domingo, 21 de junho de 2020

Conceitos Políticos Escandalosos

Crítica aos "Conceitos Políticos Básicos" de Nahuel Moreno
*Texto escrito por João de Barro para a Luta Marxista e publicado originalmente no seu site em 2009

O livro “Conceitos Políticos Básicos” é uma coleção de conceitos e métodos escandalosos, ecleticamente misturados a verdades e meias verdades, orquestrados com a finalidade de defender uma política, a saber: a revolução por etapas e a conciliação de classes. Faz terra arrasada do marxismo. Em conjunto com outros livros de Moreno - Revolução Democrática Triunfante, Teses para Atualização do Programa de Transição, As Revoluções do Século XX - cria uma doutrina revisionista, com a qual deseduca e confunde a vanguarda. Não é nosso objetivo abordar o conjunto desse revisionismo, mas apenas recuperar alguns conceitos marxistas das grosseiras distorções constantes nesse primeiro texto citado.

Conceitos escandalosos
Moreno começa conceituando estratégia e tática: “O marxismo extraiu esses dois conceitos da ciência militar”. “... a estratégia tem a ver com o objetivo final, de conjunto, a longo prazo, e as táticas são os diversos meios para chegar a esse objetivo. Ambos são termos relativos”. Logo a seguir define o que seria a estratégia: “Mobilizar as massas e construir o partido para a tomada do poder”. Salta aos olhos que o primeiro objetivo, mobilizar as massas, não pode ser uma estratégia, entendida como um objetivo final. Cada mobilização tem o seu próprio objetivo. Pode-se dizer que as mobilizações, em geral, favorecem a realização das tarefas do proletariado. Mas nem sempre é assim. Existem mobilizações inconvenientes, equivocadas, prematuras. Mobilização é apenas um método privilegiado, não um objetivo permanente, muito menos uma estratégia. A construção do partido, de fato, é um objetivo permanente, uma necessidade imprescindível para a emancipação da classe operária. Mas também não é uma estratégia em relação a essa emancipação, mas um meio para ela.

Em As Lições de Outubro, Trotsky define tática e estratégia da seguinte forma: “Em política, entende-se por tática, por analogia à ciência da guerra, a arte de orientar operações isoladas; por estratégia, a arte de vencer, isto é, conquistar o poder”. Por que será que Moreno transforma os objetivos parciais (as mobilizações) e subordinados (a construção do partido) em estratégia final e ignora a verdadeira estratégia (a conquista do poder pelo proletariado)? A nosso ver, isso serve aos seguintes objetivos: secundarizar a real estratégia - a revolução socialista - e preparar as justificativas para a sua tática de frente única, onde qualquer frente se justificaria se ajudar nas mobilizações.

Para Moreno: “A primeira, a construção do partido, depende muito de nós (é subjetiva), enquanto a mobilização, não. É independente dos desejos e da vontade (e até da existência) dos revolucionários”. Diz também que: “Há etapas de luta e de mobilização, e etapas nas quais estas não ocorrem. Por isso, é tão importante procurar sempre as táticas, a política, que responda à situação objetiva”. Isso é uma meia verdade, portanto, completamente falso. Nem a construção do partido é apenas subjetiva, ou seja, dependente exclusivamente de nós, nem a mobilização é objetiva, não depende de nós. Na verdade, Moreno admite: “Diante de um partido com influência de massas, a questão mudaria bastante”.

O marxismo considera o partido como a auto-seleção dos elementos mais conscientes, devotados e combativos. Nesse sentido, a construção do partido seria uma tarefa subjetiva. No entanto, o partido não é um ente isolado da sociedade, é uma parte e um instrumento do proletariado. Depende da existência e do amadurecimento do proletariado e, a longo prazo, das suas lutas. Existe uma via de duas mãos, dialética, entre a luta de classes e a construção do partido. Portanto, sua construção, do ponto de vista histórico, também depende de fatores objetivos.

O mesmo se diga da mobilização. Genericamente, é absolutamente falso que é um fenômeno objetivo, que não depende de nós, ou seja, do partido, dependendo em grau menor dos partidos de massa. Existem períodos alternados de ascenso e descenso das lutas proletárias. Nos períodos de derrota, mesmo um partido de massas não tornaria efetiva uma greve geral, por exemplo. Mas para as derrotas é decisiva a política traidora das direções, um fator subjetivo. E a superação da apatia das massas dependerá não só de fatores objetivos – as crises, a miséria social -, mas igualmente da política cotidiana do partido, uma questão subjetiva. É verdade que as mobilizações não dependem totalmente do partido, que não pode tudo. Entretanto, dadas as condições objetivas, o partido é determinante para as mobilizações e, acima de tudo, para a criação de uma situação revolucionária.

Ao contrário do que afirma Moreno, a construção do partido e as mobilizações são condicionadas tanto por condições objetivas como subjetivas. A realidade é concreta, deve ser analisada concretamente, devemos considerar os diversos fatores e as suas relações. Moreno cria um esquema petrificado: construção do partido seria subjetiva; as mobilizações, objetivas. Ao mesmo tempo incorre numa contradição: como as mobilizações poderiam ser uma estratégia permanente do partido, se não dependem da sua vontade – ou dependem secundariamente – no caso dos partidos de massa? Esse é um esquema espontaneísta e de secundarização da importância do partido.

Para os conceitos de agitação e propaganda, se vale da definição de Plekhanov, não literal e sem citá-lo: “Propaganda é a atividade de dar muitas idéias para poucas pessoas. Agitação é a atividade de dar poucas idéias a muitas pessoas”. A seguir “aprofunda” Plekhanov: “A agitação, pelo contrário, consiste em colocar umas poucas palavras de ordem (às vezes apenas uma) que dêem solução para a luta que esteja colocada em cada momento para o movimento operário de massas”. Isso é semelhante ao “aprofundamento” de Plekhanov pelo economicista Martynov, citado por Lênin em Que Fazer?, a saber: “Por agitação, no sentido estrito da palavra, entendemos o apelo dirigido às massas para certos atos concretos...” (Que Fazer?, capítulo: Como Martynov aprofundou Plekhanov). Moreno alega basear-se em James Cannon, trotskista, dirigente do SWP dos EUA, para criar essa nova categoria – agitação para a ação: “Cannon agregou um segundo tipo de agitação, para a ação: o lançamento de palavras de ordem para serem concretizadas”. Como vimos, essa categoria, agitação para a ação, não é nova, remonta aos economicistas.

Lênin criticou essa categoria criada por Martynov, e agora repetida por Moreno, nos seguintes termos: “Distinguir um terceiro domínio, ou uma terceira função da atividade prática, função que consistiria em ‘atrair as massas para certos atos concretos’ é o maior dos absurdos, pois o ‘apelo’ sob forma de ato isolado, ou é o complemento natural e inevitável do tratado teórico, do folheto e propaganda, do discurso de agitação, ou é uma função pura e simples de execução” (Que Fazer?).

Moreno amesquinha o trabalho de agitação, reduzindo-o a uma atividade prática. Ao contrário, Lênin apoiando-se em Plekhanov usou o problema do desemprego para exemplificar: “... um propagandista, ao tratar, por exemplo, do problema do desemprego, deve explicar a natureza capitalista das crises, mostrar o que as torna inevitáveis na sociedade moderna, mostrar a necessidade de transformação dessa sociedade em sociedade socialista, etc. Em uma palavra, deve fornecer ‘muitas idéias’, um número tão grande de idéias que, de momento, todas essas idéias tomadas de conjunto apenas poderão ser assimiladas por um número (relativamente) restrito de pessoas. Tratando da mesma questão, o agitador tomará, ..., por exemplo, uma família de desempregados morta de fome, a indigência crescente, etc., e, ..., fará todo o esforço para dar à massa ‘uma única idéia’: a da contradição absurda entre o aumento da riqueza e o aumento da miséria; esforçar-se-á para suscitar o descontentamento, ..., deixando ao propagandista o cuidado de dar uma explicação completa dessa contradição” (Que Fazer?).

Para Moreno: “Em geral, a propaganda se dirige à vanguarda e a agitação a toda a população trabalhadora, à classe operária e às massas exploradas”. Com isso, a propaganda de massas é abolida e a agitação se restringiria apenas aquela para a ação imediata. A rigor, a agitação serviria somente para pressionar as organizações de massas, em geral, traidoras. Os exemplos que cita são nesse sentido. Essa é a matriz metodológica de toda a política oportunista de frente única do morenismo.

A questão da unidade
A questão da unidade evidencia o verdadeiro sentido da “eleição” inicial da “mobilização permanente” como objetivo estratégico: “... para ajudar a ação e a mobilização, fazemos todo tipo de acordos e nos parece extraordinário que intervenham todas as forças operárias, mesmo que sejam organizações stalinistas ou burocráticas. Em outras palavras, podemos fazer pactos, acordos, unidades de ação ou qualquer coisa pelo estilo, conjuntural, até com o diabo e a sua avó – para usar uma expressão célebre – se ajuda nos fins estratégicos de construir o partido e ampliar a mobilização”. Dessa forma os interesses da mobilização justificam qualquer tipo de acordo, mesmo os mais oportunistas e reacionários, como veremos. No Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Lênin defende a necessidade de estabelecer compromissos, contra a opinião dos ultra-esquerdistas, mas, ao mesmo tempo, previne contra os oportunistas: “Se os bolcheviques se permitem um ou outro compromisso, porque não havemos nós de permitir-nos qualquer compromisso”. A seguir fala dos compromissos necessários e dos “compromissos de traidores”: “Preparar uma receita ou uma regra geral (nenhum compromisso!) para todos os casos é absurdo. É preciso ter a cabeça no lugar para saber orientar-se em cada caso particular”. Não basta que o acordo possa ajudar na mobilização. A realidade é mais complexa. Com esse método se justifica qualquer oportunismo.

Para Moreno, as mobilizações têm uma virtude especial: “...onde há ação e mobilização começa a haver rompimento no aparato burocrático e traidor, surgimento de correntes operárias, sejam organizadas ou não, que vão se tornando independentes, que vão se deslocando para a esquerda e no enfrentamento a essas direções burocráticas, no terreno sindical e político” (grifo nosso). Essa é mais uma generalização oportunista. Essa virtude espontaneísta as mobilizações não têm e a História não confirma. Os rompimentos se baseiam, sobretudo, na luta política e ideológica, não apenas nas mobilizações. Essa teoria é uma fábrica de falsos rompimentos progressistas.

A frente única
A frente única, como tática especial, surgiu no III Congresso da Internacional Comunista, do qual Moreno faz referência e parece se reivindicar. No entanto, a sua teoria de frente única é o oposto, a negação mais cabal do que preconizou aquele Congresso. Foi uma tática adotada pela Internacional em razão da divisão do proletariado europeu entre o comunismo e a social-democracia, ambos partidos de massa. Respondia à necessidade e ao desejo de unidade do proletariado para a luta defensiva diante da burguesia, cuja dominação se estabilizava novamente.

A tática de frente única estava, pois, circunscrita a essa realidade e se definia como “acordos práticos para ação de massas, para fins de combate”. Moreno chama esses acordos práticos de “unidade na ação” em oposição à frente única propriamente dita, que seria uma unidade programática e mais ou menos permanente: “Se falamos de frente – ou seja, do oposto da unidade de ação conjuntural, do acordo ou pacto conveniente, em torno de uma palavra de ordem – falamos da formação de algum tipo de organismo permanente e de um programa, tem que ser organização da mesma classe, ou seja, organizações operárias (negrito no original). Essa divisão entre esses dois tipos de unidade – unidade na ação e frente única – nunca existiu no campo do marxismo, em toda a sua literatura clássica. É uma invenção oportunista. Todos os textos clássicos sobre a questão da unidade – as teses do III e IV Congressos da III Internacional, os escritos de Trotsky sobre os sindicatos, Revolução e Contra-revolução na Alemanha, entre outros – definem frente única e unidade na ação como uma única e mesma coisa: Nenhuma plataforma comum com a social-democracia ou com os chefes dos sindicatos alemães, nenhuma edição, nenhuma bandeira, nenhum cartaz comum: marchar separadamente, lutar juntos. Combinação apenas nisto: como combater, quem combater e quando combater? Nisto, pode-se entrar em acordo com o próprio diabo e a sua avó e mesmo com Noske e Grzesinski. Com uma condição: conservar as mãos livres” (grifos nossos). Esta citação Moreno conhece muito bem, tanto é assim que a cita parcialmente, como vimos atrás: “podemos fazer acordos, pactos, ..., até com o diabo e a sua avó – para usar uma expressão célebre”. E existem muitas outras citações célebres no mesmo sentido. Da citação célebre lembrou-se do diabo e da sua avó, mas esqueceu-se do fundamental, isto é, dos princípios da independência de classe: nenhuma plataforma ou programa comum, lutar juntos, mas marchar separados. Ao contrário, inverte o conceito de frente única e a transforma em unidade programática. Ninguém lhe nega o direito de revisar o marxismo, desde que o diga explicitamente. Negamos-lhe o direito de prostituí-lo disfarçadamente, fazendo passar como sendo tal o seu oposto. Desafiamos todo e qualquer discípulo de Moreno a nos apresentar uma única citação dos clássicos marxistas onde seja feita a distinção entre unidade na ação e frente única.

A unidade morenista em particular
Vimos que a tática bolchevique de frente única implicava apenas em “acordos práticos para ação de massas”. Moreno chama de frente única o seu oposto, com a condição de que sejam com organizações operárias: acordos programáticos, ou seja, frentes orgânicas em torno de programas comuns com os inimigos de classe, com o pretexto de que ajudam na mobilização. Afirma que a independência do partido não fica comprometida: “... é bom esclarecer que nós nunca apoiamos uma direção burguesa, pequeno burguesa ou operária traidora, reformista ou burocrática, mesmo quando estivermos taticamente unidos numa luta. Nós somente apoiamos as lutas e as mobilizações, ...” (negrito no original). Que bom saber! Para tanto se vale da tática milagrosa chamada de unidade/enfrentamento, que limpa o partido de qualquer “pecado” oportunista: “... entre o acordo e o enfrentamento, se chega o momento em que se coloca abertamente essa contradição, nós continuamos denunciando essas direções mesmo que o acordo rompa. ... as denunciamos sempre e, dialética e contraditoriamente, o momento que mais a denunciamos é quando estamos unidos taticamente a elas ...”.

Essa fraseologia combativa e “denuncista” das direções traidoras, “mesmo que o acordo rompa”, nada mais é do que despiste para encobrir a conciliação de classes, porque está em contradição com a lógica desses acordos. A frase condicional “se chega o momento em que se coloca abertamente essa contradição” é uma incoerência. A contradição está colocada desde o primeiro momento, na frente programática em si. Como é possível estabelecer programa comum entre uma direção traidora e uma revolucionária? Entre um programa operário e um programa burguês? Não se trata de uma reivindicação parcial (isto é, acordos práticos para ação de massas), mas de um programa político que aborda as formas de organização da sociedade, a questão do poder.

Moreno tenta despistar essa contradição estabelecendo a condição de que a sua frente única programática somente é permitida com organizações operárias. Isso não resolve a questão. Essa condição de serem operárias as organizações aliadas justificaria a frente única no sentido bolchevique, apenas na luta prática, em torno de questões pontuais. Quando Moreno estabelece essa condição tem em vista principalmente o stalinismo, majoritário na sua época. Esquece que os partidos stalinistas não eram somente operários, mas operários/burgueses: operários pela sua composição, burgueses pelo seu programa. Exatamente por isso é que não se pode fazer frente programática com eles. Isso equivale a uma frente programática com a própria burguesia. É uma traição. Moreno atravessa o Rubicon.

A afirmação de que “nós nunca apoiamos essas direções, apoiamos apenas as lutas”, carece de sentido. Todo acordo programático pressupõe apoio político. Mas, e a tática de unidade/enfrentamento, a “denúncia feroz”? Isso é mais uma piada. Não podemos denunciar o programa voluntariamente acordado. Mas, se a burocracia trair esse programa? Esta, a rigor, não precisa trair o seu programa, ele próprio é a traição. Essa tática/despiste – chamada unidade/enfrentamento – é plenamente consciente, tanto que Moreno estabelece um método que a inviabiliza: “Por exemplo, como nos interessa o não pagamento da dívida, fazemos pacto com quem quer que seja e fazemos a crítica no jornal, e não cada vez que nos reunimos com os nossos aliados ocasionais, já que quase seguramente estragamos essa possibilidade se cada vez que nos encontramos lhes dizemos de tudo, ...”. Assim, os acordos e as frentes são públicos, para a massa, mas as críticas, se houverem, devem ser feitas somente no jornal, para a vanguarda. Isso anula todo a importância da crítica. Para o bolchevismo, frente única é uma tática de desmascaramento, somente tem sentido diante das massas. Dessa forma, vemos como a “crítica feroz e leonina” se transforma num rosnar de gatinho.

A unidade eleitoral morenista
No Conceitos Políticos Básicos fala-se de todo tipo de acordo e organizações de frente única, como se fossem semelhantes e sujeitos aos mesmos princípios. Se estabelece a confusão. Na verdade, essa longa citação de frentes, acordos e compromissos, visa passar como legítimas as frentes programáticas com a burocracia, principalmente, as frentes eleitorais, tipo FREPU – frente eleitoral do MAS com o PC argentino na década de 80 – e, mais tarde, a participação nas frentes populares com o PT nos anos 90, e a Frente de Esquerda, com o PSOL em 2006.

O texto faz referência aos acordos eleitorais dos bolcheviques com os mencheviques, socialistas-revolucionários e, até mesmo, com o partido liberal. No primeiro caso, bolcheviques e mencheviques, por muito tempo, se constituíram em frações públicas de um mesmo partido, cuja separação não estava totalmente consumada. Alternaram-se períodos de maior ou menor proximidade. A relação eleitoral entre os dois é um caso muito específico no interior da chamada social-democracia. Nesse período, não pode ser equiparada com frente única entre partidos antagônicos. Não podemos misturar alhos com bugalhos. Essa relação eleitoral entre bolcheviques e mencheviques nada tem a ver com os acordos com o partido liberal ou mesmo com a frente orgânica do MAS com o PC argentino. Os bolcheviques eventualmente chamavam o voto nos candidatos do partido Kadete, liberal, nos segundos turnos eleitorais. Tratava-se de escolher entre os candidatos dos partidos da reação monárquica e os candidatos liberais de oposição. Isso é radicalmente distinto de fazer frente eleitoral com eles, que implica em programa comum. Isso os bolcheviques nunca fizeram e consideravam uma traição. Chamar o voto num candidato liberal não implica em apoiar o programa do liberalismo. Pelo contrário, os bolcheviques aproveitavam a oportunidade para divulgar o seu próprio programa, coisa que seria impossível no caso de uma frente eleitoral programática.

Esse método bolchevique é o mesmo do trotskismo, em toda a sua história, excetuando o revisionismo dito trotskista: mandelismo, lambertismo, lorismo, altamirismo, morenismo, etc. Nesse sentido, transcrevemos a seguinte citação de Trotsky, para a Alemanha dos anos 30: “Em geral, os acordos eleitorais, os arranjos parlamentares feitos entre o partido revolucionário e a social-democracia, servem os interesses da social-democracia. Acordos práticos para ação de massas, para fins de combate, servem sempre a causa do partido revolucionário. Mas precisamente no domínio da propaganda, a frente única é inadmissível. A propaganda deve apoiar-se em princípios claros, num programa definido. Marchar separadamente, lutar juntos. O bloco é unicamente para ações práticas de massa. Os compromissos pelo alto, sem base de princípios, não trazem outra coisa senão confusão. A idéia de se propor o candidato à presidência pela frente única operária é radicalmente errônea. Só se pode propor um candidato na base de um programa definido. O partido não tem o direito de furtar-se, durante a eleição, a mobilizar os seus aderentes e ao recenseamento de suas forças. A candidatura do Partido, oposta a todas as outras candidaturas, não poderia impedir, em nenhum caso, o acordo com as outras organizações para fins imediatos”. (Revolução e contra-revolução na Alemanha).

Capciosamente, Moreno cita a tática eleitoral bolchevique, insinuando semelhança com a sua tática eleitoral de frente eleitoral programática, ou seja, de frentes populares. Por ironia, faz um resumo do Programa de Transição onde consta: “A IV Internacional não tem lugar em nenhuma Frente Popular”.


Outros acordos e organizações de frente única
Como já dissemos, o texto que criticamos faz referência a dezenas de acordos de todo tipo e de organizações de frente única, como os sindicatos e sovietes. Desses casos, alguns guardam alguma semelhança com a tática de frente única, outros não têm nada, ou muito pouco, a ver.

Já definimos a frente única “como acordos práticos para ação de massas”. Podemos acrescentar: é uma tática entre partidos de massa para a luta dentro do capitalismo em torno de uma reivindicação parcial. Podem existir outros acordos entre partidos antagônicos – não para ação de massas, mas para fins específicos – bem como, entre um governo burguês e um partido operário, ou um governo operário e um governo burguês. Exemplos:

- O acordo entre os bolcheviques e os liberais para o transporte de literatura;
- O acordo entre os bolcheviques e o governo da Alemanha, para a passagem pelo seu território num trem especial;
- Determinados apoios parlamentares pontuais a governos sociais-democratas;
- Acordos entre um Estado operário e um Estado burguês, para a defesa do primeiro em caso de guerra.

Este último caso merece um comentário. Stalin não cometeu erro em manobrar entre os imperialismos e receber o apoio das potências democráticas contra o fascismo. Nem haveria crime se tivesse ocorrido o inverso, ou seja, receber apoio do fascismo na eventualidade de uma invasão da Inglaterra e França. O crime foi lhes ter concedido apoio político. Enquanto durou o acordo com Hitler, esqueceu os crimes do fascismo e acentuou os das democracias. Depois, fez o inverso, defendeu politicamente os regimes democráticos em oposição ao regime fascista, suspendeu a luta de classes e a luta pela libertação colonial. Fez o mesmo que preconiza Moreno.

Paralelamente à tática de frente única operária, a III Internacional propôs a tática de frente única anti-imperialista. Esta última se justificava pela avaliação de que as burguesias coloniais encabeçariam movimentos anti-imperialistas, para traí-los logos em seguida. Seria preciso participar desses movimentos para disputar as massas à burguesia. Tratava-se também de uma unidade prática para a luta anti-imperialista. Essa tática, como política privilegiada, não se coloca mais na atualidade, porque a realidade mudou. No entanto, os acordos práticos com a burguesia ainda são possíveis no caso de uma invasão imperialista, como foram os casos do Afeganistão, Iraque, Argentina/Malvinas, etc. A tática de FUA foi ressuscitada por Lambert e adotada por Guilhermo Lora, com entusiasmo. Desde então, tem se constituído na outra versão da conciliação de classes, por parte dessa vertente do “trotskismo”.

Da mesma forma, as citações sobre organizações de frente única – sindicatos e sovietes – foram feitas fora do contexto. Essas organizações nada têm a ver com a tática de frente única. São organizações de frente única da classe trabalhadora. Não se trata de uma tática entre partidos, mas da necessidade objetiva do conjunto da classe de criar organizações unitárias. O partido deve assumir essa tarefa de criar sindicatos e sovietes nos momentos adequados, mas a tática de frente única é algo completamente distinto.

Um programa etapista
Moreno considera a queda da ditadura argentina, em 1982, – e, em geral, de qualquer ditadura – como uma Revolução Democrática Triunfante. Ao contrário, as quedas das ditaduras, na atual fase do capitalismo, têm sido fruto de acordos mais ou menos pacíficos entre os partidos burgueses e a oligarquia militar. É a mesma grande burguesia que sustenta tanto a ditadura quanto o novo regime democrático que a substitui. Nenhuma tarefa democrática histórica é solucionada: a independência nacional e a reforma agrária. Somente isso caracterizaria uma revolução democrática, coisa que as burguesias semi-coloniais não estão mais em condições históricas de fazer. Uma revolução distingue-se também pela mudança na composição das classes, ou setores de classes, no poder. As revoluções democráticas morenistas não preenchem nenhuma dessas condições. Moreno inventa uma revolução democrática inexistente e, para tanto, rebaixa as suas tarefas ao nível de um regime democrático reacionário dirigido pela grande burguesia. Faz passar as pretensas revoluções de regime – a substituição de uma ditadura por um regime democrático – como o programa revolucionário. Na atual fase do capitalismo as revoluções democráticas não existem mais. As tarefas democráticas históricas continuam atuais, mas atualmente o caráter da revolução é dado pelas tarefas socialistas – a expropriação dos monopólios – que se colocam na ordem do dia desde o primeiro momento.

Para defender essa política reacionária, falsifica o bolchevismo: “... nossa palavra de ordem central era negativa: abaixo a ditadura! Assim como na Rússia, ..., abaixo o Tzar”. Como assim? Da onde tira essa conclusão de que na Rússia a palavra de ordem dos bolcheviques era negativa? Significa que o proletariado não deve apresentar a sua alternativa de poder, mas seguir na sombra da burguesia e atribui essa política de capitulação aos bolcheviques. Vejamos o que diz Lênin: “O proletariado revolucionário, ..., exige a passagem completa do poder à assembléia constituinte, tratando de conseguir, para esse fim, ..., a derrubada imediata do governo Tzarista e a substituição do mesmo por um governo provisório revolucionário. Que a instauração da república democrática na Rússia somente é possível por meio de uma insurreição popular vitoriosa, cujo órgão será o governo provisório revolucionário, .... Um governo provisório revolucionário, do qual o proletariado exigirá a realização de todos as reivindicações políticas e econômicas imediatas do nosso programa (programa mínimo)” (grifos nossos – Lênin – Duas Táticas da Social-democracia na Revolução Democrática). Vemos que as palavras de ordem bolcheviques não eram só negativas –abaixo o Tzar – mas positivas – pela república democrática garantida por um governo provisório revolucionário, saído de uma insurreição popular vitoriosa. Pelo visto, entre o morenismo e o bolchevismo existe um abismo.

Na questão do governo operário e camponês, Moreno, mais uma vez, recorre à fraude. No Programa de Transição, Trotsky diz que governo operário e camponês é sinônimo de ditadura do proletariado. Como exceção improvável admite que possa existir um “governo operário e camponês” dirigido por partidos stalinistas ou pequeno-burgueses, coisa que realmente aconteceu excepcionalmente em Cuba e na China. Moreno transforma essa exceção em regra e, mais ainda, numa etapa histórica necessária. Noutros textos da sua corrente, considera-se como governos operários e camponeses até mesmo governos “operários” burgueses, saídos de uma eleição parlamentar, como seria a proposta de um governo Lula na década de 90, quando levantaram a palavra de ordem: Que Lula governe!

Após a revolução democrática – supostamente representada pela queda de uma ditadura – então se entraria na fase da luta por um Governo Operário e Camponês, quando as palavras de ordem passariam a ser positivas: “Por isso, nesta etapa, nossas palavras de ordem centrais já não são negativas como antes, mas sim positivas. ... Mas colocamos fundamentalmente ‘Por um governo da classe operária apoiado no povo trabalhador’. Essa palavra de ordem central assumirá formas mais concretas possíveis, como foi na Rússia ‘todo poder aos sovietes’, ou na Bolívia, todo poder à COB”. A palavra de ordem de “todo poder aos sovietes” – proposta de que os mencheviques e socialistas revolucionários assumissem o poder – levantada pelos bolcheviques, em 1917, não significava uma etapa necessária da revolução, como interpreta Moreno. Era uma reivindicação “pedagógica”, que visava desmascará-los. Estes tinham maioria nos sovietes e se recusavam a assumir o poder em nome destes para compartilhá-lo com a burguesia liberal. Essa tática somente se justificaria naquelas circunstâncias: uma insurreição popular vitoriosa, mas cujo poder os conciliadores transferiam novamente para a burguesia. Mas o que se trata de uma tática de desmascaramento, Moreno transforma numa etapa necessária pela qual a revolução deve passar. Segundo ele a revolução deveria passar por um “governo operário e camponês”, ou seja, por mais uma etapa democrática diferente da ditadura do proletariado, encabeçada pelos partidos traidores. Em As Revoluções do Século XX, afirma que Lênin e Trotsky chegaram a admitir a necessidade dessa etapa. Outra falsificação. O exemplo da palavra de ordem de “todo poder à COB” na Bolívia demonstra que faz desse tipo de proposta uma regra: “... devemos estar preparados para chamar esses partidos – que hoje não existem – a que tomem o poder e rompam com a burguesia ...”. Fica claro que a revolução deveria passar pelo poder desses partidos ou organizações, cabendo-nos pressionar para que assumam essa tarefa.

Não está descartado que venhamos a propor que assumam o poder um partido ou organização burocrata numa situação semelhante à fevereiro de 1917, quando, estando com o poder à sua disposição, se neguem a assumi-lo para depositá-lo nas mãos da burguesia. Situação similar aconteceu na Bolívia de 1952, quando o poder estava ao alcance da COB que o transferia para o MNR. Numa situação como essa, esta palavra de ordem serve para desmascarar essas direções e retirar as massas do seu controle. Mas fora desse contexto, essa mesma palavra de ordem transforma-se numa consigna etapista e num estorvo à revolução. Por exemplo: essa palavra de ordem – todo poder à COB – se levantada nas insurreições de 2003 e 2005 seria uma reivindicação reacionária.

O etapismo morenista fica cristalino na seguinte citação: “Porque para abrir caminho para a revolução socialista, devíamos, antes de mais nada, destruir o obstáculo do regime burguês contra-revolucionário. Porém, a partir da vitória da revolução democrática, da queda desse regime, as palavras de ordem anti-capitalistas passam a ser centrais. Se antes chamávamos os trabalhadores a concentrar suas mobilizações para derrubar a ditadura, agora os chamamos para que concentrem forças para liquidar o sistema capitalista imperialista”. Estas palavras não deixam margem a nenhuma dúvida sobre o caráter etapista da sua política. Os militantes conscientes devem repudiar essa versão traiçoeira da revolução por etapas.

Esse etapismo se apóia num programa mínimo economicista. Sem nenhum pudor procura deduzir o economicismo do Programa de Transição. Para tanto, faz uma interpretação peculiar da seguinte frase desse programa: “... quando qualquer reivindicação séria do proletariado e até qualquer reivindicação progressiva da pequena burguesia, conduzem inevitavelmente além dos limites da propriedade capitalista e do estado burguês”. Dessa frase, fora do seu contexto, Moreno deduz o seguinte: “... qualquer palavra de ordem pode adquirir um caráter transitório, no sentido de ser ponte para a revolução socialista se se transforma em bandeira da mobilização revolucionária”. Sim, qualquer palavra de ordem pode ser o ponto de partida que desencadeie a revolução. Mas isso não significa que qualquer palavra de ordem seja uma reivindicação transitória. E esse é o sentido que lhe dá o morenismo. Com essa mágica faz do programa mínimo um programa socialista. O Programa de Transição não deixa margem a dúvida quanto à necessidade da agitação e propaganda das palavras de ordem de transição, “cujo sentido é o de atacar cada vez mais aberta e resolutamente as bases do regime burguês”: o controle operário da produção, os comitês de fábrica, abolição do segredo comercial, milícia e armamento do proletariado, nacionalização da terra, a expropriação dos bancos, de certos ramos industriais, etc. É preciso que a vanguarda saiba repudiar esse sofisma reacionário de que “qualquer palavra de ordem seja transitória”, bem como a sua conseqüência, a revolução democrática.

O programa mínimo etapista também é reafirmado pela seguinte citação: “A classe operária tomou o poder na Rússia dirigindo as massas de milhões de camponeses, com três reivindicações super-mínimas ou democráticas: ‘paz, pão e terra’ ...”. Na França da década de 30, os estalinistas se valiam dessa mesma deturpação do programa bolchevique para justificar a sua política de recusa a assumir as tarefas revolucionárias, em nome de um programa economicista e democrático. A esse respeito, Trotsky desfez essa interpretação oportunista da política que levou à vitória da revolução de Outubro: “ ‘Pela Paz’, Em 1917, em condições de guerra, isto significava a luta contra todos os partidos patrióticos, dos monarquistas aos mencheviques, a reivindicação da publicação de todos os tratados secretos, a mobilização revolucionária dos soldados contra o comando e a confraternização na frente de batalha. ‘Pela paz’: isto significava um desafio ao militarismo, da Alemanha e da Áustria, por um lado, e da Entente, por outro. A bandeira dos bolcheviques significava assim a política mais audaciosa e revolucionária já conhecida pela história da humanidade ... ‘Pelo pão’ Para os bolcheviques, em 1917, isto significava a expropriação da terra e das reservas de trigo dos latifundiários e dos especuladores, e o monopólio do comércio de trigo em mão do governo dos operários e camponeses. ... ‘Pela liberdade’. Os bolcheviques mostravam às massas que a liberdade é uma ficção enquanto as escolas, a imprensa, os lugares de reunião permanecerem nas mãos da burguesia. ‘Pela liberdade’ significava a tomada do poder pelos sovietes, a expropriação dos latifundiários, o controle operário da produção” (Aonde Vai a França). Mais uma vez, o revisionismo não demonstra nenhum constrangimento em falsificar o marxismo, os seus métodos e o seu programa. Não bastasse as enormes dificuldades da luta de classes, a criação do partido revolucionário para se tornar realidade precisa ainda desfazer essa teia de falsificações oportunistas.

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