Introdução
O texto que publicamos abaixo foi escrito em junho de 1989 por alguns militantes do agrupamento Núcleo de Independência Proletária (NIP). Foi elaborado, portanto, anteriormente em relação aos acontecimentos decisivos que marcaram a restauração capitalista nos países do leste europeu, que formavam a antiga URSS: a dissolução da mesma URSS e a queda do Muro de Berlim. Na época estava em pauta a discussão sobre a Perestroika, programa restauracionista do governo Gorbatchov. O próprio Gorbatchov tentava fazer passar o seu programa de restauração como sendo o aprofundamento do socialismo.
A esquerda em geral – inclusive a dita trotskista – fazia coro com Gorbatchov. Esse programa era considerado como uma espécie de nova NEP, em alusão à Nova Política Econômica do governo bolchevique de 1921. Ou seja, não se trataria de restauração capitalista, mas de uma concessão necessária ao capitalismo. Alguns agrupamentos consideravam a Perestroika como uma concessão desnecessária, como uma temeridade que poderia favorecer a restauração; de qualquer forma, se trataria, ainda assim, de uma concessão e não do próprio programa da restauração.
O texto aqui publicado constitui-se, portanto, numa exceção. Faz uma análise marxista desse programa, desmascarando o seu conteúdo claramente restauracionista, cujo método consiste em destruir os fundamentos da economia estatal: a planificação, o monopólio do comércio exterior, a unidade da economia. Essa posição unânime da esquerda não foi casual, nem sequer apenas uma incapacidade teórica. Foi uma capitulação política à burocracia restauracionista e à democracia burguesa, esta considerada preferível ao regime stalinista. Pela sua importância e o seu caráter excepcional entre a esquerda, o republicamos, num momento em que o tema da restauração ainda é atual, no que diz respeito à natureza do Estado cubano. Nesse último caso, novamente a esquerda se desvia da análise marxista.
O Sentido da Perestroika
As mudanças em curso na URSS denominadas Perestroika (reestruturação da economia) e Glasnost (democratização política) têm sido objeto de discussões e polêmicas entre as mais diversas correntes de esquerda. No nosso caso, discordamos frontalmente das posições dominantes que podem ser enquadradas ou no apoio incondicional, no apoio crítico ou na crítica parcial.
Entre a burguesia internacional, o apoio à Perestroika tem sido amplo e explícito. Mais do que apoio, o capital financeiro é co-participante dessas reformas. Bancos europeus colocam à disposição da URSS muitos bilhões de dólares; centenas de empresas ocidentais associam-se a empresas soviéticas através do sistema de joint-ventures. Embora esses negócios tenham fundadas razões econômicas, no entanto o seu volume assume conotação política de sustentação à política de Gorbachov. Evidentemente não seria casual a enorme promoção que este recebe da imprensa burguesa em todo o mundo.
Gorbatchov justifica a sua política de mudanças em razão da estagnação econômica que se verifica na URSS há mais de uma década, caracterizada pela queda prolongada da taxa de crescimento da economia, a sua incapacidade em acompanhar a revolução tecnológica do ocidente, a baixa produtividade do trabalho, o desperdício generalizado. Segundo sua própria conceituação a Perestroika teria as seguintes características: maior autonomia das empresas em detrimento do planejamento; incentivo à criação de um mercado livre, sujeito à lei da oferta e da procura; criação de “coletivos” de trabalho para a realização de tarefas mediante contrato com as empresas; política salarial determinada pelo trabalho individual; incentivo material visando o aumento de produção; política de preços reais com base nos custos de produção, o que implica no corte das subvenções aos produtos básicos.
Em seu livro Perestroika – Novas Idéias Para Meu País e o Mundo, Gorbatchov assim define a sua política: “A reforma tem como base a ampliação considerável da independência das empresas e associações, sua transição para o sistema de total auto-computação de custos e autofinanciamento e a concessão de todos os direitos apropriados aos coletivos de trabalho. De agora em diante, eles serão totalmente responsáveis por uma administração eficiente e resultados finais. Os lucro dos coletivos, ou seja, das unidades de trabalho, serão diretamente proporcionais à sua eficiência” (pg.35). “É a exaltação do trabalho honesto, altamente qualificado, o triunfo sobre as tendências niveladoras e o consumismo” (pg.36).
Em seu discurso de abertura, na XIX Conferência Nacional do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Gorbatchov assim se expressa: “Parte considerável dos setores básicos da economia já aplica os princípios de uma auto-gestão plena e do autofinanciamento, em obediência à Lei da Empresa Estatal. (...) Começou a reorganização das relações de trabalho em nível de unidade de produção, tendo como base contratos de empreitada e de arrendamento, os quais permitem associar as vantagens da propriedade social com interesses individuais do cidadão, a atitude diligente deste para com o trabalho realizado por conta própria e a auto-afirmação cívica” (A Renovação do Socialismo, Ed. Novos Rumos, págs. 13-14).
Todo esse esforço em regra no sentido da propriedade e do mercado capitalista, do lucro individual, Gorbatchov tenta passar como sendo a continuidade da política de Lênin, como uma espécie de reedição tardia da NEP, confundindo autonomia econômica das empresas, ou seja, competição privada, afrouxamento da planificação estatal, com auto-gestão dos trabalhadores, como bem ilustram preciosidades do gênero: “Lênin nunca acreditou que a estrada para o socialismo fosse reta”; “(...) Não tinha medo de estimular a atividade trabalhista individual quando o Estado e o setor público estivessem fracos” (Perestroika, pág.108).
A NEP efetivamente representou um incentivo à produção e ao mercado privado em setores determinados e restritos da economia e de pequena propriedade, particularmente o campesinato. Foi uma medida emergencial, transitória, levada a efeito nos primórdios da revolução, num estágio incipiente de industrialização, em época de guerra civil, em momento de profunda crise econômica.
É de se perguntar o verdadeiro sentido de uma reedição da NEP após mais de 70 anos da revolução, quando o país já alcançou um alto grau de industrialização. Se é verdade que o socialismo, nos seus primórdios, deve conviver com a pequena propriedade, em setores determinados da economia, também é verdade que esses setores deverão perder terreno gradativamente, na exata medida do desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, o que presenciamos na URSS é que a Perestroika inaugura uma tendência inversa, o que está em contradição com a lógica e as necessidades do socialismo.
Por outro lado, a Perestroika não significa apenas o incentivo ao desenvolvimento da pequena propriedade capitalista, mas orienta-se no fim da planificação centralizada sobre toda a economia, inclusive sobre os seus setores industriais básicos, questionando também o monopólio estatal do comércio exterior. Sobre isso, mais uma vez citamos Gorbatchov: “Diferentemente do método anterior, os órgãos centrais controlarão as empresas num número limitado de áreas...” “A composição e volume das encomendas estatais pouco a pouco será reduzida com a saturação do mercado a favor de crescentes laços diretos entre fabricantes e consumidores. Assim que tivermos adquirido a experiência necessária, colocaremos as encomendas estatais em base competitiva, aplicando o principio da rivalidade ou competição socialista”.(Perestroika – pág. 101). “As mudanças irão acelerar o processo de descentralização do comércio exterior, há muito tempo monopólio de apenas um ministro. A partir de Abril de 1989, todas as companhias soviéticas poderão fazer comércio com o exterior, incluindo o novo movimento do setor privado cooperativo, ao invés de apenas 150 ministérios e empresas estatais que agora tem o direito de fazê-lo”. (Isto é/Senhor nº. 1005 pág. 77).
As razões da estagnação econômica da URSS evidentemente não é buscada nas deturpações do socialismo, na ausência da democracia operária e do controle operário da produção, com a conseqüente vigência de um regime de escandalosos privilégios sob tacão de uma casta parasitária e prepotente. Ao contrário disso, os teóricos da Perestroika buscam justificativas para as mazelas econômicas do regime burocrático que eles dirigem nos pretensos defeitos do próprio socialismo. Nisso apoiam-se e fazem coro aos preconceitos da ideologia burguesa segundo a qual o socialismo seria inviável ou ineficiente por abolir a concorrência, sem a qual não haveria emulação ao trabalho produtivo. Daí porque a receita da Perestroika não é outra coisa que o incentivo à “rivalidade ou competição socialista”, esquecendo-se que o socialismo é por definição a antítese de toda competição. De nossa parte, entendemos, como marxistas, que a democracia operária é a condição necessária e suficiente à emulação do trabalho, colocando-se também num nível muito superior ao incentivo compulsório da competição capitalista. E no nosso ver a democracia operária de que falamos nada tem em comum com a Glasnost, que não representa outra coisa do que uma democratização no âmbito da própria burocracia.
A abertura ao capital monopolista internacional é mais ampla do que em geral se supõe como bem ilustra as seguintes citações da imprensa: “As mudanças das joint-ventures vão permitir a negociação entre estrangeiros e soviéticos sem que haja restrições por parte do governo. Companhias ocidentais, por exemplo, até agora não podiam ter mais que 49%de participação em uma joint-venture. O limite foi eliminado. A decisão de Moscou de estabelecer uma zona econômica especial no Extremo Leste de seu país parece um convite para japoneses e outras economias asiáticas assumirem um papel importante na reconstrução da economia soviética. Mas o interesse em joint-venture, de uma forma geral, ainda é maior em companhias da Europa Ocidental. As joint-ventures no Leste soviético terão impostos especiais e nos primeiros anos obterão lucros sem pagar impostos. Após esse período, seus impostos continuarão a ser baixos”. (Isto É/Senhor nº. 1005 pág. 78).
Reformas do tipo da Perestroika não são novidade no bloco socialista. Muito antes da URSS foram levadas a efeito na China, Hungria e Iugoslávia. Os resultados tem sido catastróficos: baixo crescimento econômico, baixa produtividade do trabalho, enorme desemprego, redução salarial, alta inflação, endividamento externo, redução do planejamento, etc. Ou seja, estamos presenciando o renascimento dos sintomas típicos da anarquia capitalista e não o fortalecimento do socialismo como tenta sofisticamente provar aos incautos o Sr. Gorbatchov. As recentes greves na Iugoslávia, Polônia e Romênia estão a mostrar de forma eloqüente o que pensam os trabalhadores desse tipo de política pró-capitalista.
Onde vai a URSS?
Para Gorbatchov, a Perestroika significa uma revolução dentro da revolução, fazendo analogia com as revoluções burguesas na Inglaterra e França: a revolução inglesa de 1649 necessitou do complemento das revoluções de 1689 e 1832; a revolução francesa de 1789 precisou das revoluções de 1830, 1848 e 1871. Concordamos com Gorbatchov apenas no sentido de que se trata de uma tentativa de mudança de qualidade na economia, mas, no nosso entender, isso não se dará no sentido do aprofundamento da revolução, mas sim representa a tentativa de cristalização da contra-revolução, ou seja, uma tentativa consciente de retorno ao capitalismo.
Historicamente toda revolução teve o seu termidor, ou seja, a sua reação interna. O termidor da revolução russa foi a burocratização do Estado e do Partido que na forma do stalinismo domina desde 1923. A Perestroika do Sr. Gorbatchov representa a tentativa de consolidação definitiva desse termidor, levado às ultimas conseqüências e transformando-se em contra revolução vitoriosa. Significa a tentativa clara e sistemática de impor um programa contra-revolucionário, no sentido de preparar a volta ao capitalismo.
Foram necessários mais de 70 anos para a burocracia ousar essa passo, ela que sempre representou os interesses do capital dentro do Estado Operário, mesmo que, por ter interesses contraditórios, também se apóia nas conquistas da Revolução de Outubro, na economia planificada. Era uma espécie de refém dessa revolução e ao mesmo tempo a sua parasita. Na contradição de refém dessa revolução une o seu destino ao socialismo; na condição de parasita, põe em risco as suas conquistas e almeja o seu fim. Esses longos anos de crise do movimento operário pela ausência de uma direção revolucionária aliados à decadência do sistema capitalista criam as condições para que a burocracia ousasse essa aventura. Mas se, pela sua inconseqüência, punha em risco o socialismo não o fazia em função de um programa pró-capitalista claro como agora o faz. Esse é o salto de qualidade e a grande novidade na política de Moscou.
Em resumo, entendemos que não se trata apenas de um incentivo aos pequenos negócios que continuariam convivendo com a economia estatal majoritária, uma vez que a estatização por muito tempo não pode ser absoluta porque depende do desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, esses setores secundários de propriedade privada tendem necessariamente a perder espaço econômico e, neste momento, não necessitariam de nenhum incentivo. Mas do que se trata é de algo muito mais grave: trata-se de uma tentativa consciente e programática de quebra do conjunto da economia estatal através do ataque ao seu fundamento, à sua planificação centralizada.
Essa política de mudanças é levada a efeito por um setor da burocracia soviética. Esse setor sofre oposição interna em função de interesses de aparelho contrariados, portanto, necessita ampliar o seu apoio político entre os quadros do partido, do estado e da intelectualidade. Esse esforça de cooptação explica alguns aspectos da sua política. Por exemplo, a defesa de uma política de maior diferenciação salarial, o salário segundo o mérito individual, sua crítica às “tendências niveladoras”, etc. Com essa iniciativa pretende a burocracia ampliar a sua base de apoio e ao mesmo tempo introduzir a concorrência também entre os trabalhadores, aumentando a produtividade do trabalho e dificultando a sua organização.
A Glasnost responde à mesma necessidade de ampliação da base de sustentação da burocracia. Significa mais democracia para o aparelho, tornando-o mais apto inclusive a enfrentar as reivindicações populares perfeitamente previsíveis como conseqüência dessa política econômica anti-popular.
Mas se é verdade que a Glasnost não se dirige às massas, como bem demonstra a brutal repressão às reivindicações nacionais dos armênios e georgeanos, também é verdade que apesar do seu verdadeiro caráter as massas podem sentir-se estimuladas pelas falsas promessas de democracia.
As conquistas da Revolução de Outubro estão sob séria ameaça, fruto do longo período de adiamento da revolução internacional. Entretanto, a última palavra ainda não foi dada, a sorte da revolução está depositada nas mãos da classe operária da URSS e do proletariado mundial.
O texto que publicamos abaixo foi escrito em junho de 1989 por alguns militantes do agrupamento Núcleo de Independência Proletária (NIP). Foi elaborado, portanto, anteriormente em relação aos acontecimentos decisivos que marcaram a restauração capitalista nos países do leste europeu, que formavam a antiga URSS: a dissolução da mesma URSS e a queda do Muro de Berlim. Na época estava em pauta a discussão sobre a Perestroika, programa restauracionista do governo Gorbatchov. O próprio Gorbatchov tentava fazer passar o seu programa de restauração como sendo o aprofundamento do socialismo.
A esquerda em geral – inclusive a dita trotskista – fazia coro com Gorbatchov. Esse programa era considerado como uma espécie de nova NEP, em alusão à Nova Política Econômica do governo bolchevique de 1921. Ou seja, não se trataria de restauração capitalista, mas de uma concessão necessária ao capitalismo. Alguns agrupamentos consideravam a Perestroika como uma concessão desnecessária, como uma temeridade que poderia favorecer a restauração; de qualquer forma, se trataria, ainda assim, de uma concessão e não do próprio programa da restauração.
O texto aqui publicado constitui-se, portanto, numa exceção. Faz uma análise marxista desse programa, desmascarando o seu conteúdo claramente restauracionista, cujo método consiste em destruir os fundamentos da economia estatal: a planificação, o monopólio do comércio exterior, a unidade da economia. Essa posição unânime da esquerda não foi casual, nem sequer apenas uma incapacidade teórica. Foi uma capitulação política à burocracia restauracionista e à democracia burguesa, esta considerada preferível ao regime stalinista. Pela sua importância e o seu caráter excepcional entre a esquerda, o republicamos, num momento em que o tema da restauração ainda é atual, no que diz respeito à natureza do Estado cubano. Nesse último caso, novamente a esquerda se desvia da análise marxista.
O Sentido da Perestroika
As mudanças em curso na URSS denominadas Perestroika (reestruturação da economia) e Glasnost (democratização política) têm sido objeto de discussões e polêmicas entre as mais diversas correntes de esquerda. No nosso caso, discordamos frontalmente das posições dominantes que podem ser enquadradas ou no apoio incondicional, no apoio crítico ou na crítica parcial.
Entre a burguesia internacional, o apoio à Perestroika tem sido amplo e explícito. Mais do que apoio, o capital financeiro é co-participante dessas reformas. Bancos europeus colocam à disposição da URSS muitos bilhões de dólares; centenas de empresas ocidentais associam-se a empresas soviéticas através do sistema de joint-ventures. Embora esses negócios tenham fundadas razões econômicas, no entanto o seu volume assume conotação política de sustentação à política de Gorbachov. Evidentemente não seria casual a enorme promoção que este recebe da imprensa burguesa em todo o mundo.
Gorbatchov justifica a sua política de mudanças em razão da estagnação econômica que se verifica na URSS há mais de uma década, caracterizada pela queda prolongada da taxa de crescimento da economia, a sua incapacidade em acompanhar a revolução tecnológica do ocidente, a baixa produtividade do trabalho, o desperdício generalizado. Segundo sua própria conceituação a Perestroika teria as seguintes características: maior autonomia das empresas em detrimento do planejamento; incentivo à criação de um mercado livre, sujeito à lei da oferta e da procura; criação de “coletivos” de trabalho para a realização de tarefas mediante contrato com as empresas; política salarial determinada pelo trabalho individual; incentivo material visando o aumento de produção; política de preços reais com base nos custos de produção, o que implica no corte das subvenções aos produtos básicos.
Em seu livro Perestroika – Novas Idéias Para Meu País e o Mundo, Gorbatchov assim define a sua política: “A reforma tem como base a ampliação considerável da independência das empresas e associações, sua transição para o sistema de total auto-computação de custos e autofinanciamento e a concessão de todos os direitos apropriados aos coletivos de trabalho. De agora em diante, eles serão totalmente responsáveis por uma administração eficiente e resultados finais. Os lucro dos coletivos, ou seja, das unidades de trabalho, serão diretamente proporcionais à sua eficiência” (pg.35). “É a exaltação do trabalho honesto, altamente qualificado, o triunfo sobre as tendências niveladoras e o consumismo” (pg.36).
Em seu discurso de abertura, na XIX Conferência Nacional do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Gorbatchov assim se expressa: “Parte considerável dos setores básicos da economia já aplica os princípios de uma auto-gestão plena e do autofinanciamento, em obediência à Lei da Empresa Estatal. (...) Começou a reorganização das relações de trabalho em nível de unidade de produção, tendo como base contratos de empreitada e de arrendamento, os quais permitem associar as vantagens da propriedade social com interesses individuais do cidadão, a atitude diligente deste para com o trabalho realizado por conta própria e a auto-afirmação cívica” (A Renovação do Socialismo, Ed. Novos Rumos, págs. 13-14).
Todo esse esforço em regra no sentido da propriedade e do mercado capitalista, do lucro individual, Gorbatchov tenta passar como sendo a continuidade da política de Lênin, como uma espécie de reedição tardia da NEP, confundindo autonomia econômica das empresas, ou seja, competição privada, afrouxamento da planificação estatal, com auto-gestão dos trabalhadores, como bem ilustram preciosidades do gênero: “Lênin nunca acreditou que a estrada para o socialismo fosse reta”; “(...) Não tinha medo de estimular a atividade trabalhista individual quando o Estado e o setor público estivessem fracos” (Perestroika, pág.108).
A NEP efetivamente representou um incentivo à produção e ao mercado privado em setores determinados e restritos da economia e de pequena propriedade, particularmente o campesinato. Foi uma medida emergencial, transitória, levada a efeito nos primórdios da revolução, num estágio incipiente de industrialização, em época de guerra civil, em momento de profunda crise econômica.
É de se perguntar o verdadeiro sentido de uma reedição da NEP após mais de 70 anos da revolução, quando o país já alcançou um alto grau de industrialização. Se é verdade que o socialismo, nos seus primórdios, deve conviver com a pequena propriedade, em setores determinados da economia, também é verdade que esses setores deverão perder terreno gradativamente, na exata medida do desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, o que presenciamos na URSS é que a Perestroika inaugura uma tendência inversa, o que está em contradição com a lógica e as necessidades do socialismo.
Por outro lado, a Perestroika não significa apenas o incentivo ao desenvolvimento da pequena propriedade capitalista, mas orienta-se no fim da planificação centralizada sobre toda a economia, inclusive sobre os seus setores industriais básicos, questionando também o monopólio estatal do comércio exterior. Sobre isso, mais uma vez citamos Gorbatchov: “Diferentemente do método anterior, os órgãos centrais controlarão as empresas num número limitado de áreas...” “A composição e volume das encomendas estatais pouco a pouco será reduzida com a saturação do mercado a favor de crescentes laços diretos entre fabricantes e consumidores. Assim que tivermos adquirido a experiência necessária, colocaremos as encomendas estatais em base competitiva, aplicando o principio da rivalidade ou competição socialista”.(Perestroika – pág. 101). “As mudanças irão acelerar o processo de descentralização do comércio exterior, há muito tempo monopólio de apenas um ministro. A partir de Abril de 1989, todas as companhias soviéticas poderão fazer comércio com o exterior, incluindo o novo movimento do setor privado cooperativo, ao invés de apenas 150 ministérios e empresas estatais que agora tem o direito de fazê-lo”. (Isto é/Senhor nº. 1005 pág. 77).
As razões da estagnação econômica da URSS evidentemente não é buscada nas deturpações do socialismo, na ausência da democracia operária e do controle operário da produção, com a conseqüente vigência de um regime de escandalosos privilégios sob tacão de uma casta parasitária e prepotente. Ao contrário disso, os teóricos da Perestroika buscam justificativas para as mazelas econômicas do regime burocrático que eles dirigem nos pretensos defeitos do próprio socialismo. Nisso apoiam-se e fazem coro aos preconceitos da ideologia burguesa segundo a qual o socialismo seria inviável ou ineficiente por abolir a concorrência, sem a qual não haveria emulação ao trabalho produtivo. Daí porque a receita da Perestroika não é outra coisa que o incentivo à “rivalidade ou competição socialista”, esquecendo-se que o socialismo é por definição a antítese de toda competição. De nossa parte, entendemos, como marxistas, que a democracia operária é a condição necessária e suficiente à emulação do trabalho, colocando-se também num nível muito superior ao incentivo compulsório da competição capitalista. E no nosso ver a democracia operária de que falamos nada tem em comum com a Glasnost, que não representa outra coisa do que uma democratização no âmbito da própria burocracia.
A abertura ao capital monopolista internacional é mais ampla do que em geral se supõe como bem ilustra as seguintes citações da imprensa: “As mudanças das joint-ventures vão permitir a negociação entre estrangeiros e soviéticos sem que haja restrições por parte do governo. Companhias ocidentais, por exemplo, até agora não podiam ter mais que 49%de participação em uma joint-venture. O limite foi eliminado. A decisão de Moscou de estabelecer uma zona econômica especial no Extremo Leste de seu país parece um convite para japoneses e outras economias asiáticas assumirem um papel importante na reconstrução da economia soviética. Mas o interesse em joint-venture, de uma forma geral, ainda é maior em companhias da Europa Ocidental. As joint-ventures no Leste soviético terão impostos especiais e nos primeiros anos obterão lucros sem pagar impostos. Após esse período, seus impostos continuarão a ser baixos”. (Isto É/Senhor nº. 1005 pág. 78).
Reformas do tipo da Perestroika não são novidade no bloco socialista. Muito antes da URSS foram levadas a efeito na China, Hungria e Iugoslávia. Os resultados tem sido catastróficos: baixo crescimento econômico, baixa produtividade do trabalho, enorme desemprego, redução salarial, alta inflação, endividamento externo, redução do planejamento, etc. Ou seja, estamos presenciando o renascimento dos sintomas típicos da anarquia capitalista e não o fortalecimento do socialismo como tenta sofisticamente provar aos incautos o Sr. Gorbatchov. As recentes greves na Iugoslávia, Polônia e Romênia estão a mostrar de forma eloqüente o que pensam os trabalhadores desse tipo de política pró-capitalista.
Onde vai a URSS?
Para Gorbatchov, a Perestroika significa uma revolução dentro da revolução, fazendo analogia com as revoluções burguesas na Inglaterra e França: a revolução inglesa de 1649 necessitou do complemento das revoluções de 1689 e 1832; a revolução francesa de 1789 precisou das revoluções de 1830, 1848 e 1871. Concordamos com Gorbatchov apenas no sentido de que se trata de uma tentativa de mudança de qualidade na economia, mas, no nosso entender, isso não se dará no sentido do aprofundamento da revolução, mas sim representa a tentativa de cristalização da contra-revolução, ou seja, uma tentativa consciente de retorno ao capitalismo.
Historicamente toda revolução teve o seu termidor, ou seja, a sua reação interna. O termidor da revolução russa foi a burocratização do Estado e do Partido que na forma do stalinismo domina desde 1923. A Perestroika do Sr. Gorbatchov representa a tentativa de consolidação definitiva desse termidor, levado às ultimas conseqüências e transformando-se em contra revolução vitoriosa. Significa a tentativa clara e sistemática de impor um programa contra-revolucionário, no sentido de preparar a volta ao capitalismo.
Foram necessários mais de 70 anos para a burocracia ousar essa passo, ela que sempre representou os interesses do capital dentro do Estado Operário, mesmo que, por ter interesses contraditórios, também se apóia nas conquistas da Revolução de Outubro, na economia planificada. Era uma espécie de refém dessa revolução e ao mesmo tempo a sua parasita. Na contradição de refém dessa revolução une o seu destino ao socialismo; na condição de parasita, põe em risco as suas conquistas e almeja o seu fim. Esses longos anos de crise do movimento operário pela ausência de uma direção revolucionária aliados à decadência do sistema capitalista criam as condições para que a burocracia ousasse essa aventura. Mas se, pela sua inconseqüência, punha em risco o socialismo não o fazia em função de um programa pró-capitalista claro como agora o faz. Esse é o salto de qualidade e a grande novidade na política de Moscou.
Em resumo, entendemos que não se trata apenas de um incentivo aos pequenos negócios que continuariam convivendo com a economia estatal majoritária, uma vez que a estatização por muito tempo não pode ser absoluta porque depende do desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, esses setores secundários de propriedade privada tendem necessariamente a perder espaço econômico e, neste momento, não necessitariam de nenhum incentivo. Mas do que se trata é de algo muito mais grave: trata-se de uma tentativa consciente e programática de quebra do conjunto da economia estatal através do ataque ao seu fundamento, à sua planificação centralizada.
Essa política de mudanças é levada a efeito por um setor da burocracia soviética. Esse setor sofre oposição interna em função de interesses de aparelho contrariados, portanto, necessita ampliar o seu apoio político entre os quadros do partido, do estado e da intelectualidade. Esse esforça de cooptação explica alguns aspectos da sua política. Por exemplo, a defesa de uma política de maior diferenciação salarial, o salário segundo o mérito individual, sua crítica às “tendências niveladoras”, etc. Com essa iniciativa pretende a burocracia ampliar a sua base de apoio e ao mesmo tempo introduzir a concorrência também entre os trabalhadores, aumentando a produtividade do trabalho e dificultando a sua organização.
A Glasnost responde à mesma necessidade de ampliação da base de sustentação da burocracia. Significa mais democracia para o aparelho, tornando-o mais apto inclusive a enfrentar as reivindicações populares perfeitamente previsíveis como conseqüência dessa política econômica anti-popular.
Mas se é verdade que a Glasnost não se dirige às massas, como bem demonstra a brutal repressão às reivindicações nacionais dos armênios e georgeanos, também é verdade que apesar do seu verdadeiro caráter as massas podem sentir-se estimuladas pelas falsas promessas de democracia.
As conquistas da Revolução de Outubro estão sob séria ameaça, fruto do longo período de adiamento da revolução internacional. Entretanto, a última palavra ainda não foi dada, a sorte da revolução está depositada nas mãos da classe operária da URSS e do proletariado mundial.
Junho de 1989