

         O medo e a insegurança em relação às dúvidas, ao novo, a aquilo que não conhecemos ainda, não é um bom conselheiro para quem se pretende revolucionário, principalmente quando vemos que tudo está estagnado e em crise. Faz parte da coragem revolucionária a capacidade de encarar o não visto, o não vivido, o não respondido; mas, sobretudo, vale encarar os nossos próprios medos interiores, que a gente projeta pra fora, ofendendo e atacando os outros quase que gratuitamente, confundindo amigos com inimigos, ao mesmo tempo em que tenta se defender destes medos escondendo-nos atrás de imagens que fazemos de nós mesmos como “campeões da interpretação correta da realidade externa e do marxismo”. Não há nada de original nisso.

 

12.

         Uma sociedade socialista mais desenvolvida e plena não poderá solucionar todos os problemas humanos e sociais. Isso seria irreal, dado que a natureza da vida é constituída num equilíbrio entre prazer e dor, alegria e sofrimento, vida e morte, altos e baixos. Portanto, não pode criar uma unidade coletiva que transporte o indivíduo para um impossível estado de felicidade permanente, mas sim alertá-lo e instruí-lo a adquirir firmeza e paciência diante do sofrimento e das contradições que inevitavelmente persistirão. A vida acontece num equilíbrio entre a alegria e a dor. Por certo que condições materiais melhores, mais igualitárias, com garantias mínimas de dignidade, emprego, saúde, educação, cultura, etc., fazem uma diferença considerável no sofrimento humano, colocando-o num novo patamar, mas certamente não poderá erradicá-lo. O avanço científico da medicina, por exemplo, ajudou a diminuir as dores do parto, mas não a erradicou; tampouco acabou com inúmeros problemas pré e pós-parto.

         É a sociedade capitalista que vende a ideia de uma vida plenamente feliz a partir da compra da casa própria, do último carro do ano, do emprego rentável e da ilusória imagem de “sucesso” e de “ser alguém na vida”. Todos dão as mãos e sorriem como uma família eternamente feliz, tal como aparecem nas propagandas de margarina. Uma sociedade socialista, esperamos, não deve reproduzir os erros de cinismo e hipocrisia da sociedade atual. Mais do que isso: não deve adaptar estas ilusões para ganhar influências efêmeras sobre a classe trabalhadora com as mesmas peças publicitárias falsas e cínicas.

         A possibilidade de uma revolução socialista depende da necessidade de que a classe trabalhadora pare de fugir de si mesma e consiga olhar a verdade frente a frente, olho no olho. É nesse sentido que a mudança interior é fundamental e precisa ser pensada, estudada, estimulada pelas organizações de esquerda, sem o quê não existe revolução possível. A busca pela plenitude da vida não se encerra na melhora das condições materiais da sociedade, mas no aumento da liberdade de pensamento, de segurança emocional e da capacidade de suportarmos a verdade nua e crua das dúvidas e incertezas inevitáveis da vida, sabermos lidar com as frustrações para pararmos de buscar desesperadamente lideranças, gurus e outros subterfúgios que nos afastem dos nossos desafios interiores.

         A rememorização decorada de toda a filosofia materialista não pode resolver o problema, que é muito mais complexo. Há que se aprender a respeitar humildemente todos os sentimentos interiores humanos e dialogar com eles, ampliando a nossa visão e a nossa lucidez. Com sua resposta, o blog Coerência Marxista julga estar “defendendo o marxismo” contra as “asneiras revisionistas, idealistas e loucas” do nosso blog. 

         Doce ilusão! O que está fazendo, na realidade, é empobrecendo o marxismo, as possibilidades que ele abre, e a própria capacidade reflexiva humana.


quarta-feira, 25 de outubro de 2023

A lei de Israel impede a paz e estimula a limpeza étnica

 

A condição para a paz no Oriente Médio pressupõe a cooperação do Estado de Israel e da comunidade internacional com a criação de um Estado palestino. No entanto, é tudo o que não quer o governo israelense, com total apoio dos EUA, já que ambos precisam do caos permanente na região para justificar não apenas os interesses dos seus respectivos complexos industrial-militar, mas a intervenção política e militar autoritária.

         Exigir “paz” na Palestina sem reconhecimento mundial de um Estado soberano, que seja respeitado internacionalmente, mas, sobretudo, seja reconhecido por Israel, é uma contradição. Essa é a essência da questão. Sem a criação deste Estado, com suas respectivas instituições e soberania territorial, que tenha crescente inserção econômica mundial, deixa a população palestina à mercê de Israel. Para tornar um Estado palestino viável econômica e politicamente, seria necessário vontade política tanto de Israel, quanto dos EUA. Mas estes países estão interessados em manter uma zona de guerra permanente no Oriente Médio, tanto para atender os interesses do seu complexo industrial-militar, quanto para sabotar, sempre que possível, as ligações geográficas entre a China e a Europa.

         Na política interna israelense se notam duas perspectivas: uma, que é moderada e reconhecia a necessidade de tratados de paz com os palestinos, respeitando a necessidade da construção de um Estado independente, representada pelos trabalhistas; e a outra, de caráter fascista (chamada eufemisticamente de “extrema-direita”), que não apenas não quer nenhum tipo de independência para os palestinos, como precisa desta situação “indefinida”, inclusive com a tolerância tácita de “movimentações terroristas”, para justificar sua política permanente de guerra, representada pelo Likud, partido de Benjamin Netanyahu.

         Cada vez mais o partido fascista ganha terreno na política interna de Israel, seja através da propaganda ou da manipulação do inevitável sentimento de insegurança da população. Tomado por um fundamentalismo sionista, não há diálogo possível, uma vez que usam diversas manobras políticas para se recusar a ouvir e promover o caos do desentendimento, até a utilização de “esconderijos institucionais” de órgãos regionais e internacionais, como a ONU. Na condição de um Estado tolerado e patrocinado pelas potências Ocidentais, como os EUA e a Inglaterra, Israel pode promover livremente uma política belicista ininterrupta que impede qualquer tipo de paz na região.

 

O Ocidente e a sua tolerância tácita com a política interna de Israel

         A visão utilitarista Ocidental espera cinicamente uma paz impossível que não enfrenta a política interna de Israel, nem seu projeto geral. Depois cai num desânimo providencial que termina por “esquecer” daquela situação sem procurar chegar às suas raízes. Tal visão é pautada pelo extremo individualismo da sociedade capitalista, que consome o espetáculo midiático, no mais das vezes, acriticamente, se “comovendo” seletivamente e se assustando.

         Como se viu, não é possível paz na região se há uma fonte que tensiona permanentemente para ações de guerra, como a política interna de Israel, que não reconhece nenhum tipo de soberania política e sabota qualquer tratado de paz, agindo no sentido de ofender, humilhar e massacrar permanentemente os palestinos.

         A situação política e econômica internacional, bem como a propaganda da grande mídia Ocidental (chamada erroneamente de “jornalismo”), condiciona nossas mentes e a nossa visão sobre a situação da Palestina. Somos obrigados a raciocinar dentro de estreitos limites e fica fora da equação as questões decisivas da política interna de Israel, abençoada e sustentada, às vezes secretamente, às vezes abertamente, pelo imperialismo estadunidense.

         E querer paz para região ignorando essas questões decisivas é o mesmo que querer apagar fogo com gasolina. É como se houvesse um curto-circuito que impede um desfecho positivo e sobressai-se perante nossos olhos uma aparente situação sem saída. Há um permanente trabalho ideológico neste “jornalismo” para nos impedir de chegar às verdadeiras raízes do problema.

         Escondem ou minimizam a política fascista de Netanyahu e seu partido para permanecer no poder e manter intacta as suas sucessivas manobras militares de limpeza étnica. No seu quinto mandato consecutivo, ele sofria com processos de corrupção e promovia, seguindo a linha do neofascismo internacional, uma série de ataques políticos ao judiciário, alegando excessivo poder de interferência.

         Por isso, tentava concretizar o que chamou de “reformas” para diminuir o seu poder. Em resposta, enfrentou uma sequência de protestos populares há meses, o que levou o seu governo a uma semi-paralia. O ataque do Hamas lhe deu providencialmente a justificativa para unificar o governo e o país em torno da guerra, criando, finalmente, uma “aliança de governo”. Como declarou que a “guerra será longa”, o caminho, fica livre, na prática, para “reformar o judiciário” por meio de poderes marciais.

         Enquanto bombardeia Gaza diariamente, vende cinicamente a ideia de que isto estaria justificado porque Israel é “a única democracia do Oriente Médio”. As suas declarações são reproduzidas aos quatro cantos pela mídia Ocidental.

 

A propaganda da grande mídia e da extrema-direita e a sua relação com o egocentrismo humano frente à causas complexas

         A mídia Ocidental também sabe lidar muito bem com o “seu público”. A população Ocidental é levada, através do discurso político oficial e da grande mídia comercial, a esperar uma paz “do nada”, por uma “boa vontade política de ambos os lados”, esquecendo-se das situações objetivas e fechando os olhos para ações políticas que acontecem nas sombras, permanecendo, assim, muitas vezes, em uma ingenuidade forçada que procura não ver para não se incomodar.

         Isto segue uma lógica da psicologia de massas. Se os observadores ocidentais acham que alguma coisa é possível, então gastam uma grande abundância de energia nessa “solução”, se empenham, se empolgam e até se tornam ativistas. Mas se sentem que algo é impossível, como supostamente é a situação da palestina, veem tudo como um grande desperdício de energia e se largam na correnteza do que existe, das coisas como elas são, e, então, vivem caindo de armadilha em armadilha.

         E como é fácil cair em armadilhas da grande mídia Ocidental e da extrema direita – especialistas em criar novas armadilhas –, uma vez que o discurso de ódio, que justifica a violência e a cultura de guerra é sempre muito sedutor para os seres humanos dominados pelas atividades egocêntricas. A sociedade capitalista é individualista, utilitária, e incentiva o egotismo como forma de dominação. A extrema-direita e a grande mídia sabem disso e incentivam tais “qualidades” na massa humana.

         Assim, como a maior parte das pessoas é dominada por estas atividades e preocupações egocêntricas, se importando superficialmente por assuntos que não lhe dizem respeito diretamente, vemos uma enxurrada de posições messiânicas, equivocadas, parciais ou interesseiras sobre a questão de vida ou morte da Palestina. Tais posições tendem a aprofundar o caos e a perpetuar a situação de violência sem fim na Palestina e no Oriente Médio.

         Temos visto que a política oficial de EUA e Israel, bem como o “jornalismo” da grande mídia Ocidental, alimentam na massa humana tendências animalescas, que a desumanizam. Criam e naturalizam xenofobias, genocídios e violências reais e simbólicas nas mais diferentes esferas; isto é, com sua narrativa ajudam a manter hordas de massas fanatizadas incapazes de pensar de forma abrangente e que nada veem nem ouvem além da voz do seu caudilho de ocasião, a letra da sua cartilha, da sua “cultura”.

         Em nome da imposição de um tipo de civilização – a sua –, desmerecem outras e as atacam se tentam resistir de alguma forma. Como pode uma mente confusa descobrir e entender qualquer coisa que não seja a projeção de sua própria confusão?

 

Por que, afinal, não há paz no Oriente Médio?

         Não há paz no Oriente Médio porque existe uma força tensionando permanentemente pela manutenção de uma linha política. Esta linha visa a imposição de uma vontade sobre as demais pela força; no caso, trata-se da força promovida pelo Estado de Israel – amparada pelos EUA –, sob o tacão político da extrema-direita, o Likud, que não mede esforços para sabotar acordos de paz e impor sua política de guerra sustentada por um terrível discurso de ódio, minimizado, ou mesmo ignorado, pela mídia Ocidental, que ressalta e salienta apenas o discurso de ódio do Hamas. O governo do Likud é, portanto, um centro permanente de sabotagem de qualquer autonomia para a Palestina e promotor de um terrorismo de Estado ininterrupto – minimizado ou tornado “natural e justo” pela grande mídia Ocidental.

         Do outro lado temos um povo sem Estado, sem soberania sobre o seu território, sem exército; massacrado e desesperado. Como se fossem “criados em laboratório”, suas experiências políticas desesperadas tendem a desenvolver formas de fundamentalismo, como o terrorismo. Se não há possibilidade de se manifestarem de outra forma; e se no cotidiano de sofrimentos incontáveis, são ignorados pela comunidade internacional, o que lhes resta? Se podemos “condenar o terrorismo” do Hamas, um tanto generoso com as intenções de Netanyahu e o Likud, dada a ausência da correlação de forças, não podemos deixar de reconhecer que é um reflexo de uma força maior, no caso, da opressão permanente do Estado de Israel. Qualquer ser humano que tenha um pingo de sensibilidade sabe que o terrorismo do Hamas poderia ser evitado ou, pelo menos, minimizado, se houvesse outra orientação política do lado mais forte, o que não é o caso.

 

A visão da “esquerda” sobre a situação da palestina

         O Hamas também dissemina um discurso de ódio, que é amplamente utilizado pelo governo de Israel e pela grande mídia Ocidental para acionar o lado sádico e violento das massas humanas.

         Como sofrer uma agressão e não revidar?

         Para isso, criam uma narrativa que esconde os fatos sobre a opressão histórica de Israel em relação à Palestina. Mesmo quando, por ventura, alguém saiba dos fatos, tende a tomar o lado da retaliação, uma vez que o ódio e a violência são forças incentivadas, disseminadas e valorizadas pela sociedade atual. A violência é admirada por si mesma como uma demonstração de força; e, assim, entendem que é legítimo que o lado mais forte prevaleça. Não é mais ou menos assim que funciona a mentalidade meritocrática?

         Então, a “esquerda”, no geral, tende a apoiar as ações do Hamas, acriticamente, o que só pode reforçar o círculo vicioso de violência desencadeado e sustentado pelo Estado de Israel.

         Mais do que isso!

         O governo de Israel, os EUA e a sua grande mídia contam com isso. E tudo fica ainda mais embolado a partir de um discurso frenético que reproduz a “teoria marxista” um tanto dogmaticamente, mas ignora a realidade concreta da disputa da luta de classes na região. Ou seja, se avaliza e se reforça direta ou indiretamente o discurso do Hamas. Assim, Israel desencadeia inúmeras ofensivas militares “amparada” no discurso de “auto defesa”, “justiça”, “liberação de reféns” (como se a faixa de Gaza não fosse uma região inteira que mantém 2 milhões de reféns) e “combate ao terrorismo”.

         Tudo isso gera uma espiral sem fim de violência e de cultura de guerra. O que redunda em mais massacre e, agora, numa política consciente promovida pelo Likud de limpeza étnica. Não existiriam “guerras” hoje em dia sem o apoio ativo da grande mídia, que conquista o “consentimento” do “cidadão médio” dos países do mundo, mas, em especial, de Israel. A contra-narrativa da esquerda tem reforçado e facilitado a política fascista do Likud, pois não há cuidado com a forma, nem com a realidade concreta.

         Compete a um lado sensato e lúcido romper com esta espiral de violência. O fundamentalismo islâmico e político beneficia a política do Likud e o ajuda a se disfarçar. O primeiro passo é nunca desviar a atenção da política interna de Israel, bem como de seus objetivos gerais, que só podem promover a guerra e a limpeza étnica. Estar consciente dela, nunca esquecê-la, denunciá-la em qualquer circunstância, mesmo frente à pior onda de desinformação propagandística promovida pela grande mídia Ocidental.

         Esta é a chave!

         No momento atual, de total desarticulação da esquerda a nível regional e internacional, cabe entender a situação e renovar a análise e denúncia da situação palestina da melhor forma possível, evitando a repetição de jargões e frases soltas que só podem ajudar politicamente o Likud, o Estado de Israel e os EUA, em decadência histórica.