domingo, 19 de junho de 2022

Análise da morte na narrativa de Machado de Assis: subjetividade e simbolismos

*Por Rafaela Lima

Nada escapa à morte degradante. Nas histórias literárias, assim como na vida, é comum tratarmos desse tema. Em algumas histórias é possível o renascimento das personagens, mas noutras, assim como na realidade, não. Apesar da empatia estabelecida entre leitor e obra, se a personagem morre dentro do contexto da história, o leitor não morre na realidade junto. O que morre (o que poderia morrer no leitor) é algo simbólico, mas que nem por isso deixa de ser sentido. O que Machado de Assis nos mostra é a perda, mas como forma de renascimento de um Eu mais consciente das próprias sombras e das coletivas – as que individualmente estão presentes em todos nós. Ou, dito de outra forma e mais precisamente, o que Machado de Assis nos mostra através da perda são as nossas sombras e daí, a partir da tomada de consciência delas que podemos mudar de fato, embora nos contos que analisaremos, não se transpareça essa função de “causa” e “efeito”, mas sim, função de “fato” e “impacto” (o que está na mira aqui, é a função sentir). Desta forma, analisaremos 4 contos desse autor: “Pai contra mãe”, “Pílades e Orestes”, “A causa secreta” e “A cartomante”. Todos estes têm em comum a morte como fator marcante e por isso desenvolveremos as aproximações e os afastamentos entre as histórias seguindo esse fio condutor.

Em “Pai contra mãe” temos o acúmulo de três situações que são caras a sociedade: a escravidão, a pobreza e o aborto. É um dos únicos textos em que Machado fala abertamente sobre a escravidão. Pode se dizer que uma parte de quem lê morre junto ao feto abortado da mãe escrava. Há a empatia em relação à morte simbólica da mulher, que ocorre diante da dupla violência brutal: desde sua captura até a agressão feita pelo seu senhor – que culmina no aborto – e o aborto em si. Simbolicamente, temos, nesse caso, a morte da vontade, da liberdade, da possibilidade de ser dona de si – desde o momento da captura traumática dela por Cândido Neves, homem branco e pobre    e o que toma esse lugar é o sentimento da nossa própria incapacidade de defesa, nossa vulnerabilidade e o sentimento de injustiça frente ao mundo em que vivemos. A nossa “criança interior” morre, assim como a criança dessa mãe. E, por isso, a imagem criada é a de um aborto, pois a verdadeira morte é a covardia contra a inocência.  E, assim, morremos juntos. Nos fragmentamos pelo laço de identificação gerado, e isso, não apenas neste, mas, também, nos próximos contos.

Já, no conto “Pílades e Orestes”, a questão não é apenas sobre o que morre, o que também aparece evidente é o estremecimento na relação de amizade de Quintanilha e Gonçalves – quando da paixão de Quintanilha por sua prima-segunda e a confissão disso ao amigo, que empalideceu no mesmo instante  – cujo motivo se esconde no não-dito. A circunstância narrada é passível da interpretação de que havia entre ambos trocas homoafetivas – essa que seguiremos. (Aqui, assim como nos próximos dois contos, há uma situação de desejo proibido que influi no transcorrer da história). Então, Quintanilha assombrado desconfia que o amigo goste da mesma mulher e arranja o casamento para eles (cedendo a sua vontade inicial). Nesta parte conseguimos perceber a complexidade dessa relação.  A expressão do mal entendido emocional pode ter se dado no seguinte diálogo:

-Entendo, disse Quintanilha subitamente; ela será tua.
–Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou suas razões de embargo.”

No fim, Quintanilha faz o testamento dando a sua herança ao melhor amigo. Até que um dia após o casal ter tido dois filhos, o padrinho das crianças morre com uma bala “revoltosa". Aparentemente algo acidental, mas o fato se demonstra no final indiferente ao amigo. Quintanilha se apresenta como o amigo fiel e sempre colaborativo, nutrindo o laço de ambos, às vezes até de forma subserviente. A indiferença que Gonçalves teve quanto a sua morte indica o seu desapontamento por ter tido que morrer em vida ao se casar com a prima dele, não podendo confessar o sentimento ao amigo. A infelicidade pode ter feito de seu peito abrigo por longa temporada. O casamento foi a morte da satisfação dos impulsos de vida tanto pela abnegação de Quintanilha ao desistir de Camila, quanto de Gonçalves por ter se casado com ela, mesmo que pudesse estar desejando-o. Tudo isso por consequência de um mal estar social causado pela repressão da homossexualidade. Essas interações até hoje ficam, por vezes, no não-dito.

Em “A cartomante” o desejo e a morte mais uma vez são colocados em foco. Dessa vez, a traição de Rita, esposa de Vilela, com seu melhor amigo (Camilo), resultou em mais uma  tragédia. Primeiro, é importante abordar que o desejo dos amantes atesta contra a visão romântica de casamento perfeito. Segundo, é a espontaneidade das relações que morre, assim como o romantismo que existiu entre os amantes. Quanto ao momento de tensão, por Camilo não saber se Vilela havia descoberto o seu caso, o rapaz, assim como Rita, anteriormente, consultou uma cartomante que ao tentar alegrar o rapaz o mandou direto para os braços da morte. Camilo ia ao encontro de Vilela que o foi solicitado, mas ao chegar repara no corpo morto de Rita e logo em seguida é morto também. O desejo, a pulsão de vida,  é derrotado/morto pelas pulsões mais sombrias do ser humano. O sentimento de vingança pelo sentimento de posse destrói um amor espontâneo e belo. Mais uma vez o espelho das virtudes é quebrado e resta amostra apenas os ombros nus de um ser humano selvagem. A cartomante parece que apenas nutriu ilusões. A esperança morreu no final junto ao casal.

O último conto é “A causa secreta''. Logo no primeiro parágrafo o escritor nos revela que os três personagens já estão mortos e enterrados. No entanto, fisicamente, é apenas Maria Luíza que falece de tísica. Nessa história entramos em contato com as ironias do triângulo amoroso irrealizado, pois Garcia havia se apaixonado por Maria Luiza que é casada com Fortunato, um homem muito frio, e no entanto nunca se declarou. O enfoque nesse texto é, certamente, a crueldade humana por simples vaidade. Os impulsos sádicos e de morte ganham um pedestal. A cena mais estarrecedora se dá ao final quando a mulher morre de doença e Garcia chora a sua morte junto ao cadáver ,enquanto Fortunato olha a cena com profundos prazer e felicidade. Há, aqui, exploração do cruel como uma patologia, ou seja, de um ser humano sem capacidade de empatia, com uma profunda frieza emocional, que sente prazer em ver dor e sofrimento. Os aspectos doentios são expostos novamente,  e um mundo de possibilidades e a esperança (representados por Maria Luísa), nesse caso, foram senão as únicas, as primeiras a morrer.

Em suma, tivemos no primeiro conto a captura da mãe que simboliza a morte do direito de escolha e perda do filho que representa a morte da criança interior dela, a morte simbólica dela mesma em última análise. No segundo, o casamento entre Gonçalves e Camila foi a morte para ele e para Quintanilha, e diante disso a morte real do segundo, já era, para o primeiro indiferente. Nesses dois primeiros, temos o que parece ser uma crítica social de Machado à sua época. O terceiro conto mostra, simbolicamente,  a vingança destruindo a espontaneidade e a paixão.  E no quarto conto temos uma demonstração da crueldade e do sadismo por vaidade própria. Ou seja, a maldade pela maldade – a doença.

Elementos que em maior ou menor proporção todos temos mas que sempre conduzem, nessas histórias a tragédia, elevados à máxima potência para que possamos rever as ideias: pois identificar fora de nós é mais fácil do que reconhecer em nós mesmos. Portanto o que une esses quatro contos é a morte, tanto em sua forma literal quanto na simbólica. Junto à morte de personagens – por causa da identificação que temos a partir das características que eles têm ou expressam no contexto – temos a morte de ideais. Nesse sentido, a morte na literatura nos degrada: deteriora a personalidade colocando em cheque a forma como enxergamos a vida. A deteriora tal como a própria natureza degrada a matéria. Dessa forma, Machado de Assis ao destruir os ideais elevados, faz sobressair o realismo e a crueza dissolvendo as nossas ilusões, para que consigamos olhar para os aspectos sombrios: é um chamado a revisitação dos porões da alma trancados por nós mesmos.





Referências:

SILVA, J. W. da. Pílades e Orestes: o homoerotismo sob o véu da amizade romântica. 2018. 40f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras)- Universidade Estadual da Paraíba, Guarabira, 2018. >http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/123456789/17709<.

MORICONI, Italo. Os cem melhores contos brasileiros do século; Rio de Janeiro: Editora Objetiva LTDA, 2000.

JUNG, Carl Gustav (org.). O homem e seus símbolos. 2ª edição . ed. [S. l.]: Harper Collins, 2016. 448 p.

sábado, 11 de junho de 2022

O que é multidão?

O blog Consciência Proletária resgata e publica algumas das colunas O caos escritas pelo comunista, militante independente, cronista e cineasta italiano, Paolo Pasolini, ao jornal semanal O tempo, publicadas entre os anos de 1968 e 1970.

Tendo por esses dias experimentado a presença da multidão (em Zefferana, na Sicília, havia uma atmosfera de linchamento), ocorreu-me nauralmente responder de imediato a uma carta, assinada por Massimo Baldino, que me faz perguntas precisamente sobre a multidão (tema de sua tese de formatura). As perguntas são as seguintes:

1) Como definiria o fenômeno social "multidão"? Qual é a relação que intercorre entre esse fenômeno e o fenômeno "público "?
2) Qual é o seu juízo global sobre a multidão? A multidão é sempre organizada? Tem chefes? A multidão é sempre organizada? O indivíduo, na multidão, sofre transformações?
3) Já fez parte de uma multidão? Já a observou como espectador? O que mais o impressionou?
4) O que pensa do comportamento das mulheres na multidão?

E eis as minhas respostas:

1) a multidão é, antes de mais nada, um fenômeno urbano. A primeira multidão, acredito, ocorreu em Alepo, que é a cidade mais antiga (ou seja, o mercado mais antigo) do mundo. Por isso, a primeira característica da multidão é a de não estar só, mas de se mesclar com sua mercadoria: objetos de troca, de mercado e, hoje, de consumo. A segunda característica é a de ser um "grande número", mas não ser "massa": com efeito, trata-se de um grande número de indivíduos, enquanto estão presentes em carne e osso. A terceira característica é a de ter, por vezes, sentimentos comuns — reuniões, manifestações casuais, linchamento, etc. , que são porém uma soma quantitativa e não sintética (e, portanto, abstrata) de sentimentos singulares.

O público do cinema é "massa"; com efeito, ele só é representável nas estatísticas ou nas prestações de contas, e obedece a regras reativas médias, identificadas por abstração. Ao contrário, o público do teatro é "multidão", porque cai sob o domínio da percepção dos sentidos, obedece a regras reativas concretas (diria mesmo: físicas). Por isso, o cinema pode ser medium de massa; o teatro, não, jamais, ainda que se dirigisse a "multidões" enormes.

2) Não se pode formular um juízo sobre a multidão: ela é, por sua natureza, algo ontológico, e, portanto, há que ser aceita ou sentida, não julgada.

As multidões não são úteis: existem.

São organizadas pela necessidade que as forma: por exemplo, na antiga Alepo, o mercado; hoje, a saída da escola ou da fábrica etc. Ou, em casos excepcionais, quando as multidões são guiadas por um sentimento comum — por exemplo, o linchamento , é esse sentimento que as organiza: e, portanto, seria melhor dizer "que as estrutura".

Nesses últimos casos referidos (excepcionais), pode haver chefes, mas inteiramente extemporâneos, como é evidente. Se houver chefes não extemporâneos, eles terão sido evidentemente gerados fora da multidão, anteriormente a ela: digamos, na sede de um partido, numa igreja etc.

As características dos chefes extemporâneo são as de possuir uma excepcional capacidade de vivenciar sentimentos comuns: ou seja, de ser uma exata mistura de patologia e mediocridade.

As transformações que um indivíduo sofre numa multidão são, evidentemente, profundas: e essa é a pergunta que exigiria maior espaço e tempo. Portanto, limito-me a dizer que, em minha opinião, o homem no meio da multidão sofre o mesmo processo regressivo que sofre em certos sonhos interpretados segundo a psicanálise de Jung.

3) Certa feita, em 1937 (me parece), quando Vitório Emanuel III visitou Bolonha, eu "fazia parte" da multidão que se agrupara na Praça de São Petrônio para homenageá-lo. Tive uma tão terrível claustrofobia que, a partir de então, não quis mais "fazer parte" de uma multidão. Algumas vezes, acontece-me ficar no meio de uma, o que é diferente. Por exemplo: no tráfego. Ou num mercado, como o próximo de Kano, na Nigéria do Norte (que devia ser idêntico ao da antiga Alepo): mas, nesses casos, sinto-me inteiramente estranho, um puro observador.

Outras multidões que observo — porque já não posso mais fazer verdadeiramente parte delas — são as multidões dos estádios, numa partida de futebol. A única observação que me ocorreu fazer sobre tais multidões, enquanto multidões, é que as de 1969 são idênticas às de 1939.

4) As características de uma mulher numa multidão são análogas às que descrevi falando dos eventuais "chefes extemporâneos". Aliás, diria mesmo que, nas multidões, as mulheres são sempre, via de regra, chefes potenciais.

Nº42, ano XXXI, 18 de outubro de 1969.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Dez pontos para reflexão sobre o “plano Lula de governo”

Quanto mais nos aproximamos das eleições de outubro mais torna-se provável a eleição de Lula para um novo mandato presidencial, ainda que nada esteja garantido – sobretudo se olharmos para as tropas de “fiéis bolsonaristas” trabalhando incansavelmente para reverter o seu desgaste e propagando ideias de golpe.

         Contudo, o sinal verde já foi dado pela imprensa estadunidense e pela CIA. A capa da revista Time traz Lula em seu “segundo ato”, sendo apresentado como o “líder mais popular do Brasil”. Já a CIA, através do seu diretor Willian Burns, advertiu Bolsonaro para que cessem os questionamentos “ao sistema eleitoral do país antes do pleito de outubro”, segundo fontes de notícias da Reuters[1].

         Os demais partidos da “esquerda institucional” legalizada (falamos de PCB, PSTU e UP, uma vez que PCdoB, Psol e PCO já declararam apoio à candidatura petista no primeiro turno) não tem política consequente, nem força suficiente para quebrar a avalanche popular, repleta de esperanças e ilusões, em prol da candidatura de Lula.

Desde meados das décadas de 2000 e 2010, quando vivíamos o auge dos governos petistas, nenhuma força de esquerda conseguiu arranhar tais ilusões eleitorais. Até o momento, as candidaturas petistas eclipsaram e, por fim, fecham o espaço para qualquer outra que esteja à esquerda e possa, por ventura, desenvolver influência de massas. Parte disso se deve ao fato de que esta esquerda institucional repete consciente ou inconscientemente os mesmos erros petistas, seja nos sindicatos ou nos movimentos sociais; seja nas próprias eleições. Sua propaganda e agitação estão, no geral, viciadas!

         Ao longo destes anos, o “enfrentamento” político-eleitoral às candidaturas e governos petistas – e à figura de Lula em particular – não apenas não gerou nenhum tipo de crise entre a classe trabalhadora e o messianismo petista, como, ao contrário, terminou por reforçar a liderança lulista. Nunca se analisou o petismo e a “sua base de massas” à luz da psicologia de massas. Simplesmente se denunciava a principal fonte de ilusão da classe trabalhadora brasileira – muitas vezes de forma equivocada –, sem tentar entendê-la[2]. Ou seja: não avançamos quase nada com as candidaturas da esquerda institucional, ditas “socialistas” e de “oposição de esquerda” ao petismo, já que elas não souberam estabelecer uma política de ponte com a base de massas petista – e nem esta demonstrou interesse, porque não se sentiu tocada e porque sofre de enfermidades imediatistas.

         Para os partidos da esquerda institucional bastaria apresentar uma “candidatura alternativa” ao petismo para que este simples fato servisse de “chamariz” à classe trabalhadora, superando suas profundas e graves ilusões a respeito do petismo e das próprias eleições, desconsiderando totalmente sua psicologia e a sua prática. Infelizmente, as eleições ainda são vistas equivocadamente pelo povo brasileiro como o momento chave de qualquer mudança social, uma vez que ele não percebe (não consegue ou não quer perceber) suas armadilhas mortais – inclusive fechando os olhos para a aliança com Alckmin e os jantares de Lula com parte da velha elite nordestina, os caciques do MDB, etc. – muitos deles sendo parte ativa do golpe contra Dilma em 2016 –, liderados por Renan Calheiros. Para a maior parte do povo, infelizmente, “Lula sabe o que está fazendo”; por isso ouvimos dizer: “deixa o homem trabalhar”!

Levando tudo isso em consideração, se faz necessário avaliar dez pontos chaves do plano Lula de governo[3], confrontando-o com a realidade e fazendo um exercício de análise de suas consequências e inconsequências, para procurar abrir um diálogo com a sua base eleitoral por entre o povo brasileiro. A grande questão não é simplesmente denunciar a aliança com Alckmin e todos os desvios burgueses gravíssimos que o PT possui, mas continua sendo entender por que a massa o apoia independentemente de qualquer crítica de esquerda, já que a “crítica” de direita foi rapidamente assimilada por parte da classe trabalhadora. E não menos importante: como romper com esta cegueira voluntária do povo, que se reflete nesta sua busca permanente por um “pai superprotetor” que “vence na vida”?

 

Análise geral do “plano Lula de governo”

         O discurso presente no projeto de governo apresentado pelo PT (e sustentado em diversas intervenções públicas de Lula) usa e abusa de expressões como “distribuição de renda, riqueza e poder”; além de propor “reformas estruturais” na economia, na política e na sociedade[4]. Tais propostas não se constituem em uma verdadeira novidade na retórica petista, embora tenham sido objeto de crítica preventiva por parte da mídia burguesa, temendo algum possível “excesso”.

         A grande “novidade” apresentada ainda no programa eleitoral de 2018 talvez fosse a proposta de uma “assembleia nacional constituinte, livre, soberana e unicameral”[5], com vistas a concretizar tais “reformas”. Porém, esta “novidade” nem sequer está sendo cogitada para o plano de 2022.

         Este ainda fala em uma “inserção internacional soberana” a partir dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)[6], sem especificar ao certo como esta medida se daria – além de uma genérica “integração com a África” (o que de fato seria positivo, embora muito vago); além de propor uma reacionária reforma da ONU, procurando legitimar espaços políticos de um órgão hegemonizado, no geral, pelo imperialismo estadunidense. Por outro lado, não há nenhuma análise séria e crítica acerca do papel cumprido por China e Rússia no mundo atual. Como nada é dito sobre isso, todas as portas ficam abertas para uma simples troca de “centro de comando” internacional, dos EUA para a China – ainda que a retórica chinesa seja mais branda e “inclusiva” que a norte-americana[7]. Nesse sentido, é difícil esperar qualquer “soberania nacional”.

         Há também declarações no sentido de revogar reformas feitas pelos governos golpistas Temer (MDB e cia.) e Bolsonaro, embora não tenhamos elementos que nos garantam concretude para tal proposta, dado o arco de alianças fechado pelo petismo e a instabilidade política resultante do jogo das instituições democrático-burguesas. O “centrão”, cujo MDB é um dos principais atores, já mandou um papo reto para Lula (amplificado com prazer pela mídia burguesa): “é melhor baixar a bola”[8]!

Sabemos que o “centrão” é um lixo tóxico resultante de uma estrutura político-institucional repleta de problemas que nunca foi enfrentada seriamente – isto é, de forma revolucionária. O PT inclusive ajudou a fortalecê-la ao longo dos seus governos. Poderia, então, o “centrão” ser varrido como foco de poder paralelo apenas existindo uma “maioria petista” e “de esquerda” no parlamento, ou as bizarras tratativas de alianças eleitorais em curso entre PT e os demais partidos burgueses tende a perpetuá-lo contra si mesmo?

 

Dez pontos para reflexão acerca do “plano Lula de governo”

         Todo ativista que vai fazer campanha eleitoral para Lula deveria refletir sobre o seu plano de governo. Esmiuçar suas contradições no sentido de tentar entender as implicações concretas de cada uma de suas propostas é o que tentaremos fazer a seguir.

 

1.

Não há soberania nacional sem o controle sobre a própria economia. Isto é o básico: o mercado interno deve ser controlado nos seus principais canais estruturais pelo governo nacional, combatendo ingerências exteriores (o que tem sido a regra na história do Brasil). Esta é a fonte principal de sua submissão neolocolonial. Os mandatos petistas de 2002 a 2016 não mudaram nada de essencial nesta estrutura de dependência. Por esta razão, devemos ter reservas e desconfianças acerca das “boas intenções” do governo ao falar em soberania nacional.

         Na atualidade, a essência dos problemas econômicos brasileiros é a sua dependência de tecnologia estrangeira, tal como foi dependente de capitais imperialistas ao longo do século XIX e XX – e é ainda hoje! A espinha dorsal é a mesma, embora convertida em termos modernos: enquanto o Brasil exporta matéria-prima, importa produtos de alto valor agregado, gerando um déficit permanente que é atirado sobre as costas do povo; ao mesmo tempo em que os setores agro-exportadores e financeiros se locupletam com lucros em dólares e com as garantias dadas pelo Estado a partir de inúmeras isenções fiscais e perdões inaceitáveis de dívidas colossais, que só se acumulam. Em última análise, a economia nacional está montada sobre a funcionalidade dos interesses destes setores (o agronegócio e os bancos, principalmente).

         Há que se ter um projeto baseado em uma perspectiva que tenha como eixo um plano de desenvolvimento de ciência e tecnologia próprias e, consequentemente, de enfrentamento aos setores do agronegócio, dos bancos e das transnacionais, que impedem e atrofiam estas áreas; e cuja fonte de enriquecimento é justamente a atual estrutura sócio-econômica que submete a economia ao mercado mundial e à tecnologia estrangeira. Lula e o PT propõe “negociar” pacificamente com todos eles, acalmando apetites econômicos insaciáveis que terminam, ao fim e ao cabo, sufocando toda a possibilidade de mudança e de desenvolvimento econômico autônomo do país – até que o desgaste político inevitável dos governos petistas possibilite novos golpes protagonizados pela elite nacional e internacional, interessadíssima na manutenção desta estrutura sócio-econômica.

         Para além de um projeto independente de desenvolvimento de ciência e tecnologia, é necessário criar um parque industrial baseado num mercado interno e regional, que sejam o máximo possível autônomos e rompam com as fontes de “investimento” exclusivamente dependentes do capitalismo estrangeiro, seja ele estadunidense, europeu ou chinês. Em síntese: é necessário tomar o controle da economia nas nossas próprias mãos, de forma autônoma e soberana. Dificilmente, dado o plano de governo, o arco de alianças e a estratégia política, o petismo será capaz de fazer isso – a não ser que seja muito pressionado pelo movimento de massas organizado (algo que no momento está fora de cogitação, dado que é hegemonizado pela ditadura sindical petista contra oposições independentes).

***

         Dentro desta perspectiva de buscar a soberania econômica, é necessário enfrentar o autonomismo desenvolvimentista da região sudeste em relação ao desenvolvimento geral do país – em especial, enfrentar o problema da situação autônoma de São Paulo, que se estende desde a revolução de 1930 e a contrarrevolução paulista de 1932.

         O regime político que ficou conhecido como República Velha garantia a São Paulo e à região sudeste um desenvolvimento econômico a revelia da nação, concentrando investimentos e tendo vantagens econômicas que atrofiam o desenvolvimento do restante das regiões do país[9]. No essencial, esta situação não se modificou. Um eventual governo Lula, se quer ser sério no discurso de “soberania”, precisa ter uma política para superar este problema, utilizando-se da riqueza de São Paulo para desenvolver economicamente o resto do país e evitando que ela sirva de simples porta de entrada para o imperialismo estrangeiro.

 

2.

         Parte fundamental do controle sobre a própria economia diz respeito a enfrentar o problema da dívida pública, que como já ficou demonstrado, representa um vínculo escravista contemporâneo. É imprescindível realizar uma auditoria da dívida pública, anular e não pagar os valores fraudulentos e que foram contraídos a partir de negociatas do setor privado.

         O governo Dilma se negou a realizar tal auditoria e, provavelmente, um novo governo Lula, por sua própria natureza, não enfrentará o problema. Sem essa medida fundamental não haverá mudança, mas apenas a postergação de novos e piores golpes por parte da elite nacional e internacional. Uma vez que a sangria desatada da dívida pública seja estancada, os investimentos devem ser buscados nos bancos públicos e nos investidores internacionais que não chantageiem e imponham exigências draconianas de desmontes de cadeias produtivas nacionais, como fazem o Banco Mundial, o FMI, o “consenso” de Washington e a grande mídia burguesa, que é a porta voz dos primeiros (utilizar-se, talvez, da demagogia chinesa de “desenvolvimento multipolar” seria interessante). A moeda nacional deve buscar vincular-se com algum recurso energético fundamental, que tenha respaldo na produção econômica real, desvinculando-se do dólar, cuja principal finalidade tem sido especular com capital improdutivo para enriquecer a elite norte-americana.


3.

         Um governo com projeto de desenvolvimento econômico autônomo precisa utilizar-se dos bancos públicos para intervir no mercado interno, visando baixar taxas de juros, controlar a usura e a roubalheira desenfreada dos bancos privados, nacionais e estrangeiros – e do mercado (sobretudo do mercado financeiro que o utiliza para especular, sem nenhum retorno na economia real direcionado ao povo – afinal de contas, não é apenas a “reforma tributária” que deve distribuir renda)!

         Para isso, é importante combater abertamente a ideologia neoliberal, que condena como pecado qualquer intervenção estatal na economia privada. Sem isso não haverá a menor chance de desenvolvimento econômico para o país, mantendo-se e aprofundando-se a espoliação do povo. Nesse sentido, um futuro governo que almeje uma mudança real – como Lula e o PT insinuam – precisa organizar o enfrentamento teórico e ideológico em um amplo debate público nacional para desmascarar a ideologia neoliberal nos seus mais íntimos detalhes e implicações – desmascarando, sobretudo, os perniciosos discursos militantes da grande mídia burguesa de forma aberta e direta –, e não continuar discursando radicalmente apenas para consumo restrito de grupos de militantes e sindicalistas, mas voltar-se para a massa do povo por todos os espaços possíveis: televisão, rádio, internet, redes sociais, atos e debates públicos. Um futuro governo Lula poderia cumprir este papel?

 

4.

         Iniciar uma campanha de esclarecimento popular sobre as concessões públicas para as empresas da grande mídia, relembrando periodicamente o prazo em que expiram. É inaceitável que somente o bolsonarismo tenha ameaçado a Rede Globo com a cassação da sua licença, enquanto que o petismo concilia desavergonhadamente com este antro de golpes, mentiras e dissimulações, orientadas pelos EUA.

         O primeiro passo é demonstrar publicamente o prazo em que expira tais concessões, seja da Rede Globo ou de qualquer outra emissora. Após, reestabelecer parâmetros para um novo debate nacional acerca de futuras concessões ao setor privado. Assim como é importante utilizar os bancos públicos para intervir na economia, visando competir e obrigar os bancos privados a baixarem suas taxas de juros e dividendos, é fundamental criar uma emissora pública para todas as esferas da grande mídia visando diminuir progressivamente a influência da Rede Globo e das demais emissoras comerciais sobre o senso comum nacional, cuja finalidade é promover todos os debates públicos que são censurados “democraticamente” pelo jornalismo e demais programas destas emissoras, politizar o povo e criar a possibilidade de uma opinião pública pensante e independente.

         Um governo que almeja uma “mudança real no país”, para além de controlar publicamente as concessões e criar emissoras públicas de longo alcance, precisa apontar para a construção permanente de debates públicos da programação e dos conteúdos veiculados na sua grade diária, seja por congressos periódicos da classe trabalhadora, convocados e debatidos com toda a sociedade, seja por debates em instâncias de base, como sindicatos e associações da sociedade civil, transformando a TV de um instrumento de mera alienação, publicidade, opressão e dominação, em um meio para a formação educativa, cultural e social de todo o povo[10].

 

5.

         Não haverá mudança no país sem o enfrentamento direto a sua “elite do atraso”, a mesma que patrocina inescrupulosamente golpes contra qualquer governo que expresse tendências “minimamente populares”. No momento atual do país significa se enfrentar (inclusive militarmente) com o agronegócio, que mata ativistas sem terra, indígenas e pequenos proprietários. Portanto, não será viável apenas uma negociação pacífica.

         Se enfrentar com o agronegócio implica o combate a todos os seus representantes e partidos no Congresso Nacional – bem como ao seu poder extra-oficial, que conta com jagunços e ramificações paramilitares. Conciliar com eles, tal como propõe Lula, deixará aberto todas as portas possíveis para futuros golpes. Os fazendeiros do agronegócio, acostumados a mandar e desmandar no país, raciocinam rápido. Sabendo habilmente manter seus privilégios, eles acenam “trégua” com “negociações” onde só o governo realmente cede, esperam a onda petista baixar e o povo se cansar de esperar, e então desfecham certeiramente o contragolpe. Acreditar na sua bondade e conciliar com os seus representantes é não querer aprender nada com a história.

         Em um governo autenticamente popular, o agronegócio deveria ser regulamentado pelos movimentos sociais e ambientalistas, passando a pagar impostos progressivos e a cumprir leis. Caso contrário, deveria ser expropriado sem indenização. Qualquer desastre ambiental reincidente provocado por fazendeiros ou grandes empresas, bem como ataque a órgãos fiscalizadores, deveriam ser punidos como crimes inafiançáveis e expropriações (até mesmo Hamilton Mourão defendeu isso retoricamente[11]).

         A reforma agrária precisa avançar, sem meias palavras, visando não apenas atacar o latifúndio improdutivo, mas integrando cada vez mais o campo às zonas urbanas para formar e consolidar o mercado interno. Dificilmente tais propostas poderão ser concretizadas de forma pacífica, através das “habilidades de negociação” de Lula e do PT. Como já foi debatido por este blog[12], será necessário avançar para métodos da ditadura do proletariado (algo que é totalmente descartado pelo programa petista, que prefere esperar por novos golpes).


6.

         Quando falamos em ter o controle sobre a própria economia em um país continental e cheio de recursos como o Brasil, isso significa, forçosamente, ter o controle sobre a sua matriz energética, não apenas pelo controle do preço dos combustíveis, mas pela autossuficiência produtiva. A busca pela independência tecnológica significa também a busca por novas matrizes energéticas capazes de fazer a economia andar de forma autônoma e a sociedade ter capacidade própria de produzir. Enquanto não houver uma matriz alternativa que supra as necessidades fundamentais, deve-se usar a grande produção de petróleo da Petrobrás para investir em pesquisa, educação e tecnologia; além disso, o Estado deve subsidiar sim, se necessário for, o preço dos combustíveis, tal como fazem na maior parte dos países do mundo que querem ser soberanos.

Existem bons projetos que apontam para a utilização de energia eólica e solar, não só no Brasil, mas na América Latina (embora ainda muito incipientes). Outra perspectiva muito importante já apontada por pesquisadores brasileiros e exposta em uma ala do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, é a possível extração de energia dos oceanos. Como o Brasil é um país com uma das maiores costas do mundo, investir neste tipo de pesquisa pode render bons frutos para a sua autossuficiência energética. Uma vez que obtenha êxito, pode ajudar outros países e criar uma malha independente da imposta pelo imperialismo hegemônico aos países semicoloniais.


 

7.

         Os projetos educacionais dos governos petistas não questionaram currículos e práticas pedagógicas arraigadas na educação pública brasileira. Garantiu o acesso para negros e negras nas universidades federais – fato progressivo, embora contraditório e insuficiente –, sem sequer questionar uma vírgula dos seus conteúdos pró-burgueses, nem do modelo vigente até aqui.

Qual é o projeto educacional do país? Nenhum! É formar indivíduos com base na meritocracia para que conquistem o “seu lugar ao sol”, sem nenhum tipo de soberania nacional e popular através de desenvolvimento de ciência e tecnologia.

         Não há sequer a preocupação com um desenvolvimento humanista, de socialização da cultura geral, mas apenas a reprodução autoritária do que vem de cima. Basta ver como foi a gestão petista de uma secretaria de educação estadual (como a do RS) para se perceber o quanto foi anti-freiriana, apesar do discurso em contrário; e como reproduzia as práticas autoritárias de cima pra baixo, quase sempre desrespeitando a gestão democrática da escola pública e sua (suposta) autonomia pedagógica prevista em lei.

         O mínimo que se poderia exigir de um futuro governo Lula é um projeto educacional com liberdade pedagógica e direitos garantidos de autogestão, linkados ao projeto de desenvolvimento de ciência e tecnologia, procurando garantir a autonomia da comunidade escolar e universitária. Tal autonomia deve, evidentemente, buscar resultados por si mesma para ser garantida. Mas quem tem que ter o poder de avaliar isso é a própria comunidade envolvida com sua unidade de ensino, sendo capacitada para conseguir analisar os resultados de sua produção científica e educacional.

         Não poderia deixar de ser mencionado os cortes de verbas públicas pelo governo Dilma que fazem os governos neoliberais corar de vergonha. Não se pode tolerar nenhum centavo a menos na educação pública, sobretudo se sustentamos no discurso que queremos a soberania nacional. O investimento deve ser progressivo de acordo com o mínimo desenvolvimento econômico do mercado interno.

 

8.

         As instituições democrático-burguesas, como o Congresso Nacional, as assembleias legislativas estaduais e as câmaras de vereadores, são anti-democráticas por natureza e servem apenas para esfriar a resistência popular. Vivem de conchavos de bastidores e da promoção escancarada de ilusões, sejam eleitorais, sejam políticas.

         O petismo fala apenas em “maiorias”, sem falar na superação destas instituições. Ou seja, bastaria conquistar a maioria nelas para se começar um “processo de mudanças sociais”. Estas ilusões se arrastam, mesmo após 14 anos de governos federais petistas.

         Seria uma casualidade não conseguir uma “maioria petista” mesmo no auge da popularidade de Lula e Dilma? Seria uma mera casualidade a existência do “centrão”, com seu enorme poder decisório que não corresponde as suas bases sociais reais? Seria uma mera casualidade que as maiorias sempre ficam com as bancadas da bala, da Bíblia e da soja?

         O que fazer com as instituições democrático-burguesas? O apelo popular do petismo deveria ser utilizado para pressionar tais instituições até a sua destruição completa e substituição por outras, de caráter popular, com mandatos curtos e revogáveis, que sejam o reflexo da classe trabalhadora organizada. Sabemos que, infelizmente, o petismo é inimigo declarado deste projeto. Sendo assim, não há nada a se esperar das suas propostas de “reformas políticas”, que só podem versar sobre “listas de candidatos, partidos e frentes eleitorais”.

         Com um Congresso Nacional dominado pelo “centrão” e pelas bancadas reacionárias, Lula terá condições políticas reais para “revogar o teto de gastos, a política de preços da Petrobrás e a reforma trabalhista”, tapando os ouvidos para o “mimimi do mercado”[13]? Muito provavelmente não!

Reconhecer isso não significa “torcer contra”, como agita grande parte da militância petista. Trata-se, antes de qualquer coisa, de reconhecer que a preparação política para o enfrentamento com a elite nacional e o seu “centrão” no Congresso Nacional não é suficientemente forte, nem cria outros mecanismos políticos e sociais capazes de derrota-los. A forma de funcionamento das instituições burguesas, tal como o Congresso Nacional, é precisamente a fonte da força do “centrão” e da elite nacional. Fechar os olhos para isso e conciliar com esta forma de funcionamento é, precisamente, renunciar a qualquer mudança real no país.

Muitos ativistas e organizações advertem sobre a possibilidade de um possível golpe militar em caso de eleição de Lula. Uma parte da burguesia já se colocou contra isso, no entanto, como Bolsonaro é um capacho de Trump e cia., certamente preparará uma cena deprimente com consequências imprevisíveis, tal como fez o seu amo no final do seu mandato ao ocupar o Congresso estadunidense com sua tropa de “confederados neonazistas”.

O mais provável, contudo, talvez seja a ocorrência de um “efeito Getúlio”; isto é, um movimento em que a elite nacional ligada ao bolsonarismo – que ainda possui certo apoio popular – aja cotidianamente para impossibilitar a governabilidade, tal como Carlos Lacerda e a sua trupe fizeram na época de Getúlio para impedi-lo de governar, levando à paralisia completa do governo e das instituições democrático-burguesas. Se a pauta dos BRICs avançar, certamente a elite ianque trabalhará com a elite brasileira para acelerar o boicote e a sabotagem.

Mensagem de uma militante petista nas redes sociais
 

9.

         Além do problema institucional político, há o problema jurídico. A justiça brasileira também é burguesa e fechada em castas que se autoprotegem desde o período imperial (1822-1889). É burguesa porque além de procedimentos caros e ineficientes, que vedam absurdamente o direito de se falar em nome próprio, também permitem que as principais decisões sejam tomadas pelo peso econômico dos agentes envolvidos, direta ou indiretamente, exercendo a pressão formal ou informal necessária para se vencer um processo. O poder do dinheiro e da politicagem burguesa se impõe sobre as decisões jurídicas – basta ver a fraude judicial da Lava-Jato.

         Mudar a justiça não significa seguir uma demagogia meramente identitária, colocando rostos negros, femininos ou LGBTs na sua cúpula institucional para, justamente, preservar toda a base podre do edifício inteiro. Significa, antes de tudo, desburocratizar processos para resolução de conflitos, eliminar ou diminuir custos, possibilitar autorepresentação, mudar radicalmente a “cultura do direito” com custosos processos inúteis, tentando consenso via debates públicos, transparentes, abertos; e, também, acabar com os privilégios salariais e materiais de juízes, ministros e políticos, criando a necessidade de eleição direta para juízes em cada comarca e região, com mandatos revogáveis, tal como deveria ocorrer em qualquer outro posto importante de comando público.

           Este é apenas um primeiro passo singelo para democratizar a justiça. Terá a militância petista aprendido alguma coisa com a Lava-Jato e as decisões jurídicas contra inúmeras greves Brasil afora?

 

10.

         Parte da soberania nacional vai além da economia: encontra-se no campo político. É fundamental que um eventual governo petista mude a postura frouxa em relação à entrada e saída de estrangeiros suspeitos no Brasil; sobretudo daqueles países que possuem um histórico de golpes contra a América Latina, como é o caso dos EUA. Lula discursa apenas “contra a fome”, despreocupando-se com questões militares e estratégicas fundamentais; demonstrando, portanto, como entende as questões relacionadas à soberania nacional.

A essência do discurso lulista é “os EUA são ‘maus’, só pensam em guerra” e nós somos “bonzinhos e estamos preocupados em vencer a fome”. Mas não se tem soberania, nem se vence a fome sem estar preparado militarmente para isso – inclusive para enfrentar os possíveis golpes de Estado que mantém o saque e a exploração do povo, sem tecnologia militar e logística, sem controle rígido de entrada e saída de infiltrados estrangeiros, sobretudo norte-americanos, que sabidamente intervieram em inúmeros momentos da história do Brasil para dar golpes, como intervém direta ou indiretamente em vários outros países do mundo para sabotá-los.

O caso da fraudulenta operação Lava-Jato parece não ter ensinado nada para a militância petista. Recentemente o canal do Youtube, Meteoro Brasil, publicou um vídeo analisando o livre trânsito de membros do FBI no território nacional com a clara finalidade de preparar a operação que deu o golpe contra o governo Dilma[14]. Frente aos pedidos de explicação do ex-ministro da justiça, os golpistas não esclareceram nada e ainda fizeram troça do governo. Nem governo, nem grande mídia cumpriram papel algum de combater tal ataque descarado à soberania nacional.

Lembramos ainda da frouxidão do governo Dilma frente ao grampo da Petrobrás e das advertências que recebeu do governo russo sobre a tramitação nos bastidores políticos internacionais do golpe em 2016. Para tentar demonstrar uma indignação estéril, pateticamente Dilma fez um discurso “furioso” dizendo para seus adversários irem “grampear o presidente dos EUA para ver o que acontece”[15]. Esse discurso encarna todo o vira-latismo nacional, sem nenhuma sombra de soberania. Podemos interpretar o exato oposto: não acontece nada se se grampear o presidente do Brasil! Medidas severas deveriam ter sido tomadas contra os grampeadores estrangeiros e nacionais. Getúlio Vargas, por muito menos, endureceu o regime do país. Temendo a acusação de “ditadura”, o petismo foi conivente com os grampos e com a preparação do golpe contra si mesmo.

Com este tipo de “fúria” de Lula e Dilma, teria o PT mudado sua postura? Tudo indica que não. Assim sendo, trata-se de manter o país de joelhos, a mercê de qualquer aventura golpista da elite nacional e internacional – aliás, esta posição “pacifista”, baseada num discurso bonito apenas contra a fome é algo que é esperado não apenas pelo imperialismo, mas pelos opositores de plantão no parlamento e na grande mídia, que certamente saberão, no devido momento, tirar todo o partido desta frouxidão.

***

         A você, militante ou simpatizante do movimento Lula-2022, que conseguiu ler até aqui, aí estão 10 elementos para a reflexão, que trazem também sugestões de que pressão exercer no futuro governo em caso de vitória eleitoral. Do contrário, é ficar passivamente esperando mudanças que não virão – a não ser arremedos de políticas compensatórias que serão retiradas na próxima esquina da história, deixando sempre presente a possibilidade de novos e piores golpes –, além de alimentar as próprias ilusões... e as ilusões do povo, o que é muito pior!

 

 

Referências


[1] Ver, respectivamente: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/05/04/revista-time-divulga-lula.ghtml ; e: https://www.brasil247.com/mundo/diretor-da-cia-alertou-governo-brasileiro-que-bolsonaro-deveria-parar-de-questionar-integridade-das-eleicoes?amp=&utm_source=onesignal&utm_medium=notification&utm_campaign=push-notification

[2] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/11/por-que-classe-trabalhadora-brasileira.html

[3] Ver: https://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2018/08/plano-lula-de-governo_2018-08-14-texto-registrado-3.pdf (este plano é de 2018, mas as suas bases fundamentais são as mesmas que sustenta o petismo em todas as suas intervenções públicas ainda hoje).

[4] Idem.

[5] Idem (página 17).

[6] Idem (página 11).

[7] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2022/03/russia-e-china-cumprem-um-papel.html

[8] Ver: https://veja.abril.com.br/coluna/radar-economico/o-recado-ameacador-do-centrao-para-lula-e-o-pt/

[9] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2022/05/sao-paulo-locomotiva-puxando-vagoes.html

[10] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2015/06/os-meios-de-alienacao-em-massa.html

[11] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/11/propriedade-sagrada-natureza-profana.html

[12] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/10/reflexoes-sobre-transicao-socialista.html (ver tópico 8).

[13] Ver: https://blogs-oglobo-globo-com.cdn.ampproject.org/v/s/blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/amp/gleisi-diz-que-lula-nao-fara-carta-ao-povo-brasileiro-nem-deve-atender-mimimi-do-mercado.html?amp_gsa=1&amp_js_v=a6&usqp=mq331AQIKAGwASCAAgM%3D#amp_tf=De%20%251%24s&aoh=16418284750304&csi=0&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&ampshare=https%3A%2F%2Fblogs.oglobo.globo.com%2Fmalu-gaspar%2Fpost%2Fgleisi-diz-que-lula-nao-fara-carta-ao-povo-brasileiro-nem-deve-atender-mimimi-do-mercado.html

[14] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=RInN4KAm0kI&t=887s&ab_channel=MeteoroBrasil

[15] Ver: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,dilma-rebate-comparacao-de-moro-a-escandalo-de-watergate--com-presidente-nixon-nos-eua,10000021992