A tentativa de
reabilitar a figura de Stalin por parte de intelectuais de “esquerda”,
procurando não só absolvê-lo das graves acusações de que é objeto, mas tentar demonstrar
que se trata de uma grande “injustiça política”, fruto de “incompreensões
históricas” de “inimigos implacáveis”, não pode deixar de ser vista com
preocupação. Todos os fatos históricos podem e devem ser revisitados e
repassados a limpo periodicamente, porém, devemos ser extremamente cuidadosos e
pesar cada argumento, comparando-os com a prática
e os fatos, que são sempre o melhor critério para chegarmos o mais próximo da verdade.
Uma das tentativas de reabilitação de
Stalin que se insere neste quadro preocupante foi, sem dúvida, a biografia escrita
por Domenico Losurdo[1],
tendo aceitação quase instantânea – e perigosamente acrítica – por grande parte da militância dos PCs, organizações de
esquerda e, em particular, por figuras públicas como o economista sinólogo
Elias Jabbour; o youtuber Jones
Manoel; e o cantor Caetano Veloso. A partir destas personalidades, que recebem
grande impulsionamento de editoras, como a Boitempo,
e de mídias “alternativas” de internet, a influência de Losurdo se estende por
boa parte da vanguarda brasileira. A “nova onda” stalinista iniciada por
Losurdo e seus discípulos já foi denominada como neostalinismo e tem relação direta com a ascensão mundial da China,
conforme podemos ver no livro de Elias Jabbour e Alberto Gabriele, China – o socialismo do século XXI,
publicado pela Boitempo: “A China e o
‘socialismo de mercado’ deveriam ser tratados como uma formação econômico-social
nova. (...) A negação das primeiras
experiências socialistas é quase regra – que pensadores como Domenico Losurdo
trataram de combater”[2].
Eis aí a matriz de onde partimos para
compreender o fenômeno neostalinista.
Com o livro de Losurdo,
de repente nos vemos de volta à década de 1930!
Um novo culto à personalidade do “guia genial dos povos” renasce sutilmente
escondido sob uma análise aparentemente
crítica, procurando atacar a utilização da propaganda ideológica ocidental – em
particular estadunidense – contra a União Soviética (URSS) e Stalin, bem como
as graves acusações das oposições soviéticas.
Tal
interesse em reabilitar a imagem de Stalin teria importância para reorientar a
luta revolucionária da classe trabalhadora neste início de século ou se
trataria de um novo estorvo? Para início de conversa, é importante dizer que o
fenômeno neostalinista não teria
força se não encontrasse uma nova base
na realidade. A espinha dorsal deste “súbito” interesse em reabilitar a imagem
de Stalin diz respeito à ascensão mundial da China como potência mundial[3]. Ora,
quem dirige o país nesta luta contra os EUA pela hegemonia sobre o globo é o
Partido Comunista Chinês (PCC), de clara influência stalinista. Losurdo, Elias
Jabbour e Jones Manoel são grandes defensores deste suposto “socialismo chinês”;
logo, buscam amparo no mestre, que lhes abriu o caminho e lhes forneceu uma
bizarra munição argumentativa. Para sustentar a posição de que na China há
“socialismo” precisam inevitavelmente reabilitar a imagem de Stalin, que é a
base e a matriz política do PCC.
Nota
importante: se compararmos o livro de Losurdo à biografia de Trotski
escrita por Isaac Deutscher – a trilogia dos “profetas” –, o livro de Fernando
Claudín, A crise do movimento comunista[4], e
o volumoso estudo de Pierre Broué, O
Partido Bolchevique, teremos um contraste flagrante entre duas imagens de
Stalin muito diferentes. Qual seria a verdadeira?
Caberia uma leitura atenta destas obras
alternativas para confrontá-las com o livro de Losurdo e fazer um denominador
comum. Trabalho nada fácil e um tanto repugnante, mas indispensável. A partir
dele, logo se veria qual delas está mais próximo de uma “criação lendária” e
apologética.
Nota
importante II: o historiador Mario Maestri já realizou um importante
trabalho de desmascaramento das distorções e falsificações de Losurdo no seu
livro Domenico Losurdo: um farsante na
terra dos papagaios. Ali está demonstrando como o italiano assassina memórias seguindo o método de
seu mestre, Stalin.
Aqui neste artigo o que se pretende é
criticar o livro de Losurdo por um ponto de vista que julgamos não ter sido
abordado ainda – mesmo correndo o risco de cair em algumas repetições –,
contribuindo, assim, para o resgate da verdade histórica. As distorções feitas
por Losurdo são tantas e os estragos ideológicos tamanhos, que desfazê-las é
tarefa para um conjunto de historiadores.
I – Que tipo de “realismo” é
defendido pelo neostalinismo
losurdista?
A principal tese que Losurdo apresenta
na sua obra para defender Stalin das “acusações injustas” de que sofre, diz
respeito à “falta de realismo dos seus críticos”. Segundo o neostalinista, todas estas acusações
“esquecem” que Stalin estava à frente da URSS e que, portanto, todas as suas
medidas autoritárias e repressivas seriam uma necessidade incontornável das
demandas de governo em uma realidade de permanentes sabotagens. Para Losurdo,
não compreender as medidas de Stalin desta forma seria um “purismo infantil”,
“ingênuo”, um romantismo “tão sem senso de realidade”, quase um “messianismo
anarquista”. Em última análise, trataria-se de simples “evasão e fuga da
realidade”.
Trocando em miúdos, isso significa
dizer que as críticas de oposições, como a trotskista, seriam uma utopia
descabida, já que “o novo grupo dirigente
[da URSS, no caso, a burocracia stalinista] é
chamado a depurar aquelas ideias da forma ingênua que elas tendem a assumir nos
momentos de entusiasmo”[5].
Isto é, o grupo político de Stalin estaria não só no “caminho correto”, como
estaria prestando um favor para a revolução e o povo russo graças ao seu
realismo!
O mesmo tipo de argumento sofístico é
apresentado por Jones Manoel a partir de uma intervenção em um dos debates
sobre o caráter da China contemporânea, se ela é capitalista ou socialista,
colocando-se, obviamente, do lado daqueles que entendem que existe “socialismo”
na China: “concordo com o debatedor
[Elias Jabbour] sobre a necessidade de
uma compreensão histórica e realista
do que é socialismo. Se pensarmos no socialismo como um ‘reino celestial’, o
fim de tudo – fim da família, do Estado, do direito, de toda divisão social do
trabalho, do aparato público, do dinheiro, da religião, da nação e afins –,
realmente, nunca encontraríamos o socialismo no mundo. Tudo até hoje existente
poderia ser classificado como ‘socialismo traído’ ou ‘capitalismo de Estado’”[6].
Aqui o aprendiz faz jus ao mestre. Tudo
o que contradiz a sua interpretação política é tratado como “irreal”, “reino
celestial” e outras preciosidades do gênero. Em nome de reconhecer o
“socialismo” em práticas autoritárias e, no mínimo, estranhas ao socialismo –
seja do ponto de vista teórico ou prático – se leva os argumentos do oponente
ao absurdo, esgaçando-os, distorcendo-os e tornando-os infantis até o limiar do
ridículo, com a finalidade de reforçar capciosamente os seus como única
política “realista” e “possível”.
De
fato existe um problema sério de messianismo e purismo na esquerda em geral,
independentemente da vertente política (este blog já analisou este mesmo tema
em diversos artigos[7])
– seja uma corrente de viés trotskista, stalinista, anarquista ou outras.
Seguidamente vemos e ouvimos falas que não deixam margem a dúvida quanto a isso,
dado que nossa cultura está baseada em milênios de religiões messiânicas.
Porém, no caso de Losurdo e Jones Manoel nota-se a evidente tentativa de legitimar
suas premissas teóricas e reforçar suas posições que apenas justificam as ações
autoritárias do stalinismo na URSS e do PCC na China. Fazem troça de argumentos
muito bem fundamentados de Trotski contra a burocracia
stalinista; e de muitos argumentos irrefutáveis no debate sobre o caráter do
regime chinês – ainda que ambas posições incorram em erros e equívocos em
determinados momentos; embora, no geral, nenhum de caráter “purista” ou
“infantil” (a não ser, é claro, que a gente os descontextualize completamente).
O que Losurdo, Manoel e Jabbour desejam
é apoiar o governo de Stalin, assim como sustentar o regime chinês como o
“socialismo possível”. Mas como entram em flagrante contradição com práticas
que contradizem princípios elementares
do marxismo e do socialismo, não encontrando base, portanto, nem na teoria, nem
na realidade, forçam a barra para venderem-se como “realistas” apoiando
meramente o que existe, enquanto que os oponentes seriam românticos, utópicos e
sonhadores que não “querem ver socialismo em nada, a não ser quando todo o seu
programa estiver plenamente realizado”. Tal impostura é um disparate, uma
caricatura grotesca de “realismo”, um verdadeiro empobrecimento das
possibilidades da teoria ao que existe, bem como a sua triste legitimação. Ao
fim e ao cabo, reproduzem o velho empirismo
grosseiro propagado pela burocracia
stalinista, baseado num espontaneísmo rasteiro escondido sob lemas
supostamente “marxistas” e “leninistas”.
Este “realismo” é uma vulgarização das
tarefas teóricas do marxismo; um rebaixamento à reles aceitação de uma prática
repleta de erros, trapaças, intimidações e falsificações escandalosas. Para
Losurdo, Stalin empenha-se “numa luta
difícil contra a utopia abstrata”[8]. O
pior nisso tudo é que enquanto critica as oposições – em especial a trotskista
– como “utópicas”, “messiânicas” e “descoladas da realidade”, a burocracia
stalinista copiava secretamente todo
o seu programa político e econômico “utópicos” vendendo-o como realização
autêntica do governo soviético. Losurdo é um homem bastante instruído; ele
conhecia bem a história da URSS – optou, portanto, por prosseguir com um
discurso mistificador e caluniador, só que em uma nova realidade.
Em seu livro
Marxismo Ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer, Losurdo reforça à crítica ao messianismo
utópico e romântico presente no movimento comunista, imputando tal pecado
às heranças proféticas de influência hebraica, elegendo Trotski como o principal
representante deste campo[9]. O
marxismo realista seria representado por Stalin, Mao Zedong e Deng Xiaoping – o
seu expoente máximo! Todo o “discurso” marxista de superação do Estado e das
classes sociais seria uma utopia inglória e o verdadeiro realismo estaria em
desenvolver as forças produtivas, bem ao espírito do “socialismo com
características chinesas” proposto por Deng Xiaoping[10].
Aqui
cabe uma nota importante: muitos militantes brasileiros, de fato, tendem a
reproduzir um purismo abstrato semelhante a determinados tipos de
religiosidade. Neste ponto há grãos de
verdade nos argumentos de Losurdo, o que dá uma aparência de força aos seus
argumentos. Justamente por isso, precisam ser cuidadosamente analisados e
refletidos. Um norte teórico – como é
a teoria marxista – não pode tornar-se um dogma religioso. Seguidamente vemos
um rechaço político por parte de organizações e partidos inteiros a debater ou
sequer considerar experiências fundamentais da luta de classes, mesmo que do
ponto de vista teórico não concordemos com elas. Há nisso tudo uma clara visão
antidialética que não quer ver o lado negativo e sombrio de todas as
experiências – mesmo as exitosas como a revolução de 1917 –, ressaltando apenas
a pureza positiva quando encontra uma identificação plena com a teoria. Esta
conduta, a que poderíamos chamar de “infantilismo” – e que já foi sabidamente
analisada por Lenin (este sim um exemplo de verdadeiro realismo revolucionário)
–, atravanca o pensamento de “esquerda” nas suas mais diferentes esferas,
realidades e posições.
Contudo,
Losurdo e seus discípulos, dando-se conta desta contradição, aproveitam-se para
passar de contrabando toda a política oportunista e reacionária do stalinismo e
do PCC. Por acaso ao erigir o Exército Vermelho e vencer a invasão dos
exércitos estrangeiros Trotski foi utópico ou romântico? O seu grande prestígio
não teria advindo desta e outras experiências, como quando presidiu o soviete
de Petrogrado e, junto com Lenin, dirigiu a revolução de outubro de 1917?
Também seria messianismo e romantismo utópico os programas de planificação
econômica propostos pela oposição trotskista, que foram rechaçados e debochados
pela burocracia stalinista inicialmente, mas copiados por debaixo dos panos,
quase que integralmente, quando da profunda crise que se abriu no final da
década de 1920?
Aqui,
neste ponto, vemos, claramente, que o discurso da “falta de realismo” de
Trotski e do suposto “marxismo ocidental” não passa de uma tentativa de
combater as críticas trotskistas e de muitos outros pensadores ao stalinismo,
tentando tornar honradas e aceitáveis as suas inúmeras trapaças, perseguições,
torturas e assassinatos, vendo isso não só como louvável, mas como passos
“realistas na construção do socialismo”. Que perigo, caros camaradas!
Para além destes
problemas, há outras questões não menos importantes acerca da conjuntura atual
que merecem ser ponderadas na crítica ao neostalinismo:
a maioria das posições políticas de correntes que se reivindicam “trotskistas”
(como LIT-PSTU, CST-Psol, MES-Psol, MRT-FT, MRS, dentre outras) apresentam
graves problemas de interpretação da realidade, colocando-se, muitas vezes, à
direita das correntes de orientação “stalinista”. Por exemplo: reparem a
posição destas correntes em relação ao “Fora Dilma”, à primavera árabe, à
guerra da Síria, às manifestações em Cuba em 2021, às intervenções
imperialistas na Ucrânia em 2014 e à guerra patrocinada pela OTAN agora em
2022.
Em
todos estes episódios PSTU, CST, MES, MRS e cia. situaram-se à direita do
stalinismo, conferindo-lhe um aparente ar “respeitável”, enquanto as supostas
posições “trotskistas” foram catastróficas (sendo-lhes generoso). Assim, para
quem acompanha as polêmicas da vanguarda, muitas vezes parece que o stalinismo
“tem razão” já que este “trotskismo” não passou e não passa na prova dos fatos.
Isaac
Deutscher já tinha chamado a atenção para o fato de que após a morte de Trotski
formaram-se “muitas igrejinhas dos
trotskistas dos últimos dias”, cujo efeito “se fez sentir ainda mais amplamente na literatura de desilusão.
(...) Alguns deles viviam de meras
migalhas, e não as melhores, da rica mesa de Trotski e conseguiram uma
reputação de originalidade servindo-as com seus molhos pessoais”[11].
Por
fim, cabe ressaltar que o “trotskismo” pós-Trotski foi e vai de mal a pior.
Sofrem de muita bajulação a dirigentes aparatistas e pouca ou nenhuma
originalidade – isto é: sofrem de profundas infiltrações de “stalinismo”;
dentre outras. Quase nada aprenderam com a história.
II – A distorção da crítica
trotskista ao stalinismo: Trotski seria realmente um “terrorista” ou na falta
de argumentos se requentam velhas calúnias?
Como um teórico interessado em
reabilitar a figura de Stalin a qualquer preço, Losurdo incorre,
inevitavelmente, nos seus métodos: a distorção trapaceira, utilizada
indiscriminadamente para justificar e sustentar uma prática empírica grosseira
e divorciada das principais conclusões
teóricas do marxismo, até a utilização de difamação e calúnia aberta, para
descambarem para a falsificação e a omissão
consciente. Tal como Stalin, Losurdo não pode olhar Trotski de frente, por
isso o aborda de soslaio, requentando velhas calúnias e falsificações. Não é
casual que todos os stalinistas continuem reproduzindo o velho método do
mestre: foi assim que foram ensinados; assim necessitam agir!
A distorção da realidade para tentar justificar
seus argumentos beira um desvario: para Losurdo, as críticas da Oposição de
Esquerda liderada por Trotski seriam uma “guerra civil”, a qual ela contabiliza
como sendo parte de uma tríade de “guerras civis” na história soviética. A
primeira foi a invasão dos exércitos brancos patrocinados pelas grandes
potências estrangeiras, entre 1919-1921; a segunda, uma “guerra” desencadeada
pela Oposição de Esquerda ao governo de Stalin; e a terceira, a coletivização
forçada das terras dos kulaks.
Para explicar tamanho disparate, Losurdo
afirma que Trotski haveria teorizado “regras da conspiração”, levando à “infiltração, desinformação e apelos à
insurreição”[12],
quando na realidade respeitou religiosamente todos os estatutos partidários. Ou
seja, na verdade, Losurdo quer, assim como Stalin queria, uma militância
silenciosa e submissa, acrítica e amorfa, que não critique absolutamente nada, uma vez que isso é tratado como
“desinformação” – a este tipo de postura
de rebanho, ambos chamam de “disciplina comunista”. Tal conduta crítica só
atrapalharia o trabalho do “guia genial dos povos”, que tudo saberia e
solucionaria, bastando-lhe tempo e confiança
cega.
Como
“infiltração”, Losurdo compreende o fato de existirem militantes que simpatizam
com as posições políticas e teóricas oposicionistas e que já estavam nos
quadros partidários desde antes de 1917. Sem vergonha alguma ele afirma: “Na URSS da década de 1930, vimos a oposição
infiltrar-se nos mais altos níveis do aparelho de repressão: seria muito
estranho se, depois de ter conseguido esse resultado, ela se limitasse a
cumprir as ordens de Stalin!”[13].
Eis
tudo! O tipo de “marxismo realista” que Losurdo propõe é a simples aceitação e
submissão às ordens do “guia genial dos povos”. Qualquer outra postura é vista como
“infiltração”, “sabotagem” ou “apelo à insurreição”. Sobre as inúmeras
orientações oportunistas ou sectárias dadas pelo stalinismo, tais como giros de
180 graus em diversos países – como na China, na Espanha e no Brasil –,
dissolução da III Internacional e teorias bizarras, como a do “socialismo em um
só país”, deveriam ser aceitas sem nenhum questionamento. O stalinismo (bem
como seus defensores) é inimigo das ideias, pois não tem competência para
combatê-las sem recorrer ao porrete policial. É o direito permanente a este
porrete que Losurdo defende e embeleza como a construção “realista” do
“socialismo”.
Ao
contrário desta distorção grosseira e lamentável, Isaac Deutscher traz inúmeros
relatos em sua biografia “profética” sobre como Trotski nunca praticou nenhum
ato de terrorismo ou sabotagem contra a URSS e foi seu defensor intransigente,
inclusive perante membros da Oposição de Esquerda que ocupavam cargos na GPU e
lhe procuraram no exílio, como foi o caso de Blumkin, citado e distorcido por
Losurdo. Segundo Deutscher, Trotski “jamais
oscilaria em sua insistência de que a URSS era um Estado dos trabalhadores e
declarou ser a ‘defesa incondicional da URSS’ contra os seus inimigos burgueses
obrigação elementar de todos os membros da Oposição e, repetidamente, repudiou
amigos e correligionários que relutavam em aceitar essa obrigação”[14].
No
caso específico de Blumkin, Trotski “dissuadiu-o
firmemente. Por mais difícil que fosse a situação, ele deveria continuar
trabalhando lealmente para a GPU. A Oposição estava empenhada em defender o
Estado dos trabalhadores e nenhum oposicionista deveria afastar-se de qualquer
posto oficial no qual pudesse agir no interesse do Estado em geral”[15].
Blumkin
pediu, então, que Trotski lhe desse uma mensagem ou uma instrução para os
oposicionistas na Rússia. Também ofereceu-se para ajudar a estabelecer contatos
e organizar a remessa de boletins da oposição através da fronteira. A isso,
Trotski respondeu lhe dando “uma
mensagem, cuja cópia foi conservada em The Archives. O documento nada contém que pudesse, por qualquer esforço de
imaginação, ser considerado como conspiratorial”[16].
Trotski “nada tinha a dizer aos seus
seguidores, em particular, que não tivesse dito ou não pudesse dizer-lhes em
público”[17]
(ao contrário da burocracia stalinista, que funcionava através da “diplomacia
secreta”).
Apesar
disso, “pouco depois do seu retorno a
Moscou, Blumkin foi preso, acusado de traição e executado”[18] – simplesmente por ter visitado Trotski
no exílio e voltado para a Rússia com estas “orientações perigosíssimas”. É
este tipo de ação que Losurdo defende; esta é a “relação de camaradagem” que
ele e seus seguidores entendem como corretas entre as “situações” e “oposições”
no campo da construção do socialismo. É assim que pretendem superar o
capitalismo.
Losurdo,
sem muitos argumentos e bastante comprometido na sua relação com a verdade
histórica, requenta os velhos argumentos de “terrorismo” contra Trotski
justamente baseado neste episódio envolvendo Blumkin. Nosso autor, preocupado
em desfazer as histórias acríticas e as “lendas negras” contra Stalin, lança
mão de doses de paranoia que são sempre muito eficazes para esconder a falta de
argumentos[19].
Ele afirma que “Blumkin participa de uma
conspiração dirigida por Trotski”[20];
além de afirmar, solenemente – como se estivesse “descobrindo uma América –,
que “os contatos de Trotski com Blumkin
não nasceram de um encontro fortuito, mas de uma ligação organizada com a URSS”[21].
Fato que, como vimos, foi admitido pelo próprio Trotski publicamente.
Essas elucubrações sombrias, feitas com
a finalidade de justificar as falsificações e os fuzilamentos, que, ao fim e ao
cabo, visavam calar as críticas às políticas bizarras do stalinismo, pretendem
despertar a desconfiança doentia contra a oposição liderada por Trotski. Esta
calúnia requentada pretende criar um clima de “traição”, de “crime grave”, o
que serviria para justificar a repressão, o exílio e o fuzilamento de todos
opositores, indistintamente – tudo, supostamente, no interesse da “construção
do socialismo” (a burguesia mundial só pode dar gargalhadas e agradecer).
Losurdo recorre a um subterfúgio para dissimular e dar um caráter de “veracidade”
a sua calúnia: setores da classe operária promoveriam suas reivindicações
mediante o recurso do “terrorismo econômico”, o que exigiria “medidas
enérgicas” do “guia genial dos povos”.
Já vimos que Deutscher chama a atenção
para o fato de que Trotski “nada tinha a
dizer aos seus seguidores, em particular, que não tivesse dito ou não pudesse
dizer-lhes em público”. Para além disso, Trotski escreveu muitos artigos
condenando o método terrorista, como este, de polêmica com o stalinismo: “Segundo a acusação, beirando a ignorância e
a indolência mental, os ‘trotskistas’ estão decididos a liquidar o grupo
dominante para se abrir caminho ao poder. (...) A pergunta é: podia a Oposição, educada pela enorme experiência do
movimento revolucionário russo, crer por um só instante que o terror é capaz de
aproximá-la do poder? A história russa, a teoria marxista e a psicologia
política responde: não, não podia!”[22].
Reparem o nível da argumentação do
acusador, trazida como “novidade”, e da resposta do acusado, escrita há mais de
80 anos!
Não
satisfeito com o seu Frankenstein argumentativo e “teórico”, Losurdo apela para
outra falsificação ao tentar igualar Trotski a Kautski e a Kruschev. Diz
que na formulação orgânica do livro de Trotski, A revolução traída de 1937 – uma verdadeira obra-prima do
pensamento marxista –, nota-se “como as
acusações fundamentais dessa requisitória estão de algum modo presentes já no
livro de Kautski de 1918”[23].
Ou seja, Losurdo quer dizer que Trotski estaria junto com Kautski condenando a
Nova Política Econômica (NEP), desenvolvida a partir de 1921, como um estigma “persistente à propriedade privada da terra
e a NEP como um abandono culpado da via socialista”[24] –
fato que lhe é muito importante, uma vez que é o caminho adotado na China, o
seu “baluarte realista” da “construção do socialismo”.
Além de falsificar a posição de Trotski
durante os debates da NEP, que nunca “estigmatizaram a propriedade privada da
terra” quando do seu lançamento, Losurdo esconde que, na realidade, Trotski foi
um de seus principais defensores e explanadores[25].
Ao contrário de Stalin, que permaneceu em silêncio durante todo esse período,
bem como prestou um apoio envergonhado ao governo provisório de fevereiro até
abril de 1917, colocando-se, posteriormente, à sombra de Lenin – como sempre,
sem nenhuma autocrítica. Esta posição de Stalin, muito bem descrita por Trotski
nos primeiros capítulos de a História da
Revolução Russa, demonstra quem realmente presta tributos a Kautski.
O caso da comparação de Trotski com
Kruschev é ainda mais triste e oportunista. Losurdo quer nos fazer crer que as
“denúncias dos crimes de Stalin” apresentadas ao XX Congresso do PCUS foram uma
revelação de uma espécie de “trotskismo enrustido” do seu primeiro sucessor. E
este engodo teórico é criado em cima do simples fato de que muitas das
acusações de Kruschev confirmaram as denúncias de Trotski, feitas cerca de 20
anos antes: os crimes de Stálin nos “Processos de Moscou”, a supressão das
liberdades civis, o culto à personalidade, etc. Na verdade, Kruschev
“denunciou” os crimes acobertados por toda uma rede burocrática de funcionários
a serviço de Stálin – dentre os quais estavam os seus sucessores diretos, como
o próprio Kruschev, escolhido e tolerado pelo próprio Stalin. Losurdo e os seus
discípulos dão a entender que o ato de Kruschev de supostamente quebrar o
monolitismo stalinista – fato que não ocorreu realmente – apresentando-lhe
críticas, seria a quebra do próprio “socialismo”. Logo, condenam qualquer tipo
de autocrítica.
Outra
distorção escandalosa da crítica de Trotski ao stalinismo é aquela que afirma
se tratar de simples “psicologismo”: ou seja, Trotski tentaria pessoalizar
tudo em Stalin, ignorando a estrutura da sociedade. Este talvez seja o
argumento mais cínico de Losurdo, pois ele sabe bem que Trotski nunca
pessoalizou sua crítica em Stalin, mas justamente em uma burocracia – isto é, numa rede de funcionários, que se autoprotegem
em nome da manutenção da “ordem”.
Losurdo entende e cita apenas o que lhe
convém do livro A revolução traída.
Nele, podemos ler que “seria ingenuidade
pensar que Stalin, desconhecido das massas, tivesse saído dos bastidores
armados com um plano estratégico completo – não! Antes que ele próprio tivesse
entrevisto o seu caminho, a burocracia já o tinha escolhido. Stalin
apresentava-lhe todas as garantias desejáveis: o prestígio de um velho
bolchevique, um caráter firme, uma visão estreita e uma indissolúvel ligação
com as repartições públicas, fonte única da sua influência pessoal. Ele foi, no
início, surpreendido pelo seu próprio êxito. Era a unânime aprovação de uma
nova camada dirigente que procurava libertar-se tanto dos velhos princípios
como do controle das massas e que tinha a necessidade de um árbitro seguro nos
seus assuntos internos. Figura de segundo plano para as massas e para a
revolução, Stalin revelou-se o chefe incontestado da burocracia
termidoriana, o primeiro dos
termidorianos”[26].
Após este trecho, que não deixa margem
a dúvidas quanto a se tratar de uma estrutura social e não meramente pessoal,
Trotski analisa a degeneração do partido bolchevique e o apodrecimento de sua
composição interna. Frente a uma crítica tão bem construída, que demonstra
cristalinamente o fosso entre a “teoria” stalinista e a teoria marxista, não há
remédio senão recorrer a dois subterfúgios: a calúnia falsificadora e a
acusação de que se sofre de “utopismo” e “romantismo”, enquanto se procura
manter a boa reputação de “marxista-leninista”.
No entanto, quem melhor elucida esta
crítica trotskista, afastando qualquer sombra de “psicologismo” ou
“individualização” em Stalin, é Isaac Deutscher na trilogia biográfica que
Losurdo ignora: “...num partido único,
enquanto os seus membros podem expressar-se livremente, os vários grupos e
escolas de pensamento formam um sistema multipartidário disfarçado,
incompatível com ele, também a facção única tendia a produzir, em suas próprias
fileiras, reflexões mais ou menos imprecisas das facções e escolas de
pensamento que acabara de reprimir. Stálin teve de excluir criptotrotskistas e
criptobukarinistas dentre seus próprios seguidores. Teve de negar a todos eles
as poucas liberdades que ainda restavam. Era agora a vez de descobrirem que,
tendo privado todos os adversários da liberdade, também se haviam privado igualmente
dela e que se haviam colocado à mercê de seu líder. Tendo proclamado [mentirosamente]
que o partido devia ser monolítico, ou
não seria bolchevique, o líder insistia agora em que a sua própria facção fosse
monolítica ou não seria stalinista [isto sim, corretíssimo]. O stalinismo deixava de ser uma corrente
de opinião ou a expressão de um grupo político – tornava-se o interesses
pessoal de Stalin, sua vontade e capricho. (...) A personalização de todas as relações políticas afetava também a
posição de Trotski. À medida que Stalin se tornava a única representação
oficial e ortodoxa da revolução, Trotski tornava-se o seu único representante
não-oficial e não-ortodoxo”[27].
Trotski e Deutscher deixam claro que a
burocratização da revolução não foi resultado da vontade de Stalin, mas expressão
de um processo histórico. Para quem conhece o livro do fundador do marxismo
russo, Plekhanov, O papel do indivíduo na
história, sabe que Stalin foi uma peça da engrenagem que deu contornos
específicos a todo este desenvolvimento estrutural, repletos de ódio vingativo
e traços da mentalidade do mujique,
mas que se não fosse ele, especificamente, a burocracia certamente haveria de
encontrar outros candidatos ao seu cargo.
III – Os Processos de Moscou
Há que se reconhecer que Losurdo é um
intelectual erudito e com grande conhecimento, o que aumenta sobremaneira a sua
responsabilidade sobre o que sustenta e escreve. Ele conhece citações e teorias
de um amplo espectro, que vai de Nietzsche a Trotski; de Stalin à Churchill,
passando pelos presidentes estadunidenses, Wilson e Roosevelt. Consegue
demonstrar, em parte, o cinismo e a hipocrisia do discurso Ocidental e, em
particular, do imperialismo estadunidense e inglês contra a URSS – embora
tropece nas suas próprias hipocrisias e os seus discípulos não queiram ver tais
tropeços.
Contudo, as suas construções teóricas e
literárias parecem, muitas vezes, com um Frankenstein, que se valem de uma
elasticidade e de um contorcionismo oportunista muito grande e perigoso. É o
preço a pagar por tentar defender e sustentar as construções barbaramente
empiristas e grosseiras do stalinismo – realizadas, como disse Trotski, não com
a pena de Lenin e Marx, mas com as botas da KGB. Para Losurdo, algumas vezes “convém citar Trotski”[28] –
para contrapô-lo ao imperialismo Ocidental, por exemplo –, em outras, não! –
sobretudo quando desmascara previamente a sua farsa teórica.
Cabe
lembrar que na URSS de Stalin, a simples “heresia” da citação de Trotski
significava a possibilidade real de fuzilamento! Mas talvez Losurdo não seja um
stalinista tão ortodoxo assim, embora trabalhe para defender e sustentar a
ortodoxia stalinista – e cite-o apenas quando “lhe convém”.
Um dos casos em que “não convém” citar
Trotski é o dos Processos de Moscou. Aqui, para Losurdo e seus discípulos, ele
passa a ser não só inconveniente, como volta a ser um “terrorista, sabotador,
traidor”, etc., cuja opinião só podemos desprezar. Vale, portanto, colocar uma
nova mordaça sobre sua boca e uma pecha caluniadora de “terrorista”.
Isso se dá dessa forma porque Trotski
demonstra em diversos artigos a farsa da montagem de cada um dos “processos”,
incluindo a formação de uma comissão mista internacional – a Comissão Dewey –,
que termina por absolvê-lo de todas as acusações forjadas. A facção stalinista,
para manter seu controle sobre o aparato estatal, é obrigada a lançar mão
continuamente de monstruosos expurgos, como uma “queima de arquivo”
ininterrupta, uma vez que um círculo próximo a Stalin ajudava a forjar provas
contra os outros, tornando-se, portanto, uma ameaça em potencial contra si
mesma. Era neste clima doentiamente paranoico que o stalinismo pretendia
“construir o socialismo”. Tal como são as construções do neofascismo bolsonarista, as acusações dos processos foram pensadas
para paralisar todo o pensamento crítico, tornando grotescamente inadequado
qualquer argumento.
A primeira geração a sofrer com a farsa
dos Processos de Moscou foi, obviamente, a velha guarda bolchevique, que fez a
revolução junto com Lenin e Trotski. Todo o circo armou-se com a finalidade de
criar bodes expiatórios, cuja finalidade era fortalecer o poder stalinista, bem
aos moldes do método de poder da velha monarquia russa.
Desde a década de 1930, Trotski já
havia desmascarado acusação por acusação, trazendo à tona a falsidade de cada
uma delas. Losurdo, como bom stalinista, trata de recolocar no centro do debate
as velhas acusações forjadas para desviar o foco do que realmente interessa e
impossibilitar qualquer pensamento crítico, uma vez que, como demonstra o neofascismo trumpista e bolsonarista, a
paranoia, uma vez desencadeada, torna estéril qualquer argumento.
Com
este método paranoico, Losurdo justifica distorções grosseiras e falsificações
inaceitáveis como uma “‘guerra civil
preventiva’ desencadeada por Stalin contra aqueles que se organizam para
derrubá-lo”[29].
E já que não há nenhuma prova real das acusações nos processos de Moscou,
Losurdo apela para a seguinte figura histórica, que conta com grande
“credibilidade”: “Churchill em pessoa
avalizou indiretamente pelo menos os processos contra Tuckatchevski e outros
líderes militares”[30].
Já Trotski, lutando contra monstros dignos
de um verdadeiro pesadelo, afirma que
“todo o processo é apenas uma falsificação, em cada uma das declarações, em
cada uma das réplicas; não existe nada de natural, de vivo ou de humano neste
processo. Não contém nenhum elemento psicológico verdadeiro; é um processo de
autômatos e não de pessoas. (...) Mas
nesta loucura há um método. Para compreendê-lo é preciso rejeitar todos os
critérios da psicologia humana individual. Os acusados não existem enquanto
pessoas. Estavam arrasados antes do processo. São apenas escravos da GPU
[KGB], que oferece um edificante
espetáculo sobre o tema: ‘o trotskismo é a fonte de todo o mal’”[31].
Trotski
apontou ainda que “quem tentar julgar os
acontecimentos que se desenvolvem na Rússia enfrenta a seguinte alternativa: 1)
ou todos os velhos revolucionários que dirigiram a luta contra o czarismo,
construíram o partido bolchevique, fizeram a revolução de outubro, criaram o
Estado Soviético e a Internacional Comunista eram todos eles, quase sem
exceções, agentes dos estados capitalistas já naquela época ou em datas
posteriores; ou 2) o governo soviético atual dirigido por Stalin cometeu os
crimes mais odiosos da história da humanidade”[32].
Losurdo
e os losurdistas enquadram-se, sem sombra de dúvidas, na primeira opção.
Escondendo-se atrás de uma afirmação de um político que, segundo ele, deve
possuir “grande honestidade intelectual” – sem demonstrar nenhum fato concreto
de que não se trataram de acusações forjadas e bizarramente contraditórias – “os Processos de Moscou não foram um crime
sem motivo e a sangue frio, mas a reação de Stalin durante uma aguda luta
política”[33].
Eis
tudo! E Losurdo, como não poderia deixar de ser, continua, tal como Stalin, sem
apresentar uma única prova, a não ser
interpretações políticas sobre os opositores. Se se justificam os Processos
de Moscou tão levianamente como faz Losurdo e seus discípulos, se pode
justificar qualquer outro crime. Diante de tais explicações, Maquiavel
enrubesce!
Desde
Oslo, onde estava exilado quando os processos começaram, Trotski telegrafou com
diversas perguntas aos promotores e juízes, como, por exemplo: onde e quando
tinha se encontrado com os sabotadores e terroristas que supostamente iriam
voltar para a URSS com missões confiadas por ele. “Promotores e juízes – escreveu Deutscher no Profeta banido – ignoraram as
perguntas, sabendo perfeitamente bem que se os acusados tentassem responder,
cairiam em contradições flagrantes e desacreditariam o espetáculo. Em 29 de
janeiro, exatamente antes de terminado o julgamento, Trotski voltou a desafiar
Stalin para que pedisse sua extradição. Num apelo à Liga das Nações,
declarou-se pronto a submeter seu caso a uma Comissão de Terrorismo Político
que a Liga deveria criar por iniciativa soviética. A Liga manteve silêncio e
Stalin mais uma vez ignorou o desafio de extradição. Num outro esforço para
enfrentar seus acusadores, Trotski declarou numa mensagem a uma reunião pública
em Nova York: ‘estou pronto a comparecer perante uma Comissão de Inquérito
pública e imparcial, com documentos, fatos e testemunhos e revelar a verdade
até o fim. Declaro: se a Comissão resolver que sou culpado, em qualquer grau,
de qualquer dos crimes que Stalin me imputa, comprometo-me antecipadamente a
entregar-me aos carrascos da GPU. Faço essa declaração perante todo o mundo.
Peço à imprensa que divulgue minha declaração pelos mais remotos cantos do
nosso planeta. Mas se a Comissão determinar que os julgamentos de Moscou são
uma farsa premeditada, não pedirei a nenhum dos meus acusadores que se coloque
voluntariamente perante um pelotão de fuzilamento. Não, a desgraça eterna que
lhes está reservada na memória das gerações humanas será suficiente para eles.
Ouvem-me os acusadores no Kremlin? Lanço-lhes esse desafio no rosto e espero a
resposta”[34].
Como
fazem os covardes, a burocracia stalinista ignorou tais apelos, pois precisava
justamente do silêncio e do isolamento de Trotski para fazer valer o seu show
de horror. O que o nosso “profeta banido” não contava, por sua vez, era que na
posteridade surgiriam tristes figuras como Losurdo e os losurdistas, cujo
trabalho de sua vida seria reabilitar a burocracia stalinista da “vergonha
perante as gerações futuras”.
Ainda segundo
Deutscher, que tem sua clássica trilogia biográfica ignorada por Losurdo,
a burocracia stalinista e a GPU não conseguiram apresentar “nenhuma prova real, nem mesmo um fato, dessa conspiração gigantesca –
apenas confissões, confissões e mais confissões”[35].
Aqui é difícil não lembrar das inúmeras “delações premiadas” da farsesca Operação
Lava-Jato, cujo objetivo era incriminar sem provas, partindo apenas de
“confissões” arrancadas providencialmente dos envolvidos.
Por fim, Deutscher aponta que “as pessoas que faziam as confissões não eram
líderes ativos da Oposição, mas capituladores que durante anos se prostraram
perante Stalin. Suas últimas confissões eram a consumação de uma longa série de
rendições, a conclusão de uma ‘progressão geométrica de acusações falsas’. No
curso de treze anos, Stalin, com a ajuda deles, erguera uma ‘torre de Babel’ de
calúnias. Um ditador que usava o terror sem inibição e ‘podia comprar
consciências como sacos de batatas’ era bem capaz de um feito semelhante. Mas o
próprio Stalin estava aterrorizado pela torre de Babel, pois sabia que ela
desabaria depois de aberta a primeira brecha em sua estrutura – e isso teria de
ocorrer!”[36].
Foi por isso que Stalin fechava acordo
com um estrato próximo da burocracia, montava a farsa com a sua cumplicidade e,
logo a seguir, era obrigado a “queimar arquivos”, acusando este estrato de
“traição” ou de “trotskismo” para executá-lo, criando um clima permanente de terror,
medo e paranoia. O que pode ter isso a ver com a “ditadura do proletariado”? Mesmo
com a posterior queda da “torre de Babel” de calúnias e mentiras, foi assim que
Stalin consolidou o seu poder na URSS, usando o trotskismo como bode expiatório
e ameaçando com a pena de morte qualquer contestação a este poder.
É isto que Losurdo e os losurdistas
entendem como “construção realista do socialismo”!
Eis
o resumo dos Processos de Moscou, sintetizado de forma dramática por
Deutscher: “... nada era mais perigoso,
até mesmo para um exilado, do que atrair sobre si a suspeita de ter qualquer
simpatia ou piedade pelos trotskistas. O terror do período (...) equivaleu a um genocídio político: destruiu
todas as espécies de bolcheviques anti-stalinistas. Durante os quinze anos
restantes do domínio de Stalin, não restou na sociedade soviética, nem mesmo
nas prisões e campos de concentração, nenhum grupo capaz de desafiá-lo. Não foi
permitida a sobrevivência de nenhum centro de pensamento político independente.
Um vazio tremendo se abriu na consciência nacional, sua memória coletiva foi
despedaçada, a continuidade de suas tradições revolucionárias foi interrompida
e destruída a sua capacidade de formar e cristalizar noções não-conformistas. A
União Soviética ficou finalmente, sem qualquer alternativa ao stalinismo – e
não apenas na política prática, mas também nos processos mentais ocultos.
(...) Enquanto os julgamentos de Moscou
centralizavam as atenções atônitas do mundo, os grandes massacres nos campos de
concentração passavam quase despercebidos”[37].
E Losurdo nos diz no seu livro para não
nos perdermos na imagem criada do “monstro humano”, nem para levarmos o debate para o
“campo moral”. O que sobra depois disso tudo?
IV – A vitória sobre o nazismo como
o indulto providencial
Losurdo sustenta toda a estrutura
argumentativa de seu livro na vitória da URSS sobre o nazismo durante a Segunda
Guerra Mundial, que seria fruto exclusivo da genialidade da política do “grande
líder”. Isso, supostamente, daria um salvo conduto a Stalin para todos os seus
erros, problemas e crimes. Ignora cinicamente a estrutura pregressa erigida
pelo Conselho dos Comissários do Povo – tendo Lenin e Trotski à frente –, o
Exército Vermelho, a vitória na “guerra civil”, os planos econômicos copiados
disfarçadamente da oposição, bem como suas orientações políticas, seriam “mera
casualidade”.
O realista, o estrategista, o
maravilhoso Stalin teria preparado quase que solitariamente toda a vitória
sobre o nazismo, sofrendo calado com as terríveis e maldosas críticas que recebia
antes e depois da invasão nazista – seja dos “bandidos” trotskistas, seja dos
mal agradecidos kruschevistas. Para isso, Losurdo “ignora” toda a política da
III Internacional, de orientação expressa de Moscou, já hegemonizada pelo
stalinismo; bem como as terríveis calúnias contra Trotski, que desde muito
advertiu sobre os perigos da ascensão nazi-fascista, recebidas sempre como um
ataque à URSS e não como uma advertência que se demonstrou absolutamente
correta.
Nada disso impediu que a burocracia
stalinista caluniasse Trotski como “agente do fascismo”, desde a época dos
Processos de Moscou até... hoje! E
este arremedo de argumentação é a espinha dorsal de Losurdo para reabilitar e
absolver o “pai dos povos”.
Alguns
importantes trabalhos eliminam qualquer dúvida frente a posição de Trotski e de
Stalin nestes episódios dramáticos da luta de classes internacional: o
primeiro que cabe destacar é Revolução e
contrarrevolução na Alemanha, onde Trotski expõe sua análise da conjuntura
e uma política para enfrentar a ascensão do nazi-fascismo; outro é o documento
dos militantes da oposição trotskista que ficaram conhecidos como “os 24 de
Verkhneuralsk”, presos políticos do stalinismo, cujo título é A guinada fascista na Alemanha. Tal
documento, traduzido recentemente ao português, está disponível no livro de
Mario Maestri, Domenico Losurdo, um
farsante na terra dos papagaios, e demonstra insofismavelmente o papel
cúmplice do stalinismo na ascensão do nazi-fascismo na Alemanha. Nesta lista
também não poderiam faltar dois grandes livros de Wilhelm Reich, como Psicologia de massas do fascismo e A revolução sexual – ambos escritos no
auge da ascensão nazi-fascista e stalinista.
São leituras indispensáveis para quem
busca, de fato, construir o socialismo... e a verdade histórica!
V – O regime de Stalin foi uma
readaptação do czarismo ao século XX, revestido com um discurso socialista
Como vimos antes, Trotski se perguntou
no livro A revolução traída “por que
Stalin venceu?”, dando o ponta pé inicial a esta questão e encontrando importantes
respostas. Mas, como não poderia deixar de ser, não pôde responder tudo. Novos
estudos, novas ciências e novos pensamentos se lançam na busca por respostas. E,
como se pode ver, responde-la não é uma tarefa fácil, nem diletante, mas uma
necessidade para entendermos os problemas da edificação do comunismo, visando
superar os erros – e os crimes – das experiências socialistas do século XX.
Às respostas de Trotski podemos agregar
algumas contribuições: Stalin venceu porque se adaptou consciente e exitosamente
às forças conservadoras daquela sociedade. Tais forças, como sabemos,
permanecem mesmo após um processo revolucionário, dado que possuem raízes muito
profundas. Isto é, o stalinismo consolidou-se como regime porque conseguiu
adaptar o discurso “revolucionário” a este conservadorismo intrínseco, que
buscava guarida antes e depois da tormenta, dando uma perspectiva de
desenvolvimento, de poder e de vida a todo um corpo de funcionários e, infelizmente
também, a centenas de milhares de trabalhadores comuns, de consciência
atrasada, que estavam habituados ao espírito
de rebanho disseminado e organizado pelo czarismo através dos séculos e que,
naquela nova realidade desencadeada pela revolução de 1917, não sabiam muito
bem onde se localizar; chegando aos casos mais extremos de indivíduos que eram desejosos
por retornar à antiga autoridade secular
exterior, em quem confiavam e ansiavam direta ou indiretamente, por medo da
liberdade e/ou desamparo infantil, apesar de terem abraçado momentaneamente o
discurso revolucionário bolchevique.
Portanto, a engenharia política de
Stalin baseou-se na utilização da fraseologia e das estruturas políticas e
econômicas criadas pela revolução de outubro para reedificar a antiga estrutura czarista sob novas bases,
disfarçada agora em uma nova roupagem. Foi daí que conseguiu extrair o seu
apoio popular contra a oposição trotskista – caso contrário, é acreditar que
toda a massa de trabalhadores e funcionários foi simplesmente “enganada e manipulada
por uma direção traidora e cruel”.
O historiador Pierre Broué aponta que “Stalin se esforça em despertar o
patriotismo ancestral recorrendo à ideologia do velho passado russo, ao
nacionalismo, à religião, à tradição, ao militarismo, ao culto aos antepassados.
Para a alegria dos escritores reacionários (como Michel Garder, que saúda ‘o
abandono dos temas fora de moda do internacionalismo proletário e da luta de
classes’, substituído por ‘uma linguagem que se dirige ao coração com violenta
paixão e pelo amor irracional ao solo pátrio’), Stalin se torna o defensor da
Rússia eterna”[38].
Os
burocratas do governo, bem como largas parcelas de trabalhadores, podiam não
entender o que se passava, mas intuíam o ressurgimento do velho poder autocrata
russo, a quem souberam reconhecer quase que por instinto de sobrevivência; e a
quem se submeteram também quase que por tendência natural, seja a de
sobrevivência, seja a assimilada pelo espírito
de rebanho cultivado através dos séculos. Vencer este espírito não é uma
tarefa fácil; nem pode ser vencido pela simples mudança da base econômica, tal
como preconiza o marxismo vulgar.
Losurdo reconhece indiretamente esta
volta à antiga legalidade: “Stalin era a
encarnação do poder legal tradicional, que procurava tomar forma com
dificuldade (...). Ademais, afirmando
a factibilidade do socialismo também num só (grande) país, Stalin conferia nova
dignidade e identidade à nação russa, que assim superava a crise espantosa”[39].
Losurdo, como bom promotor de confusões convenientes, evidentemente não tira as
conclusões pertinentes das suas próprias premissas, pois está ocupado demais em
demonstrar o “realismo” de Stalin contra as “utopias enfáticas” de Trotski e
cia. Eis o “realismo” losurdista em sua essência: uma reconstrução subjacente
do czarismo – o poder legal tradicional –, agora revestido por uma fraseologia
socialista, revolucionária, isto é, “marxista-leninista”! Em nome desse
“realismo” – na verdade uma reconstrução das estruturas czaristas, que lhe
rendeu o apoio popular dos extratos mais atrasados –, Losurdo e os losurdistas
autorizam qualquer meio – inclusive o massacre e o assassinato de companheiros
de revolução – para atingir o fim de manter o poder – e finaliza chamando tudo
isso de crítica “realista” e de “socialismo”!
Podemos afirmar, seguramente, que
Stalin modernizou a estrutura czarista,
conferindo-lhe “nova dignidade e identidade”, e toda a sua política
internacional imposta à III Internacional – omitida por Losurdo em seu livro –
leva ao estabelecimento de uma nova correlação de forças no continente europeu,
no qual Stalin buscou, insistentemente, estabilidade e equilíbrio para
perpetuar o domínio russo das regiões do entorno do antigo império, agora sob
novas condições históricas e direção, bem como estabeleceu nova correlação de
forças no mundo. Para isso, usou os partidos comunistas e a III Internacional
como moeda de troca da diplomacia grã-russa, disfarçando-a com uma fraseologia
“revolucionária”. Muitos comunistas de renome compraram este embuste, que não
era tão difícil de ser notado – e continuam o comprando ainda hoje! Stalin e a
sua burocracia estavam tão imbuídos do espírito da velha estrutura czarista de
poder que a sua teoria bizarra de “socialismo em um só país” só poderia transformar-se
na “coexistência pacífica com o imperialismo” – tudo com a finalidade de
garantir a estabilidade interna e externa da Rússia.
Um processo semelhante se passa com
Putin, que, herdando o aparato estatal soviético, atualizou as necessidades da
grã-Rússia ao século XXI[40].
Não casualmente, os métodos se repetem: perseguição a opositores, censura,
combate ao trotskismo e ao bolchevismo (lembrem-se da série da Netflix contra
Trotski produzida por um canal de TV ligado a Putin[41]),
auto-glorificação disfarçada, mandato vitalício; todos são típicos resquícios da
história da monarquia russa. A própria aclamação de parte da população russa ao
governo Putin se deve ao êxito dele nesta condução política e econômica (algo
semelhante se passa na China, guardadas as devidas proporções e realidades). Agora,
porém, sem precisar utilizar-se de uma retórica “socialista” e de forma mais
ofensiva e propositiva do ponto de vista econômico a partir da aliança
internacional com a China, Putin procura avançar sobre o mercado europeu.
Portanto, Losurdo, os losurdistas, os novos e os velhos stalinistas, não
defendem passos “realistas” para o socialismo ao defender o stalinismo, mas
simplesmente justificaram e propagaram, no geral, os interesses geopolíticos
históricos grão-russos.
Tudo isso é reconhecido tacitamente pelo
próprio Losurdo, no seguinte trecho do seu livro: “nem a Stalin nem a Trotski escapa o agravamento da situação
internacional, mas as respostas dadas por eles a esses problemas são diferentes
e contrapostas. Para o primeiro se trata de concentrar-se no desenvolvimento
econômico e tecnológico da Rússia, remendando na medida do possível as divisões
provocadas pela Revolução de Outubro e pela coletivização da zona rural e
apresentando o partido comunista como guia da nação no seu conjunto. A condição
de estabilidade e de equilíbrio assim conseguida no plano interno pode permitir
ao mesmo tempo promover a política de alianças no plano internacional apta a
garantir a segurança da URSS”[42].
Em síntese: Stalin “conferiu maior
dignidade e identidade” da Rússia ao resolver a crise política e econômica do
país, que não poderia ser resolvida nos marcos do czarismo. Isto é, continuou
cumprindo o papel do czarismo sob uma nova base e num novo contexto – com um
discurso “marxista-leninista” –, o que possibilitou passar o bastão (sem querer
ou por querer) para a atual burguesia russa. Em sua época, Stalin estava
embaraçado por relações de propriedade que lhe dificultavam o trabalho, daí a
necessidade de calar e executar opositores “utópicos” e “messiânicos”, enquanto
reforçava o discurso e as práticas nacionalistas – aplaudidas com fervor por
Losurdo e os losurdistas. Porém, estas relações de propriedade foram a forma
encontrada pela burocracia stalinista para conseguir manter a Rússia livre de
uma recolonização por parte do capitalismo europeu.
Hoje,
Vladmir Putin, ainda que condene o período “comunista”, a “ditadura stalinista”
e o “terror vermelho”, no íntimo, sem sombra de dúvidas, só pode prestar
reverências ao “pai dos povos”. Talvez seja por isso que Losurdo tenha se
tornado também um embelezador do “realismo” de Vladmir Putin – governo este
que, segundo boas hipóteses, aparentemente se tornou um centro irradiador de neostalinismo[43].
Grande timoneiro ou grande organizador de derrotas? |
VI – A lambança que Losurdo e Stalin fazem com o termo “comunismo”
Losurdo faz terra arrasada do conceito de
“comunismo”, tal como faria qualquer teórico da burguesia, classificando-o como
uma “utopia enfática” ou um simples messianismo hebraico-cristão.
Este blog já analisou o problema da
construção do socialismo e do comunismo em diversos artigos, cabendo um
destaque ao que faz uma análise da China – “Socialismo
com características chinesas” ou capitalismo de Estado? – e a outro que
busca atualizar o debate sobre a estratégia da revolução socialista no Brasil –
Reflexões sobre a transição socialista.
Há sim uma tendência ao “messianismo”
presente em grande parte das correntes de “esquerda”, sejam elas trotskistas,
stalinistas ou de qualquer outra vertente teórica. Contudo, em nome do suposto
combate a esse “messianismo”, Losurdo justifica os crimes de Stalin e do PCC,
apontando que era o “único caminho realista para a construção do socialismo”.
Por isso, sua crítica ao “messianismo” é mentirosa e oportunista.
Losurdo é conhecedor da teoria marxista
e, por isso mesmo, faz uma lambança intencional enorme para poder sustentar
suas teses. Por exemplo: afirma, citando Stalin, que o “socialismo é a passagem da sociedade na qual existe a ditadura do
proletariado para a sociedade sem Estado”. Há um erro nesta afirmação se
levarmos em consideração a perspectiva marxista, uma vez que a sociedade sem
Estado é a fase superior da sociedade socialista, isto é, o comunismo. Aqui,
porém, como cita Stalin, não reconhece nenhum “utopismo” ou “messianismo”.
A confusão de conceitos é assustadora,
preocupante e... providencial. Losurdo pergunta: “é válida, e até que ponto, a tese da extinção do Estado? O Estado será
conservado por nós também no período de comunismo?”[44].
Ao que, traz a brilhante e curiosa resposta de Stalin: “Sim, será conservado, se não for liquidado o cerco capitalista, se não
for eliminado o perigo de agressões armadas do exterior”[45].
E em cima desta aberração, Losurdo
conclui: “Portanto, a realização do
comunismo na União Soviética ou num grupo de países comportaria a ausência
definitiva da primeira função do Estado socialista (a salvaguarda do perigo de
contrarrevolução no plano interno), mas não da segunda (a proteção contra a
ameaça externa) que, na presença de poderosos países capitalistas, teria
continuado a ser vital até no ‘período de comunismo’”[46].
Isso não é apenas um deboche, é a
tentativa de se fazer uma confusão erudita, misturando termos autoexcludentes
para salvar a reputação do “pai dos povos”. Pra finalizar, Losurdo nos diz que
Stalin fala assim porque “revela incertezas e contradições”, estimuladas pela
necessidade de “mover-se com cautela num
terreno minado, onde qualquer desvio com respeito à tese clássica da extinção
do Estado o expunha à acusação de traição”[47].
Por que o “guia genial dos povos”, o
“infalível dirigente”, temeria ser acusado de traição? Ora, pela mesma razão
que Losurdo: porque pretende manter uma reputação de “marxista-leninista”, que
está em frontal contradição com tudo o que escreveu e fez para justificar a “nova”
estabilidade da URSS. No passado, quem questionasse tais contradições teóricas
era excomungado e fuzilado; no presente, é taxado de “utópico e messiânico”.
Por excelência, a fase superior do
socialismo, o comunismo, é entendida como o fim das classes sociais e a
extinção do Estado. É algo muito distante, pois pressupõe expandir a revolução
pelo mundo, erradicar as profundas desigualdades sociais, elevar o nível
cultural e psicológico da maioria da população e gerar um novo equilíbrio
social. É impossível de ser previsto ou decretado por um governo sozinho ou
mesmo por uma “nova Constituição”, tal como queria Stalin.
Como é possível termos um “cerco
capitalista” e “possibilidades de agressões externas” em uma sociedade
comunista? Isso significa que não atingimos “comunismo” algum e que o
capitalismo subsiste e controla o mercado mundial ao ponto de nos criar um
cerco! É impossível liquidar com as classes sociais e o Estado existindo uma
ameaça capitalista exterior. O que Stalin e Losurdo deveriam reconhecer, se
fossem honestos, é que a URSS nunca saiu do estágio mais elementar da ditadura
do proletariado, sequer atingindo o “socialismo”, e resvalando permanentemente
para “o degrau” do capitalismo de Estado – mais ou menos o que acontece na
China contemporânea[48].
Mas, ao contrário disso, Stalin –
repetido por Losurdo – havia decretado através de sua “nova Constituição” que “desde que não há classes [na URSS], as barreiras entre elas estão
desaparecendo...”[49].
Reparem a contradição: “não há classes”!,
mas as barreiras entre elas – que supostamente não existem – estão
desaparecendo. É esta sopa eclética, de vai-e-vens infindáveis e confusos, que
Stalin obrigou o povo soviético e os partidos comunistas a engolir sob pena de
fuzilamento; e que agora Losurdo requenta e nos vende como “realismo político”
e “não-messiânico”. Isto é: a ação de jogar o marxismo na lama, cuspi-lo e destruí-lo,
em nome de manter a sua própria fama de “marxista”.
A transição do capitalismo para o
comunismo exige sim medidas e ações realistas, feitas de acordo com as
condições materiais e a correlação de forças. Embora vendam seus livros e
ideias assim, não é isso que propõe Losurdo e seus discípulos. Eles pretendem
encontrar “socialismo” e “comunismo” em medidas e ações abertamente
capitalistas – tal como veem o “socialismo com características chinesas” –,
misturando alhos com bugalhos e justificando a existência do que existe a
partir de uma espantosa miséria teórica.
VII – Novamente o problema da massa
e do líder: para construir o socialismo importam apenas os índices econômicos?
Em seu livro, Losurdo afirma que “a ortodoxia [marxista] se revela uma barreira intransponível: o
desaparecimento da economia mercantil é adiado para o momento em que ‘todos os
meios de produção’ estiverem realmente coletivizados, com a superação,
portanto, da própria propriedade cooperativa”[50]. E,
na sequência, conclui que Trotski julgava sintetizar a lição de Marx, Engels e
Lenin nesses termos: “‘a geração que
conquistou o poder, a velha guarda, começa a liquidação do Estado; a geração
seguinte levará a cabo esta tarefa’. Se este milagre não se verificava, de quem
podia ser a culpa senão da traidora burocracia staliniana?”[51].
Certamente houve erro de cálculo da
parte de Trotski, ainda que possa se tratar de uma simples figura de linguagem,
que é totalmente distorcida – como de praxe – por Losurdo. Para este, o culpado
é o espírito-santo; ou, então, não há culpados, dado que se trata de um
problema inevitável da realidade e que, se formos trata-lo de forma
“realística”, não podemos fazer nada que o “guia genial dos povos” já não tenha
feito.
Tamanho disparate procura esconder, evidentemente,
o desvio da rota. Depois que este desvio se aprofunda monstruosamente em
direção ao restabelecimento de um “czarismo vermelho”, gerando um abismo, sobrevém
as justificativas. Para a maioria da “esquerda” – seja de que vertente for – o
socialismo será atingido exclusivamente através de medidas econômicas. Isto é: apenas
quando tudo for estatizado, a economia mercantil desaparecer e as forças
produtivas se desenvolverem. Todo o restante desta estranha equação é apagada.
Falar, por exemplo, de psicologia de
massas ou de superação do espírito de
rebanho é “puro idealismo”, dado que isso será superado automaticamente a partir das medidas
econômicas.
Losurdo e seus discípulos relativizam
as aberrações da realidade – o monopólio do poder pela burocracia stalinista,
russa ou chinesa, as distorções provenientes do capitalismo de Estado chinês e
poucos ou nenhum avanço nas questões civis, familiares e de emancipação
individual e coletiva. Já o campo “revolucionário” (ou trotskista-mecanicista)
detém-se nos planos econômicos, no fim da propriedade privada e na crítica à
burocracia política (que são, sem dúvida, medidas imprescindíveis), mas não
fala nada sobre psicologia de massas,
nem interpreta a omissão das massas nas suas mínimas responsabilidades sociais.
Cai de maduro que para se atingir o
comunismo, de fato, não em palavras ocas ou maquiavelicamente distorcidas, é
preciso que a classe trabalhadora emancipe-se do atual estágio de consciência,
pautado por um obtuso espírito de rebanho.
Se falamos em autogestão, em fim do Estado e das classes seriamente – e não
como um resultado mecânico e automático da estatização econômica; ou se fazemos
troça disso, como fazem os losurdistas afirmando se tratar de messianismo e de
uma “utopia descabida” –, isto é, se falamos de atingir seriamente o comunismo,
então precisamos nos preocupar, tal como se preocuparam Rosa Luxemburgo, Leon
Trotski, Vladmir Lenin, Whilelm Reich e tantos outros, com a dialética do líder
e das massas, apontando os problemas concretos e ideias para a sua superação.
Uma geração faz a revolução com um
partido revolucionário; mas nesta geração já deve estar presente – desde agora
– a preocupação em se autodissolver, em criar condições psíquicas, materiais e
sociais para que a massa passe a exercer efetivamente o poder, tendo iniciativa
plena e não sendo uma mera reprodução de ecos que “vem de cima”. Isso é uma
premissa básica do socialismo. Não haverá extinção das classes sociais e do
Estado sem criar estas condições básicas para que a massa trabalhadora possa
exercer o poder de fato (e se isso
não for realmente possível, então tudo resume-se a uma “utopia descabida” e
Losurdo passa a ter razão contra o marxismo “hebraico-cristão”).
Mas não! O que vemos é, de um lado,
setores da “esquerda” que se apegam a uma receita mecânica de construção do
socialismo; contra outro setor – o losurdista – que trata como “realismo” a
miséria do que existe, para justificar o seu apoio desavergonhado a ele. Como
podemos afirmar que construímos o “socialismo” ou o “comunismo” se o poder
concentra-se cada vez mais nas mãos da cúpula partidária – como foi o caso do
stalinismo – ou na dos bilionários – como é o caso da China? Isto é: não basta
apenas estatizar a economia, como querem os mecanicistas, ou desenvolver as
forças produtivas, como quer o “realismo” losurdista. Não seria imprescindível
medir também o desenvolvimento da sensibilidade
humana nesta “nova sociedade”? Onde está a superação do irracionalismo das
massas, a sua lenta e progressiva autoconfiança em si mesma e em suas
autoiniciativas que comprovem a execução do poder de fato? Onde estão os canais
populares de poder – ou, pelo menos, os seus esboços?
Sobretudo precisamos sempre nos
perguntar se a sociedade dita “socialista” da ex-URSS de Stalin e a China atual
criaram ou criam condições para autogestão da massa trabalhadora, se ela se
sente cada vez mais confiante e segura de si mesma, além de mais sensível ao
sofrimento alheio. Ao contrário dos losurdistas, se respondemos seriamente a
estas perguntas, podemos afirmar, seguramente, que a URSS de Stalin e a China
do PCC não construíram e não constroem socialismo algum (que dirá o comunismo!).
E sem construir ou sequer admitir a inexistência desses elementos fundamentais
de poder proletário, certamente a superação das classes e a dissolução do
Estado só podem se tornar “utopias descabidas”.
Neste debate vale lembrar o artigo de
Rosa Luxemburgo intitulado Novamente a
massa e o líder, que já chamava a atenção para estas questões candentes: “A libertação da classe trabalhadora apenas
pode ser obra da própria classe trabalhadora, diz o Manifesto Comunista – que
por ‘classe trabalhadora’ não entende uma direção partidária de sete ou doze
cabeças, mas a massa esclarecida do proletariado em pessoa. Cada passo à frente
na luta de emancipação da classe trabalhadora precisa, ao mesmo tempo,
significar uma autonomia intelectual crescente de sua massa, sua crescente
autoatividade, autodeterminação e iniciativa. Mas como a capacidade de ação e a
prontidão política da grande massa popular hão de desenvolver-se se a vanguarda
dessa massa, aqueles círculos melhores e mais esclarecidos reunidos nas organizações
partidárias socialistas, por sua vez, não desenvolvem iniciativa e autonomia
como massa, mas sempre aguardam em posição de sentido até que venha um comando
de cima? A disciplina e a coesão da ação constituem uma questão vital para
movimentos de massa como o nosso. Mas a disciplina no sentido socialista
distingue-se fundamentalmente da disciplina de um exército burguês. Aqui, ela
reside na submissão irrefletida e sem vontade da massa de soldados ao comando
de uma autoridade que expressa dada vontade alheia. A disciplina socialista,
portanto, jamais pode significar que os 800 mil membros partidários organizados
devem submeter-se à vontade às determinações de uma autoridade central, de uma
direção partidária, mas, ao contrário, que todos os órgãos centrais do partido
devem executar a vontade dos 800 mil socialistas organizados. O fator principal
de um desenvolvimento normal da vida política no partido, a questão vital do
socialismo, reside, assim, em que o pensamento político e a vontade da massa do
partido permaneçam sempre despertos e ativos, que o habilitem em medida
crescente para a atividade”[52].
Dentro da lógica expressa por Rosa,
vemos que não apenas o stalinismo soviético e chinês não constroem socialismo
algum, como criam empecilhos concretos para que ele surja e se desenvolva. Disfarçando
estes desvios graves – e evitar ser “acusado de traição” – Losurdo resume
“realismo da construção socialista” ao simples desenvolvimento das forças
produtivas.
O líder e a massa segundo o stalinismo e o seu herdeiro, o maoísmo |
Há,
contudo, problemas intocados nesta relação líder e massas. O que fazer se
grande parte da massa busca a guarida de um líder, um chefe ou um guru, e tem apresentado,
pelo menos no Brasil, pouca disposição para iniciativas independentes e uma
vontade apagada e inativa? Certamente ocorrem momentos de explosões espontâneas
na luta de classes, mas estas têm sido facilmente
canalizadas por direções demagógicas e tradicionalistas, como foi o próprio stalinismo,
que conseguem reconectar os fios do passado a partir do espírito de rebanho. E isso se passa dessa forma não apenas pela
ausência de um partido revolucionário, mas porque em momentos de crise a massa
tem apresentado tendências para ir à direita e não à esquerda.
Por exemplo, Rosa não procura explicar
porque a massa tende a “aguardar em posição de sentido até que venha um comando
de cima”. Este blog já debateu muitos problemas relacionados à psicologia de massas, aos quais, julgamos
ser parte fundamental da degeneração da URSS e das experiências socialistas do
século XX, que continuam inexploradas e sequer levadas em consideração por
parte da esquerda “revolucionária”, que tem medo de cair em um “pecado
idealista”.
No livro A revolução traída, Trotski levanta questões pertinentes para a
psicologia de massas que, por mais esclarecedoras que sejam objetivamente para
demonstrar a ascensão do stalinismo, precisam de complemento subjetivo. Por
exemplo, quando explica parte da degeneração do Partido Bolchevique e a
ascensão de uma camada de burocratas: “Politicamente,
tratava-se de reabsorver a vanguarda revolucionária em um material humano
desprovido de experiência e de personalidade, mas em contrapartida, acostumado
a obedecer os chefes”[53].
Por
que mesmo com toda a experiência revolucionária persistiram aqueles indivíduos “acostumados a obedecer os chefes”? Por
que estes elementos atrasados e “sem personalidade” triunfaram sobre a oposição
de esquerda, que era o partido revolucionário dentro da URSS? O que a experiência
na pesquisa e nas discussões acerca da psicologia de massas poderia contribuir
para superar a postura de estar “acostumado
a obedecer os chefes”? A repressão militar do stalinismo, o isolamento da
URSS e o refluxo da revolução mundial explicam quase tudo, mas não tudo[54].
Aí está uma prova empírica de que não basta modificar apenas a base econômica
para se mudar automaticamente as consciências e as posturas.
Se ainda não temos respostas para tais
fenômenos, certamente devemos levar em consideração toda a teoria acumulada no
passado, mas, sobretudo, saber levar em consideração as novas descobertas no
campo científico – como os debates acerca da psicologia de massas –, bem como no das experiências sociais. Não
há velho problema que não necessite de novas compreensões.
Esta estranha capacidade dos seres
humanos de se adaptar “obedientemente aos chefes”, existente, sem dúvida, na
psique humana e que reflete bem o que aqui chamamos de espírito de rebanho, perverteu até mesmo os sovietes, que eram
organismos de autogestão, voltados a revogar qualquer mandato ou ordem que não
representasse suas bases. Por que estas mesmas bases que derrubaram o czarismo
em 1917 passaram a aceitar quase que passivamente as imposições e ordens vindas
de cima pra baixo que lhe contrariavam abertamente – ou pelo menos contrariavam
o espírito revolucionário de 1917?
Indo mais além: como uma sociedade que
sai de um processo revolucionário protagonizando uma das maiores revoluções da
história torna-se propensa a vigiar e delatar qualquer “movimento suspeito”,
beirando a paranoia e a psicose quase que generalizada? Seria apenas o
“cansaço” e o refluxo das massas que explicaria a totalidade deste fenômeno de
degeneração da revolução soviética ou haveria algo mais? No que consiste,
precisamente, este “cansaço”?
Podemos arriscar uma hipótese: a mentalidade dos novos funcionários e da “nova
vanguarda” desprovida de experiência, que estavam “acostumadas a obedecer aos
chefes”, certamente via nas propostas de Trotski e da oposição de esquerda,
tacitamente, algo como uma ameaça que lhes tirava da zona de conforto, que lhes
gerava incomodações e chacoalhava a sua mísera estabilidade pessoal e familiar
(o mesmo pensamento vale para os novos proprietários no campo, ricos e pobres,
bem como os nepmen). Esses
sentimentos tendem a ser mais fortes
do que as comoções revolucionárias e lhes jogavam nos braços de Stalin, que garantia
o oposto: a tradição, a segurança, o “já conhecido”, os velhos costumes. Nisso,
aliás, Stalin e a burocracia foram mestres. Esta foi a mentalidade que serviu
de base para os dirigentes soviéticos que votaram convictos na “justeza” da
expulsão de Trotski da URSS em 1929; e que também serviram de esteio ao longo
reinado de Stalin.
No entanto, de tudo isso uma coisa é
certa: Losurdo e seus discípulos fazem das tripas coração! Para eles, este espírito
de rebanho em que os funcionários perdem a sua personalidade para obedecerem
cegamente o chefe é o que entendem como a essência
do socialismo, dado que fazem a apologia romântica e descabida do
stalinismo em pleno século XXI. E quem está disposto a absolver e embelezar até
mesmo os crimes dos Processos de Moscou, como se disse, está disposto a qualquer coisa...
VIII –
A política externa, o “espírito do
socialismo”, o “trabalho pacífico” proposto por Stalin e o Estado de Israel
Em um dado momento de seu livro,
Losurdo afirma que “o atraso na
realização do ideal [socialista/comunista/marxista] era explicado pelo permanente cerco capitalista”[55].
O que Losurdo não conta, por sua vez, são
as consequências da política externa de Stalin. Isto é, como a orientação
política e teórica dada pelo stalinismo aos partidos comunistas do mundo todo,
sem falar na dissolução da III Internacional em um acordo vergonhoso com os
líderes imperialistas Truman e Churchill ao longo da Segunda Guerra Mundial,
contribuíram para a manutenção deste “cerco capitalista”.
Losurdo recebe a gloriosa fama de ser
um crítico do liberalismo econômico, mas no seu livro não fala absolutamente
nada de como a política exterior stalinista foi decisiva para embelezá-lo e
sustenta-lo. Grita contra os absurdos cometidos pelo imperialismo ocidental –
em relação ao quê, não há absolutamente nada a se objetar –, mas cala
completamente frente aos conchavos vergonhosos de Stalin no desmonte (ou
tentativa de desmonte) de inúmeras revoluções mundo afora, como a chinesa,
iugoslava, grega, francesa, etc.
Losurdo
ignora, por exemplo, a crítica feita por um ex-stalinista, como o espanhol
Fernando Claudín, no seu monumental trabalho A crise do movimento comunista: “nessa
arte, velha como a história, de encobrir com os mais nobres ideais os atos mais
regressivos, cada um dos líderes das três grandes potências tinha sua própria
experiência – e a de Stalin não desmerecia em nada a dos seus eminentes
colegas. Imediatamente encontraram o que se chama uma ‘linguagem comum’. As
inevitáveis divergências surgidas entre eles não afetaram os princípios: os 3
estiveram sempre de acordo para exaltá-los no momento mesmo que os
espezinhavam. As divergências procediam da muito natural inclinação para levar
a melhor parte na nova distribuição do atlas mundial. Quando um deles
considerava que seus interesses eram menosprezados, então clamava aos céus
pelos princípios e acusava os outros de transgredi-los. Mas, quando se chegava
a um acordo equitativo, cada um avalizava com o seu prestígio frente aos
setores sociais envolvidos, as nobres intenções dos seus colegas. Nesse
sentido, o papel mais proeminente coube, sem dúvida, a Stalin. Seu crédito
imenso como personificação da Revolução de Outubro, do socialismo, entre as
massas trabalhadoras do mundo inteiro prestou um serviço inestimável aos
representantes do imperialismo na segunda grande crise mundial do sistema
capitalista. Wilson, Clemenaceau e Lloyd George não tiveram tanta sorte na
primeira. As intervenções públicas de Stalin durante a guerra, as versões que a
propaganda soviética dava das relações e acordos entre as três grandes
potências, contribuíram poderosamente para fomentar em milhões de homens, nas
forças avançadas da humanidade, a credulidade nas intenções democráticas e
libertadoras dos aliados capitalistas e imperialistas da URSS. A propaganda dos
partidos comunistas, salvo raras exceções, teve análogo resultado. E o mesmo se
pode dizer da sua política de alianças. Essa manipulação dos povos era condição
necessária para que a grande divisão das ‘esferas de influência’ entre o
capitalismo anglo-americano e a burocracia soviética, o toma-lá-dá-cá, de
interesses econômicos, políticos e estratégicos pudesse ser levado a cabo com a
maior docilidade possível das vítimas”[56].
E Claudín conclui: “Stalin afirmara repetidamente que existia uma coincidência essencial
entre os objetivos das três grandes potências. Em novembro de 1944, quando a
derrota da Alemanha era visível e se colocam em primeiro plano os problemas da
‘organização do mundo’ que sairá da guerra, Stalin formula a seguinte tese, que
serve de eixo a toda a estratégia do governo soviético e dos partidos
comunistas nesse momento crucial: ‘na base da aliança da URSS com a
Grã-Bretanha e os EUA não estão motivos fortuitos e efêmeros, mas interesses
vitais e duradouros”[57].
Para Losurdo e os losurdistas, no
entanto, o “atraso da realização do ideal” era resultado do malévolo e
“permanente cerco capitalista”, omitindo, como sempre, todos estes “pequenos
detalhes” descritos por Claudín.
Querendo
nos demonstrar como Stalin entendia o trabalho “educativo e cultural” que
deveria ser realizado pelos órgãos do Estado soviético para desenvolver os “germes da economia nova, socialista, e de
reeducar os homens no espírito do socialismo”[58],
Losurdo cita o relatório apresentado ao XVIII Congresso do PCUS, realizado em
1939: “Agora, o dever fundamental do
nosso Estado, no interior do país, consiste num trabalho pacífico de organização
econômica, num trabalho cultural e educativo”[59].
Esta piada macabra é um escárnio contra
centenas de milhares de militantes comunistas assassinados pela burocracia
ávida de poder. Losurdo e os losurdistas ajudam a continuar colocando mordaça
na boca dos presos, torturados e fuzilados em nome de uma casta que tinha
interesses vitais e duradouros com o imperialismo anglo-americano.
O seu “espírito do socialismo”,
portanto, só pode ser o de um corpo de funcionários e trabalhadores
“acostumados a obedecer os chefes”, sob pena de sofrerem com o cassetete
policial, a prisão ou o suplício pelas armas. O seu “trabalho pacífico de
organização” é a supressão das liberdades individuais mínimas; inclusive
aquelas previstas nos estatutos do partido único, eliminadas em nome dos
interesses econômicos internos e externos da burocracia dirigente.
Em síntese: trata-se da paz de
cemitérios e do espírito de submissão mais vergonhoso e infame! É isto que
Losurdo e os losurdistas querem nos vender como “realismo” e a depuração dos
“dogmas e escolásticas vazias das lições de Marx e Engels”.
Querendo absolver o “pai dos povos” das
terríveis acusações que sofria de anti-semitismo, Losurdo aponta que a URSS
apoia com força o sionismo e o Estado de Israel: “Stalin desempenha um papel de primeiro plano e talvez até decisivo.
Sem ele ‘dificilmente o Estado judeu teria visto a luz na Palestina’”.
Desejo que não era exclusivo do “guia genial dos povos”, mas, também, de Truman
e dos EUA, que tinham “acordo também em
apoiar a fundação do Estado de Israel”[60].
A preocupação, como sempre, não era em
relação à opressão dos povos judaicos – e nem foi essa a verdadeira intenção do
reacionário movimento sionista –, mas com a correlação de forças internacionais
e a estabilidade interna e externa da URSS. Somente Losurdo, que faleceu em
2018 e que, portanto, conheceu bem o papel cumprido pelo Estado de Israel no
Oriente Médio e em relação aos palestinos[61],
pode achar que este argumento representa algo progressista! O mais
impressionante, contudo, é que ele não causa constrangimento algum aos
losurdistas...
IX – A questão da família, da
educação e as distorções “realistas” do losurdismo
O show de horror e de mentiras não tem
fim! Depois de assassinar memórias, mentir descaradamente e fazer troça dos
assassinados justamente por... defender o internacionalismo proletário, Losurdo
falsifica novamente a história – seguindo a prática do seu mestre – nos
“esclarecendo” que “há muito mais a saber” sobre a era de Stalin, como por
exemplo: “a conquista por parte das
mulheres da ‘igualdade jurídica com os homens, acompanhada de uma melhoria no
status social’, que inclui pensões, assistência médica, proteção das grávidas,
abonos familiares’; ‘o considerável desenvolvimento da educação e da esfera
intelectual no seu conjunto’, com a extensão ‘da rede das bibliotecas e das
salas de leitura’ e a difusão ‘do gosto das artes, da poesia’”[62].
E este sonho idílico, tal como as
prisões e campos de concentrações stalinistas que, segundo Losurdo, seriam
quase colônias de férias, é coroado com a enfática afirmação de que todas essas
benesses em relação às mulheres e à família são processos que “começam a decolar exatamente nos anos de
Stalin”[63].
Esta mentira não é apenas um desserviço
para a posteridade do movimento da classe trabalhadora, mas fonte de revolta e
indignação para quem conhece o mínimo da história da URSS. Ora, companheiros,
as medidas progressivas de equiparação jurídica e social entre mulheres e
homens se deu exatamente durante os
primeiros anos da revolução, sob o governo dos comissários do povo, liderado
por Lenin e Trotski – isto é, a época que Losurdo afirma ser ainda possível um
“poder carismático”.
Wilhelm Reich, um dos grandes
pensadores da psicologia de massas, escreveu no seu importante trabalho A revolução sexual, escrito em 1936 –
isto é, durante o retrocesso representado pela ascensão do stalinismo no seio
da URSS –, o oposto do que afirma Losurdo: “A
importância que a revolução social atribuiu à sexual é evidente pelo fato de
que já em 19 e 20 de dezembro de 1917 foram baixados por Lenin dois decretos
que em sua natureza revogaram todas as disposições até então existentes. Um
decreto era intitulado: ‘Da dissolução do matrimônio’; seu conteúdo não era tão
inequívoco como o seu título. O segundo decreto chamava-se: ‘Do casamento
civil, dos filhos e do registro do estado civil’. Ambas as leis privavam o
marido do direito de chefia na família, davam à mulher autodeterminação
integral material e também sexual, declaravam natural que uma mulher pudesse
determinar livremente nome, domicílio e cidadania. Com a simples legislação,
como qualquer mente esclarecida sabia, foi assegurada externamente a liberdade de desenvolvimento a um
processo que ainda estava para se realizar, dando-lhe certa forma ideológica. O
fato de que a lei revolucionária exprimia inequivocamente a revogação do poder
patriarcal se compreendia por si mesmo. Com a retirada do poder da classe até
então dominante e do seu aparelho estatal de repressão, também caiu
naturalmente o poder do pai sobre os membros da família, bem como a
representação do Estado dentro da
família compulsória como célula de formação estrutural da sociedade de classes”[64].
Ao contrário do que afirma Losurdo e
seus seguidores, a legislação e os direitos das mulheres não “começaram a
decolar na época de Stalin”, mas, como analisa detalhadamente Reich, sofreram,
precisamente, os piores ataques e retrocessos em comparação com estas leis do
período 1917-1924.
Analisando
um artigo do anticomunista Louis Fischer, por volta de 1935, Reich replicou-o,
descrevendo que “as moças aprendem que o
aborto é prejudicial, perigoso e indesejável. Seria muito melhor ter os filhos.
O filme A vida privada de Peter Winogradow faz propaganda do casamento convencional. ‘Um filme’ escreve Fischer,
‘que no setor mais conservador de certos Estados conservadores encontraria
apoio’. O Pravda diz: ‘no país dos sovietes a família é uma coisa importante e
séria’. (...) Um editorial do Pravda
em 1935 propalava que um mau pai de família não podia ser um bom cidadão
soviético. ‘Tal coisa era inimaginável no ano de 1923’, escreve Fischer. ‘Na
URSS, apenas o amor puro e orgulhoso e grande pode e deve ser unicamente motivo
para casamento’. ‘Quem ainda hoje afirma que é um costume pequeno-burguês
interessar-se pela família pertence, ele próprio, a categoria mais baixa dos
pequeno-burgueses’. Uma proibição de abortar o primeiro filho acabaria com
muito namorico e promiscuidade, fomentando o ‘matrimônio sério’. Nos últimos
meses se multiplicaram nos jornais os artigos de professores e médicos nos
quais se falava dos grandes prejuízos causados ao organismo pelo aborto.
‘Quando a imprensa troveja diariamente contra o aborto, quando essa propaganda
é acompanhada de louvores de casamento festivas; quando se acentua a santidade
do dever conjugal e se decreta que mães que geram trigêmeos e quadrigêmeos
recebem prêmios especiais, quando se escrevem artigos sobre mulheres que nunca
recorreram ao aborto e quando se elogia oficialmente uma professora de aldeia
de baixo salário, mãe de 4 filhos, porque não recusara um quinto, ‘apesar de
ser difícil alimentar todos eles’ – pensa-se em Mussolini’, escreve Fischer. ‘Obteve-se
certeza interna e externa e por isso pensa-se que a limitação de natalidade pode
ser reduzida... Também se lutará contra ‘relações de verão’ baratas. Moças que
resistem a instâncias masculinas não mais serão consideradas ‘conservadoras’
ou mesmo ‘contrarrevolucionárias’; ‘não
deverá ser a satisfação de necessidades físicas, mas o amor a base da família’.
Este breve extrato mostra que hoje a ideologia sexual do círculo de liderança importante na URSS não é mais diferente
da ideologia do círculo de liderança de qualquer Estado. O regresso à moral
sexualmente negativa não pode ser contestado. Permanece apenas duvidoso como se
comportará a juventude afrouxada, que já teve liberdade uma vez, e, diante
disso, como se comportará o operariado industrial. A ideologia oficial da URSS
também se fez sentir na Europa Ocidental”[65].
Na sequência, Reich analisa um dos
principais órgãos do Partido Comunista Francês, o L’Humanité, de 31 de outubro de 1935, já sob orientação direta do
stalinismo. Nele podemos ler: “Para a
salvação da família! (...) A
malignidade do capitalismo moribundo, a indecência para a qual dá o exemplo, o
egoísmo que desenvolve, a necessidade que cria, a crise que gera, as doenças
sociais que propaga, os abortos secretos que provoca, destroem a família. Os
comunistas querem lutar para defender a família francesa. Romperam de uma vez
por todas com a tradição pequeno-burguesa – individualista e anarquista – que
torna a esterilização um ideal. Querem assumir o poder de um país forte e de
uma raça numerosa. A URSS mostra o caminho. Mas é necessário tomar-se
imediatamente medidas para salvar a raça. (...) Uma enquete que examinará os meios para salvar a família francesa,
dando-se à maternidade, à infância, dando-se à família rica em filhos o lugar e
os privilégios que devem ter no país”[66].
Por fim, Reich conclui que “assim pensa um comunista que concorre com
os nazistas na teoria racial e na defesa da família de muitos filhos. Um artigo
assim num órgão socialista é uma catástrofe. A concorrência é impossível: os
fascistas entendem esse negócio muito melhor. Crítica arrogante e erudição,
aqui, seria apenas o sinal seguro de completa incompreensão da situação. Em
primeiro lugar, necessita-se ter respeito pela magnitude, complexidade e
diversidade das tarefas. É a pressuposição mais importante da seriedade e
coragem necessárias que tais processos históricos exigem. Na revolução cultural
russa, a ‘nova vida’ surgiu irreconhecida e incompreendida da velha, mas a
velha freava. O velho modo de pensar e de sentir insinuou-se no novo. O novo primeiro
libertou-se do velho, lutou por se manifestar claramente, não conseguiu e assim
regrediu. Devemos procurar compreender de que maneira o velho sufocou o novo,
para evitarmos que isso aconteça novamente”[67].
Aqui, contudo, Losurdo e os seus
discípulos não estão interessados em entender o novo, nem evitar que os erros
se repitam. Ao contrário: “facilitam” a tarefa socialista pintando de “socialistas”
elementos bem notórios da velha sociedade. Jones Manoel, como vimos, afirma que
esse tipo de crítica é como querer “encontrar o reino celestial” ou classificar
tudo como “socialismo traído”.
Para os losurdistas, no geral, há
socialismo em “tudo”, como em uma família tradicional burguesa que condena o
aborto, nos interesses “vitais e duradouros” com os EUA e a Grã-Bretanha, na
retomada das distinções entre oficiais e soldados, bem como no
reestabelecimento do uso das dragonas como forma de distinção dentro do
Exército Vermelho, abolidas em 1917; na reintrodução do culto da Igreja
Ortodoxa russa[68];
na condenação forjada e no assassinato de gerações inteiras de revolucionários
e, é claro, na aceitação natural de bilionários filiados ao Partido Comunista
Chinês, que falam em “socialismo com características chinesas”, ao invés de um
“neoliberalismo com características chinesas”.
Que
sujeitos chatos somos nós que não achamos nada engraçado, nem “socialismo”
nisso tudo! Essa chatice só pode
fazer de nós militantes “messiânicos”; e este brilhante “realismo”, ao
contrário, só pode nos ajudar a construir o “socialismo”.
Stalin como um ícone da Igreja Ortodoxa? |
Já
sobre a “renovação e o desenvolvimento” da intelectualidade, da educação, das
bibliotecas, da literatura e da poesia cabe um breve esclarecimento.
Segundo Deutscher, Stalin promoveu “uma campanha feroz contra os ‘niveladores’”,
colocando-se à testa dos novos ricos e estimulando-lhes os apetites. “Ridicularizou os frágeis escrúpulos que os
inibiam e glorificou a nova desigualdade como a realização do socialismo.
Tomava forma uma nova organização hierárquica, com grande diversidade de graus,
postos, títulos e prerrogativas bem distintas entre si, tendo cada degrau da
comprida escada da autoridade marcado com uma precisão bizarra. Essa reversão
da ‘democracia proletária’ para o novo autoritarismo foi mais acentuada nas
forças armadas, onde os postos e distinções da época czarista voltaram a ser
adotados. Havia, portanto, nas celebrações do ‘advento do socialismo’ o saber
de algo como uma Restauração. O sistema educacional e a vida espiritual do país
foram profundamente afetados. As reformas progressistas das escolas, realizadas
na década de 1920, e que despertaram a admiração de muitos educadores
estrangeiros, foram abolidas como aberrações ultra-esquerdistas e um
tradicionalismo cada vez mais nacionalista, bem como uma disciplina paternalista
e obsoleta, invadiram as salas de aula e da conferência, sufocando o espírito
da nova geração. A tutela burocrática sobre a ciência, literatura e as artes
tornou-se insuportavelmente tirânica. Em todos os campos, o Estado exercia um
poder absoluto, de forma provocadora, glorificando-se como o guardião supremo
da sociedade e o depositário autocrático do poder exaltado como o Pai dos
Povos, fonte de toda a sabedoria, benfeitor da humanidade e demiurgo do
socialismo”[69].
Stalin
e a sua burocracia “renovaram” a vida intelectual com o cassetete policial para
quem ousasse escrever algo que não fosse tolerado pela burocracia; “renovou” as
bibliotecas retirando volumes inteiros das obras de Trotski, de Freud e de
tantos outros nomes importantes do pensamento internacional – tinha medo de
deixar que a massa pensasse por si mesma, porque a burocracia queria, de fato,
“funcionários acostumados a obedecer e sem personalidade”. A literatura e a
poesia foram empobrecidos com a escola artificial do “realismo socialista”, que
é uma nulidade quase completa, cuja receita de bolo e as “tendências
artísticas” e “poéticas” já estavam prontas nos manuais da KGB.
Embora
fosse verdade que Marx tenha previsto a persistência da desigualdade na
primeira fase do socialismo, não lhe ocorreu que essa desigualdade fosse
aumentando, aos saltos, como nos governos de Stalin ou do PCC. A sociedade
soviética estava apenas a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo.
Podia avançar ou recuar; e somente avançaria na medida em que superasse a
desigualdade e criasse cada vez mais autoconfiança emocional, pessoal e
coletiva através de formas de governos com efetivos canais populares e de
autogestão. Se a desigualdade social aumentasse, o poder se concentrasse cada
vez mais em poucas mãos e os seres humanos seguissem dependentes e apáticos, o
socialismo recuaria.
Para
Losurdo e os seus discípulos parece que a “construção socialista” encontra-se exatamente na segunda opção; isto é, no
recuo.
X – Algumas conclusões
Quando comecei a militar pelo
socialismo, lá pelos idos dos anos 2000, era comum ouvir da militância do PCdoB
e PCB que “os trotskistas sempre rachavam em pequenas seitas”, contrapostas à
imagem falsa da “unidade salutar” dos partidos stalinistas. Nos casos mais
extremos, como o da UJS (a juventude do PCdoB) nos teatros dos congressos da
UNE, se fazia menção debochada à picaretada com que Trotski havia sido
assassinado.
Ou
seja: uma militância juvenil era “educada” politicamente para sentir orgulho de
um monolitismo cego e de uma ação traiçoeira, que perseguia e eliminava
opositores, golpeando-os pelas costas. Seria cômico se não fosse trágico! Que
espécie de “socialismo” poderia advir deste tipo de “educação” política?
Como sabemos, a história do stalinismo
não está livre dos rachas, divisões e disputas. Pelo contrário: não só
ocorreram, como seguem acontecendo; feitas, sobretudo, através do já conhecido
método brutal, desleal e mafioso. Por exemplo: nos dias de hoje nem todos os
stalinistas concordam com Losurdo, embora se orgulhem de sua “coragem” em
defender o “guia genial dos povos”. Há, em contraposição, muitos saudosos de um
“grande líder” que querem o retorno pleno ao que foi a URSS – e entendem tudo
isso como “socialismo”! (o que só pode fazer a grande mídia burguesa e seus
intelectuais sorrirem e agradecer) – ou, ainda, aqueles que entendem o que se
passa na China e, consequentemente, condenam o capitalismo chinês.
O mais engraçado nisso tudo, porém, é
que PCB e PCdoB estão hoje totalmente pautados pelo identitarismo[70] e,
no entanto, não percebem nenhuma contradição com o que defendeu o stalinismo.
A
URSS foi um grande laboratório sociológico, econômico, político, psicológico e
humano para testarmos premissas e teorias acerca de novas formas de
sociedade alternativas ao capitalismo; isto é, formas de experiências para uma
sociedade socialista. O pensamento burguês só pode olhá-la pelo prisma
negativo, ressaltando apenas os problemas, os crimes, os desvios autoritários –
como se o capitalismo fosse o depositário de toda a bondade e positividade do
mundo.
Nós, integrantes da classe
trabalhadora, devemos olhar as experiências socialistas com profundo apreço e
reconhecimento, ainda que sempre de forma
crítica! Sobretudo chamando as coisas
pelo seu próprio nome. Se as observarmos bem e extrairmos delas
honestamente todas as lições possíveis, estaremos em melhores condições para
edificarmos uma nova sociedade socialista no futuro, mais próspera, democrática
e humana. Para isso, no entanto, é fundamental que a gente faça exatamente
isso: extraia honestamente desta
grandiosa experiência todas as lições possíveis!
Não é isso que faz Losurdo e os
losurdistas. Eles reafirmam os desvios, condenam os críticos, realçam medidas
autoritárias procurando confundi-las com a “ditadura do proletariado”; ignoram
o pavoroso espírito de rebanho que se
formou e se consolidou embaixo da asa do “pai dos povos”, Josef Stalin; ressaltando
isso como “realismo”, isto é, como “o único socialismo possível” naquele
contexto.
O
stalinismo é a interpretação teórica do marxismo sem um pingo de humanidade,
baseado num empirismo grosseiro e bárbaro; misturando rudimentos de marxismo
com o despotismo asiático arraigado na mentalidade russa e chinesa de séculos. Esta
“visão” do marxismo perdeu totalmente a sua humanidade – ou no linguajar de
Che, a ternura –, escondendo-se atrás
de desculpas como “realizar um governo realista”, “únicas medidas possíveis”,
“quem critica – independentemente da qualidade
da crítica – é um traidor contrarrevolucionário”. Seguir aprofundando o
stalinismo, tal como querem Losurdo e os losurdistas, é seguir aprofundando um “marxismo” sem humanidade, acrítico, fomentador de
maiores e piores espíritos de rebanho,
que em nada podem redundar no socialismo e na concretização da famosa máxima
marxista de que “a libertação da classe trabalhadora deverá ser obra da própria
classe trabalhadora”.
No
stalinismo os líderes são ressaltados em detrimento da massa – é assim que
entendem o “socialismo”. Não há preocupação em fomentar independência de classe
no seu sentido mais amplo e verdadeiro: na promoção e no reconhecimento das boas iniciativas da massa (sempre vistas
como ameaçadoras e como quebra da ortodoxia). Tal concepção “teórica” só pode
reforçar a preponderância do egotismo sobreposto à coletividade, gerando um
desequilíbrio permanente nesta dialética; sem procurar insistentemente novas e
melhores formas de representação democrática, que combata o espírito de
resignação e acomodação da massa nos períodos de calmaria – que são sempre os
mais longos –; isto é, o seu espírito de
rebanho e de submissão, presente na psicologia das massas, dado que foi
introjetado e cultivado por milênios nas mais diferentes formas, sobrevivendo
no inconsciente coletivo.
Na
refletida e sóbria análise feita por Isaac Deutscher sobre a experiência
soviética, temos um retrato o mais fidedigno possível de Trotski, Stalin,
Lenin e tantos outros personagens marcantes desta epopeia da história
contemporânea mundial, gravada a ferro e fogo no grande coração da classe
trabalhadora. A “biografia” de Losurdo, em contraposição, querendo
exclusivamente reabilitar Stalin, não representa apenas um retrocesso em
comparação à trilogia de Deutscher, mas uma perigosa apologia dos erros,
deixando a porta aberta para que todos eles sejam cometidos novamente.
O seu método “científico” é muito
semelhante ao de Olavo de Carvalho, só que com uma roupagem de “esquerda” e
“marxista-leninista”. Para poder sustentar as mentiras, falsificações e
trapaças stalinistas, precisa, inevitavelmente, recorrer aos mesmos métodos.
Não desfaz nenhuma “lenda negra”, mas cria outra muito pior. Enquanto Olavo de
Carvalho necessita distorcer grotescamente a realidade, apelando para métodos
de manipulação da psicologia de massas, sem o quê, seria impossível vender as
atrocidades, crimes, mentiras e invasões militares do imperialismo
estadunidense como “democracia”; Losurdo, por sua vez, necessita embelezar a
tirania, o assassinato, a trapaça, a perfídia, a calúnia grosseira para
vendê-las como “socialismo”.
As chamadas “autocríticas” dos partidos
e movimentos stalinistas nunca ocorrem. São sempre superficiais e mais
reafirmam sua postura do que realmente reconhecem os seus graves e sérios
problemas. Losurdo criou um novo monstro teórico, cuja finalidade é,
vendendo-se como “realista”, defender o Estado chinês e o seu PC como “bastiões
do socialismo”. E como ambos são, na realidade, bastiões do stalinismo, nada
melhor do que absolver dos seus crimes e das trágicas derrotas do passado não
só a malfadada teoria do “socialismo em um só país”, mas os seus idealizadores,
que são recanonizados por Losurdo e cia. Tal teoria é um deserto árido de
ideias – um empirismo grosseiro – que busca sustentar uma prática de
capitalismo de Estado de um sutil
dragão imperialista, cujos “bilionários comunistas” colocam as garrinhas de
fora através do velho método chinês de “comer quieto”. Seguindo por este
caminho continuaremos a nos afastar do socialismo, simplesmente perpetuando o capitalismo
em estado de avançada “barbárie-civilizada”.
Por tudo isso, vale relembrar Trotski
no que ele tem de melhor: “o
estabelecimento prático de uma sociedade socialista pode ser feito não por
essas medidas humilhantes de um capitalismo atrasado, a que o governo soviético
está recorrendo, mas a métodos mais dignos de uma humanidade libertada – e
acima de tudo, não se fará sob o chicote da burocracia. Pois esse chicote mesmo
é o legado mais repulsivo do velho mundo. Terá de ser feito em pedaços e
queimado numa fogueira pública antes que possamos falar de socialismo sem nos
envergonharmos”[71].
Eis o resumo da tragédia: Domenico
Losurdo e os losurdistas querem não só reabilitar o chicote, mas continuar
endeusando-o. Por essas e por outras que largos extratos da classe trabalhadora
não pode nem ouvir falar de socialismo atualmente, aprofundando a falta de
perspectiva da política revolucionária, já que qualquer menção às experiências
“socialistas” do passado, graças ao tacão do stalinismo, muitas vezes nos
lançam numa teia de vergonha e embaraço.
Em síntese: o socialismo não pode ser imposto pela fraude, pelo engano ou pelo culto de líderes que aterrorizam, reprimem e humilham a massa.
Referências
[1]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008.
[2]
JABBOUR, Elias & GABRIELE, Alberto. China – socialismo do século XXI.
Boitempo editorial, São Paulo, 2021 (página 19).
[3]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/05/a-ascensao-mundial-da-china.html
[4]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/08/a-crise-do-movimento-comunista-ainda.html
[5]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 118).
[6]
Ver: https://blogdaboitempo.com.br/2021/10/21/o-marxismo-e-a-controversia-sobre-a-china-nota-sobre-o-debate-entre-elias-jabbour-e-maurilio-botelho/
(grifos nossos).
[7]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/quem-teme-frustracao-nao-pode-fazer-uma.html
; e também: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/02/a-luta-entre-o-movimento-makhnovista-e.html
[8]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 127).
[9]
MAESTRI, Mário. Domenico Losurdo, um farsante na terra dos papagaios. FCM
editora, Porto Alegre, 2021.
[10]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/socialismo-com-caracteristicas-chinesas.html
[11]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização
brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (página 333).
[12]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 127).
[13]
Idem (página 84).
[14]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização
brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (página 54).
[15]
Idem (página 94).
[16]
Idem.
[17]
Idem (página 95).
[18]
Idem.
[19]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/11/bolsonarismo-e-peste-emocional.html
[20]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 87).
[21]
Idem (página 79).
[22]
TROTSKI, Leon. Marxismo e terrorismo. Publicações LBI, São Paulo, 2007 (página
20). Ver também: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/07/os-demonios-de-dostoievski-prenunciou-o.html
[23]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 111).
[24]
Idem.
[25]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/10/reflexoes-sobre-transicao-socialista.html
[26]
TROTSKI, Leon. A revolução traída. Editora Sundermann, São Paulo, 2005 (página
110).
[27]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização
brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (página 130).
[28]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 257).
[29]
Idem (página 85).
[30]
Idem (página 288).
[31]
TROTSKI, Leon. Os processos de Moscou. Publicações LBI (páginas 102 e 103).
[32]
Idem (páginas 135 e 136).
[33] I
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 85).
[34]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização
brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (páginas 375 e 376).
[35]
Idem (página 391).
[36]
Idem (página 393).
[37]
Idem (página 431).
[38]
BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. Editora Sundermann, São Paulo, 2014
(página 418).
[39]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 108).
[40]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2022/03/o-discurso-de-putin-e-politica.html
[41]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/a-nova-guerra-fria-cultural-e-sutil.html
[42]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 141).
[43]
MAESTRI, Mário. Domenico Losurdo, um farsante na terra dos papagaios. FCM, Porto
Alegre, 2021 (páginas 30 e 31). Ver também: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60383194
[44]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 70).
[45]
Idem.
[46]
Idem.
[47]
Idem.
[48]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/socialismo-com-caracteristicas-chinesas.html
[49]
TROTSKI, Leon. A revolução traída. Editora Sundermann, São Paulo, 2005 (página
236).
[50]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (páginas 127 e 128).
[51]
Idem (página 128).
[52]
LUXEMBURGO, Rosa. Novamente a massa e o líder in Rosa Luxemburgo – textos escolhidos (1899-1914). Editora Unesp,
São Paulo, 2011 (página 419).
[53]
TROTSKI, Leon. A revolução traída. Editora Sundermann, São Paulo, 2005 (página
113).
[54]
Ver dois textos importantes, cuja temática é a busca por explicações baseadas
na psicologia de massas (o primeiro baseia-se numa polêmica com um histórico
militante da esquerda, de codinome João de Barro): https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/09/reich-trotsky-e-os-delirios-da-esquerda.html
; e: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/12/o-irracionalismo-das-massas.html
[55] LOSURDO,
Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de
Janeiro, 2008 (página 69).
[56] CLAUDÍN,
Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo,
2013 (páginas 464 e 465).
[57]
Idem (páginas 465 e 466) – para uma visão mais ou menos completa da grande obra
de Claudín, ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/08/a-crise-do-movimento-comunista-ainda.html
[58]
LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan,
Rio de Janeiro, 2008 (página 69).
[59]
Idem.
[60]
Idem (páginas 228 e 229).
[61]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2014/07/o-genocidio-na-faixa-de-gaza-desperta-o.html
[62] LOSURDO,
Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de
Janeiro, 2008 (página 148).
[63]
Idem.
[64]
REICH, Wilhelm. A revolução sexual. Zahar editores, Rio de Janeiro, 1976
(página 198).
[65]
Idem (páginas 201 e 211).
[66] Idem (página 212).
[67]
Idem (páginas 212 e 213).
[68]
BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. Editora Sundermann, São Paulo, 2014
(página 417).
[69]
DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização
brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (páginas 311 e 312).
[70]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/02/os-meritos-e-os-perigos-do-identitarismo.html
[71]
Citação de Trotski in DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940.
Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (página 335).
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