terça-feira, 2 de agosto de 2022

Stalin, de Domenico Losurdo: “história crítica” ou criação de uma nova lenda?


Em memória dos milhares de militantes trotskistas
assassinados por ordem da burocracia de Stalin


         A tentativa de reabilitar a figura de Stalin por parte de intelectuais de “esquerda”, procurando não só absolvê-lo das graves acusações de que é objeto, mas tentar demonstrar que se trata de uma grande “injustiça política”, fruto de “incompreensões históricas” de “inimigos implacáveis”, não pode deixar de ser vista com preocupação. Todos os fatos históricos podem e devem ser revisitados e repassados a limpo periodicamente, porém, devemos ser extremamente cuidadosos e pesar cada argumento, comparando-os com a prática e os fatos, que são sempre o melhor critério para chegarmos o mais próximo da verdade.

         Uma das tentativas de reabilitação de Stalin que se insere neste quadro preocupante foi, sem dúvida, a biografia escrita por Domenico Losurdo[1], tendo aceitação quase instantânea – e perigosamente acrítica – por grande parte da militância dos PCs, organizações de esquerda e, em particular, por figuras públicas como o economista sinólogo Elias Jabbour; o youtuber Jones Manoel; e o cantor Caetano Veloso. A partir destas personalidades, que recebem grande impulsionamento de editoras, como a Boitempo, e de mídias “alternativas” de internet, a influência de Losurdo se estende por boa parte da vanguarda brasileira. A “nova onda” stalinista iniciada por Losurdo e seus discípulos já foi denominada como neostalinismo e tem relação direta com a ascensão mundial da China, conforme podemos ver no livro de Elias Jabbour e Alberto Gabriele, China – o socialismo do século XXI, publicado pela Boitempo: “A China e o ‘socialismo de mercado’ deveriam ser tratados como uma formação econômico-social nova. (...) A negação das primeiras experiências socialistas é quase regra – que pensadores como Domenico Losurdo trataram de combater”[2].

         Eis aí a matriz de onde partimos para compreender o fenômeno neostalinista.

 


Com o livro de Losurdo, de repente nos vemos de volta à década de 1930! Um novo culto à personalidade do “guia genial dos povos” renasce sutilmente escondido sob uma análise aparentemente crítica, procurando atacar a utilização da propaganda ideológica ocidental – em particular estadunidense – contra a União Soviética (URSS) e Stalin, bem como as graves acusações das oposições soviéticas.

Tal interesse em reabilitar a imagem de Stalin teria importância para reorientar a luta revolucionária da classe trabalhadora neste início de século ou se trataria de um novo estorvo? Para início de conversa, é importante dizer que o fenômeno neostalinista não teria força se não encontrasse uma nova base na realidade. A espinha dorsal deste “súbito” interesse em reabilitar a imagem de Stalin diz respeito à ascensão mundial da China como potência mundial[3]. Ora, quem dirige o país nesta luta contra os EUA pela hegemonia sobre o globo é o Partido Comunista Chinês (PCC), de clara influência stalinista. Losurdo, Elias Jabbour e Jones Manoel são grandes defensores deste suposto “socialismo chinês”; logo, buscam amparo no mestre, que lhes abriu o caminho e lhes forneceu uma bizarra munição argumentativa. Para sustentar a posição de que na China há “socialismo” precisam inevitavelmente reabilitar a imagem de Stalin, que é a base e a matriz política do PCC.

 

         Nota importante: se compararmos o livro de Losurdo à biografia de Trotski escrita por Isaac Deutscher – a trilogia dos “profetas” –, o livro de Fernando Claudín, A crise do movimento comunista[4], e o volumoso estudo de Pierre Broué, O Partido Bolchevique, teremos um contraste flagrante entre duas imagens de Stalin muito diferentes. Qual seria a verdadeira?

         Caberia uma leitura atenta destas obras alternativas para confrontá-las com o livro de Losurdo e fazer um denominador comum. Trabalho nada fácil e um tanto repugnante, mas indispensável. A partir dele, logo se veria qual delas está mais próximo de uma “criação lendária” e apologética.

 

         Nota importante II: o historiador Mario Maestri já realizou um importante trabalho de desmascaramento das distorções e falsificações de Losurdo no seu livro Domenico Losurdo: um farsante na terra dos papagaios. Ali está demonstrando como o italiano assassina memórias seguindo o método de seu mestre, Stalin.

         Aqui neste artigo o que se pretende é criticar o livro de Losurdo por um ponto de vista que julgamos não ter sido abordado ainda – mesmo correndo o risco de cair em algumas repetições –, contribuindo, assim, para o resgate da verdade histórica. As distorções feitas por Losurdo são tantas e os estragos ideológicos tamanhos, que desfazê-las é tarefa para um conjunto de historiadores.

 

I – Que tipo de “realismo” é defendido pelo neostalinismo losurdista?

         A principal tese que Losurdo apresenta na sua obra para defender Stalin das “acusações injustas” de que sofre, diz respeito à “falta de realismo dos seus críticos”. Segundo o neostalinista, todas estas acusações “esquecem” que Stalin estava à frente da URSS e que, portanto, todas as suas medidas autoritárias e repressivas seriam uma necessidade incontornável das demandas de governo em uma realidade de permanentes sabotagens. Para Losurdo, não compreender as medidas de Stalin desta forma seria um “purismo infantil”, “ingênuo”, um romantismo “tão sem senso de realidade”, quase um “messianismo anarquista”. Em última análise, trataria-se de simples “evasão e fuga da realidade”.

         Trocando em miúdos, isso significa dizer que as críticas de oposições, como a trotskista, seriam uma utopia descabida, já que “o novo grupo dirigente [da URSS, no caso, a burocracia stalinista] é chamado a depurar aquelas ideias da forma ingênua que elas tendem a assumir nos momentos de entusiasmo”[5]. Isto é, o grupo político de Stalin estaria não só no “caminho correto”, como estaria prestando um favor para a revolução e o povo russo graças ao seu realismo!

         O mesmo tipo de argumento sofístico é apresentado por Jones Manoel a partir de uma intervenção em um dos debates sobre o caráter da China contemporânea, se ela é capitalista ou socialista, colocando-se, obviamente, do lado daqueles que entendem que existe “socialismo” na China: “concordo com o debatedor [Elias Jabbour] sobre a necessidade de uma compreensão histórica e realista do que é socialismo. Se pensarmos no socialismo como um ‘reino celestial’, o fim de tudo – fim da família, do Estado, do direito, de toda divisão social do trabalho, do aparato público, do dinheiro, da religião, da nação e afins –, realmente, nunca encontraríamos o socialismo no mundo. Tudo até hoje existente poderia ser classificado como ‘socialismo traído’ ou ‘capitalismo de Estado’”[6].

         Aqui o aprendiz faz jus ao mestre. Tudo o que contradiz a sua interpretação política é tratado como “irreal”, “reino celestial” e outras preciosidades do gênero. Em nome de reconhecer o “socialismo” em práticas autoritárias e, no mínimo, estranhas ao socialismo – seja do ponto de vista teórico ou prático – se leva os argumentos do oponente ao absurdo, esgaçando-os, distorcendo-os e tornando-os infantis até o limiar do ridículo, com a finalidade de reforçar capciosamente os seus como única política “realista” e “possível”.

 

         De fato existe um problema sério de messianismo e purismo na esquerda em geral, independentemente da vertente política (este blog já analisou este mesmo tema em diversos artigos[7]) – seja uma corrente de viés trotskista, stalinista, anarquista ou outras. Seguidamente vemos e ouvimos falas que não deixam margem a dúvida quanto a isso, dado que nossa cultura está baseada em milênios de religiões messiânicas. Porém, no caso de Losurdo e Jones Manoel nota-se a evidente tentativa de legitimar suas premissas teóricas e reforçar suas posições que apenas justificam as ações autoritárias do stalinismo na URSS e do PCC na China. Fazem troça de argumentos muito bem fundamentados de Trotski contra a burocracia stalinista; e de muitos argumentos irrefutáveis no debate sobre o caráter do regime chinês – ainda que ambas posições incorram em erros e equívocos em determinados momentos; embora, no geral, nenhum de caráter “purista” ou “infantil” (a não ser, é claro, que a gente os descontextualize completamente).

         O que Losurdo, Manoel e Jabbour desejam é apoiar o governo de Stalin, assim como sustentar o regime chinês como o “socialismo possível”. Mas como entram em flagrante contradição com práticas que contradizem princípios elementares do marxismo e do socialismo, não encontrando base, portanto, nem na teoria, nem na realidade, forçam a barra para venderem-se como “realistas” apoiando meramente o que existe, enquanto que os oponentes seriam românticos, utópicos e sonhadores que não “querem ver socialismo em nada, a não ser quando todo o seu programa estiver plenamente realizado”. Tal impostura é um disparate, uma caricatura grotesca de “realismo”, um verdadeiro empobrecimento das possibilidades da teoria ao que existe, bem como a sua triste legitimação. Ao fim e ao cabo, reproduzem o velho empirismo grosseiro propagado pela burocracia stalinista, baseado num espontaneísmo rasteiro escondido sob lemas supostamente “marxistas” e “leninistas”.

         Este “realismo” é uma vulgarização das tarefas teóricas do marxismo; um rebaixamento à reles aceitação de uma prática repleta de erros, trapaças, intimidações e falsificações escandalosas. Para Losurdo, Stalin empenha-se “numa luta difícil contra a utopia abstrata”[8]. O pior nisso tudo é que enquanto critica as oposições – em especial a trotskista – como “utópicas”, “messiânicas” e “descoladas da realidade”, a burocracia stalinista copiava secretamente todo o seu programa político e econômico “utópicos” vendendo-o como realização autêntica do governo soviético. Losurdo é um homem bastante instruído; ele conhecia bem a história da URSS – optou, portanto, por prosseguir com um discurso mistificador e caluniador, só que em uma nova realidade.

        

Em seu livro Marxismo Ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer, Losurdo reforça à crítica ao messianismo utópico e romântico presente no movimento comunista, imputando tal pecado às heranças proféticas de influência hebraica, elegendo Trotski como o principal representante deste campo[9]. O marxismo realista seria representado por Stalin, Mao Zedong e Deng Xiaoping – o seu expoente máximo! Todo o “discurso” marxista de superação do Estado e das classes sociais seria uma utopia inglória e o verdadeiro realismo estaria em desenvolver as forças produtivas, bem ao espírito do “socialismo com características chinesas” proposto por Deng Xiaoping[10].

Aqui cabe uma nota importante: muitos militantes brasileiros, de fato, tendem a reproduzir um purismo abstrato semelhante a determinados tipos de religiosidade. Neste ponto há grãos de verdade nos argumentos de Losurdo, o que dá uma aparência de força aos seus argumentos. Justamente por isso, precisam ser cuidadosamente analisados e refletidos. Um norte teórico – como é a teoria marxista – não pode tornar-se um dogma religioso. Seguidamente vemos um rechaço político por parte de organizações e partidos inteiros a debater ou sequer considerar experiências fundamentais da luta de classes, mesmo que do ponto de vista teórico não concordemos com elas. Há nisso tudo uma clara visão antidialética que não quer ver o lado negativo e sombrio de todas as experiências – mesmo as exitosas como a revolução de 1917 –, ressaltando apenas a pureza positiva quando encontra uma identificação plena com a teoria. Esta conduta, a que poderíamos chamar de “infantilismo” – e que já foi sabidamente analisada por Lenin (este sim um exemplo de verdadeiro realismo revolucionário) –, atravanca o pensamento de “esquerda” nas suas mais diferentes esferas, realidades e posições.

Contudo, Losurdo e seus discípulos, dando-se conta desta contradição, aproveitam-se para passar de contrabando toda a política oportunista e reacionária do stalinismo e do PCC. Por acaso ao erigir o Exército Vermelho e vencer a invasão dos exércitos estrangeiros Trotski foi utópico ou romântico? O seu grande prestígio não teria advindo desta e outras experiências, como quando presidiu o soviete de Petrogrado e, junto com Lenin, dirigiu a revolução de outubro de 1917? Também seria messianismo e romantismo utópico os programas de planificação econômica propostos pela oposição trotskista, que foram rechaçados e debochados pela burocracia stalinista inicialmente, mas copiados por debaixo dos panos, quase que integralmente, quando da profunda crise que se abriu no final da década de 1920?

Aqui, neste ponto, vemos, claramente, que o discurso da “falta de realismo” de Trotski e do suposto “marxismo ocidental” não passa de uma tentativa de combater as críticas trotskistas e de muitos outros pensadores ao stalinismo, tentando tornar honradas e aceitáveis as suas inúmeras trapaças, perseguições, torturas e assassinatos, vendo isso não só como louvável, mas como passos “realistas na construção do socialismo”. Que perigo, caros camaradas!

 

Para além destes problemas, há outras questões não menos importantes acerca da conjuntura atual que merecem ser ponderadas na crítica ao neostalinismo: a maioria das posições políticas de correntes que se reivindicam “trotskistas” (como LIT-PSTU, CST-Psol, MES-Psol, MRT-FT, MRS, dentre outras) apresentam graves problemas de interpretação da realidade, colocando-se, muitas vezes, à direita das correntes de orientação “stalinista”. Por exemplo: reparem a posição destas correntes em relação ao “Fora Dilma”, à primavera árabe, à guerra da Síria, às manifestações em Cuba em 2021, às intervenções imperialistas na Ucrânia em 2014 e à guerra patrocinada pela OTAN agora em 2022.

Em todos estes episódios PSTU, CST, MES, MRS e cia. situaram-se à direita do stalinismo, conferindo-lhe um aparente ar “respeitável”, enquanto as supostas posições “trotskistas” foram catastróficas (sendo-lhes generoso). Assim, para quem acompanha as polêmicas da vanguarda, muitas vezes parece que o stalinismo “tem razão” já que este “trotskismo” não passou e não passa na prova dos fatos.

Isaac Deutscher já tinha chamado a atenção para o fato de que após a morte de Trotski formaram-se “muitas igrejinhas dos trotskistas dos últimos dias”, cujo efeito “se fez sentir ainda mais amplamente na literatura de desilusão. (...) Alguns deles viviam de meras migalhas, e não as melhores, da rica mesa de Trotski e conseguiram uma reputação de originalidade servindo-as com seus molhos pessoais”[11].

Por fim, cabe ressaltar que o “trotskismo” pós-Trotski foi e vai de mal a pior. Sofrem de muita bajulação a dirigentes aparatistas e pouca ou nenhuma originalidade – isto é: sofrem de profundas infiltrações de “stalinismo”; dentre outras. Quase nada aprenderam com a história.

 

II – A distorção da crítica trotskista ao stalinismo: Trotski seria realmente um “terrorista” ou na falta de argumentos se requentam velhas calúnias?

         Como um teórico interessado em reabilitar a figura de Stalin a qualquer preço, Losurdo incorre, inevitavelmente, nos seus métodos: a distorção trapaceira, utilizada indiscriminadamente para justificar e sustentar uma prática empírica grosseira e divorciada das principais conclusões teóricas do marxismo, até a utilização de difamação e calúnia aberta, para descambarem para a falsificação e a omissão consciente. Tal como Stalin, Losurdo não pode olhar Trotski de frente, por isso o aborda de soslaio, requentando velhas calúnias e falsificações. Não é casual que todos os stalinistas continuem reproduzindo o velho método do mestre: foi assim que foram ensinados; assim necessitam agir!

         A distorção da realidade para tentar justificar seus argumentos beira um desvario: para Losurdo, as críticas da Oposição de Esquerda liderada por Trotski seriam uma “guerra civil”, a qual ela contabiliza como sendo parte de uma tríade de “guerras civis” na história soviética. A primeira foi a invasão dos exércitos brancos patrocinados pelas grandes potências estrangeiras, entre 1919-1921; a segunda, uma “guerra” desencadeada pela Oposição de Esquerda ao governo de Stalin; e a terceira, a coletivização forçada das terras dos kulaks.

         Para explicar tamanho disparate, Losurdo afirma que Trotski haveria teorizado “regras da conspiração”, levando à “infiltração, desinformação e apelos à insurreição”[12], quando na realidade respeitou religiosamente todos os estatutos partidários. Ou seja, na verdade, Losurdo quer, assim como Stalin queria, uma militância silenciosa e submissa, acrítica e amorfa, que não critique absolutamente nada, uma vez que isso é tratado como “desinformação” – a este tipo de postura de rebanho, ambos chamam de “disciplina comunista”. Tal conduta crítica só atrapalharia o trabalho do “guia genial dos povos”, que tudo saberia e solucionaria, bastando-lhe tempo e confiança cega.

Como “infiltração”, Losurdo compreende o fato de existirem militantes que simpatizam com as posições políticas e teóricas oposicionistas e que já estavam nos quadros partidários desde antes de 1917. Sem vergonha alguma ele afirma: “Na URSS da década de 1930, vimos a oposição infiltrar-se nos mais altos níveis do aparelho de repressão: seria muito estranho se, depois de ter conseguido esse resultado, ela se limitasse a cumprir as ordens de Stalin!”[13].

Eis tudo! O tipo de “marxismo realista” que Losurdo propõe é a simples aceitação e submissão às ordens do “guia genial dos povos”. Qualquer outra postura é vista como “infiltração”, “sabotagem” ou “apelo à insurreição”. Sobre as inúmeras orientações oportunistas ou sectárias dadas pelo stalinismo, tais como giros de 180 graus em diversos países – como na China, na Espanha e no Brasil –, dissolução da III Internacional e teorias bizarras, como a do “socialismo em um só país”, deveriam ser aceitas sem nenhum questionamento. O stalinismo (bem como seus defensores) é inimigo das ideias, pois não tem competência para combatê-las sem recorrer ao porrete policial. É o direito permanente a este porrete que Losurdo defende e embeleza como a construção “realista” do “socialismo”.

Ao contrário desta distorção grosseira e lamentável, Isaac Deutscher traz inúmeros relatos em sua biografia “profética” sobre como Trotski nunca praticou nenhum ato de terrorismo ou sabotagem contra a URSS e foi seu defensor intransigente, inclusive perante membros da Oposição de Esquerda que ocupavam cargos na GPU e lhe procuraram no exílio, como foi o caso de Blumkin, citado e distorcido por Losurdo. Segundo Deutscher, Trotski “jamais oscilaria em sua insistência de que a URSS era um Estado dos trabalhadores e declarou ser a ‘defesa incondicional da URSS’ contra os seus inimigos burgueses obrigação elementar de todos os membros da Oposição e, repetidamente, repudiou amigos e correligionários que relutavam em aceitar essa obrigação”[14].

No caso específico de Blumkin, Trotski “dissuadiu-o firmemente. Por mais difícil que fosse a situação, ele deveria continuar trabalhando lealmente para a GPU. A Oposição estava empenhada em defender o Estado dos trabalhadores e nenhum oposicionista deveria afastar-se de qualquer posto oficial no qual pudesse agir no interesse do Estado em geral”[15].

Blumkin pediu, então, que Trotski lhe desse uma mensagem ou uma instrução para os oposicionistas na Rússia. Também ofereceu-se para ajudar a estabelecer contatos e organizar a remessa de boletins da oposição através da fronteira. A isso, Trotski respondeu lhe dando “uma mensagem, cuja cópia foi conservada em The Archives. O documento nada contém que pudesse, por qualquer esforço de imaginação, ser considerado como conspiratorial”[16]. Trotski “nada tinha a dizer aos seus seguidores, em particular, que não tivesse dito ou não pudesse dizer-lhes em público”[17] (ao contrário da burocracia stalinista, que funcionava através da “diplomacia secreta”).

Apesar disso, “pouco depois do seu retorno a Moscou, Blumkin foi preso, acusado de traição e executado”[18] simplesmente por ter visitado Trotski no exílio e voltado para a Rússia com estas “orientações perigosíssimas”. É este tipo de ação que Losurdo defende; esta é a “relação de camaradagem” que ele e seus seguidores entendem como corretas entre as “situações” e “oposições” no campo da construção do socialismo. É assim que pretendem superar o capitalismo.

 

         Losurdo, sem muitos argumentos e bastante comprometido na sua relação com a verdade histórica, requenta os velhos argumentos de “terrorismo” contra Trotski justamente baseado neste episódio envolvendo Blumkin. Nosso autor, preocupado em desfazer as histórias acríticas e as “lendas negras” contra Stalin, lança mão de doses de paranoia que são sempre muito eficazes para esconder a falta de argumentos[19]. Ele afirma que “Blumkin participa de uma conspiração dirigida por Trotski”[20]; além de afirmar, solenemente – como se estivesse “descobrindo uma América –, que “os contatos de Trotski com Blumkin não nasceram de um encontro fortuito, mas de uma ligação organizada com a URSS”[21]. Fato que, como vimos, foi admitido pelo próprio Trotski publicamente.

         Essas elucubrações sombrias, feitas com a finalidade de justificar as falsificações e os fuzilamentos, que, ao fim e ao cabo, visavam calar as críticas às políticas bizarras do stalinismo, pretendem despertar a desconfiança doentia contra a oposição liderada por Trotski. Esta calúnia requentada pretende criar um clima de “traição”, de “crime grave”, o que serviria para justificar a repressão, o exílio e o fuzilamento de todos opositores, indistintamente – tudo, supostamente, no interesse da “construção do socialismo” (a burguesia mundial só pode dar gargalhadas e agradecer). Losurdo recorre a um subterfúgio para dissimular e dar um caráter de “veracidade” a sua calúnia: setores da classe operária promoveriam suas reivindicações mediante o recurso do “terrorismo econômico”, o que exigiria “medidas enérgicas” do “guia genial dos povos”.

         Já vimos que Deutscher chama a atenção para o fato de que Trotski “nada tinha a dizer aos seus seguidores, em particular, que não tivesse dito ou não pudesse dizer-lhes em público”. Para além disso, Trotski escreveu muitos artigos condenando o método terrorista, como este, de polêmica com o stalinismo: “Segundo a acusação, beirando a ignorância e a indolência mental, os ‘trotskistas’ estão decididos a liquidar o grupo dominante para se abrir caminho ao poder. (...) A pergunta é: podia a Oposição, educada pela enorme experiência do movimento revolucionário russo, crer por um só instante que o terror é capaz de aproximá-la do poder? A história russa, a teoria marxista e a psicologia política responde: não, não podia!”[22].

         Reparem o nível da argumentação do acusador, trazida como “novidade”, e da resposta do acusado, escrita há mais de 80 anos!

 

         Não satisfeito com o seu Frankenstein argumentativo e “teórico”, Losurdo apela para outra falsificação ao tentar igualar Trotski a Kautski e a Kruschev. Diz que na formulação orgânica do livro de Trotski, A revolução traída de 1937 – uma verdadeira obra-prima do pensamento marxista –, nota-se “como as acusações fundamentais dessa requisitória estão de algum modo presentes já no livro de Kautski de 1918”[23]. Ou seja, Losurdo quer dizer que Trotski estaria junto com Kautski condenando a Nova Política Econômica (NEP), desenvolvida a partir de 1921, como um estigma “persistente à propriedade privada da terra e a NEP como um abandono culpado da via socialista”[24] – fato que lhe é muito importante, uma vez que é o caminho adotado na China, o seu “baluarte realista” da “construção do socialismo”.

         Além de falsificar a posição de Trotski durante os debates da NEP, que nunca “estigmatizaram a propriedade privada da terra” quando do seu lançamento, Losurdo esconde que, na realidade, Trotski foi um de seus principais defensores e explanadores[25]. Ao contrário de Stalin, que permaneceu em silêncio durante todo esse período, bem como prestou um apoio envergonhado ao governo provisório de fevereiro até abril de 1917, colocando-se, posteriormente, à sombra de Lenin – como sempre, sem nenhuma autocrítica. Esta posição de Stalin, muito bem descrita por Trotski nos primeiros capítulos de a História da Revolução Russa, demonstra quem realmente presta tributos a Kautski.

         O caso da comparação de Trotski com Kruschev é ainda mais triste e oportunista. Losurdo quer nos fazer crer que as “denúncias dos crimes de Stalin” apresentadas ao XX Congresso do PCUS foram uma revelação de uma espécie de “trotskismo enrustido” do seu primeiro sucessor. E este engodo teórico é criado em cima do simples fato de que muitas das acusações de Kruschev confirmaram as denúncias de Trotski, feitas cerca de 20 anos antes: os crimes de Stálin nos “Processos de Moscou”, a supressão das liberdades civis, o culto à personalidade, etc. Na verdade, Kruschev “denunciou” os crimes acobertados por toda uma rede burocrática de funcionários a serviço de Stálin – dentre os quais estavam os seus sucessores diretos, como o próprio Kruschev, escolhido e tolerado pelo próprio Stalin. Losurdo e os seus discípulos dão a entender que o ato de Kruschev de supostamente quebrar o monolitismo stalinista – fato que não ocorreu realmente – apresentando-lhe críticas, seria a quebra do próprio “socialismo”. Logo, condenam qualquer tipo de autocrítica.

 

         Outra distorção escandalosa da crítica de Trotski ao stalinismo é aquela que afirma se tratar de simples “psicologismo”: ou seja, Trotski tentaria pessoalizar tudo em Stalin, ignorando a estrutura da sociedade. Este talvez seja o argumento mais cínico de Losurdo, pois ele sabe bem que Trotski nunca pessoalizou sua crítica em Stalin, mas justamente em uma burocracia – isto é, numa rede de funcionários, que se autoprotegem em nome da manutenção da “ordem”.

         Losurdo entende e cita apenas o que lhe convém do livro A revolução traída. Nele, podemos ler que “seria ingenuidade pensar que Stalin, desconhecido das massas, tivesse saído dos bastidores armados com um plano estratégico completo – não! Antes que ele próprio tivesse entrevisto o seu caminho, a burocracia já o tinha escolhido. Stalin apresentava-lhe todas as garantias desejáveis: o prestígio de um velho bolchevique, um caráter firme, uma visão estreita e uma indissolúvel ligação com as repartições públicas, fonte única da sua influência pessoal. Ele foi, no início, surpreendido pelo seu próprio êxito. Era a unânime aprovação de uma nova camada dirigente que procurava libertar-se tanto dos velhos princípios como do controle das massas e que tinha a necessidade de um árbitro seguro nos seus assuntos internos. Figura de segundo plano para as massas e para a revolução, Stalin revelou-se o chefe incontestado da burocracia termidoriana, o primeiro dos termidorianos[26].

         Após este trecho, que não deixa margem a dúvidas quanto a se tratar de uma estrutura social e não meramente pessoal, Trotski analisa a degeneração do partido bolchevique e o apodrecimento de sua composição interna. Frente a uma crítica tão bem construída, que demonstra cristalinamente o fosso entre a “teoria” stalinista e a teoria marxista, não há remédio senão recorrer a dois subterfúgios: a calúnia falsificadora e a acusação de que se sofre de “utopismo” e “romantismo”, enquanto se procura manter a boa reputação de “marxista-leninista”.

         No entanto, quem melhor elucida esta crítica trotskista, afastando qualquer sombra de “psicologismo” ou “individualização” em Stalin, é Isaac Deutscher na trilogia biográfica que Losurdo ignora: “...num partido único, enquanto os seus membros podem expressar-se livremente, os vários grupos e escolas de pensamento formam um sistema multipartidário disfarçado, incompatível com ele, também a facção única tendia a produzir, em suas próprias fileiras, reflexões mais ou menos imprecisas das facções e escolas de pensamento que acabara de reprimir. Stálin teve de excluir criptotrotskistas e criptobukarinistas dentre seus próprios seguidores. Teve de negar a todos eles as poucas liberdades que ainda restavam. Era agora a vez de descobrirem que, tendo privado todos os adversários da liberdade, também se haviam privado igualmente dela e que se haviam colocado à mercê de seu líder. Tendo proclamado [mentirosamente] que o partido devia ser monolítico, ou não seria bolchevique, o líder insistia agora em que a sua própria facção fosse monolítica ou não seria stalinista [isto sim, corretíssimo]. O stalinismo deixava de ser uma corrente de opinião ou a expressão de um grupo político – tornava-se o interesses pessoal de Stalin, sua vontade e capricho. (...) A personalização de todas as relações políticas afetava também a posição de Trotski. À medida que Stalin se tornava a única representação oficial e ortodoxa da revolução, Trotski tornava-se o seu único representante não-oficial e não-ortodoxo”[27].

         Trotski e Deutscher deixam claro que a burocratização da revolução não foi resultado da vontade de Stalin, mas expressão de um processo histórico. Para quem conhece o livro do fundador do marxismo russo, Plekhanov, O papel do indivíduo na história, sabe que Stalin foi uma peça da engrenagem que deu contornos específicos a todo este desenvolvimento estrutural, repletos de ódio vingativo e traços da mentalidade do mujique, mas que se não fosse ele, especificamente, a burocracia certamente haveria de encontrar outros candidatos ao seu cargo.

 

III – Os Processos de Moscou

         Há que se reconhecer que Losurdo é um intelectual erudito e com grande conhecimento, o que aumenta sobremaneira a sua responsabilidade sobre o que sustenta e escreve. Ele conhece citações e teorias de um amplo espectro, que vai de Nietzsche a Trotski; de Stalin à Churchill, passando pelos presidentes estadunidenses, Wilson e Roosevelt. Consegue demonstrar, em parte, o cinismo e a hipocrisia do discurso Ocidental e, em particular, do imperialismo estadunidense e inglês contra a URSS – embora tropece nas suas próprias hipocrisias e os seus discípulos não queiram ver tais tropeços.

         Contudo, as suas construções teóricas e literárias parecem, muitas vezes, com um Frankenstein, que se valem de uma elasticidade e de um contorcionismo oportunista muito grande e perigoso. É o preço a pagar por tentar defender e sustentar as construções barbaramente empiristas e grosseiras do stalinismo – realizadas, como disse Trotski, não com a pena de Lenin e Marx, mas com as botas da KGB. Para Losurdo, algumas vezes “convém citar Trotski”[28] – para contrapô-lo ao imperialismo Ocidental, por exemplo –, em outras, não! – sobretudo quando desmascara previamente a sua farsa teórica.

Cabe lembrar que na URSS de Stalin, a simples “heresia” da citação de Trotski significava a possibilidade real de fuzilamento! Mas talvez Losurdo não seja um stalinista tão ortodoxo assim, embora trabalhe para defender e sustentar a ortodoxia stalinista – e cite-o apenas quando “lhe convém”.

         Um dos casos em que “não convém” citar Trotski é o dos Processos de Moscou. Aqui, para Losurdo e seus discípulos, ele passa a ser não só inconveniente, como volta a ser um “terrorista, sabotador, traidor”, etc., cuja opinião só podemos desprezar. Vale, portanto, colocar uma nova mordaça sobre sua boca e uma pecha caluniadora de “terrorista”.

         Isso se dá dessa forma porque Trotski demonstra em diversos artigos a farsa da montagem de cada um dos “processos”, incluindo a formação de uma comissão mista internacional – a Comissão Dewey –, que termina por absolvê-lo de todas as acusações forjadas. A facção stalinista, para manter seu controle sobre o aparato estatal, é obrigada a lançar mão continuamente de monstruosos expurgos, como uma “queima de arquivo” ininterrupta, uma vez que um círculo próximo a Stalin ajudava a forjar provas contra os outros, tornando-se, portanto, uma ameaça em potencial contra si mesma. Era neste clima doentiamente paranoico que o stalinismo pretendia “construir o socialismo”. Tal como são as construções do neofascismo bolsonarista, as acusações dos processos foram pensadas para paralisar todo o pensamento crítico, tornando grotescamente inadequado qualquer argumento.

         A primeira geração a sofrer com a farsa dos Processos de Moscou foi, obviamente, a velha guarda bolchevique, que fez a revolução junto com Lenin e Trotski. Todo o circo armou-se com a finalidade de criar bodes expiatórios, cuja finalidade era fortalecer o poder stalinista, bem aos moldes do método de poder da velha monarquia russa.

         Desde a década de 1930, Trotski já havia desmascarado acusação por acusação, trazendo à tona a falsidade de cada uma delas. Losurdo, como bom stalinista, trata de recolocar no centro do debate as velhas acusações forjadas para desviar o foco do que realmente interessa e impossibilitar qualquer pensamento crítico, uma vez que, como demonstra o neofascismo trumpista e bolsonarista, a paranoia, uma vez desencadeada, torna estéril qualquer argumento.

Com este método paranoico, Losurdo justifica distorções grosseiras e falsificações inaceitáveis como uma “‘guerra civil preventiva’ desencadeada por Stalin contra aqueles que se organizam para derrubá-lo”[29]. E já que não há nenhuma prova real das acusações nos processos de Moscou, Losurdo apela para a seguinte figura histórica, que conta com grande “credibilidade”: “Churchill em pessoa avalizou indiretamente pelo menos os processos contra Tuckatchevski e outros líderes militares”[30].

         Já Trotski, lutando contra monstros dignos de um verdadeiro pesadelo, afirma que “todo o processo é apenas uma falsificação, em cada uma das declarações, em cada uma das réplicas; não existe nada de natural, de vivo ou de humano neste processo. Não contém nenhum elemento psicológico verdadeiro; é um processo de autômatos e não de pessoas. (...) Mas nesta loucura há um método. Para compreendê-lo é preciso rejeitar todos os critérios da psicologia humana individual. Os acusados não existem enquanto pessoas. Estavam arrasados antes do processo. São apenas escravos da GPU [KGB], que oferece um edificante espetáculo sobre o tema: ‘o trotskismo é a fonte de todo o mal’”[31].

Trotski apontou ainda que “quem tentar julgar os acontecimentos que se desenvolvem na Rússia enfrenta a seguinte alternativa: 1) ou todos os velhos revolucionários que dirigiram a luta contra o czarismo, construíram o partido bolchevique, fizeram a revolução de outubro, criaram o Estado Soviético e a Internacional Comunista eram todos eles, quase sem exceções, agentes dos estados capitalistas já naquela época ou em datas posteriores; ou 2) o governo soviético atual dirigido por Stalin cometeu os crimes mais odiosos da história da humanidade”[32].

Losurdo e os losurdistas enquadram-se, sem sombra de dúvidas, na primeira opção. Escondendo-se atrás de uma afirmação de um político que, segundo ele, deve possuir “grande honestidade intelectual” – sem demonstrar nenhum fato concreto de que não se trataram de acusações forjadas e bizarramente contraditórias – “os Processos de Moscou não foram um crime sem motivo e a sangue frio, mas a reação de Stalin durante uma aguda luta política”[33].

Eis tudo! E Losurdo, como não poderia deixar de ser, continua, tal como Stalin, sem apresentar uma única prova, a não ser interpretações políticas sobre os opositores. Se se justificam os Processos de Moscou tão levianamente como faz Losurdo e seus discípulos, se pode justificar qualquer outro crime. Diante de tais explicações, Maquiavel enrubesce!

 

Desde Oslo, onde estava exilado quando os processos começaram, Trotski telegrafou com diversas perguntas aos promotores e juízes, como, por exemplo: onde e quando tinha se encontrado com os sabotadores e terroristas que supostamente iriam voltar para a URSS com missões confiadas por ele. “Promotores e juízes – escreveu Deutscher no Profeta banido ignoraram as perguntas, sabendo perfeitamente bem que se os acusados tentassem responder, cairiam em contradições flagrantes e desacreditariam o espetáculo. Em 29 de janeiro, exatamente antes de terminado o julgamento, Trotski voltou a desafiar Stalin para que pedisse sua extradição. Num apelo à Liga das Nações, declarou-se pronto a submeter seu caso a uma Comissão de Terrorismo Político que a Liga deveria criar por iniciativa soviética. A Liga manteve silêncio e Stalin mais uma vez ignorou o desafio de extradição. Num outro esforço para enfrentar seus acusadores, Trotski declarou numa mensagem a uma reunião pública em Nova York: ‘estou pronto a comparecer perante uma Comissão de Inquérito pública e imparcial, com documentos, fatos e testemunhos e revelar a verdade até o fim. Declaro: se a Comissão resolver que sou culpado, em qualquer grau, de qualquer dos crimes que Stalin me imputa, comprometo-me antecipadamente a entregar-me aos carrascos da GPU. Faço essa declaração perante todo o mundo. Peço à imprensa que divulgue minha declaração pelos mais remotos cantos do nosso planeta. Mas se a Comissão determinar que os julgamentos de Moscou são uma farsa premeditada, não pedirei a nenhum dos meus acusadores que se coloque voluntariamente perante um pelotão de fuzilamento. Não, a desgraça eterna que lhes está reservada na memória das gerações humanas será suficiente para eles. Ouvem-me os acusadores no Kremlin? Lanço-lhes esse desafio no rosto e espero a resposta”[34].

Como fazem os covardes, a burocracia stalinista ignorou tais apelos, pois precisava justamente do silêncio e do isolamento de Trotski para fazer valer o seu show de horror. O que o nosso “profeta banido” não contava, por sua vez, era que na posteridade surgiriam tristes figuras como Losurdo e os losurdistas, cujo trabalho de sua vida seria reabilitar a burocracia stalinista da “vergonha perante as gerações futuras”.

 

Em pleno século XXI, grupos de whatsapp reproduzem como "novidade" as "confissões" sabidamente forjadas dos Processos de Moscou, cuja temática é prosseguir o culto à personalidade e atacar o "pecado trotskista".

Ainda segundo Deutscher, que tem sua clássica trilogia biográfica ignorada por Losurdo, a burocracia stalinista e a GPU não conseguiram apresentar “nenhuma prova real, nem mesmo um fato, dessa conspiração gigantesca – apenas confissões, confissões e mais confissões”[35]. Aqui é difícil não lembrar das inúmeras “delações premiadas” da farsesca Operação Lava-Jato, cujo objetivo era incriminar sem provas, partindo apenas de “confissões” arrancadas providencialmente dos envolvidos.

         Por fim, Deutscher aponta que “as pessoas que faziam as confissões não eram líderes ativos da Oposição, mas capituladores que durante anos se prostraram perante Stalin. Suas últimas confissões eram a consumação de uma longa série de rendições, a conclusão de uma ‘progressão geométrica de acusações falsas’. No curso de treze anos, Stalin, com a ajuda deles, erguera uma ‘torre de Babel’ de calúnias. Um ditador que usava o terror sem inibição e ‘podia comprar consciências como sacos de batatas’ era bem capaz de um feito semelhante. Mas o próprio Stalin estava aterrorizado pela torre de Babel, pois sabia que ela desabaria depois de aberta a primeira brecha em sua estrutura – e isso teria de ocorrer!”[36].

         Foi por isso que Stalin fechava acordo com um estrato próximo da burocracia, montava a farsa com a sua cumplicidade e, logo a seguir, era obrigado a “queimar arquivos”, acusando este estrato de “traição” ou de “trotskismo” para executá-lo, criando um clima permanente de terror, medo e paranoia. O que pode ter isso a ver com a “ditadura do proletariado”? Mesmo com a posterior queda da “torre de Babel” de calúnias e mentiras, foi assim que Stalin consolidou o seu poder na URSS, usando o trotskismo como bode expiatório e ameaçando com a pena de morte qualquer contestação a este poder.

         É isto que Losurdo e os losurdistas entendem como “construção realista do socialismo”!

 

         Eis o resumo dos Processos de Moscou, sintetizado de forma dramática por Deutscher: “... nada era mais perigoso, até mesmo para um exilado, do que atrair sobre si a suspeita de ter qualquer simpatia ou piedade pelos trotskistas. O terror do período (...) equivaleu a um genocídio político: destruiu todas as espécies de bolcheviques anti-stalinistas. Durante os quinze anos restantes do domínio de Stalin, não restou na sociedade soviética, nem mesmo nas prisões e campos de concentração, nenhum grupo capaz de desafiá-lo. Não foi permitida a sobrevivência de nenhum centro de pensamento político independente. Um vazio tremendo se abriu na consciência nacional, sua memória coletiva foi despedaçada, a continuidade de suas tradições revolucionárias foi interrompida e destruída a sua capacidade de formar e cristalizar noções não-conformistas. A União Soviética ficou finalmente, sem qualquer alternativa ao stalinismo – e não apenas na política prática, mas também nos processos mentais ocultos. (...) Enquanto os julgamentos de Moscou centralizavam as atenções atônitas do mundo, os grandes massacres nos campos de concentração passavam quase despercebidos”[37].

         E Losurdo nos diz no seu livro para não nos perdermos na imagem criada do “monstro humano”, nem para levarmos o debate para o “campo moral”. O que sobra depois disso tudo?

 

IV – A vitória sobre o nazismo como o indulto providencial

         Losurdo sustenta toda a estrutura argumentativa de seu livro na vitória da URSS sobre o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, que seria fruto exclusivo da genialidade da política do “grande líder”. Isso, supostamente, daria um salvo conduto a Stalin para todos os seus erros, problemas e crimes. Ignora cinicamente a estrutura pregressa erigida pelo Conselho dos Comissários do Povo – tendo Lenin e Trotski à frente –, o Exército Vermelho, a vitória na “guerra civil”, os planos econômicos copiados disfarçadamente da oposição, bem como suas orientações políticas, seriam “mera casualidade”.

         O realista, o estrategista, o maravilhoso Stalin teria preparado quase que solitariamente toda a vitória sobre o nazismo, sofrendo calado com as terríveis e maldosas críticas que recebia antes e depois da invasão nazista – seja dos “bandidos” trotskistas, seja dos mal agradecidos kruschevistas. Para isso, Losurdo “ignora” toda a política da III Internacional, de orientação expressa de Moscou, já hegemonizada pelo stalinismo; bem como as terríveis calúnias contra Trotski, que desde muito advertiu sobre os perigos da ascensão nazi-fascista, recebidas sempre como um ataque à URSS e não como uma advertência que se demonstrou absolutamente correta.

         Nada disso impediu que a burocracia stalinista caluniasse Trotski como “agente do fascismo”, desde a época dos Processos de Moscou até... hoje! E este arremedo de argumentação é a espinha dorsal de Losurdo para reabilitar e absolver o “pai dos povos”.

 

         Alguns importantes trabalhos eliminam qualquer dúvida frente a posição de Trotski e de Stalin nestes episódios dramáticos da luta de classes internacional: o primeiro que cabe destacar é Revolução e contrarrevolução na Alemanha, onde Trotski expõe sua análise da conjuntura e uma política para enfrentar a ascensão do nazi-fascismo; outro é o documento dos militantes da oposição trotskista que ficaram conhecidos como “os 24 de Verkhneuralsk”, presos políticos do stalinismo, cujo título é A guinada fascista na Alemanha. Tal documento, traduzido recentemente ao português, está disponível no livro de Mario Maestri, Domenico Losurdo, um farsante na terra dos papagaios, e demonstra insofismavelmente o papel cúmplice do stalinismo na ascensão do nazi-fascismo na Alemanha. Nesta lista também não poderiam faltar dois grandes livros de Wilhelm Reich, como Psicologia de massas do fascismo e A revolução sexual – ambos escritos no auge da ascensão nazi-fascista e stalinista.

         São leituras indispensáveis para quem busca, de fato, construir o socialismo... e a verdade histórica!

 

V – O regime de Stalin foi uma readaptação do czarismo ao século XX, revestido com um discurso socialista

         Como vimos antes, Trotski se perguntou no livro A revolução traída “por que Stalin venceu?”, dando o ponta pé inicial a esta questão e encontrando importantes respostas. Mas, como não poderia deixar de ser, não pôde responder tudo. Novos estudos, novas ciências e novos pensamentos se lançam na busca por respostas. E, como se pode ver, responde-la não é uma tarefa fácil, nem diletante, mas uma necessidade para entendermos os problemas da edificação do comunismo, visando superar os erros – e os crimes – das experiências socialistas do século XX.

         Às respostas de Trotski podemos agregar algumas contribuições: Stalin venceu porque se adaptou consciente e exitosamente às forças conservadoras daquela sociedade. Tais forças, como sabemos, permanecem mesmo após um processo revolucionário, dado que possuem raízes muito profundas. Isto é, o stalinismo consolidou-se como regime porque conseguiu adaptar o discurso “revolucionário” a este conservadorismo intrínseco, que buscava guarida antes e depois da tormenta, dando uma perspectiva de desenvolvimento, de poder e de vida a todo um corpo de funcionários e, infelizmente também, a centenas de milhares de trabalhadores comuns, de consciência atrasada, que estavam habituados ao espírito de rebanho disseminado e organizado pelo czarismo através dos séculos e que, naquela nova realidade desencadeada pela revolução de 1917, não sabiam muito bem onde se localizar; chegando aos casos mais extremos de indivíduos que eram desejosos por retornar à antiga autoridade secular exterior, em quem confiavam e ansiavam direta ou indiretamente, por medo da liberdade e/ou desamparo infantil, apesar de terem abraçado momentaneamente o discurso revolucionário bolchevique.

         Portanto, a engenharia política de Stalin baseou-se na utilização da fraseologia e das estruturas políticas e econômicas criadas pela revolução de outubro para reedificar a antiga estrutura czarista sob novas bases, disfarçada agora em uma nova roupagem. Foi daí que conseguiu extrair o seu apoio popular contra a oposição trotskista – caso contrário, é acreditar que toda a massa de trabalhadores e funcionários foi simplesmente “enganada e manipulada por uma direção traidora e cruel”.

         O historiador Pierre Broué aponta que “Stalin se esforça em despertar o patriotismo ancestral recorrendo à ideologia do velho passado russo, ao nacionalismo, à religião, à tradição, ao militarismo, ao culto aos antepassados. Para a alegria dos escritores reacionários (como Michel Garder, que saúda ‘o abandono dos temas fora de moda do internacionalismo proletário e da luta de classes’, substituído por ‘uma linguagem que se dirige ao coração com violenta paixão e pelo amor irracional ao solo pátrio’), Stalin se torna o defensor da Rússia eterna”[38].

Os burocratas do governo, bem como largas parcelas de trabalhadores, podiam não entender o que se passava, mas intuíam o ressurgimento do velho poder autocrata russo, a quem souberam reconhecer quase que por instinto de sobrevivência; e a quem se submeteram também quase que por tendência natural, seja a de sobrevivência, seja a assimilada pelo espírito de rebanho cultivado através dos séculos. Vencer este espírito não é uma tarefa fácil; nem pode ser vencido pela simples mudança da base econômica, tal como preconiza o marxismo vulgar.

         Losurdo reconhece indiretamente esta volta à antiga legalidade: “Stalin era a encarnação do poder legal tradicional, que procurava tomar forma com dificuldade (...). Ademais, afirmando a factibilidade do socialismo também num só (grande) país, Stalin conferia nova dignidade e identidade à nação russa, que assim superava a crise espantosa”[39]. Losurdo, como bom promotor de confusões convenientes, evidentemente não tira as conclusões pertinentes das suas próprias premissas, pois está ocupado demais em demonstrar o “realismo” de Stalin contra as “utopias enfáticas” de Trotski e cia. Eis o “realismo” losurdista em sua essência: uma reconstrução subjacente do czarismo – o poder legal tradicional –, agora revestido por uma fraseologia socialista, revolucionária, isto é, “marxista-leninista”! Em nome desse “realismo” – na verdade uma reconstrução das estruturas czaristas, que lhe rendeu o apoio popular dos extratos mais atrasados –, Losurdo e os losurdistas autorizam qualquer meio – inclusive o massacre e o assassinato de companheiros de revolução – para atingir o fim de manter o poder – e finaliza chamando tudo isso de crítica “realista” e de “socialismo”!

         Podemos afirmar, seguramente, que Stalin modernizou a estrutura czarista, conferindo-lhe “nova dignidade e identidade”, e toda a sua política internacional imposta à III Internacional – omitida por Losurdo em seu livro – leva ao estabelecimento de uma nova correlação de forças no continente europeu, no qual Stalin buscou, insistentemente, estabilidade e equilíbrio para perpetuar o domínio russo das regiões do entorno do antigo império, agora sob novas condições históricas e direção, bem como estabeleceu nova correlação de forças no mundo. Para isso, usou os partidos comunistas e a III Internacional como moeda de troca da diplomacia grã-russa, disfarçando-a com uma fraseologia “revolucionária”. Muitos comunistas de renome compraram este embuste, que não era tão difícil de ser notado – e continuam o comprando ainda hoje! Stalin e a sua burocracia estavam tão imbuídos do espírito da velha estrutura czarista de poder que a sua teoria bizarra de “socialismo em um só país” só poderia transformar-se na “coexistência pacífica com o imperialismo” – tudo com a finalidade de garantir a estabilidade interna e externa da Rússia.

         Um processo semelhante se passa com Putin, que, herdando o aparato estatal soviético, atualizou as necessidades da grã-Rússia ao século XXI[40]. Não casualmente, os métodos se repetem: perseguição a opositores, censura, combate ao trotskismo e ao bolchevismo (lembrem-se da série da Netflix contra Trotski produzida por um canal de TV ligado a Putin[41]), auto-glorificação disfarçada, mandato vitalício; todos são típicos resquícios da história da monarquia russa. A própria aclamação de parte da população russa ao governo Putin se deve ao êxito dele nesta condução política e econômica (algo semelhante se passa na China, guardadas as devidas proporções e realidades). Agora, porém, sem precisar utilizar-se de uma retórica “socialista” e de forma mais ofensiva e propositiva do ponto de vista econômico a partir da aliança internacional com a China, Putin procura avançar sobre o mercado europeu. Portanto, Losurdo, os losurdistas, os novos e os velhos stalinistas, não defendem passos “realistas” para o socialismo ao defender o stalinismo, mas simplesmente justificaram e propagaram, no geral, os interesses geopolíticos históricos grão-russos.

         Tudo isso é reconhecido tacitamente pelo próprio Losurdo, no seguinte trecho do seu livro: “nem a Stalin nem a Trotski escapa o agravamento da situação internacional, mas as respostas dadas por eles a esses problemas são diferentes e contrapostas. Para o primeiro se trata de concentrar-se no desenvolvimento econômico e tecnológico da Rússia, remendando na medida do possível as divisões provocadas pela Revolução de Outubro e pela coletivização da zona rural e apresentando o partido comunista como guia da nação no seu conjunto. A condição de estabilidade e de equilíbrio assim conseguida no plano interno pode permitir ao mesmo tempo promover a política de alianças no plano internacional apta a garantir a segurança da URSS”[42].

         Em síntese: Stalin “conferiu maior dignidade e identidade” da Rússia ao resolver a crise política e econômica do país, que não poderia ser resolvida nos marcos do czarismo. Isto é, continuou cumprindo o papel do czarismo sob uma nova base e num novo contexto – com um discurso “marxista-leninista” –, o que possibilitou passar o bastão (sem querer ou por querer) para a atual burguesia russa. Em sua época, Stalin estava embaraçado por relações de propriedade que lhe dificultavam o trabalho, daí a necessidade de calar e executar opositores “utópicos” e “messiânicos”, enquanto reforçava o discurso e as práticas nacionalistas – aplaudidas com fervor por Losurdo e os losurdistas. Porém, estas relações de propriedade foram a forma encontrada pela burocracia stalinista para conseguir manter a Rússia livre de uma recolonização por parte do capitalismo europeu.

Hoje, Vladmir Putin, ainda que condene o período “comunista”, a “ditadura stalinista” e o “terror vermelho”, no íntimo, sem sombra de dúvidas, só pode prestar reverências ao “pai dos povos”. Talvez seja por isso que Losurdo tenha se tornado também um embelezador do “realismo” de Vladmir Putin – governo este que, segundo boas hipóteses, aparentemente se tornou um centro irradiador de neostalinismo[43].

Grande timoneiro ou grande organizador de derrotas?
 

VI – A lambança que Losurdo e Stalin fazem com o termo “comunismo”

         Losurdo faz terra arrasada do conceito de “comunismo”, tal como faria qualquer teórico da burguesia, classificando-o como uma “utopia enfática” ou um simples messianismo hebraico-cristão.

         Este blog já analisou o problema da construção do socialismo e do comunismo em diversos artigos, cabendo um destaque ao que faz uma análise da China – “Socialismo com características chinesas” ou capitalismo de Estado? – e a outro que busca atualizar o debate sobre a estratégia da revolução socialista no Brasil – Reflexões sobre a transição socialista.

         Há sim uma tendência ao “messianismo” presente em grande parte das correntes de “esquerda”, sejam elas trotskistas, stalinistas ou de qualquer outra vertente teórica. Contudo, em nome do suposto combate a esse “messianismo”, Losurdo justifica os crimes de Stalin e do PCC, apontando que era o “único caminho realista para a construção do socialismo”. Por isso, sua crítica ao “messianismo” é mentirosa e oportunista.

         Losurdo é conhecedor da teoria marxista e, por isso mesmo, faz uma lambança intencional enorme para poder sustentar suas teses. Por exemplo: afirma, citando Stalin, que o “socialismo é a passagem da sociedade na qual existe a ditadura do proletariado para a sociedade sem Estado”. Há um erro nesta afirmação se levarmos em consideração a perspectiva marxista, uma vez que a sociedade sem Estado é a fase superior da sociedade socialista, isto é, o comunismo. Aqui, porém, como cita Stalin, não reconhece nenhum “utopismo” ou “messianismo”.

         A confusão de conceitos é assustadora, preocupante e... providencial. Losurdo pergunta: “é válida, e até que ponto, a tese da extinção do Estado? O Estado será conservado por nós também no período de comunismo?”[44]. Ao que, traz a brilhante e curiosa resposta de Stalin: “Sim, será conservado, se não for liquidado o cerco capitalista, se não for eliminado o perigo de agressões armadas do exterior”[45].

         E em cima desta aberração, Losurdo conclui: “Portanto, a realização do comunismo na União Soviética ou num grupo de países comportaria a ausência definitiva da primeira função do Estado socialista (a salvaguarda do perigo de contrarrevolução no plano interno), mas não da segunda (a proteção contra a ameaça externa) que, na presença de poderosos países capitalistas, teria continuado a ser vital até no ‘período de comunismo’”[46].

         Isso não é apenas um deboche, é a tentativa de se fazer uma confusão erudita, misturando termos autoexcludentes para salvar a reputação do “pai dos povos”. Pra finalizar, Losurdo nos diz que Stalin fala assim porque “revela incertezas e contradições”, estimuladas pela necessidade de “mover-se com cautela num terreno minado, onde qualquer desvio com respeito à tese clássica da extinção do Estado o expunha à acusação de traição”[47].

         Por que o “guia genial dos povos”, o “infalível dirigente”, temeria ser acusado de traição? Ora, pela mesma razão que Losurdo: porque pretende manter uma reputação de “marxista-leninista”, que está em frontal contradição com tudo o que escreveu e fez para justificar a “nova” estabilidade da URSS. No passado, quem questionasse tais contradições teóricas era excomungado e fuzilado; no presente, é taxado de “utópico e messiânico”.

         Por excelência, a fase superior do socialismo, o comunismo, é entendida como o fim das classes sociais e a extinção do Estado. É algo muito distante, pois pressupõe expandir a revolução pelo mundo, erradicar as profundas desigualdades sociais, elevar o nível cultural e psicológico da maioria da população e gerar um novo equilíbrio social. É impossível de ser previsto ou decretado por um governo sozinho ou mesmo por uma “nova Constituição”, tal como queria Stalin.

         Como é possível termos um “cerco capitalista” e “possibilidades de agressões externas” em uma sociedade comunista? Isso significa que não atingimos “comunismo” algum e que o capitalismo subsiste e controla o mercado mundial ao ponto de nos criar um cerco! É impossível liquidar com as classes sociais e o Estado existindo uma ameaça capitalista exterior. O que Stalin e Losurdo deveriam reconhecer, se fossem honestos, é que a URSS nunca saiu do estágio mais elementar da ditadura do proletariado, sequer atingindo o “socialismo”, e resvalando permanentemente para “o degrau” do capitalismo de Estado – mais ou menos o que acontece na China contemporânea[48].

         Mas, ao contrário disso, Stalin – repetido por Losurdo – havia decretado através de sua “nova Constituição” que “desde que não há classes [na URSS], as barreiras entre elas estão desaparecendo...”[49]. Reparem a contradição: “não há classes”!, mas as barreiras entre elas – que supostamente não existem – estão desaparecendo. É esta sopa eclética, de vai-e-vens infindáveis e confusos, que Stalin obrigou o povo soviético e os partidos comunistas a engolir sob pena de fuzilamento; e que agora Losurdo requenta e nos vende como “realismo político” e “não-messiânico”. Isto é: a ação de jogar o marxismo na lama, cuspi-lo e destruí-lo, em nome de manter a sua própria fama de “marxista”.

         A transição do capitalismo para o comunismo exige sim medidas e ações realistas, feitas de acordo com as condições materiais e a correlação de forças. Embora vendam seus livros e ideias assim, não é isso que propõe Losurdo e seus discípulos. Eles pretendem encontrar “socialismo” e “comunismo” em medidas e ações abertamente capitalistas – tal como veem o “socialismo com características chinesas” –, misturando alhos com bugalhos e justificando a existência do que existe a partir de uma espantosa miséria teórica.

 

VII – Novamente o problema da massa e do líder: para construir o socialismo importam apenas os índices econômicos?

         Em seu livro, Losurdo afirma que “a ortodoxia [marxista] se revela uma barreira intransponível: o desaparecimento da economia mercantil é adiado para o momento em que ‘todos os meios de produção’ estiverem realmente coletivizados, com a superação, portanto, da própria propriedade cooperativa”[50]. E, na sequência, conclui que Trotski julgava sintetizar a lição de Marx, Engels e Lenin nesses termos: “‘a geração que conquistou o poder, a velha guarda, começa a liquidação do Estado; a geração seguinte levará a cabo esta tarefa’. Se este milagre não se verificava, de quem podia ser a culpa senão da traidora burocracia staliniana?”[51].

         Certamente houve erro de cálculo da parte de Trotski, ainda que possa se tratar de uma simples figura de linguagem, que é totalmente distorcida – como de praxe – por Losurdo. Para este, o culpado é o espírito-santo; ou, então, não há culpados, dado que se trata de um problema inevitável da realidade e que, se formos trata-lo de forma “realística”, não podemos fazer nada que o “guia genial dos povos” já não tenha feito.

         Tamanho disparate procura esconder, evidentemente, o desvio da rota. Depois que este desvio se aprofunda monstruosamente em direção ao restabelecimento de um “czarismo vermelho”, gerando um abismo, sobrevém as justificativas. Para a maioria da “esquerda” – seja de que vertente for – o socialismo será atingido exclusivamente através de medidas econômicas. Isto é: apenas quando tudo for estatizado, a economia mercantil desaparecer e as forças produtivas se desenvolverem. Todo o restante desta estranha equação é apagada. Falar, por exemplo, de psicologia de massas ou de superação do espírito de rebanho é “puro idealismo”, dado que isso será superado automaticamente a partir das medidas econômicas.

         Losurdo e seus discípulos relativizam as aberrações da realidade – o monopólio do poder pela burocracia stalinista, russa ou chinesa, as distorções provenientes do capitalismo de Estado chinês e poucos ou nenhum avanço nas questões civis, familiares e de emancipação individual e coletiva. Já o campo “revolucionário” (ou trotskista-mecanicista) detém-se nos planos econômicos, no fim da propriedade privada e na crítica à burocracia política (que são, sem dúvida, medidas imprescindíveis), mas não fala nada sobre psicologia de massas, nem interpreta a omissão das massas nas suas mínimas responsabilidades sociais.

         Cai de maduro que para se atingir o comunismo, de fato, não em palavras ocas ou maquiavelicamente distorcidas, é preciso que a classe trabalhadora emancipe-se do atual estágio de consciência, pautado por um obtuso espírito de rebanho. Se falamos em autogestão, em fim do Estado e das classes seriamente – e não como um resultado mecânico e automático da estatização econômica; ou se fazemos troça disso, como fazem os losurdistas afirmando se tratar de messianismo e de uma “utopia descabida” –, isto é, se falamos de atingir seriamente o comunismo, então precisamos nos preocupar, tal como se preocuparam Rosa Luxemburgo, Leon Trotski, Vladmir Lenin, Whilelm Reich e tantos outros, com a dialética do líder e das massas, apontando os problemas concretos e ideias para a sua superação.

         Uma geração faz a revolução com um partido revolucionário; mas nesta geração já deve estar presente – desde agora – a preocupação em se autodissolver, em criar condições psíquicas, materiais e sociais para que a massa passe a exercer efetivamente o poder, tendo iniciativa plena e não sendo uma mera reprodução de ecos que “vem de cima”. Isso é uma premissa básica do socialismo. Não haverá extinção das classes sociais e do Estado sem criar estas condições básicas para que a massa trabalhadora possa exercer o poder de fato (e se isso não for realmente possível, então tudo resume-se a uma “utopia descabida” e Losurdo passa a ter razão contra o marxismo “hebraico-cristão”).

         Mas não! O que vemos é, de um lado, setores da “esquerda” que se apegam a uma receita mecânica de construção do socialismo; contra outro setor – o losurdista – que trata como “realismo” a miséria do que existe, para justificar o seu apoio desavergonhado a ele. Como podemos afirmar que construímos o “socialismo” ou o “comunismo” se o poder concentra-se cada vez mais nas mãos da cúpula partidária – como foi o caso do stalinismo – ou na dos bilionários – como é o caso da China? Isto é: não basta apenas estatizar a economia, como querem os mecanicistas, ou desenvolver as forças produtivas, como quer o “realismo” losurdista. Não seria imprescindível medir também o desenvolvimento da sensibilidade humana nesta “nova sociedade”? Onde está a superação do irracionalismo das massas, a sua lenta e progressiva autoconfiança em si mesma e em suas autoiniciativas que comprovem a execução do poder de fato? Onde estão os canais populares de poder – ou, pelo menos, os seus esboços?

         Sobretudo precisamos sempre nos perguntar se a sociedade dita “socialista” da ex-URSS de Stalin e a China atual criaram ou criam condições para autogestão da massa trabalhadora, se ela se sente cada vez mais confiante e segura de si mesma, além de mais sensível ao sofrimento alheio. Ao contrário dos losurdistas, se respondemos seriamente a estas perguntas, podemos afirmar, seguramente, que a URSS de Stalin e a China do PCC não construíram e não constroem socialismo algum (que dirá o comunismo!). E sem construir ou sequer admitir a inexistência desses elementos fundamentais de poder proletário, certamente a superação das classes e a dissolução do Estado só podem se tornar “utopias descabidas”.

         Neste debate vale lembrar o artigo de Rosa Luxemburgo intitulado Novamente a massa e o líder, que já chamava a atenção para estas questões candentes: “A libertação da classe trabalhadora apenas pode ser obra da própria classe trabalhadora, diz o Manifesto Comunista – que por ‘classe trabalhadora’ não entende uma direção partidária de sete ou doze cabeças, mas a massa esclarecida do proletariado em pessoa. Cada passo à frente na luta de emancipação da classe trabalhadora precisa, ao mesmo tempo, significar uma autonomia intelectual crescente de sua massa, sua crescente autoatividade, autodeterminação e iniciativa. Mas como a capacidade de ação e a prontidão política da grande massa popular hão de desenvolver-se se a vanguarda dessa massa, aqueles círculos melhores e mais esclarecidos reunidos nas organizações partidárias socialistas, por sua vez, não desenvolvem iniciativa e autonomia como massa, mas sempre aguardam em posição de sentido até que venha um comando de cima? A disciplina e a coesão da ação constituem uma questão vital para movimentos de massa como o nosso. Mas a disciplina no sentido socialista distingue-se fundamentalmente da disciplina de um exército burguês. Aqui, ela reside na submissão irrefletida e sem vontade da massa de soldados ao comando de uma autoridade que expressa dada vontade alheia. A disciplina socialista, portanto, jamais pode significar que os 800 mil membros partidários organizados devem submeter-se à vontade às determinações de uma autoridade central, de uma direção partidária, mas, ao contrário, que todos os órgãos centrais do partido devem executar a vontade dos 800 mil socialistas organizados. O fator principal de um desenvolvimento normal da vida política no partido, a questão vital do socialismo, reside, assim, em que o pensamento político e a vontade da massa do partido permaneçam sempre despertos e ativos, que o habilitem em medida crescente para a atividade”[52].

         Dentro da lógica expressa por Rosa, vemos que não apenas o stalinismo soviético e chinês não constroem socialismo algum, como criam empecilhos concretos para que ele surja e se desenvolva. Disfarçando estes desvios graves – e evitar ser “acusado de traição” – Losurdo resume “realismo da construção socialista” ao simples desenvolvimento das forças produtivas.

 

O líder e a massa segundo o stalinismo e o seu herdeiro, o maoísmo

         Há, contudo, problemas intocados nesta relação líder e massas. O que fazer se grande parte da massa busca a guarida de um líder, um chefe ou um guru, e tem apresentado, pelo menos no Brasil, pouca disposição para iniciativas independentes e uma vontade apagada e inativa? Certamente ocorrem momentos de explosões espontâneas na luta de classes, mas estas têm sido facilmente canalizadas por direções demagógicas e tradicionalistas, como foi o próprio stalinismo, que conseguem reconectar os fios do passado a partir do espírito de rebanho. E isso se passa dessa forma não apenas pela ausência de um partido revolucionário, mas porque em momentos de crise a massa tem apresentado tendências para ir à direita e não à esquerda.

         Por exemplo, Rosa não procura explicar porque a massa tende a “aguardar em posição de sentido até que venha um comando de cima”. Este blog já debateu muitos problemas relacionados à psicologia de massas, aos quais, julgamos ser parte fundamental da degeneração da URSS e das experiências socialistas do século XX, que continuam inexploradas e sequer levadas em consideração por parte da esquerda “revolucionária”, que tem medo de cair em um “pecado idealista”.

         No livro A revolução traída, Trotski levanta questões pertinentes para a psicologia de massas que, por mais esclarecedoras que sejam objetivamente para demonstrar a ascensão do stalinismo, precisam de complemento subjetivo. Por exemplo, quando explica parte da degeneração do Partido Bolchevique e a ascensão de uma camada de burocratas: “Politicamente, tratava-se de reabsorver a vanguarda revolucionária em um material humano desprovido de experiência e de personalidade, mas em contrapartida, acostumado a obedecer os chefes”[53].

Por que mesmo com toda a experiência revolucionária persistiram aqueles indivíduos “acostumados a obedecer os chefes”? Por que estes elementos atrasados e “sem personalidade” triunfaram sobre a oposição de esquerda, que era o partido revolucionário dentro da URSS? O que a experiência na pesquisa e nas discussões acerca da psicologia de massas poderia contribuir para superar a postura de estar “acostumado a obedecer os chefes”? A repressão militar do stalinismo, o isolamento da URSS e o refluxo da revolução mundial explicam quase tudo, mas não tudo[54]. Aí está uma prova empírica de que não basta modificar apenas a base econômica para se mudar automaticamente as consciências e as posturas.

         Se ainda não temos respostas para tais fenômenos, certamente devemos levar em consideração toda a teoria acumulada no passado, mas, sobretudo, saber levar em consideração as novas descobertas no campo científico – como os debates acerca da psicologia de massas –, bem como no das experiências sociais. Não há velho problema que não necessite de novas compreensões.

         Esta estranha capacidade dos seres humanos de se adaptar “obedientemente aos chefes”, existente, sem dúvida, na psique humana e que reflete bem o que aqui chamamos de espírito de rebanho, perverteu até mesmo os sovietes, que eram organismos de autogestão, voltados a revogar qualquer mandato ou ordem que não representasse suas bases. Por que estas mesmas bases que derrubaram o czarismo em 1917 passaram a aceitar quase que passivamente as imposições e ordens vindas de cima pra baixo que lhe contrariavam abertamente – ou pelo menos contrariavam o espírito revolucionário de 1917?

         Indo mais além: como uma sociedade que sai de um processo revolucionário protagonizando uma das maiores revoluções da história torna-se propensa a vigiar e delatar qualquer “movimento suspeito”, beirando a paranoia e a psicose quase que generalizada? Seria apenas o “cansaço” e o refluxo das massas que explicaria a totalidade deste fenômeno de degeneração da revolução soviética ou haveria algo mais? No que consiste, precisamente, este “cansaço”?

         Podemos arriscar uma hipótese: a mentalidade dos novos funcionários e da “nova vanguarda” desprovida de experiência, que estavam “acostumadas a obedecer aos chefes”, certamente via nas propostas de Trotski e da oposição de esquerda, tacitamente, algo como uma ameaça que lhes tirava da zona de conforto, que lhes gerava incomodações e chacoalhava a sua mísera estabilidade pessoal e familiar (o mesmo pensamento vale para os novos proprietários no campo, ricos e pobres, bem como os nepmen). Esses sentimentos tendem a ser mais fortes do que as comoções revolucionárias e lhes jogavam nos braços de Stalin, que garantia o oposto: a tradição, a segurança, o “já conhecido”, os velhos costumes. Nisso, aliás, Stalin e a burocracia foram mestres. Esta foi a mentalidade que serviu de base para os dirigentes soviéticos que votaram convictos na “justeza” da expulsão de Trotski da URSS em 1929; e que também serviram de esteio ao longo reinado de Stalin.

         No entanto, de tudo isso uma coisa é certa: Losurdo e seus discípulos fazem das tripas coração! Para eles, este espírito de rebanho em que os funcionários perdem a sua personalidade para obedecerem cegamente o chefe é o que entendem como a essência do socialismo, dado que fazem a apologia romântica e descabida do stalinismo em pleno século XXI. E quem está disposto a absolver e embelezar até mesmo os crimes dos Processos de Moscou, como se disse, está disposto a qualquer coisa...

 

VIII – A política externa, o “espírito do socialismo”, o “trabalho pacífico” proposto por Stalin e o Estado de Israel

         Em um dado momento de seu livro, Losurdo afirma que “o atraso na realização do ideal [socialista/comunista/marxista] era explicado pelo permanente cerco capitalista”[55].

         O que Losurdo não conta, por sua vez, são as consequências da política externa de Stalin. Isto é, como a orientação política e teórica dada pelo stalinismo aos partidos comunistas do mundo todo, sem falar na dissolução da III Internacional em um acordo vergonhoso com os líderes imperialistas Truman e Churchill ao longo da Segunda Guerra Mundial, contribuíram para a manutenção deste “cerco capitalista”.

         Losurdo recebe a gloriosa fama de ser um crítico do liberalismo econômico, mas no seu livro não fala absolutamente nada de como a política exterior stalinista foi decisiva para embelezá-lo e sustenta-lo. Grita contra os absurdos cometidos pelo imperialismo ocidental – em relação ao quê, não há absolutamente nada a se objetar –, mas cala completamente frente aos conchavos vergonhosos de Stalin no desmonte (ou tentativa de desmonte) de inúmeras revoluções mundo afora, como a chinesa, iugoslava, grega, francesa, etc.

Losurdo ignora, por exemplo, a crítica feita por um ex-stalinista, como o espanhol Fernando Claudín, no seu monumental trabalho A crise do movimento comunista: “nessa arte, velha como a história, de encobrir com os mais nobres ideais os atos mais regressivos, cada um dos líderes das três grandes potências tinha sua própria experiência – e a de Stalin não desmerecia em nada a dos seus eminentes colegas. Imediatamente encontraram o que se chama uma ‘linguagem comum’. As inevitáveis divergências surgidas entre eles não afetaram os princípios: os 3 estiveram sempre de acordo para exaltá-los no momento mesmo que os espezinhavam. As divergências procediam da muito natural inclinação para levar a melhor parte na nova distribuição do atlas mundial. Quando um deles considerava que seus interesses eram menosprezados, então clamava aos céus pelos princípios e acusava os outros de transgredi-los. Mas, quando se chegava a um acordo equitativo, cada um avalizava com o seu prestígio frente aos setores sociais envolvidos, as nobres intenções dos seus colegas. Nesse sentido, o papel mais proeminente coube, sem dúvida, a Stalin. Seu crédito imenso como personificação da Revolução de Outubro, do socialismo, entre as massas trabalhadoras do mundo inteiro prestou um serviço inestimável aos representantes do imperialismo na segunda grande crise mundial do sistema capitalista. Wilson, Clemenaceau e Lloyd George não tiveram tanta sorte na primeira. As intervenções públicas de Stalin durante a guerra, as versões que a propaganda soviética dava das relações e acordos entre as três grandes potências, contribuíram poderosamente para fomentar em milhões de homens, nas forças avançadas da humanidade, a credulidade nas intenções democráticas e libertadoras dos aliados capitalistas e imperialistas da URSS. A propaganda dos partidos comunistas, salvo raras exceções, teve análogo resultado. E o mesmo se pode dizer da sua política de alianças. Essa manipulação dos povos era condição necessária para que a grande divisão das ‘esferas de influência’ entre o capitalismo anglo-americano e a burocracia soviética, o toma-lá-dá-cá, de interesses econômicos, políticos e estratégicos pudesse ser levado a cabo com a maior docilidade possível das vítimas”[56].

         E Claudín conclui: “Stalin afirmara repetidamente que existia uma coincidência essencial entre os objetivos das três grandes potências. Em novembro de 1944, quando a derrota da Alemanha era visível e se colocam em primeiro plano os problemas da ‘organização do mundo’ que sairá da guerra, Stalin formula a seguinte tese, que serve de eixo a toda a estratégia do governo soviético e dos partidos comunistas nesse momento crucial: ‘na base da aliança da URSS com a Grã-Bretanha e os EUA não estão motivos fortuitos e efêmeros, mas interesses vitais e duradouros[57].

         Para Losurdo e os losurdistas, no entanto, o “atraso da realização do ideal” era resultado do malévolo e “permanente cerco capitalista”, omitindo, como sempre, todos estes “pequenos detalhes” descritos por Claudín.

 

         Querendo nos demonstrar como Stalin entendia o trabalho “educativo e cultural” que deveria ser realizado pelos órgãos do Estado soviético para desenvolver os “germes da economia nova, socialista, e de reeducar os homens no espírito do socialismo”[58], Losurdo cita o relatório apresentado ao XVIII Congresso do PCUS, realizado em 1939: “Agora, o dever fundamental do nosso Estado, no interior do país, consiste num trabalho pacífico de organização econômica, num trabalho cultural e educativo”[59].

         Esta piada macabra é um escárnio contra centenas de milhares de militantes comunistas assassinados pela burocracia ávida de poder. Losurdo e os losurdistas ajudam a continuar colocando mordaça na boca dos presos, torturados e fuzilados em nome de uma casta que tinha interesses vitais e duradouros com o imperialismo anglo-americano.

         O seu “espírito do socialismo”, portanto, só pode ser o de um corpo de funcionários e trabalhadores “acostumados a obedecer os chefes”, sob pena de sofrerem com o cassetete policial, a prisão ou o suplício pelas armas. O seu “trabalho pacífico de organização” é a supressão das liberdades individuais mínimas; inclusive aquelas previstas nos estatutos do partido único, eliminadas em nome dos interesses econômicos internos e externos da burocracia dirigente.

         Em síntese: trata-se da paz de cemitérios e do espírito de submissão mais vergonhoso e infame! É isto que Losurdo e os losurdistas querem nos vender como “realismo” e a depuração dos “dogmas e escolásticas vazias das lições de Marx e Engels”.

 

         Querendo absolver o “pai dos povos” das terríveis acusações que sofria de anti-semitismo, Losurdo aponta que a URSS apoia com força o sionismo e o Estado de Israel: “Stalin desempenha um papel de primeiro plano e talvez até decisivo. Sem ele ‘dificilmente o Estado judeu teria visto a luz na Palestina’”. Desejo que não era exclusivo do “guia genial dos povos”, mas, também, de Truman e dos EUA, que tinham “acordo também em apoiar a fundação do Estado de Israel”[60].

         A preocupação, como sempre, não era em relação à opressão dos povos judaicos – e nem foi essa a verdadeira intenção do reacionário movimento sionista –, mas com a correlação de forças internacionais e a estabilidade interna e externa da URSS. Somente Losurdo, que faleceu em 2018 e que, portanto, conheceu bem o papel cumprido pelo Estado de Israel no Oriente Médio e em relação aos palestinos[61], pode achar que este argumento representa algo progressista! O mais impressionante, contudo, é que ele não causa constrangimento algum aos losurdistas...

 

Vídeo que ilustra brevemente os rituais burocráticos de culto à personalidade

IX – A questão da família, da educação e as distorções “realistas” do losurdismo

         O show de horror e de mentiras não tem fim! Depois de assassinar memórias, mentir descaradamente e fazer troça dos assassinados justamente por... defender o internacionalismo proletário, Losurdo falsifica novamente a história – seguindo a prática do seu mestre – nos “esclarecendo” que “há muito mais a saber” sobre a era de Stalin, como por exemplo: “a conquista por parte das mulheres da ‘igualdade jurídica com os homens, acompanhada de uma melhoria no status social’, que inclui pensões, assistência médica, proteção das grávidas, abonos familiares’; ‘o considerável desenvolvimento da educação e da esfera intelectual no seu conjunto’, com a extensão ‘da rede das bibliotecas e das salas de leitura’ e a difusão ‘do gosto das artes, da poesia’”[62].

         E este sonho idílico, tal como as prisões e campos de concentrações stalinistas que, segundo Losurdo, seriam quase colônias de férias, é coroado com a enfática afirmação de que todas essas benesses em relação às mulheres e à família são processos que “começam a decolar exatamente nos anos de Stalin”[63].

         Esta mentira não é apenas um desserviço para a posteridade do movimento da classe trabalhadora, mas fonte de revolta e indignação para quem conhece o mínimo da história da URSS. Ora, companheiros, as medidas progressivas de equiparação jurídica e social entre mulheres e homens se deu exatamente durante os primeiros anos da revolução, sob o governo dos comissários do povo, liderado por Lenin e Trotski – isto é, a época que Losurdo afirma ser ainda possível um “poder carismático”.

         Wilhelm Reich, um dos grandes pensadores da psicologia de massas, escreveu no seu importante trabalho A revolução sexual, escrito em 1936 – isto é, durante o retrocesso representado pela ascensão do stalinismo no seio da URSS –, o oposto do que afirma Losurdo: “A importância que a revolução social atribuiu à sexual é evidente pelo fato de que já em 19 e 20 de dezembro de 1917 foram baixados por Lenin dois decretos que em sua natureza revogaram todas as disposições até então existentes. Um decreto era intitulado: ‘Da dissolução do matrimônio’; seu conteúdo não era tão inequívoco como o seu título. O segundo decreto chamava-se: ‘Do casamento civil, dos filhos e do registro do estado civil’. Ambas as leis privavam o marido do direito de chefia na família, davam à mulher autodeterminação integral material e também sexual, declaravam natural que uma mulher pudesse determinar livremente nome, domicílio e cidadania. Com a simples legislação, como qualquer mente esclarecida sabia, foi assegurada externamente a liberdade de desenvolvimento a um processo que ainda estava para se realizar, dando-lhe certa forma ideológica. O fato de que a lei revolucionária exprimia inequivocamente a revogação do poder patriarcal se compreendia por si mesmo. Com a retirada do poder da classe até então dominante e do seu aparelho estatal de repressão, também caiu naturalmente o poder do pai sobre os membros da família, bem como a representação do Estado dentro da família compulsória como célula de formação estrutural da sociedade de classes”[64].

         Ao contrário do que afirma Losurdo e seus seguidores, a legislação e os direitos das mulheres não “começaram a decolar na época de Stalin”, mas, como analisa detalhadamente Reich, sofreram, precisamente, os piores ataques e retrocessos em comparação com estas leis do período 1917-1924.

Analisando um artigo do anticomunista Louis Fischer, por volta de 1935, Reich replicou-o, descrevendo que “as moças aprendem que o aborto é prejudicial, perigoso e indesejável. Seria muito melhor ter os filhos. O filme A vida privada de Peter Winogradow faz propaganda do casamento convencional. ‘Um filme’ escreve Fischer, ‘que no setor mais conservador de certos Estados conservadores encontraria apoio’. O Pravda diz: ‘no país dos sovietes a família é uma coisa importante e séria’. (...) Um editorial do Pravda em 1935 propalava que um mau pai de família não podia ser um bom cidadão soviético. ‘Tal coisa era inimaginável no ano de 1923’, escreve Fischer. ‘Na URSS, apenas o amor puro e orgulhoso e grande pode e deve ser unicamente motivo para casamento’. ‘Quem ainda hoje afirma que é um costume pequeno-burguês interessar-se pela família pertence, ele próprio, a categoria mais baixa dos pequeno-burgueses’. Uma proibição de abortar o primeiro filho acabaria com muito namorico e promiscuidade, fomentando o ‘matrimônio sério’. Nos últimos meses se multiplicaram nos jornais os artigos de professores e médicos nos quais se falava dos grandes prejuízos causados ao organismo pelo aborto. ‘Quando a imprensa troveja diariamente contra o aborto, quando essa propaganda é acompanhada de louvores de casamento festivas; quando se acentua a santidade do dever conjugal e se decreta que mães que geram trigêmeos e quadrigêmeos recebem prêmios especiais, quando se escrevem artigos sobre mulheres que nunca recorreram ao aborto e quando se elogia oficialmente uma professora de aldeia de baixo salário, mãe de 4 filhos, porque não recusara um quinto, ‘apesar de ser difícil alimentar todos eles’ – pensa-se em Mussolini’, escreve Fischer. ‘Obteve-se certeza interna e externa e por isso pensa-se que a limitação de natalidade pode ser reduzida... Também se lutará contra ‘relações de verão’ baratas. Moças que resistem a instâncias masculinas não mais serão consideradas ‘conservadoras’ ou  mesmo ‘contrarrevolucionárias’; ‘não deverá ser a satisfação de necessidades físicas, mas o amor a base da família’. Este breve extrato mostra que hoje a ideologia sexual do círculo de liderança importante na URSS não é mais diferente da ideologia do círculo de liderança de qualquer Estado. O regresso à moral sexualmente negativa não pode ser contestado. Permanece apenas duvidoso como se comportará a juventude afrouxada, que já teve liberdade uma vez, e, diante disso, como se comportará o operariado industrial. A ideologia oficial da URSS também se fez sentir na Europa Ocidental”[65].

         Na sequência, Reich analisa um dos principais órgãos do Partido Comunista Francês, o L’Humanité, de 31 de outubro de 1935, já sob orientação direta do stalinismo. Nele podemos ler: “Para a salvação da família! (...) A malignidade do capitalismo moribundo, a indecência para a qual dá o exemplo, o egoísmo que desenvolve, a necessidade que cria, a crise que gera, as doenças sociais que propaga, os abortos secretos que provoca, destroem a família. Os comunistas querem lutar para defender a família francesa. Romperam de uma vez por todas com a tradição pequeno-burguesa – individualista e anarquista – que torna a esterilização um ideal. Querem assumir o poder de um país forte e de uma raça numerosa. A URSS mostra o caminho. Mas é necessário tomar-se imediatamente medidas para salvar a raça. (...) Uma enquete que examinará os meios para salvar a família francesa, dando-se à maternidade, à infância, dando-se à família rica em filhos o lugar e os privilégios que devem ter no país”[66].

         Por fim, Reich conclui que “assim pensa um comunista que concorre com os nazistas na teoria racial e na defesa da família de muitos filhos. Um artigo assim num órgão socialista é uma catástrofe. A concorrência é impossível: os fascistas entendem esse negócio muito melhor. Crítica arrogante e erudição, aqui, seria apenas o sinal seguro de completa incompreensão da situação. Em primeiro lugar, necessita-se ter respeito pela magnitude, complexidade e diversidade das tarefas. É a pressuposição mais importante da seriedade e coragem necessárias que tais processos históricos exigem. Na revolução cultural russa, a ‘nova vida’ surgiu irreconhecida e incompreendida da velha, mas a velha freava. O velho modo de pensar e de sentir insinuou-se no novo. O novo primeiro libertou-se do velho, lutou por se manifestar claramente, não conseguiu e assim regrediu. Devemos procurar compreender de que maneira o velho sufocou o novo, para evitarmos que isso aconteça novamente”[67].

         Aqui, contudo, Losurdo e os seus discípulos não estão interessados em entender o novo, nem evitar que os erros se repitam. Ao contrário: “facilitam” a tarefa socialista pintando de “socialistas” elementos bem notórios da velha sociedade. Jones Manoel, como vimos, afirma que esse tipo de crítica é como querer “encontrar o reino celestial” ou classificar tudo como “socialismo traído”.

         Para os losurdistas, no geral, há socialismo em “tudo”, como em uma família tradicional burguesa que condena o aborto, nos interesses “vitais e duradouros” com os EUA e a Grã-Bretanha, na retomada das distinções entre oficiais e soldados, bem como no reestabelecimento do uso das dragonas como forma de distinção dentro do Exército Vermelho, abolidas em 1917; na reintrodução do culto da Igreja Ortodoxa russa[68]; na condenação forjada e no assassinato de gerações inteiras de revolucionários e, é claro, na aceitação natural de bilionários filiados ao Partido Comunista Chinês, que falam em “socialismo com características chinesas”, ao invés de um “neoliberalismo com características chinesas”.

Que sujeitos chatos somos nós que não achamos nada engraçado, nem “socialismo” nisso tudo! Essa chatice só pode fazer de nós militantes “messiânicos”; e este brilhante “realismo”, ao contrário, só pode nos ajudar a construir o “socialismo”.


Stalin como um ícone da Igreja Ortodoxa?
 

         Já sobre a “renovação e o desenvolvimento” da intelectualidade, da educação, das bibliotecas, da literatura e da poesia cabe um breve esclarecimento.

         Segundo Deutscher, Stalin promoveu “uma campanha feroz contra os ‘niveladores’”, colocando-se à testa dos novos ricos e estimulando-lhes os apetites. “Ridicularizou os frágeis escrúpulos que os inibiam e glorificou a nova desigualdade como a realização do socialismo. Tomava forma uma nova organização hierárquica, com grande diversidade de graus, postos, títulos e prerrogativas bem distintas entre si, tendo cada degrau da comprida escada da autoridade marcado com uma precisão bizarra. Essa reversão da ‘democracia proletária’ para o novo autoritarismo foi mais acentuada nas forças armadas, onde os postos e distinções da época czarista voltaram a ser adotados. Havia, portanto, nas celebrações do ‘advento do socialismo’ o saber de algo como uma Restauração. O sistema educacional e a vida espiritual do país foram profundamente afetados. As reformas progressistas das escolas, realizadas na década de 1920, e que despertaram a admiração de muitos educadores estrangeiros, foram abolidas como aberrações ultra-esquerdistas e um tradicionalismo cada vez mais nacionalista, bem como uma disciplina paternalista e obsoleta, invadiram as salas de aula e da conferência, sufocando o espírito da nova geração. A tutela burocrática sobre a ciência, literatura e as artes tornou-se insuportavelmente tirânica. Em todos os campos, o Estado exercia um poder absoluto, de forma provocadora, glorificando-se como o guardião supremo da sociedade e o depositário autocrático do poder exaltado como o Pai dos Povos, fonte de toda a sabedoria, benfeitor da humanidade e demiurgo do socialismo”[69].

Stalin e a sua burocracia “renovaram” a vida intelectual com o cassetete policial para quem ousasse escrever algo que não fosse tolerado pela burocracia; “renovou” as bibliotecas retirando volumes inteiros das obras de Trotski, de Freud e de tantos outros nomes importantes do pensamento internacional – tinha medo de deixar que a massa pensasse por si mesma, porque a burocracia queria, de fato, “funcionários acostumados a obedecer e sem personalidade”. A literatura e a poesia foram empobrecidos com a escola artificial do “realismo socialista”, que é uma nulidade quase completa, cuja receita de bolo e as “tendências artísticas” e “poéticas” já estavam prontas nos manuais da KGB.

Embora fosse verdade que Marx tenha previsto a persistência da desigualdade na primeira fase do socialismo, não lhe ocorreu que essa desigualdade fosse aumentando, aos saltos, como nos governos de Stalin ou do PCC. A sociedade soviética estava apenas a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo. Podia avançar ou recuar; e somente avançaria na medida em que superasse a desigualdade e criasse cada vez mais autoconfiança emocional, pessoal e coletiva através de formas de governos com efetivos canais populares e de autogestão. Se a desigualdade social aumentasse, o poder se concentrasse cada vez mais em poucas mãos e os seres humanos seguissem dependentes e apáticos, o socialismo recuaria.

Para Losurdo e os seus discípulos parece que a “construção socialista” encontra-se exatamente na segunda opção; isto é, no recuo.

 

X – Algumas conclusões

         Quando comecei a militar pelo socialismo, lá pelos idos dos anos 2000, era comum ouvir da militância do PCdoB e PCB que “os trotskistas sempre rachavam em pequenas seitas”, contrapostas à imagem falsa da “unidade salutar” dos partidos stalinistas. Nos casos mais extremos, como o da UJS (a juventude do PCdoB) nos teatros dos congressos da UNE, se fazia menção debochada à picaretada com que Trotski havia sido assassinado.

Ou seja: uma militância juvenil era “educada” politicamente para sentir orgulho de um monolitismo cego e de uma ação traiçoeira, que perseguia e eliminava opositores, golpeando-os pelas costas. Seria cômico se não fosse trágico! Que espécie de “socialismo” poderia advir deste tipo de “educação” política?

         Como sabemos, a história do stalinismo não está livre dos rachas, divisões e disputas. Pelo contrário: não só ocorreram, como seguem acontecendo; feitas, sobretudo, através do já conhecido método brutal, desleal e mafioso. Por exemplo: nos dias de hoje nem todos os stalinistas concordam com Losurdo, embora se orgulhem de sua “coragem” em defender o “guia genial dos povos”. Há, em contraposição, muitos saudosos de um “grande líder” que querem o retorno pleno ao que foi a URSS – e entendem tudo isso como “socialismo”! (o que só pode fazer a grande mídia burguesa e seus intelectuais sorrirem e agradecer) – ou, ainda, aqueles que entendem o que se passa na China e, consequentemente, condenam o capitalismo chinês.

         O mais engraçado nisso tudo, porém, é que PCB e PCdoB estão hoje totalmente pautados pelo identitarismo[70] e, no entanto, não percebem nenhuma contradição com o que defendeu o stalinismo.

 

         A URSS foi um grande laboratório sociológico, econômico, político, psicológico e humano para testarmos premissas e teorias acerca de novas formas de sociedade alternativas ao capitalismo; isto é, formas de experiências para uma sociedade socialista. O pensamento burguês só pode olhá-la pelo prisma negativo, ressaltando apenas os problemas, os crimes, os desvios autoritários – como se o capitalismo fosse o depositário de toda a bondade e positividade do mundo.

         Nós, integrantes da classe trabalhadora, devemos olhar as experiências socialistas com profundo apreço e reconhecimento, ainda que sempre de forma crítica! Sobretudo chamando as coisas pelo seu próprio nome. Se as observarmos bem e extrairmos delas honestamente todas as lições possíveis, estaremos em melhores condições para edificarmos uma nova sociedade socialista no futuro, mais próspera, democrática e humana. Para isso, no entanto, é fundamental que a gente faça exatamente isso: extraia honestamente desta grandiosa experiência todas as lições possíveis!

         Não é isso que faz Losurdo e os losurdistas. Eles reafirmam os desvios, condenam os críticos, realçam medidas autoritárias procurando confundi-las com a “ditadura do proletariado”; ignoram o pavoroso espírito de rebanho que se formou e se consolidou embaixo da asa do “pai dos povos”, Josef Stalin; ressaltando isso como “realismo”, isto é, como “o único socialismo possível” naquele contexto.

O stalinismo é a interpretação teórica do marxismo sem um pingo de humanidade, baseado num empirismo grosseiro e bárbaro; misturando rudimentos de marxismo com o despotismo asiático arraigado na mentalidade russa e chinesa de séculos. Esta “visão” do marxismo perdeu totalmente a sua humanidade – ou no linguajar de Che, a ternura –, escondendo-se atrás de desculpas como “realizar um governo realista”, “únicas medidas possíveis”, “quem critica – independentemente da qualidade da crítica – é um traidor contrarrevolucionário”. Seguir aprofundando o stalinismo, tal como querem Losurdo e os losurdistas, é seguir aprofundando um “marxismo” sem humanidade, acrítico, fomentador de maiores e piores espíritos de rebanho, que em nada podem redundar no socialismo e na concretização da famosa máxima marxista de que “a libertação da classe trabalhadora deverá ser obra da própria classe trabalhadora”.

No stalinismo os líderes são ressaltados em detrimento da massa – é assim que entendem o “socialismo”. Não há preocupação em fomentar independência de classe no seu sentido mais amplo e verdadeiro: na promoção e no reconhecimento das boas iniciativas da massa (sempre vistas como ameaçadoras e como quebra da ortodoxia). Tal concepção “teórica” só pode reforçar a preponderância do egotismo sobreposto à coletividade, gerando um desequilíbrio permanente nesta dialética; sem procurar insistentemente novas e melhores formas de representação democrática, que combata o espírito de resignação e acomodação da massa nos períodos de calmaria – que são sempre os mais longos –; isto é, o seu espírito de rebanho e de submissão, presente na psicologia das massas, dado que foi introjetado e cultivado por milênios nas mais diferentes formas, sobrevivendo no inconsciente coletivo.

 

         Na refletida e sóbria análise feita por Isaac Deutscher sobre a experiência soviética, temos um retrato o mais fidedigno possível de Trotski, Stalin, Lenin e tantos outros personagens marcantes desta epopeia da história contemporânea mundial, gravada a ferro e fogo no grande coração da classe trabalhadora. A “biografia” de Losurdo, em contraposição, querendo exclusivamente reabilitar Stalin, não representa apenas um retrocesso em comparação à trilogia de Deutscher, mas uma perigosa apologia dos erros, deixando a porta aberta para que todos eles sejam cometidos novamente.

         O seu método “científico” é muito semelhante ao de Olavo de Carvalho, só que com uma roupagem de “esquerda” e “marxista-leninista”. Para poder sustentar as mentiras, falsificações e trapaças stalinistas, precisa, inevitavelmente, recorrer aos mesmos métodos. Não desfaz nenhuma “lenda negra”, mas cria outra muito pior. Enquanto Olavo de Carvalho necessita distorcer grotescamente a realidade, apelando para métodos de manipulação da psicologia de massas, sem o quê, seria impossível vender as atrocidades, crimes, mentiras e invasões militares do imperialismo estadunidense como “democracia”; Losurdo, por sua vez, necessita embelezar a tirania, o assassinato, a trapaça, a perfídia, a calúnia grosseira para vendê-las como “socialismo”.

         As chamadas “autocríticas” dos partidos e movimentos stalinistas nunca ocorrem. São sempre superficiais e mais reafirmam sua postura do que realmente reconhecem os seus graves e sérios problemas. Losurdo criou um novo monstro teórico, cuja finalidade é, vendendo-se como “realista”, defender o Estado chinês e o seu PC como “bastiões do socialismo”. E como ambos são, na realidade, bastiões do stalinismo, nada melhor do que absolver dos seus crimes e das trágicas derrotas do passado não só a malfadada teoria do “socialismo em um só país”, mas os seus idealizadores, que são recanonizados por Losurdo e cia. Tal teoria é um deserto árido de ideias – um empirismo grosseiro – que busca sustentar uma prática de capitalismo de Estado de um sutil dragão imperialista, cujos “bilionários comunistas” colocam as garrinhas de fora através do velho método chinês de “comer quieto”. Seguindo por este caminho continuaremos a nos afastar do socialismo, simplesmente perpetuando o capitalismo em estado de avançada “barbárie-civilizada”.

         Por tudo isso, vale relembrar Trotski no que ele tem de melhor: “o estabelecimento prático de uma sociedade socialista pode ser feito não por essas medidas humilhantes de um capitalismo atrasado, a que o governo soviético está recorrendo, mas a métodos mais dignos de uma humanidade libertada – e acima de tudo, não se fará sob o chicote da burocracia. Pois esse chicote mesmo é o legado mais repulsivo do velho mundo. Terá de ser feito em pedaços e queimado numa fogueira pública antes que possamos falar de socialismo sem nos envergonharmos”[71].

         Eis o resumo da tragédia: Domenico Losurdo e os losurdistas querem não só reabilitar o chicote, mas continuar endeusando-o. Por essas e por outras que largos extratos da classe trabalhadora não pode nem ouvir falar de socialismo atualmente, aprofundando a falta de perspectiva da política revolucionária, já que qualquer menção às experiências “socialistas” do passado, graças ao tacão do stalinismo, muitas vezes nos lançam numa teia de vergonha e embaraço.

Em síntese: o socialismo não pode ser imposto pela fraude, pelo engano ou pelo culto de líderes que aterrorizam, reprimem e humilham a massa.



*Por Lucas Cortozi Berton
Porto Alegre, julho de 2022

 

Referências


[1] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008.

[2] JABBOUR, Elias & GABRIELE, Alberto. China – socialismo do século XXI. Boitempo editorial, São Paulo, 2021 (página 19).

[3] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/05/a-ascensao-mundial-da-china.html

[4] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/08/a-crise-do-movimento-comunista-ainda.html

[5] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 118).

[6] Ver: https://blogdaboitempo.com.br/2021/10/21/o-marxismo-e-a-controversia-sobre-a-china-nota-sobre-o-debate-entre-elias-jabbour-e-maurilio-botelho/ (grifos nossos).

[7] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/quem-teme-frustracao-nao-pode-fazer-uma.html ; e também: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/02/a-luta-entre-o-movimento-makhnovista-e.html

[8] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 127).

[9] MAESTRI, Mário. Domenico Losurdo, um farsante na terra dos papagaios. FCM editora, Porto Alegre, 2021.

[10] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/socialismo-com-caracteristicas-chinesas.html

[11] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (página 333).

[12] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 127).

[13] Idem (página 84).

[14] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (página 54).

[15] Idem (página 94).

[16] Idem.

[17] Idem (página 95).

[18] Idem.

[19] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/11/bolsonarismo-e-peste-emocional.html

[20] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 87).

[21] Idem (página 79).

[22] TROTSKI, Leon. Marxismo e terrorismo. Publicações LBI, São Paulo, 2007 (página 20). Ver também: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/07/os-demonios-de-dostoievski-prenunciou-o.html

[23] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 111).

[24] Idem.

[25] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/10/reflexoes-sobre-transicao-socialista.html

[26] TROTSKI, Leon. A revolução traída. Editora Sundermann, São Paulo, 2005 (página 110).

[27] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (página 130).

[28] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 257).

[29] Idem (página 85).

[30] Idem (página 288).

[31] TROTSKI, Leon. Os processos de Moscou. Publicações LBI (páginas 102 e 103).

[32] Idem (páginas 135 e 136).

[33] I LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 85).

[34] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (páginas 375 e 376).

[35] Idem (página 391).

[36] Idem (página 393).

[37] Idem (página 431).

[38] BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. Editora Sundermann, São Paulo, 2014 (página 418).

[39] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 108).

[40] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2022/03/o-discurso-de-putin-e-politica.html

[41] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/a-nova-guerra-fria-cultural-e-sutil.html

[42] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 141).

[43] MAESTRI, Mário. Domenico Losurdo, um farsante na terra dos papagaios. FCM, Porto Alegre, 2021 (páginas 30 e 31). Ver também: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60383194

[44] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 70).

[45] Idem.

[46] Idem.

[47] Idem.

[48] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/socialismo-com-caracteristicas-chinesas.html

[49] TROTSKI, Leon. A revolução traída. Editora Sundermann, São Paulo, 2005 (página 236).

[50] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (páginas 127 e 128).

[51] Idem (página 128).

[52] LUXEMBURGO, Rosa. Novamente a massa e o líder in Rosa Luxemburgo – textos escolhidos (1899-1914). Editora Unesp, São Paulo, 2011 (página 419).

[53] TROTSKI, Leon. A revolução traída. Editora Sundermann, São Paulo, 2005 (página 113).

[54] Ver dois textos importantes, cuja temática é a busca por explicações baseadas na psicologia de massas (o primeiro baseia-se numa polêmica com um histórico militante da esquerda, de codinome João de Barro): https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/09/reich-trotsky-e-os-delirios-da-esquerda.html ; e: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/12/o-irracionalismo-das-massas.html

[55] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 69).

[56] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (páginas 464 e 465).

[57] Idem (páginas 465 e 466) – para uma visão mais ou menos completa da grande obra de Claudín, ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/08/a-crise-do-movimento-comunista-ainda.html

[58] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 69).

[59] Idem.

[60] Idem (páginas 228 e 229).

[61] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2014/07/o-genocidio-na-faixa-de-gaza-desperta-o.html

[62] LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2008 (página 148).

[63] Idem.

[64] REICH, Wilhelm. A revolução sexual. Zahar editores, Rio de Janeiro, 1976 (página 198).

[65] Idem (páginas 201 e 211).

[66]  Idem (página 212).

[67] Idem (páginas 212 e 213).

[68] BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. Editora Sundermann, São Paulo, 2014 (página 417).

[69] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (páginas 311 e 312).

[70] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/02/os-meritos-e-os-perigos-do-identitarismo.html

[71] Citação de Trotski in DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta banido – 1929-1940. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (página 335).

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