terça-feira, 13 de junho de 2023

Dogmatismo e omissões do movimento socialista em relação ao sexo e à religiosidade humana

 

Certa vez, o socialista inglês Perry Anderson escreveu:

         “O socialismo não haveria de ‘resolver todos os problemas da raça humana’ – de fato, da trindade proposta por Trotski, de ‘fome, sexo e morte’, ele só poderia oferecer alívio para a primeira. Além da classe, os seres humanos ainda deveriam sofrer culpa e dor, e sentir o desconforto das restrições da civilização sobre impulsos instintivos” (in Perry Anderson, “Afinidades seletivas”, Boitempo Ed. 2002, São Paulo – página 153).

         É engraçado e curioso que a militância atual ainda professe que o socialismo seja capaz de resolver todos os problemas da raça humana, se negando a perceber que sexo e morte (assuntos ligados à psique, emoções irracionais e à religiosidade humana) são pontos determinantes no dia-a-dia de todas as pessoas comuns – isto é, são assuntos importantíssimos e decisivos no cotidiano da classe trabalhadora – aos quais, para sermos honestos, não há resposta.

         A burguesia, sua mídia, seus ideólogos e religiosos certamente se aperceberam destas lacunas “esquecidas” pela militância socialista. O fascismo clássico das décadas de 1930 e 1940, bem como o neofascismo idealizado por Steve Bannon e Donald Trump, se baseiam justamente nestes pontos negligenciados pela “esquerda”, sempre muito ocupada em expor a importância exclusiva da expropriação dos meios de produção como forma de solucionar automaticamente todos os problemas da humanidade.

         Muitas vezes uma questão subjetiva torna-se determinante para intervir e modificar uma situação objetiva. Querer apenas mudar os meios de produção da economia (situação objetiva) e ignorar ou renegar questões como a influência do sexo, da psicologia de massas, do medo do sofrimento e da morte, além da compreensão fundamental que o sentimento religioso possui para a conduta cotidiana da classe trabalhadora (situações subjetivas), significa repetir os erros da construção socialista do século XX – o que só pode redundar, na melhor das hipóteses, numa triste reedição do stalinismo...

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         Ignorar a religiosidade humana, tratando-a como mero delírio digno de ser desprezado, nos fecha para sentimentos antropológicos fundamentais que movem o ser humano há milênios. Aqui, obviamente, nos referimos ao sentimento do “numinoso” e não à exploração da fé popular e do medo individual protagonizado pelas religiões organizadas.

         O sentimento numinoso é um estado de espírito absolutamente único da psique humana, que sente ou está consciente de alguma coisa misteriosa, terrível, aterrorizadora e/ou sagrada. Ele está relacionado também ao temor e à ira divina (seja de que espécie for – inclusive a suposta “ira de uma natureza mística” ou de um “universo” que possui vontade própria). É a consciência de que não somos nada e de que deus, o divino ou o “universo” é tudo; é uma sensação de “certeza” acerca da eternidade. Tal sensação é quase que exclusivamente sentida pela psique de pessoas espiritualizadas, sendo muito difícil a sua descrição em palavras.

         Existem inúmeras lacunas no conhecimento humano. Como sabemos, a ciência não explica tudo; e nem teria condições de fazê-lo, já que ela corresponde a um estágio específico da evolução humana. Uma vez que não sabemos tudo, praticamente qualquer experiência, fato ou objeto encerram algo de desconhecido. Assim, se falamos da totalidade da experiência, o termo “totalidade” só pode referir-se à sua parte consciente. E como não podemos dizer que nossa experiência abarca a totalidade da realidade ou do objeto, é evidente que a totalidade absoluta necessariamente deverá conter uma parte não experimentada ou conhecida.

         O que supre provisoriamente as lacunas deixadas pela ciência é a intuição e a imaginação. As religiões organizadas se escondem e se constroem atrás deste sentimento numinoso e intuitivo. É também a partir dela que cientistas como Albert Einstein e Fritjof Capra pretendem construir novos modelos científicos. O menosprezo da intuição e da imaginação é um empecilho para a continuidade do desenvolvimento da ciência. Em suas notáveis obras, O Ponto de Mutação e o Tao da Física, Capra explica detalhadamente tais ideias. Já para Einstein, “a imaginação é mais importante que o conhecimento”, uma vez que “o conhecimento é limitado, enquanto que a imaginação abraça o mundo inteiro, estimulando o progresso” do conhecimento e da ciência.

         Nesse sentido, os mitos e as crenças, quando observados com bastante cuidado e critério, ajudam a mente coletiva humana a evoluir por caminhos inexplorados ou mesmo ignorados; isto é, ajudam a desbravar, a partir da imaginação e intuição numinosa, as inevitáveis lacunas deixadas pelo pensamento científico – para que posteriormente sejam criticadas, reafirmadas ou superadas.

         Por tudo isso, é muito importante renovar o pensamento marxista através de uma prática teórica semelhante à proposta por Capra nos livros citados.

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         O marxismo está marcado pelo “espírito do século XIX” – em especial, pelo cientificismo positivista, que ignora ou mesmo menospreza o sentimento religioso como coisa inútil, ao mesmo tempo em que ele próprio sofre de influências religiosas e míticas ocultas. Há uma forte presença religiosa e messiânica mitológica no marxismo, no geral, não admitida pelos militantes socialistas – mas que preenche esta “necessidade” humana dentro deles, mesmo que a maioria se declare ateísta.

         Se observarmos os estudos antropológicos acerca dos mitos antigos e modernos, de diferentes povos e regiões, perceberemos uma influência anímica muito forte na cultura humana, mesmo nas ditas “civilizadas” e “educadas cientificamente”. Até certo ponto isto é natural, pois reflete milênios de crenças e ritos que não poderiam ser extirpados do inconsciente coletivo e, tampouco, da mente dos ditos “gênios da ciência humana”.

         Os mitos de escatologia e cosmogonia, de fim e recomeço de novas eras, estão visivelmente presentes no pensamento marxista, como os “fins dos mundos antigos” para a cosmogonia de novos mundos: isto é, o fim de uma humanidade, para o surgimento de uma nova humanidade, que seria virtualmente perfeita. Um povo nativo asiático, por exemplo, acredita que após o fim do mundo, surgirá uma nova humanidade, que viverá em condições paradisíacas. Nessas condições não haveria mais enfermidades, nem velhice e nem morte.

         Qualquer semelhança com o “mundo novo” e a “nova humanidade” perfeita (ou semi perfeita) que nascerá depois da revolução socialista segundo a visão de muitos militantes não é mera coincidência. Trata-se da espera por um mundo purificado de todo o mal, no qual a história irá reencontrar sua consumação. Compreender isso não significa, de forma alguma, abrir mão do projeto socialista de transformação social, mas apenas olhá-lo com uma lente que lhe seja mais adequada, evitando exageros ufanistas, permeados de heranças mitológicas.

         A questão é que muitas tensões da história, bem como as contradições da existência, são parte indissociável da vida, da sociedade e da condição humana e, enquanto tal, podem ser compreendidas e, talvez, minimizadas, mas não podem ser completamente abolidas.

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         Até que ponto as teorias socialistas e os militantes não esperam uma sociedade perfeita? Tipo um paraíso sobre a terra?

         Mesmo em uma sociedade socialista, poderemos viver sem nenhum tipo de dor? Ou uma evolução humana que ocorra sem sofrimento? Adolescentes e adultos poderão não se sentir sozinhos no seu lento e pavoroso processo de individuação? Casais não mais sofrerão ao se separarem? Ou os relacionamentos serão perfeitos e sem nenhum tipo de crise? As famílias viverão numa eterna harmonia, sem conflitos? Tudo isso se alinhará automaticamente, como que numa espécie de alinhamentos de astros, após a socialização dos meios de produção, ou teremos de enfrentar tais desafios inescapavelmente?

         A experiência russa, chinesa e cubana demonstra que não se deu desta forma. As heranças psicológicas seguiram vivas e atuantes. O socialismo e os socialistas querem acabar com as dores e os sofrimentos decorrentes da miséria capitalista, mas até que ponto isso não se confunde com acabar com toda a dor e o sofrimento humano (seja ele emocional, psíquico ou espiritual)? Os diversos tipos de sofrimento humano não seguiriam existindo como parte da tortuosa evolução humana?

         A socialização dos meios de produção pode diminuir “as dores do parto”, mas não pode erradica-las totalmente, porque é através das escolhas que nos tornamos humanos e descobrimos o nosso senso pessoal de significado. É preciso coragem para enfrentar diretamente os nossos estados emocionais, entendê-los, para, assim, dialogar com eles. Nos atoleiros da alma existem o significado e o chamado para a ampliação da consciência. Esta tarefa, no mais das vezes, individual, não pode ser cumprida automaticamente pela socialização dos meios de produção, nem por decretos governamentais. A adoção do socialismo como regime social é um ato político e econômico fundamental que ajuda a dar suporte para todos estes processos individuais, mas naturalmente não pode resolver tudo. É a orientação educacional e a prática social que podem transformar a sociedade numa grande escola, capaz de dar suporte e apoio nesta inevitável luta emocional que se desencadeia dentro de cada um de nós.

         De qualquer forma, as coragens individuais para enfrentar a si mesmo é algo muito subjetivo e, portanto, deve ter um cuidado especial, cujo menosprezo por parte da esquerda em geral como coisas “idealistas” custa um preço demasiado caro. Após a revolução, os seres humanos continuarão morrendo e renascendo, seja biologicamente, psíquica ou “espiritualmente” (entendido aqui como ciclos emocionais e de gerações). Neste processo há uma dor inextinguível, pois a transformação e a evolução exigem um sacrifício de dores emocionais, hormonais e, por vezes, traumáticas, que demandam muita energia. O prazer é um contrabalanço a estes dores, mas não pode ser usado como um antídoto pra tudo (tampouco o desenvolvimento das forças produtivas, tecnológicas, pode resolver todos os problemas subjetivos, uma vez que a natureza humana também desenvolve necessidades culturais praticamente inesgotáveis sempre em mudança).

         No amor, por exemplo, que é um campo por excelência subjetivo e pessoal, existem muitas “receitas” do que se fazer, do que é “certo” ou “errado”: “não seja possessivo”, “não seja tóxico”, “respeite os limites”, etc. Mas o que geralmente se exige para o amor é humanamente irreal. Seria quase um amor para deuses e semi deuses, não para humanos; muito mais preocupados com o pró forma do que com a realidade concreta de cada pessoa.

         Sem querer fazer apologia à condutas equivocadas, brutais, violentas ou omissas (machistas, em essência), que muitas vezes são ocasionadas pelo desespero e sofrimento, bem como pela inexistente educação emocional e sexual, os seres humanos são totalmente falíveis e produzem inevitavelmente dor.

         O mesmo se passa em outros campos sociais, intelectuais e emocionais da vida diária humana. O debate sobre a psicologia de massas e os desconfortos das restrições da civilização sobre impulsos instintivos ainda precisará ser muito debatido e refletido pelo movimento socialista, para muito além das questões técnicas e econômicas (objetivas). O primeiro passo é reconhecê-las como importantes para, em seguida debatê-las, honesta e fraternalmente.


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