domingo, 28 de junho de 2020

O sentido da Perestroika*

*Texto escrito por João de Barro para o Núcleo de Independência Proletária (NIP) no ano de 1989 e posteriormente publicado no site da Luta Marxista em 2008. O texto esclarece que a Perestroika foi uma política conscientemente aplicada bela burocracia soviética para restaurar o capitalismo na ex-URSS, portanto, nada tendo a ver com "colapso do comunismo", como insistentemente lemos e ouvimos por parte da grande mídia burguesa e de muitos dos seus autores e escritores; inclusive do campo da esquerda reformista e social-democrata.


Introdução
O texto que publicamos abaixo foi escrito em junho de 1989 por alguns militantes do agrupamento Núcleo de Independência Proletária (NIP). Foi elaborado, portanto, anteriormente em relação aos acontecimentos decisivos que marcaram a restauração capitalista nos países do leste europeu, que formavam a antiga URSS: a dissolução da mesma URSS e a queda do Muro de Berlim. Na época estava em pauta a discussão sobre a Perestroika, programa restauracionista do governo Gorbatchov. O próprio Gorbatchov tentava fazer passar o seu programa de restauração como sendo o aprofundamento do socialismo.

A esquerda em geral – inclusive a dita trotskista – fazia coro com Gorbatchov. Esse programa era considerado como uma espécie de nova NEP, em alusão à Nova Política Econômica do governo bolchevique de 1921. Ou seja, não se trataria de restauração capitalista, mas de uma concessão necessária ao capitalismo. Alguns agrupamentos consideravam a Perestroika como uma concessão desnecessária, como uma temeridade que poderia favorecer a restauração; de qualquer forma, se trataria, ainda assim, de uma concessão e não do próprio programa da restauração.

O texto aqui publicado constitui-se, portanto, numa exceção. Faz uma análise marxista desse programa, desmascarando o seu conteúdo claramente restauracionista, cujo método consiste em destruir os fundamentos da economia estatal: a planificação, o monopólio do comércio exterior, a unidade da economia. Essa posição unânime da esquerda não foi casual, nem sequer apenas uma incapacidade teórica. Foi uma capitulação política à burocracia restauracionista e à democracia burguesa, esta considerada preferível ao regime stalinista. Pela sua importância e o seu caráter excepcional entre a esquerda, o republicamos, num momento em que o tema da restauração ainda é atual, no que diz respeito à natureza do Estado cubano. Nesse último caso, novamente a esquerda se desvia da análise marxista.

O Sentido da Perestroika 
As mudanças em curso na URSS denominadas Perestroika (reestruturação da economia) e Glasnost (democratização política) têm sido objeto de discussões e polêmicas entre as mais diversas correntes de esquerda. No nosso caso, discordamos frontalmente das posições dominantes que podem ser enquadradas ou no apoio incondicional, no apoio crítico ou na crítica parcial.

Entre a burguesia internacional, o apoio à Perestroika tem sido amplo e explícito. Mais do que apoio, o capital financeiro é co-participante dessas reformas. Bancos europeus colocam à disposição da URSS muitos bilhões de dólares; centenas de empresas ocidentais associam-se a empresas soviéticas através do sistema de joint-ventures. Embora esses negócios tenham fundadas razões econômicas, no entanto o seu volume assume conotação política de sustentação à política de Gorbachov. Evidentemente não seria casual a enorme promoção que este recebe da imprensa burguesa em todo o mundo.

Gorbatchov justifica a sua política de mudanças em razão da estagnação econômica que se verifica na URSS há mais de uma década, caracterizada pela queda prolongada da taxa de crescimento da economia, a sua incapacidade em acompanhar a revolução tecnológica do ocidente, a baixa produtividade do trabalho, o desperdício generalizado. Segundo sua própria conceituação a Perestroika teria as seguintes características: maior autonomia das empresas em detrimento do planejamento; incentivo à criação de um mercado livre, sujeito à lei da oferta e da procura; criação de “coletivos” de trabalho para a realização de tarefas mediante contrato com as empresas; política salarial determinada pelo trabalho individual; incentivo material visando o aumento de produção; política de preços reais com base nos custos de produção, o que implica no corte das subvenções aos produtos básicos.

Em seu livro Perestroika – Novas Idéias Para Meu País e o Mundo, Gorbatchov assim define a sua política: “A reforma tem como base a ampliação considerável da independência das empresas e associações, sua transição para o sistema de total auto-computação de custos e autofinanciamento e a concessão de todos os direitos apropriados aos coletivos de trabalho. De agora em diante, eles serão totalmente responsáveis por uma administração eficiente e resultados finais. Os lucro dos coletivos, ou seja, das unidades de trabalho, serão diretamente proporcionais à sua eficiência” (pg.35). “É a exaltação do trabalho honesto, altamente qualificado, o triunfo sobre as tendências niveladoras e o consumismo” (pg.36).

Em seu discurso de abertura, na XIX Conferência Nacional do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Gorbatchov assim se expressa: “Parte considerável dos setores básicos da economia já aplica os princípios de uma auto-gestão plena e do autofinanciamento, em obediência à Lei da Empresa Estatal. (...) Começou a reorganização das relações de trabalho em nível de unidade de produção, tendo como base contratos de empreitada e de arrendamento, os quais permitem associar as vantagens da propriedade social com interesses individuais do cidadão, a atitude diligente deste para com o trabalho realizado por conta própria e a auto-afirmação cívica” (A Renovação do Socialismo, Ed. Novos Rumos, págs. 13-14).

Todo esse esforço em regra no sentido da propriedade e do mercado capitalista, do lucro individual, Gorbatchov tenta passar como sendo a continuidade da política de Lênin, como uma espécie de reedição tardia da NEP, confundindo autonomia econômica das empresas, ou seja, competição privada, afrouxamento da planificação estatal, com auto-gestão dos trabalhadores, como bem ilustram preciosidades do gênero: “Lênin nunca acreditou que a estrada para o socialismo fosse reta”; “(...) Não tinha medo de estimular a atividade trabalhista individual quando o Estado e o setor público estivessem fracos” (Perestroika, pág.108).

A NEP efetivamente representou um incentivo à produção e ao mercado privado em setores determinados e restritos da economia e de pequena propriedade, particularmente o campesinato. Foi uma medida emergencial, transitória, levada a efeito nos primórdios da revolução, num estágio incipiente de industrialização, em época de guerra civil, em momento de profunda crise econômica.

É de se perguntar o verdadeiro sentido de uma reedição da NEP após mais de 70 anos da revolução, quando o país já alcançou um alto grau de industrialização. Se é verdade que o socialismo, nos seus primórdios, deve conviver com a pequena propriedade, em setores determinados da economia, também é verdade que esses setores deverão perder terreno gradativamente, na exata medida do desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, o que presenciamos na URSS é que a Perestroika inaugura uma tendência inversa, o que está em contradição com a lógica e as necessidades do socialismo.

Por outro lado, a Perestroika não significa apenas o incentivo ao desenvolvimento da pequena propriedade capitalista, mas orienta-se no fim da planificação centralizada sobre toda a economia, inclusive sobre os seus setores industriais básicos, questionando também o monopólio estatal do comércio exterior. Sobre isso, mais uma vez citamos Gorbatchov: “Diferentemente do método anterior, os órgãos centrais controlarão as empresas num número limitado de áreas...” “A composição e volume das encomendas estatais pouco a pouco será reduzida com a saturação do mercado a favor de crescentes laços diretos entre fabricantes e consumidores. Assim que tivermos adquirido a experiência necessária, colocaremos as encomendas estatais em base competitiva, aplicando o principio da rivalidade ou competição socialista”.(Perestroika – pág. 101). “As mudanças irão acelerar o processo de descentralização do comércio exterior, há muito tempo monopólio de apenas um ministro. A partir de Abril de 1989, todas as companhias soviéticas poderão fazer comércio com o exterior, incluindo o novo movimento do setor privado cooperativo, ao invés de apenas 150 ministérios e empresas estatais que agora tem o direito de fazê-lo”. (Isto é/Senhor nº. 1005 pág. 77).

As razões da estagnação econômica da URSS evidentemente não é buscada nas deturpações do socialismo, na ausência da democracia operária e do controle operário da produção, com a conseqüente vigência de um regime de escandalosos privilégios sob tacão de uma casta parasitária e prepotente. Ao contrário disso, os teóricos da Perestroika buscam justificativas para as mazelas econômicas do regime burocrático que eles dirigem nos pretensos defeitos do próprio socialismo. Nisso apoiam-se e fazem coro aos preconceitos da ideologia burguesa segundo a qual o socialismo seria inviável ou ineficiente por abolir a concorrência, sem a qual não haveria emulação ao trabalho produtivo. Daí porque a receita da Perestroika não é outra coisa que o incentivo à “rivalidade ou competição socialista”, esquecendo-se que o socialismo é por definição a antítese de toda competição. De nossa parte, entendemos, como marxistas, que a democracia operária é a condição necessária e suficiente à emulação do trabalho, colocando-se também num nível muito superior ao incentivo compulsório da competição capitalista. E no nosso ver a democracia operária de que falamos nada tem em comum com a Glasnost, que não representa outra coisa do que uma democratização no âmbito da própria burocracia.

A abertura ao capital monopolista internacional é mais ampla do que em geral se supõe como bem ilustra as seguintes citações da imprensa: “As mudanças das joint-ventures vão permitir a negociação entre estrangeiros e soviéticos sem que haja restrições por parte do governo. Companhias ocidentais, por exemplo, até agora não podiam ter mais que 49%de participação em uma joint-venture. O limite foi eliminado. A decisão de Moscou de estabelecer uma zona econômica especial no Extremo Leste de seu país parece um convite para japoneses e outras economias asiáticas assumirem um papel importante na reconstrução da economia soviética. Mas o interesse em joint-venture, de uma forma geral, ainda é maior em companhias da Europa Ocidental. As joint-ventures no Leste soviético terão impostos especiais e nos primeiros anos obterão lucros sem pagar impostos. Após esse período, seus impostos continuarão a ser baixos”. (Isto É/Senhor nº. 1005 pág. 78).

Reformas do tipo da Perestroika não são novidade no bloco socialista. Muito antes da URSS foram levadas a efeito na China, Hungria e Iugoslávia. Os resultados tem sido catastróficos: baixo crescimento econômico, baixa produtividade do trabalho, enorme desemprego, redução salarial, alta inflação, endividamento externo, redução do planejamento, etc. Ou seja, estamos presenciando o renascimento dos sintomas típicos da anarquia capitalista e não o fortalecimento do socialismo como tenta sofisticamente provar aos incautos o Sr. Gorbatchov. As recentes greves na Iugoslávia, Polônia e Romênia estão a mostrar de forma eloqüente o que pensam os trabalhadores desse tipo de política pró-capitalista.

Onde vai a URSS?
Para Gorbatchov, a Perestroika significa uma revolução dentro da revolução, fazendo analogia com as revoluções burguesas na Inglaterra e França: a revolução inglesa de 1649 necessitou do complemento das revoluções de 1689 e 1832; a revolução francesa de 1789 precisou das revoluções de 1830, 1848 e 1871. Concordamos com Gorbatchov apenas no sentido de que se trata de uma tentativa de mudança de qualidade na economia, mas, no nosso entender, isso não se dará no sentido do aprofundamento da revolução, mas sim representa a tentativa de cristalização da contra-revolução, ou seja, uma tentativa consciente de retorno ao capitalismo.

Historicamente toda revolução teve o seu termidor, ou seja, a sua reação interna. O termidor da revolução russa foi a burocratização do Estado e do Partido que na forma do stalinismo domina desde 1923. A Perestroika do Sr. Gorbatchov representa a tentativa de consolidação definitiva desse termidor, levado às ultimas conseqüências e transformando-se em contra revolução vitoriosa. Significa a tentativa clara e sistemática de impor um programa contra-revolucionário, no sentido de preparar a volta ao capitalismo.

Foram necessários mais de 70 anos para a burocracia ousar essa passo, ela que sempre representou os interesses do capital dentro do Estado Operário, mesmo que, por ter interesses contraditórios, também se apóia nas conquistas da Revolução de Outubro, na economia planificada. Era uma espécie de refém dessa revolução e ao mesmo tempo a sua parasita. Na contradição de refém dessa revolução une o seu destino ao socialismo; na condição de parasita, põe em risco as suas conquistas e almeja o seu fim. Esses longos anos de crise do movimento operário pela ausência de uma direção revolucionária aliados à decadência do sistema capitalista criam as condições para que a burocracia ousasse essa aventura. Mas se, pela sua inconseqüência, punha em risco o socialismo não o fazia em função de um programa pró-capitalista claro como agora o faz. Esse é o salto de qualidade e a grande novidade na política de Moscou.

Em resumo, entendemos que não se trata apenas de um incentivo aos pequenos negócios que continuariam convivendo com a economia estatal majoritária, uma vez que a estatização por muito tempo não pode ser absoluta porque depende do desenvolvimento das forças produtivas. Entretanto, esses setores secundários de propriedade privada tendem necessariamente a perder espaço econômico e, neste momento, não necessitariam de nenhum incentivo. Mas do que se trata é de algo muito mais grave: trata-se de uma tentativa consciente e programática de quebra do conjunto da economia estatal através do ataque ao seu fundamento, à sua planificação centralizada.

Essa política de mudanças é levada a efeito por um setor da burocracia soviética. Esse setor sofre oposição interna em função de interesses de aparelho contrariados, portanto, necessita ampliar o seu apoio político entre os quadros do partido, do estado e da intelectualidade. Esse esforça de cooptação explica alguns aspectos da sua política. Por exemplo, a defesa de uma política de maior diferenciação salarial, o salário segundo o mérito individual, sua crítica às “tendências niveladoras”, etc. Com essa iniciativa pretende a burocracia ampliar a sua base de apoio e ao mesmo tempo introduzir a concorrência também entre os trabalhadores, aumentando a produtividade do trabalho e dificultando a sua organização.

A Glasnost responde à mesma necessidade de ampliação da base de sustentação da burocracia. Significa mais democracia para o aparelho, tornando-o mais apto inclusive a enfrentar as reivindicações populares perfeitamente previsíveis como conseqüência dessa política econômica anti-popular.

Mas se é verdade que a Glasnost não se dirige às massas, como bem demonstra a brutal repressão às reivindicações nacionais dos armênios e georgeanos, também é verdade que apesar do seu verdadeiro caráter as massas podem sentir-se estimuladas pelas falsas promessas de democracia.

As conquistas da Revolução de Outubro estão sob séria ameaça, fruto do longo período de adiamento da revolução internacional. Entretanto, a última palavra ainda não foi dada, a sorte da revolução está depositada nas mãos da classe operária da URSS e do proletariado mundial.

Junho de 1989

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Bases econômicas do marxismo

Texto elaborado coletivamente pelos militantes da Luta Marxista e publicado originalmente no seu site em 2009

Introdução
Em O Capital, Marx desvendou os “segredos” da economia capitalista, esclareceu as suas leis econômicas. Baseou-se no estudo dos economistas clássicos burgueses, principalmente Adam Smith e David Ricardo, indo além de onde chegaram. O progresso do capitalismo nos principais países da Europa no Século 19, fazia dos economistas burgueses “justificadores” da exploração capitalista. Para que a ciência econômica pudesse evoluir, era preciso colocar-se na perspectiva do proletariado moderno. Foi o que fez Marx, secundado por Friedrich Engels, que foi o responsável pela publicação dos demais livros de O Capital, após a publicação do livro I por Marx em 1867. Para essa tarefa teve de compilar e dar a redação final aos manuscritos deixados por Marx. Portanto, O Capital é uma obra conjunta de Marx e Engels, seguramente, os dois maiores pensadores e cientistas sociais modernos, que, por uma feliz coincidência histórica, foram contemporâneos e amigos. O Capital é a principal obra econômica do marxismo. Mas, antes dele, Marx havia publicado, em 1859, o livro Contribuição à Crítica da Economia Política.

A economia marxista é materialista. Baseia-se no materialismo histórico e dialético: o desenvolvimento econômico é um fenômeno histórico, baseado em leis econômicas objetivas, independentes da vontade dos homens. Não é a consciência que determina o ser social, mas, ao contrário, é o ser social que determina a consciência. Na luta pela existência, os homens organizam-se espontaneamente para produzir. Essa organização econômica – que Marx denominou de relações de produção ou de propriedade – forma a base sobre a qual se ergue o mundo das idéias: a filosofia, a religião, o direito, a política, o Estado. A cada forma de sociedade – escravista, feudal, capitalista – corresponde um tipo de relação de propriedade. A realidade social, da mesma forma que a realidade natural, está em constante transformação. O movimento, a transformação constante, as contradições, as revoluções, são as leis maiores que regem a sociedade e a natureza. Um tipo de propriedade, após representar um fator de progresso social, passa a entravá-lo. Estabelece-se uma contradição entre as formas de propriedade e a necessidade do desenvolvimento. As relações de produção caducas precisam ser substituídas por novas relações. Essa contradição não se resolve de forma pacífica, mas através de revoluções. As formas de propriedade, antigas e novas, são representadas por classes sociais antagônicas. É por isso que a luta de classes é o motor do desenvolvimento social.

Com base nessa compreensão materialista, Marx estudou o desenvolvimento das relações de produção capitalistas e seus elementos: a mercadoria, o valor, a troca, a circulação, o dinheiro, a mais valia e a gênese e desenvolvimento do capital.

A mercadoria
A mercadoria é a “célula” da economia capitalista. Entretanto, a produção de mercadorias não começou com o capitalismo. As sociedades anteriores também produziam mercadorias, mas a sua produção era um fenômeno econômico secundário. Somente no capitalismo tornou-se um elemento dominante.

A produção de mercadorias é um fenômeno histórico. As características das mercadorias não nasceram prontas tal como se apresentam hoje, foram evoluindo ao longo da história da sociedade, em relação direta com o grau de desenvolvimento das forças produtivas sociais. Por forças produtivas entendemos a capacidade de produção social: a técnica, a organização do trabalho, os meios de produção, as máquinas, as ferramentas, etc.

A mercadoria surgiu do processo de troca entre comunidades primitivas. Para que haja troca, é preciso que a sociedade tenha atingido um determinado estágio de produção de um excedente, algo além da necessidade imediata do indivíduo ou de uma comunidade. É necessário que as pessoas se relacionem como indivíduos independentes, coisa que não existia na comunidade primitiva. Fez parte da evolução dessas comunidades, o começo das trocas entre si, dando origem à mercadoria, fato que indicou o seu fim.

Mercadoria é algo que se troca por outra e que tem uma utilidade: “A utilidade de uma coisa faz dela um valor-de-uso” (1). Uma mercadoria, portanto, por ser um objeto útil, possui um valor-de-uso, satisfaz uma necessidade. Essa necessidade tanto pode ser uma necessidade material como uma necessidade subjetiva, psicológica. Um casaco protege contra o frio, satisfaz uma necessidade objetiva. Um terço satisfaz uma necessidade subjetiva. Ambos são mercadorias. O valor-de-uso diz respeito à qualidade do trabalho realizado na sua confecção: um casaco, um sapato e uma jóia, são fruto da habilidade do alfaiate, do sapateiro e do joalheiro, que representam profissões qualitativamente distintas.

Para uma mercadoria ser trocada por outra, não basta possuir uma utilidade, um valor-de-uso. A sua utilidade interessa exclusivamente ao comprador, aquele que vai consumi-la. O vendedor somente vende uma mercadoria porque, para ele, ela não possui qualquer utilidade. A única utilidade da mercadoria, para o vendedor, é o fato de poder ser vendida, mas não consumida. As mercadorias, para serem trocadas por outras, precisam ter, entre si, algo em comum, que não pode ser o seu valor-de-uso, precisam ser equivalentes enquanto mercadorias abstratas. Os seus valores-de-uso são diferentes, não podem ser comparados. As suas utilidades diferentes - casaco, sapato, jóia - não as tornam equivalentes. Então, o que teriam, mercadorias diferentes, em comum? A única coisa que têm em comum é o fato de serem fruto do trabalho. E o que interessa agora, para a troca de mercadorias como coisas equivalentes, não é mais o trabalho concreto – específico do alfaiate, sapateiro ou joalheiro – mas é o trabalho humano abstrato, a quantidade de trabalho abstrato, ou o tempo de trabalho dos diversos trabalhadores, independentemente das suas profissões. Somente o fato de as mercadorias serem fruto do trabalho, genericamente considerado, é que elas podem ter algo em comum, podem se tornar equivalentes entre si no mercado, podem ser trocadas. A quantidade desse trabalho genérico, abstrato – o tempo de trabalho – determina o seu valor-de-troca, ou o seu valor, a sua equivalência como mercadorias.

Esse aspecto do trabalho, a sua quantidade abstrata, nada tem a ver com o trabalho específico, com a qualidade do trabalho: “O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e no espaço”“Como valores-de-uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores-de-troca, só podem diferir na quantidade, não contendo portanto nenhum átomo de valor-de-uso”“As mercadorias têm de realizar-se como valores, antes de poderem realizar-se como valores-de-uso. Por outro lado, têm elas de evidenciar-se que são valores-de-uso antes de poderem realizar-se como valores, pois o trabalho despendido só conta se foi empregado de forma útil para os outros” (1). Com isso, vemos que o trabalho contido numa mercadoria tem um duplo caráter: como trabalho concreto, específico, produz valores-de-uso; como trabalho abstrato, genérico, produz valores-de-troca. Não pode existir mercadoria sem uma utilidade, sem um valor-de-uso; da mesma forma, sem trabalho abstrato, o valor-de-troca.  

Podem existir objetos úteis sem ter valor-de-troca, por não serem fruto do trabalho humano: o ar, a água dos rios, a lenha na floresta, o fruto silvestre. Um fruto silvestre, pode se tornar mercadoria se envolver trabalho na sua colheita. Por exemplo: o pinhão vendido no mercado torna-se mercadoria porque requer trabalho na sua colheita e transporte. Também pode haver produtos úteis, frutos do trabalho, que não sejam mercadorias: “Quem, com seu produto, satisfaz a própria necessidade gera valor-de-uso, mas não mercadoria. Para criar mercadoria, é mister não só produzir valor-de-uso, mas produzi-lo para outros, dar origem a valor-de-uso social” (1).

“Um valor-de-uso ou um bem só possui, portanto, valor, porque nele está corporificado, materializado, trabalho humano abstrato. Como medir a grandeza do seu valor? Por meio da quantidade da ‘substância criadora de valor’ nele contida, o trabalho. A quantidade de trabalho, por sua vez, mede-se pelo tempo da sua duração, e o tempo de trabalho, por frações do tempo, como hora, dia, etc” (1). Mas, “se o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho gasto durante a sua produção, poderia parecer que quanto mais preguiçoso ou inábil um ser humano, tanto maior o valor da sua mercadoria, pois ele precisa de mais tempo para acabá-la” (1). Mas não é assim. O que importa não é o trabalho individual, mas o tempo de trabalho social: Tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo de trabalho requerido para produzir-se um valor-de-uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais existentes e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho”. “O que determina a grandeza do valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor-de-uso” (1).

Os valores-de-troca das mercadorias variam na razão inversa da produtividade do trabalho. Quanto maior a produtividade, menor o tempo de trabalho socialmente necessário. Por sua vez, a produtividade depende do desenvolvimento da técnica, da ciência, da organização e divisão do trabalho, da especialização, da cooperação. 

A forma do valor-de-troca. O dinheiro
No início as mercadorias começam a ser trocadas umas pelas outras: x da mercadoria A igual a y da mercadoria B. Essa relação de troca entre duas mercadorias caracteriza a forma simples ou fortuita do valor. Isso somente é possível porque as mercadorias A e B têm algo em comum, o trabalho humano abstrato. A mercadoria A expressa seu valor relativo na mercadoria B. A mercadoria B serve de equivalente de A, ou seja, desempenha o papel de medir o valor de A. Para isso essas mercadorias devem ser diferentes. Não tem sentido, por exemplo, dizer que um casaco é igual a um casaco, mas tem sentido falar que um casaco é igual a dois pares de sapatos. Se colocássemos dois tijolos, um em cada prato de uma balança, não saberíamos o seu peso. É preciso colocar de um lado de uma balança um tijolo e do outro pesos de ferro previamente medidos. Da mesma forma que os pesos de ferro concretos representam a gravidade abstrata, o sapato, valor-de-uso concreto, serve de equivalente abstrato ao valor do casaco. “A primeira peculiaridade que salta aos olhos, ao observar-se a forma de equivalente, é que o valor-de-uso se torna a forma de manifestação do seu contrário, isto é, do valor”“O corpo da mercadoria que serve de equivalente passa sempre por encarnação do trabalho humano abstrato e é sempre o produto de um determinado trabalho útil, concreto. Esse trabalho concreto torna-se, portanto, expressão de trabalho humano abstrato” (1). Noutros termos, o valor-de-troca relativo de uma mercadoria – casaco – somente pode ser determinado através do valor-de-uso de outra mercadoria – sapato: “A forma relativa do valor e a forma de equivalente se pertencem uma à outra, se determinam reciprocamente, inseparáveis, mas, ao mesmo tempo, são extremos que mutuamente se excluem e se opõem, pólos da mesma expressão do valor” (1).

Forma relativa de valor é o valor de uma mercadoria sendo determinado por outra; forma equivalente de valor é a determinação por uma mercadoria do valor de outra. No mundo das trocas simples, as mercadorias assumem funções distintas, ao mesmo tempo opostas e complementares.

A evolução da troca e da produção de mercadorias possibilita a troca de uma mercadoria por diversas outras. No caso, a mercadoria considerada – o casaco – encontra equivalentes em diversas outras mercadorias. Ou seja, o seu valor passa a ser expresso, não mais por uma, mas por diversas mercadorias. Inversamente, num estágio posterior da produção, uma determinada mercadoria passa a servir de equivalente de muitas outras. Chega um momento em que uma mercadoria passa a ser trocada por todas as outras. Essa mercadoria especial, Marx chama de equivalente geral. Ela não é uma escolha da sociedade, mas o resultado espontâneo do desenvolvimento da troca. “Então, mercadoria determinada, com cuja forma natural se identifica a forma equivalente, torna-se mercadoria-dinheiro. Desempenhar o papel de equivalente universal torna-se sua função social específica, seu monopólio social no mundo das mercadorias” (1).

Por suas características peculiares, o ouro e a prata passaram a exercer progressivamente a função de dinheiro. “O ouro se confronta com outras mercadorias, exercendo a função de dinheiro, apenas por se ter, antes, a elas anteposto na condição de mercadoria. Igual a outras mercadorias, funcionou também como equivalente singular em operações isoladas de troca, ou equivalente particular junto a outros equivalentes. Pouco a pouco, passou a desempenhar em círculos mais ou menos vastos o papel de equivalente geral. Ao conquistar o monopólio desse papel de expressar o valor do mundo das mercadorias, tornou-se mercadoria-dinheiro ...”. “Embora ouro e prata não sejam, por natureza, dinheiro; dinheiro, por natureza, é ouro e prata”. “Os povos nômades foram os primeiros a desenvolver a forma dinheiro ...”. “Ouro e prata já saem das entranhas da terra como encarnação direta de todo trabalho humano. Daí a magia do dinheiro. Os homens procedem de maneira atomística, no processo de produção social e suas relações de produção, assumem uma configuração material que não depende do seu controle nem da sua ação consciente individual. Esses fenômenos se manifestam na transformação geral dos produtos do trabalho em mercadorias, transformação que gera a mercadoria equivalente universal, o dinheiro. O enigma do fetiche do dinheiro é, assim, nada mais do que o enigma do fetiche mercadoria em forma patente e deslumbrante” (1).

Essas relações do mundo das mercadorias sempre foram envolvidas por uma névoa de mistério. Marx desvendou esse mistério. Mas essas descobertas, apesar do enorme avanço científico que representam, não resolvem o enigma da mercadoria. Enquanto existir o capitalismo, a determinação do valor das mercadorias continuará sendo um fenômeno social espontâneo e oculto às grandes massas. A sua troca continuará sendo determinada por forças inconscientes. No capitalismo, a troca de mercadorias é uma relação social que aparece como relação entre coisas: “A estrutura do processo vital da sociedade, isto é, do processo da produção material, só pode desprender-se do seu véu nebuloso e místico, no dia em que for obra de homens livremente associados, submetida a seu controle consciente e planejado. Para isso, precisa a sociedade de uma base material ou de uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez, só podem ser o resultado de um longo e penoso processo de desenvolvimento” (1). 

A metamorfose do dinheiro
Não  é o dinheiro que torna as mercadorias equivalentes entre si. Pelo contrário, o fato de serem equivalentes, expressão do trabalho humano, podem fazer do dinheiro a medida do seu valor: “A expressão do valor de uma mercadoria em ouro (x da mercadoria A = y da mercadoria ouro) é a sua forma dinheiro ou preço” (1). “O preço, em si, não passa da expressão monetária do valor” (2). O preço iguala a quantidade de trabalho de uma mercadoria com igual trabalho expresso em ouro. O preço é uma relação quantitativa entre o valor das mercadorias e o valor do ouro. Qualquer desses fatores que se alterem, altera o preço: “O preço é a designação monetária do trabalho corporificado na mercadoria” (1). Por sua vez: “O valor do ouro ou da prata, como de todas as outras mercadorias, é determinado pela quantidade de trabalho necessário à sua produção” (2).

Inicialmente o dinheiro, representado pelo ouro ou pela prata, era apenas um instrumento para a circulação das mercadorias. As trocas podiam ser descritas pela seguinte fórmula: 

M (mercadoria) – D (dinheiro) – M (mercadoria) 

Um produtor de uma mercadoria A troca-a por dinheiro para comprar outra mercadoria, B. Ou seja, a mercadoria percorre o circuito M – D – M. Esse é o estágio da troca em que se trocam produtos excedentes, aqueles para cujos proprietários não têm utilidade, por outros dos quais precisam para seu consumo: “A primeira metamorfose de uma mercadoria, a conversão de uma mercadoria em dinheiro, é sempre a segunda metamorfose oposta de outra mercadoria, a reconversão da forma dinheiro em mercadoria” (1). A venda de uma mercadoria corresponde à compra de outra. O conjunto de todas as compras e vendas chamamos de circulação de mercadorias. Até aqui o dinheiro serve apenas de intermediário, de meio de circulação.

Após a sua compra, as mercadorias são consumidas, portanto, saem da circulação. Com o dinheiro isso não acontece. Ele permanece em algum lugar da circulação. A cada venda de uma mercadoria corresponde uma compra de outra, “mas ninguém é obrigado a comprar imediatamente, apenas por ter vendido” (1). A acumulação do dinheiro permite que alguém compre sem vender imediatamente ou venda sem comprar. E isso somente se torna possível em maior escala com o desenvolvimento da produção: “É justamente nos começos da circulação das mercadorias que apenas os valores-de-uso supérfluos se convertem em dinheiro. Ouro e prata se tornam assim expressões sociais do supérfluo ou da riqueza. Essa forma ingênua de entesouramento perpetua-se em povos que têm um sistema de produção tradicional ajustado ao próprio consumo e correspondente a um conjunto fixo de necessidades” (1). “Ao ampliar-se a circulação das mercadorias, aumenta o poder do dinheiro, a forma de riqueza sempre disponível e absolutamente social” (1). Num dado estágio de desenvolvimento a acumulação de dinheiro, o entesouramento, torna-se uma necessidade para a regulação da circulação de mercadorias. Assim, ao lado dessas funções do dinheiro, surge também o seu papel como meio de pagamento e de crédito.

A própria forma do dinheiro sofre transformações radicais. O ouro e a prata conquistaram a posição de dinheiro por suas características especiais: durabilidade, divisibilidade, etc. Apesar disso, ouro e prata também se desgastam, deixando de representar os valores contidos no seu título. Estabelece-se, então, um certo grau de tolerância, além do qual as peças desses metais deveriam ser substituídas. Com o tempo, por uma questão prática, passou-se a substituir as moedas de ouro e prata por uma espécie de símbolo do seu valor, o que veio a ser o dinheiro papel. Este, o dinheiro papel, deveria corresponder a uma quantidade de valor em ouro. Isso vigorou por um longo período, mas não mais acontece, fato que gera distorções no mercado capitalista. Somente no mercado mundial adquire o dinheiro plenamente o caráter de mercadoria.

A transformação do dinheiro em capital
“A circulação das mercadorias é o ponto de partida do capital. A produção de mercadorias e o comércio, forma desenvolvida da circulação de mercadorias, constituem as condições históricas que dão origem ao capital. O comércio e o mercado mundiais inauguram no Século 16 a moderna história do capital”
 (1). Como vimos, inicialmente o dinheiro era um intermediário, um auxiliar na circulação de mercadorias. Com o surgimento do capital, ele se transforma num objetivo. Isso corresponde a um estágio da civilização em que a produção de mercadorias assume o primeiro plano na economia. Antes se comercializava o excedente da produção. No capitalismo, toda a produção se destina ao comércio.

Esse processo é descrito pela seguinte fórmula de Marx: “O dinheiro que é apenas dinheiro se distingue do dinheiro que é capital através da diferença na forma de circulação. A forma simples da circulação das mercadorias é (M - D - M), conversão de mercadoria em dinheiro e reconversão de dinheiro em mercadoria. Ao lado dela, encontramos uma segunda, especificamente diversa, D - M - D, conversão do dinheiro em mercadoria e reconversão de mercadoria em dinheiro, comprar para vender. O dinheiro que se movimenta de acordo com esta última circulação transforma-se em capital, vira capital e, por sua destinação, é capital”. “O resultado final de todo o processo é a troca de dinheiro por dinheiro, D - D”. “A circulação simples das mercadorias começa com a venda e termina com a compra, a circulação do dinheiro como capital começa com a compra e termina com a venda. No primeiro caso, é a mercadoria e, no segundo, o dinheiro, o ponto de partida e a meta final do movimento. na primeira forma de movimento, serve o dinheiro de intermediário e, na segunda, a mercadoria”. “O circuito M - D - M tem por ponto de partida uma mercadoria e por ponto final outra mercadoria, que sai da circulação e entra na esfera do consumo. Seu objetivo final, portanto, é consumo, satisfação de necessidades, em uma palavra, valor-de-uso. O circuito D - M - D, ao contrário, tem por ponto de partida o dinheiro e retorna ao mesmo ponto. Por isso, é o valor-de-troca o motivo que o impulsiona, o objetivo que o determina” (1).

Mas, a forma D - M – D, que se resume ao final na troca de dinheiro por dinheiro, encerra uma contradição. Ao comerciante não tem sentido trocar valores iguais, ou seja, trocar mercadorias que contenham o mesmo trabalho social, a mesma quantidade de trabalho abstrato. Na verdade, a forma do capital comercial nãopode ser D - M - D, mas D - M - D’, ou seja, a compra de uma mercadoria para vendê-la com lucro. Mas, de onde sai o lucro, se se trocam mercadorias de igual valor? Marx provou que o lucro não pode ter origem na venda das mercadorias acima do seu valor, nem na compra abaixo do mesmo. O que se ganharia na venda, se perderia na compra e vice-versa. Sendo assim, o lucro não pode ser explicado apenas pela circulação das mercadorias. Entretanto, como nenhuma mercadoria pode estar fora da circulação, a explicação para o lucro deve estar dentro e fora dela.

Para explicar o lucro, ou mais valia, seria preciso encontrar uma mercadoria que tivesse a qualidade de produzir mais valor do que custa. E essa mercadoria especial é a força de trabalho.

A força de trabalho como mercadoria
Finalmente, após uma longa história, o possuidor do dinheiro encontra no mercado uma mercadoria capaz de produzir um valor superior ao que custa: a força de trabalho. Isso requer certas condições prévias: que o possuidor da força de trabalho seja um trabalhador livre – livre para vendê-la e que não possua outros bens além dela: “Ele e o possuidor do dinheiro encontram-se no mercado e entram em relação um com o outro como possuidores de mercadoria, dotados de igual condição, diferenciando-se apenas por um ser o vendedor e outro o comprador, sendo ambos juridicamente pessoas iguais”. “Esta relação não tem sua origem na natureza, nem é mesmo uma relação social comum a todos os períodos históricos. Ela é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, do desaparecimento de toda uma série de antigas formações de produção social”. “O que caracteriza a época capitalista é adquirir a força de trabalho, para o trabalhador, a forma de mercadoria que lhe pertence, tomando seu trabalho a forma de trabalho assalariado. Além disso, só a partir desse momento se generaliza a forma mercadoria dos produtos do trabalho” (1).

“O valor da força de trabalho é determinado, como o de qualquer outra mercadoria, pelo tempo de trabalho necessário à sua produção e, por conseqüência, à sua reprodução”. “O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho reduz-se, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência, ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção do seu possuidor” (1). Ou, noutros termos: “pelo valor dos artigos de primeira necessidade exigidos para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho” (2). As necessidades naturais de cada trabalhador e sua família – alimentação, habitação, roupas, remédios, lazer, etc. – dependem de muitas condições e de cada país. E dependem também das condições históricas da classe trabalhadora: hábitos, conquistas, organização, etc.: “Um elemento histórico e moral entra na determinação da força de trabalho, o que a distingue das outras mercadorias” (1). O dono do capital, ao comprar a força de trabalho, adquire por isso o direito de consumi-la por tempo determinado, ou seja, o capitalista apropria-se dos frutos do trabalho do trabalhador durante uma jornada de trabalho em troca de um salário e controla o seu ato de trabalho.

O que é mais valia?
O capitalista, ao comprar a força de trabalho e fazê-la produzir, apropria-se do produto desse trabalho. Acontece que o valor dessa produção é maior do que aquilo que o dono do dinheiro (ou seja, o capitalista) paga ao trabalhador na forma de salário. Suponhamos que a jornada de trabalho seja de 10 horas diárias e que o produto de 5 horas de trabalho seja suficiente para pagar o seu salário. Nesse caso, ao capitalista, após pagar o salário do trabalhador, ainda lhe sobra o produto das outras 5 horas de trabalho restantes. Dessa forma, durante a metade da jornada, 5 horas, o operário trabalha para pagar o seu salário e, durante a outra metade, trabalha para o dono do capital. Esse excedente de trabalho, além do necessário para o pagamento do salário, é o lucro do capitalista ou a mais valia: “O processo de consumo da força de trabalho é, ao mesmo tempo, o processo de produção de mercadoria e de valor excedente (mais valia)” (1). A parte do trabalho suficiente para pagar o salário do operário, Marx chamou de trabalho necessário e a parte da mais valia de trabalho excedente.

A capacidade da força de trabalho de produzir um excedente através do trabalho assalariado, ou seja, mais do que o valor da sua reprodução, é a base do sistema capitalista, o enigma desvendado por Marx. Esse mistério era encoberto pelo fato de que, na aparência, o salário é o pagamento integral da jornada de trabalho: “Essa aparência enganadora distingue o trabalho assalariado das outras formas históricas do trabalho. Dentro do sistema do salariado, até o trabalho não remunerado parece trabalho pago. Ao contrário, no trabalho dos escravos parece trabalho não remunerado até a parte do trabalho que se paga” (2). Por sua vez, no feudalismo o servo, por exemplo, trabalhava três dias para si e três dias para o senhor. Dessa forma, o trabalho para si e o trabalho excedente, para o senhor, aparecem claramente definidos.

Com a descoberta da mais valia, Marx explica o mistério consistente em que, sendo as mercadorias trocadas pelo seu valor – trabalho igual por trabalho igual – e não sendo o lucro fruto da venda acima do seu valor, nem a compra abaixo do mesmo – ainda assim, o capitalista embolsa lucros: “O custo da mercadoria para o capitalista e o custo real da mercadoria são coisas inteiramente distintas” (2). Por outro lado, a mais valia produzida na indústria é repartida entre os diversos setores capitalistas: a própria indústria, o comércio, os proprietários da terra (renda), os bancos (juros) e o Estado (impostos).

O salário e a jornada de trabalho. A luta pelo produto do trabalho: mais valia absoluta
Na determinação do valor da força de trabalho (o salário) entram as necessidades físicas mínimas de sobrevivência do trabalhador e, ainda, um “elemento histórico e moral”. Uma vez estabelecido o salário, o seu valor fica sujeito a muitas variações. Ao aumentar a produtividade do trabalho, que é uma tendência natural, cai o valor dos bens necessários à sua subsistência. Supondo que, em vez das 5 horas de trabalho, sejam agora necessárias apenas 4 horas para pagar os bens de subsistência do trabalhador. Mas, como costuma acontecer, este não repassará ao operário a uma hora economizada. Dessa maneira, o valor relativo do salário, mesmo comprando a mesma quantidade de bens, diminui em relação ao lucro do capitalista. No sentido inverso, caindo a produtividade, sobem os preços dos produtos. E, mantendo-se o salário nominal, o trabalhador perde poder aquisitivo. As mesmas variações acontecem com a inflação do dinheiro. O salário e o lucro estão sempre na relação inversa: quando um cai o outro sobe, e vice-versa.

A relação entre a duração da jornada de trabalho e o tempo ocupado pela produção da mais valia, Marx chama de mais valia absoluta. No exemplo considerado, a mais valia absoluta inicialmente era de 5 horas, passando para 6 horas com o aumento da produtividade. É o índice absoluto da exploração do trabalho. Na determinação da duração da jornada de trabalho, existe um conflito permanente entre os interesses do capital e os do trabalho. O capitalista entende que, ao comprar a força de trabalho, pode usá-la até o limite da sua força física. Tanto é assim que, no início da revolução industrial, as jornadas de trabalho prolongavam-se até extremos de 15 a 18 horas diárias, inclusive, o trabalho de crianças. A Lei das Dez Horas e Meia, promulgada em 1848, foi uma das primeiras vitórias importantes da classe operária inglesa.

Os interesses do trabalhador e os do capitalista são sempre antagônicos, tanto quanto ao salário quanto à duração da jornada de trabalho. Esse conflito é resolvido pela luta de classes: “toda a história da moderna indústria demonstra que o capital, se não se lhe põe um freio, lutará sempre, implacavelmente e sem contemplações, para conduzir a classe operária a esse nível de extrema degradação” (2). Os salários encontram um limite mínimo, físico, abaixo do qual o trabalhador definha. E a jornada de trabalho também tem o seu limite físico, máximo. Entretanto, o capitalismo tende sempre a ultrapassar esses limites. O encurtamento da vida de gerações de trabalhadores pode ser compensada por novos trabalhadores, o chamado “exército industrial de reserva” (os trabalhadores desempregados), que é outra característica do capitalismo.

Nos primórdios do capitalismo, os trabalhadores viveram essa realidade brutal. Somente se elevaram à condição humana com muita luta. Somos os herdeiros e beneficiários dessa luta, embora grandes massas permaneçam em condições subumanas. As conquistas sociais que hoje desfrutamos – jornada de 8 horas, férias, 13º salário, proibição do trabalho infantil, etc. – não foram concessões da burguesia, foram duras conquistas históricas. Na atualidade, a degeneração desse sistema, ao lado das derrotas do proletariado internacional – a restauração do capitalismo nos ex-estados operários burocratizados – tem reforçado a tendência à volta às condições de trabalho do Século 19. Na China, Índia, Vietnã e outros países, para onde atualmente o capital internacional se transferiu em grande escala, vemos ressurgirem o trabalho semi-escravo, os salários miseráveis, as extensas jornadas de trabalho e o trabalho infantil em massa. Em todo o mundo, há uma ofensiva do capital contra as conquistas dos trabalhadores.

Caso o proletariado não queira aceitar a degradação, o desemprego, o definhamento físico, somente lhe resta a luta. Por um lado, a luta salarial tem limites muito curtos, mesmo quando bem sucedida. A burguesia retira com a mão direita o dobro do que dá com a esquerda. Nesta época de decadência capitalista, tornam-se impossíveis conquistas duradouras. Temos visto exatamente a tendência inversa se impor, o retrocesso. Nessas condições, a única alternativa é a luta pelo fim do capitalismo.

Mais valia absoluta e relativa
Seja uma jornada de trabalho de 10 horas diárias. O valor produzido por parte dessa jornada (6 horas, por exemplo) serve para pagar a força de trabalho, representada pelo salário do trabalhador; e a outra parte (4 horas) representa a produção excedente apropriada pelo capitalista, a mais valia. Assim, 6 horas é o trabalho necessário e 4 horas o trabalho excedente. Considerando a linha abaixo:

               a-----------------------------b------------------c

ac = jornada de trabalho de 10 horas diárias
ab = trabalho necessário = 06 horas
bc =  trabalho excedente ou mais valia = 4 horas 

A mais valia pode variar de duas maneiras: 

a) Pelo prolongamento da jornada de trabalho. 
Por exemplo: de 10 horas para 11 horas diárias:

                 a-----------------------------b-------------------c-----c’ 

      A jornada de trabalho prolongou-se em 1 hora, de c para c’. 

Assim,
ac = jornada de trabalho anterior (10 horas)
ac’ = nova jornada de trabalho (11 horas)
ab = trabalho necessário (6 horas)
bc  = trabalho excedente anterior (4 horas)
bc’ = novo trabalho excedente (5 horas).

O trabalho necessário permaneceu o mesmo – 06 horas – mas a mais valia absoluta aumentou  1 hora diária, de 4 para 5 horas. 

b) Pela redução do tempo do trabalho necessário. 
Mantem-se a duração da jornada de trabalho e diminui o trabalho necessário. Por exemplo: de 6h para 5h: 

                  a---------------------b’------b--------------------c 

ac = jornada de trabalho (10 horas)
ab = trabalho necessário anterior (6 horas)
ab’ = novo trabalho necessário (5 horas)
bc = trabalho excedente anterior (4 horas)
b’c = novo trabalho excedente (5 horas)

A essa variação da mais valia, mantendo-se a mesma jornada de trabalho, decorrente do aumento ou diminuição do trabalho necessário, se denomina de mais valia relativa. O aumento da mais valia relativa é o resultado do aumento da produtividade do trabalho. Aumentando a produtividade nas indústrias produtoras das mercadorias necessárias à reprodução da força de trabalho, isto é, necessárias à sobrevivência do trabalhador e sua família, barateia-se o seu preço. Com isso, os mesmos produtos, que antes exigiam 6 horas de trabalho, agora podem ser comprados por apenas 5 horas. O trabalhador passa a trabalhar 1 hora a menos para custear o seu salário e 1 hora a mais para o capitalista. “O desenvolvimento da produtividade do trabalho na produção capitalista tem por objetivo reduzir a parte do dia de trabalho durante a qual o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo, justamente para ampliar a outra parte durante a qual pode trabalhar gratuitamente para o capitalista” (1).

Mesmo que a sua jornada de trabalho continue a mesma e compre os mesmos produtos que antes, o salário do trabalhador diminui relativamente em relação ao capital. O trabalhador ficou relativamente mais pobre porque caiu a sua parte proporcional no trabalho produzido por ele. É por essa razão que o capitalista está sempre interessado em aumentar a produtividade do trabalho, que nunca serve para reduzir a jornada de trabalho. Historicamente, a redução da jornada somente pode ser conquistada com luta.

As duas partes do capital: capital constante e capital variável
A produção de mercadorias exige um investimento prévio do capitalista em instalações, máquinas e equipamentos, matérias primas, etc. A produção de sapatos, por exemplo, envolve máquinas, couros, plásticos, borracha, colas, tintas, etc. Todos esses componentes foram produto de trabalho anterior, ou seja, contém trabalho acumulado, que Marx chamou de trabalho morto em comparação com o trabalho vivo, este representado pelo trabalho atual. Dessa forma, o capital investido em máquinas, matérias primas, instalações, etc. denomina-se de capital constante. E o capital investido na compra da força de trabalho, no pagamento de salários, chama-se de capital variável. Apenas este, o capital variável, cria valor excedente, ou seja, paga seu próprio valor e cria mais valia. O capital acumulado, ou capital constante, transfere seu valor integralmente à mercadoria e não cria mais valia. “A parte do capital, portanto, que se converte em meios de produção, isto é, em matéria-prima, materiais acessórios e meios de trabalho, não muda a magnitude do seu valor no processo de produção. Chamo-a, por isso, parte constante do capital, ou, simplesmente, capital constante”. “A parte do capital convertida em força de trabalho, muda de valor no processo de produção. Reproduz o próprio equivalente e, além disso, proporciona um excedente, a mais valia, que pode variar, ser maior ou menor. Esta parte do capital transforma-se continuamente, de magnitude constante em magnitude variável. Por isso, chamo-a parte variável do capital, ou simplesmente, capital variável” (1).

O trabalho do operário possui, então, duas faculdades: ao mesmo tempo que acrescenta trabalho novo ao produto – o sapato – também transfere a esse produto o trabalho anterior, acumulado nas máquinas e matérias primas, etc. O trabalho do sapateiro “por sua propriedade abstrata geral de dispêndio de força humana de trabalho”, acrescenta aos valores das matérias primas – couro, borracha, etc. – valor novo; e por sua “propriedade concreta, especial, útil”, própria do sapateiro, “transfere o valor desses meios de produção ao produto, conservando-o no produto”. O trabalho do operário “apenas por adicionar valor novo conserva o valor antigo. O acréscimo de valor novo ao material de trabalho e a conservação dos valores antigos no produto são dois resultados totalmente diversos produzidos pelo trabalhador ao mesmo tempo, embora execute apenas um trabalho”. “No mesmo tempo, em virtude de uma propriedade, seu trabalho tem de criar valor, e, em virtude de outra conservá-lo” (1). O trabalho contido nas máquinas se transfere aos produtos através de uma média, considerando a sua vida útil e a quantidade total da sua capacidade de produção.

As matérias primas também são mercadorias que tem seu valor-de-uso. A sua forma de valor-de-uso – por exemplo, o couro na produção de sapatos – desaparece no processo de produção para ressurgir sob nova forma, o sapato. Por essa razão, o processo de produção também é um processo de consumo de matérias primas. Na verdade, o que se consome no processo de produção é o valor-de-uso da matéria prima, não o seu valor, este se transfere ao novo produto: “valor-de-uso se transmuta em outro valor-de-uso”.

A taxa da mais valia
A taxa de mais valia mede o grau de exploração da força de trabalho. Supondo que um capitalista invista 500,00 em capital constante (c) – máquinas, matérias primas, etc.; e invista 200,00 em capital variável – salários (v); e que tenha uma mais valia (mv) de 300,00. O total do capital investido (c + v) seria de 700,00 = C. Ao final da produção, a mercadoria terá o valor de (c + v + mv) 1000,00 = C’. O capital inicial C = 700,00, transformou-se em C’ = 1000,00. Desse capital final (1000,00), 500,00 representa o capital constante (trabalho anterior, apenas transferido ao produto); e os outros 500,00 representa o valor novo, produto do trabalho atual – 200,00 do capital variável e 300,00 de mais valia.

O valor novo não é o que parece, ou seja, 1000,00. A parte do capital constante – 500,00 – apenas se transfere ao produto final: “O valor do capital constante apenas reaparece no produto” (1). O valor da força de trabalho é considerado capital variável porque representa o trabalho em atividade, que gera mais valor do que contém, o único que gera valor novo. O resultado é a reprodução da força de trabalho e um produto excedente. Por esse motivo, o grau de exploração da força de trabalho – ou taxa de mais valia (Tmv = 300,00) – não é medido pela relação entre a mais valia e o total do capital investido (C = 700,00), mas entre a mais valia e o capital variável (v = 200,00).

Portanto, a taxa de mais valia (Tmv) é medida pela fórmula:  

            mv ...... mais valia
Tmv = ----- = -----------------, no caso, a Tmv seria,
             v     ....  cap. variável


         300,00
Tmv = -------- = 1,5 ou a taxa de mais valia é igual 150% do capital variável.
             200,00

O mesmo resultado se obtém dividindo-se o tempo de trabalho excedente pelo tempo de trabalho necessário, segundo a fórmula:
             tempo de trabalho excedente
Tmv = ----------------------------------
            tempo de trabalho necessário  
 



Citações: 
    1. - O Capital
    2. - Salário, Preço e Lucro.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O duplo sentido do linguajar morenista

*Texto escrito por Eduardo Cambará para a Luta Marxista e publicado originalmente no seu site em 2009

A esquerda de hoje sofre de dupla personalidade. As principais organizações da esquerda “revolucionária” tem uma prática habitual de cultivar duas posições “ao mesmo tempo”. Este duplo sentido tem como fim esconder as reais posições defendidas e, geralmente, mescla posições revolucionárias e posições oportunistas. Intrigados, alguns ativistas nos perguntam: como isso é possível? Na verdade, isto não é possível. Quando existe uma política ambígua, com duplo sentido, sempre prevalecem as posições oportunistas sobre as pretensas posições revolucionárias. Toda a trajetória do marxismo nos ensina que não é possível servir a dois senhores. Ou servimos à burguesia, ou servimos ao proletariado, não há meio termo.

Frente a crise de direção revolucionária que se aprofundou ao longo do Século 20, o trotskismo teve os primeiros méritos em reconhecer e desmascarar os inúmeros “charlatães e importunos professores de moral”. As principais organizações que se reivindicam trotskistas são a negação acabada das lições do próprio trotskismo e a prova viva deste método nefasto de diluir o programa revolucionário num programa ambíguo. Esquecem do Programa de Transição quando ele afirma: “Olhar a realidade de frente; não procurar a linha de menor resistência; chamar as coisas pelo seu nome; dizer a verdade às massas, por mais amarga que seja; (...) ser rigoroso tanto nas pequenas, quanto nas grandes coisas (grifos nossos). Este trecho define bem a intenção e a necessidade de sermos o mais claro possível, de não tergiversar, de combater a ambiguidade.

Contudo, a intenção descrita pelo Programa de Transição foi frustrada justamente porque os charlatães assumiram a direção da IV Internacional após a morte de Trotsky. E, sobretudo, após o racha em mil pedacinhos da IV Internacional, carregam o falso prestígio de serem os herdeiros legítimos de Trotsky. Não só frustraram esta intenção como foram no sentido oposto, isto é, aprofundaram a ambiguidade, o duplo sentido e a confusão programática. Terminaram por liquidar a IV Internacional. Não é necessário citar o papel do Mandelismo, do Lambertismo e do Pablismo. Estes dirigentes e suas respectivas correntes já foram suficientemente desmascarados ao longo da História. As organizações atuais que reivindicam o legado destes dirigentes (SU, DS, “O Trabalho”, etc.) são a prova viva do que afirmamos e já são sustentáculos diretos da ordem burguesa. Porém, dentre estes, cabe um destaque especial para Nahuel Moreno, que ainda hoje conserva e semeia inúmeras ilusões pela vanguarda revolucionária.

A LIT, o morenismo e a dupla linguagem

morenismo é merecedor deste destaque porque todas as suas vertentes atuais sofrem de dupla personalidade. Desde a principal – a LIT/PSTU – até as sucursais menores – como a UIT/CST (corrente interna do PSOL); passando, inclusive, pelas declaradamente não-morenistas, mas que conservam o morenismo em todo o seu vigor. A tentativa deste duplo sentido da LIT e das correntes morenistas visa confundir o programa e a prática economicista com o programa revolucionário. Como isso não pode ser dito às claras, recorrem ao duplo sentido. Seus textos programáticos são repletos de ambigüidades e confusões. Dizem uma coisa e logo em seguida dizem o oposto. Não podem jogar às claras porque precisam manter uma aparência de combativos, de revolucionários; em suma, de marxistas. Como sabem que o marxismo não é compatível com esta prática, preferem recorrer a tergiversação e ao charlatanismo para manter as aparências.

Exemplifiquemos, para mais facilmente ilustrar, como Moreno faz para defender sua principal política: a Revolução Democrática. A Revolução Democrática é a negação de tudo o que representou o trotskismo em sua luta contra o revisionismo. É a luta histórica entre a Revolução Permante versus a Revolução Democrática e etapista. Para atingir este fim é necessário um verdadeiro malabarismo político, por isso, a dupla linguagem é o método perfeito. Entram em cena várias faces de um mesmo personagem.

Cena 1, a exaltação: “Porém, seguimos acreditando que a teoria da revolução permanente era a maior teoria política revolucionária que se estruturou, nós acreditamos que os dois grandes descobrimentos do século são a teoria da revolução permanente e o desenvolvimento desigual e combinado, além do imperialismo e o partido, descobertos por Lênin” (Crítica às teses da Revolução Permanente de Trotsky, Nahuel Moreno in Escola de Quadros, Argentina 1984);

Cena 2, clareza teórica e distorção: “Quer dizer, ou a revolução é permanente, ou se detém e retrocede. Ou seja, Trotsky teve razão contra todo mundo no sentido de que não havia revoluções nacionais, em que era uma revolução mundial. Também acertou em que, dirija quem dirija o processo, se este avança, transforma-se em socialismo, não há maneira de evitar que seja socialismo(Idem – grifos nossos). Trotsky nunca disse que independente de qual classe dirija o processo revolucionário ela se transforma em socialismo. O trotskismo nunca colocou em dúvida de que a única classe capaz de transformar as revoluções democráticas em proletárias era o próprio proletariado. Sempre foi o mais claro possível neste aspecto. Todas as direções pequeno-burguesas degeneraram suas respectivas revoluções e a colocaram novamente no caminho burguês – a cubana e nicaragüense confirmam Trotsky. Afirmar, irresponsavelmente, que Trotsky disse que “dirija quem dirija o processo” ele “transforma-se em socialismo”, e o pior, “não há maneira de evitar”, é a mais pura distorção teórica. Esta não é a única. Durante todo o texto Moreno faz inúmeros discursos indiretos de Trotsky, conforme sua interpretação, é claro: “Se existe um processo de revolução democrática, essa revolução vai ser socialista por seu próprio conteúdo (...) Então, não me interessa o sujeito. Seja qual for o sujeito, tem que fazer a revolução socialista” (Idem).

Cena 3, a justificativa e a negação: “Nós acreditamos que nestes últimos 40 anos produziram-se fenômenos distintos aos que Trotsky viu, que nos obrigam a começar a elaborar entre todos (...) uma nova formulação, uma nova forma de escrever a teoria da revolução permanente, tomando todos os problemas. Temos que formular que não é obrigatório que seja a classe operária e um partido marxista revolucionário com influência de massas quem dirija o processo da revolução democrática para a revolução socialista. Não é obrigatório que seja assim. Ao contrário: aconteceram e não está descartado que aconteçam, revoluções democráticas, que no terreno econômico, se transformam em socialistas. Quer dizer, revoluções que expropriem a burguesia sem ter como eixo essencial a classe operária – ou tendo-a como participante importante –, e não tendo partidos marxistas revolucionários e operários revolucionários na sua frente e sim, partidos pequeno-burgueses” (Idem – grifos nossos).

Este duplo discurso está presente em toda a teoria morenista e citar todas as passagens seria fugir ao nosso assunto principal. Cabe ressaltar que todas as correntes da esquerda “revolucionária”, declaradamente morenistas ou não, utilizam-se destes subterfúgios para renegar e rebaixar o programa marxista, transformando-o em mero economicismo, espontaneísmo barato. Fazem isso ora abertamente (como Moreno no referido texto), ora disfarçadamente. É tarefa dos autênticos revolucionários identificar e desmascarar esta impostura.

Lênin e o combate ao oportunismo

Esta prática oportunista de cultivar duas posições políticas não é novidade. Já foi muito bem identificada por Lênin e combatida pelos bolcheviques. O morenismo mostra-se não só a negação do trotskismo, mas, também, a negação acabada do leninismo. Ser fiel ao leninismo e ao bolchevismo passa por combater esta cultura nefasta da vanguarda economicista. Nas palavras dele: “... é preciso não esquecer nunca um traço característico de todo o oportunismo contemporâneo, em todo o seu domínio: o seu caráter vago, impreciso, inapreensível. Pela sua própria natureza o oportunismo evita sempre pôr as questões de maneira clara e definida, procura a resultante, arrasta-se como uma cobra entre dois pontos de vista que se excluem mutuamente, procurando ‘estar de acordo’ com um e com outro, reduzindo as suas divergências a ligeira modificações, a dúvida, a votos piedosos e inocentes, etc” (“Um passo em frente, dois passos atrás”, Lênin). 

duplo linguajar de hoje
Desgraçadamente, esta prática não só persiste como se tornou ainda mais perniciosa para a organização independente dos trabalhadores. Atualmente, as organizações revisionistas usam um duplo discurso para defender a formação de novas frentes populares eleitoriais (Frente de Esquerda 2006/2008), com inúmeras distorções e ambiguidades sobre a participação eleitoral dos revolucionários; para defender unidade com o governismo (através da unificação da Conlutas com a Intersindical e com o calendário da CUT), “renunciando e ao mesmo tempo defendendo” a política de Trotsky para os sindicatos; para defender o chavizmo na Venezuela e ver pontos progressivos em seu nacionalismo e ao mesmo tempo esquecer as principais lições do marxismo sobre o nacionalismo-burguês; etc. Exemplos não faltam.

Esta prática teórico/programática significa o triunfo do revisionismo e da prostituição do marxismo. O partido revolucionário só poderá surgir, construir-se e firmar-se sobre as cinzas destas organizações centristas. Enquanto elas forem hegemônicas na vanguarda o proletariado continuará lutando de olhos vendados.

domingo, 21 de junho de 2020

Conceitos Políticos Escandalosos

Crítica aos "Conceitos Políticos Básicos" de Nahuel Moreno
*Texto escrito por João de Barro para a Luta Marxista e publicado originalmente no seu site em 2009

O livro “Conceitos Políticos Básicos” é uma coleção de conceitos e métodos escandalosos, ecleticamente misturados a verdades e meias verdades, orquestrados com a finalidade de defender uma política, a saber: a revolução por etapas e a conciliação de classes. Faz terra arrasada do marxismo. Em conjunto com outros livros de Moreno - Revolução Democrática Triunfante, Teses para Atualização do Programa de Transição, As Revoluções do Século XX - cria uma doutrina revisionista, com a qual deseduca e confunde a vanguarda. Não é nosso objetivo abordar o conjunto desse revisionismo, mas apenas recuperar alguns conceitos marxistas das grosseiras distorções constantes nesse primeiro texto citado.

Conceitos escandalosos
Moreno começa conceituando estratégia e tática: “O marxismo extraiu esses dois conceitos da ciência militar”. “... a estratégia tem a ver com o objetivo final, de conjunto, a longo prazo, e as táticas são os diversos meios para chegar a esse objetivo. Ambos são termos relativos”. Logo a seguir define o que seria a estratégia: “Mobilizar as massas e construir o partido para a tomada do poder”. Salta aos olhos que o primeiro objetivo, mobilizar as massas, não pode ser uma estratégia, entendida como um objetivo final. Cada mobilização tem o seu próprio objetivo. Pode-se dizer que as mobilizações, em geral, favorecem a realização das tarefas do proletariado. Mas nem sempre é assim. Existem mobilizações inconvenientes, equivocadas, prematuras. Mobilização é apenas um método privilegiado, não um objetivo permanente, muito menos uma estratégia. A construção do partido, de fato, é um objetivo permanente, uma necessidade imprescindível para a emancipação da classe operária. Mas também não é uma estratégia em relação a essa emancipação, mas um meio para ela.

Em As Lições de Outubro, Trotsky define tática e estratégia da seguinte forma: “Em política, entende-se por tática, por analogia à ciência da guerra, a arte de orientar operações isoladas; por estratégia, a arte de vencer, isto é, conquistar o poder”. Por que será que Moreno transforma os objetivos parciais (as mobilizações) e subordinados (a construção do partido) em estratégia final e ignora a verdadeira estratégia (a conquista do poder pelo proletariado)? A nosso ver, isso serve aos seguintes objetivos: secundarizar a real estratégia - a revolução socialista - e preparar as justificativas para a sua tática de frente única, onde qualquer frente se justificaria se ajudar nas mobilizações.

Para Moreno: “A primeira, a construção do partido, depende muito de nós (é subjetiva), enquanto a mobilização, não. É independente dos desejos e da vontade (e até da existência) dos revolucionários”. Diz também que: “Há etapas de luta e de mobilização, e etapas nas quais estas não ocorrem. Por isso, é tão importante procurar sempre as táticas, a política, que responda à situação objetiva”. Isso é uma meia verdade, portanto, completamente falso. Nem a construção do partido é apenas subjetiva, ou seja, dependente exclusivamente de nós, nem a mobilização é objetiva, não depende de nós. Na verdade, Moreno admite: “Diante de um partido com influência de massas, a questão mudaria bastante”.

O marxismo considera o partido como a auto-seleção dos elementos mais conscientes, devotados e combativos. Nesse sentido, a construção do partido seria uma tarefa subjetiva. No entanto, o partido não é um ente isolado da sociedade, é uma parte e um instrumento do proletariado. Depende da existência e do amadurecimento do proletariado e, a longo prazo, das suas lutas. Existe uma via de duas mãos, dialética, entre a luta de classes e a construção do partido. Portanto, sua construção, do ponto de vista histórico, também depende de fatores objetivos.

O mesmo se diga da mobilização. Genericamente, é absolutamente falso que é um fenômeno objetivo, que não depende de nós, ou seja, do partido, dependendo em grau menor dos partidos de massa. Existem períodos alternados de ascenso e descenso das lutas proletárias. Nos períodos de derrota, mesmo um partido de massas não tornaria efetiva uma greve geral, por exemplo. Mas para as derrotas é decisiva a política traidora das direções, um fator subjetivo. E a superação da apatia das massas dependerá não só de fatores objetivos – as crises, a miséria social -, mas igualmente da política cotidiana do partido, uma questão subjetiva. É verdade que as mobilizações não dependem totalmente do partido, que não pode tudo. Entretanto, dadas as condições objetivas, o partido é determinante para as mobilizações e, acima de tudo, para a criação de uma situação revolucionária.

Ao contrário do que afirma Moreno, a construção do partido e as mobilizações são condicionadas tanto por condições objetivas como subjetivas. A realidade é concreta, deve ser analisada concretamente, devemos considerar os diversos fatores e as suas relações. Moreno cria um esquema petrificado: construção do partido seria subjetiva; as mobilizações, objetivas. Ao mesmo tempo incorre numa contradição: como as mobilizações poderiam ser uma estratégia permanente do partido, se não dependem da sua vontade – ou dependem secundariamente – no caso dos partidos de massa? Esse é um esquema espontaneísta e de secundarização da importância do partido.

Para os conceitos de agitação e propaganda, se vale da definição de Plekhanov, não literal e sem citá-lo: “Propaganda é a atividade de dar muitas idéias para poucas pessoas. Agitação é a atividade de dar poucas idéias a muitas pessoas”. A seguir “aprofunda” Plekhanov: “A agitação, pelo contrário, consiste em colocar umas poucas palavras de ordem (às vezes apenas uma) que dêem solução para a luta que esteja colocada em cada momento para o movimento operário de massas”. Isso é semelhante ao “aprofundamento” de Plekhanov pelo economicista Martynov, citado por Lênin em Que Fazer?, a saber: “Por agitação, no sentido estrito da palavra, entendemos o apelo dirigido às massas para certos atos concretos...” (Que Fazer?, capítulo: Como Martynov aprofundou Plekhanov). Moreno alega basear-se em James Cannon, trotskista, dirigente do SWP dos EUA, para criar essa nova categoria – agitação para a ação: “Cannon agregou um segundo tipo de agitação, para a ação: o lançamento de palavras de ordem para serem concretizadas”. Como vimos, essa categoria, agitação para a ação, não é nova, remonta aos economicistas.

Lênin criticou essa categoria criada por Martynov, e agora repetida por Moreno, nos seguintes termos: “Distinguir um terceiro domínio, ou uma terceira função da atividade prática, função que consistiria em ‘atrair as massas para certos atos concretos’ é o maior dos absurdos, pois o ‘apelo’ sob forma de ato isolado, ou é o complemento natural e inevitável do tratado teórico, do folheto e propaganda, do discurso de agitação, ou é uma função pura e simples de execução” (Que Fazer?).

Moreno amesquinha o trabalho de agitação, reduzindo-o a uma atividade prática. Ao contrário, Lênin apoiando-se em Plekhanov usou o problema do desemprego para exemplificar: “... um propagandista, ao tratar, por exemplo, do problema do desemprego, deve explicar a natureza capitalista das crises, mostrar o que as torna inevitáveis na sociedade moderna, mostrar a necessidade de transformação dessa sociedade em sociedade socialista, etc. Em uma palavra, deve fornecer ‘muitas idéias’, um número tão grande de idéias que, de momento, todas essas idéias tomadas de conjunto apenas poderão ser assimiladas por um número (relativamente) restrito de pessoas. Tratando da mesma questão, o agitador tomará, ..., por exemplo, uma família de desempregados morta de fome, a indigência crescente, etc., e, ..., fará todo o esforço para dar à massa ‘uma única idéia’: a da contradição absurda entre o aumento da riqueza e o aumento da miséria; esforçar-se-á para suscitar o descontentamento, ..., deixando ao propagandista o cuidado de dar uma explicação completa dessa contradição” (Que Fazer?).

Para Moreno: “Em geral, a propaganda se dirige à vanguarda e a agitação a toda a população trabalhadora, à classe operária e às massas exploradas”. Com isso, a propaganda de massas é abolida e a agitação se restringiria apenas aquela para a ação imediata. A rigor, a agitação serviria somente para pressionar as organizações de massas, em geral, traidoras. Os exemplos que cita são nesse sentido. Essa é a matriz metodológica de toda a política oportunista de frente única do morenismo.

A questão da unidade
A questão da unidade evidencia o verdadeiro sentido da “eleição” inicial da “mobilização permanente” como objetivo estratégico: “... para ajudar a ação e a mobilização, fazemos todo tipo de acordos e nos parece extraordinário que intervenham todas as forças operárias, mesmo que sejam organizações stalinistas ou burocráticas. Em outras palavras, podemos fazer pactos, acordos, unidades de ação ou qualquer coisa pelo estilo, conjuntural, até com o diabo e a sua avó – para usar uma expressão célebre – se ajuda nos fins estratégicos de construir o partido e ampliar a mobilização”. Dessa forma os interesses da mobilização justificam qualquer tipo de acordo, mesmo os mais oportunistas e reacionários, como veremos. No Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Lênin defende a necessidade de estabelecer compromissos, contra a opinião dos ultra-esquerdistas, mas, ao mesmo tempo, previne contra os oportunistas: “Se os bolcheviques se permitem um ou outro compromisso, porque não havemos nós de permitir-nos qualquer compromisso”. A seguir fala dos compromissos necessários e dos “compromissos de traidores”: “Preparar uma receita ou uma regra geral (nenhum compromisso!) para todos os casos é absurdo. É preciso ter a cabeça no lugar para saber orientar-se em cada caso particular”. Não basta que o acordo possa ajudar na mobilização. A realidade é mais complexa. Com esse método se justifica qualquer oportunismo.

Para Moreno, as mobilizações têm uma virtude especial: “...onde há ação e mobilização começa a haver rompimento no aparato burocrático e traidor, surgimento de correntes operárias, sejam organizadas ou não, que vão se tornando independentes, que vão se deslocando para a esquerda e no enfrentamento a essas direções burocráticas, no terreno sindical e político” (grifo nosso). Essa é mais uma generalização oportunista. Essa virtude espontaneísta as mobilizações não têm e a História não confirma. Os rompimentos se baseiam, sobretudo, na luta política e ideológica, não apenas nas mobilizações. Essa teoria é uma fábrica de falsos rompimentos progressistas.

A frente única
A frente única, como tática especial, surgiu no III Congresso da Internacional Comunista, do qual Moreno faz referência e parece se reivindicar. No entanto, a sua teoria de frente única é o oposto, a negação mais cabal do que preconizou aquele Congresso. Foi uma tática adotada pela Internacional em razão da divisão do proletariado europeu entre o comunismo e a social-democracia, ambos partidos de massa. Respondia à necessidade e ao desejo de unidade do proletariado para a luta defensiva diante da burguesia, cuja dominação se estabilizava novamente.

A tática de frente única estava, pois, circunscrita a essa realidade e se definia como “acordos práticos para ação de massas, para fins de combate”. Moreno chama esses acordos práticos de “unidade na ação” em oposição à frente única propriamente dita, que seria uma unidade programática e mais ou menos permanente: “Se falamos de frente – ou seja, do oposto da unidade de ação conjuntural, do acordo ou pacto conveniente, em torno de uma palavra de ordem – falamos da formação de algum tipo de organismo permanente e de um programa, tem que ser organização da mesma classe, ou seja, organizações operárias (negrito no original). Essa divisão entre esses dois tipos de unidade – unidade na ação e frente única – nunca existiu no campo do marxismo, em toda a sua literatura clássica. É uma invenção oportunista. Todos os textos clássicos sobre a questão da unidade – as teses do III e IV Congressos da III Internacional, os escritos de Trotsky sobre os sindicatos, Revolução e Contra-revolução na Alemanha, entre outros – definem frente única e unidade na ação como uma única e mesma coisa: Nenhuma plataforma comum com a social-democracia ou com os chefes dos sindicatos alemães, nenhuma edição, nenhuma bandeira, nenhum cartaz comum: marchar separadamente, lutar juntos. Combinação apenas nisto: como combater, quem combater e quando combater? Nisto, pode-se entrar em acordo com o próprio diabo e a sua avó e mesmo com Noske e Grzesinski. Com uma condição: conservar as mãos livres” (grifos nossos). Esta citação Moreno conhece muito bem, tanto é assim que a cita parcialmente, como vimos atrás: “podemos fazer acordos, pactos, ..., até com o diabo e a sua avó – para usar uma expressão célebre”. E existem muitas outras citações célebres no mesmo sentido. Da citação célebre lembrou-se do diabo e da sua avó, mas esqueceu-se do fundamental, isto é, dos princípios da independência de classe: nenhuma plataforma ou programa comum, lutar juntos, mas marchar separados. Ao contrário, inverte o conceito de frente única e a transforma em unidade programática. Ninguém lhe nega o direito de revisar o marxismo, desde que o diga explicitamente. Negamos-lhe o direito de prostituí-lo disfarçadamente, fazendo passar como sendo tal o seu oposto. Desafiamos todo e qualquer discípulo de Moreno a nos apresentar uma única citação dos clássicos marxistas onde seja feita a distinção entre unidade na ação e frente única.

A unidade morenista em particular
Vimos que a tática bolchevique de frente única implicava apenas em “acordos práticos para ação de massas”. Moreno chama de frente única o seu oposto, com a condição de que sejam com organizações operárias: acordos programáticos, ou seja, frentes orgânicas em torno de programas comuns com os inimigos de classe, com o pretexto de que ajudam na mobilização. Afirma que a independência do partido não fica comprometida: “... é bom esclarecer que nós nunca apoiamos uma direção burguesa, pequeno burguesa ou operária traidora, reformista ou burocrática, mesmo quando estivermos taticamente unidos numa luta. Nós somente apoiamos as lutas e as mobilizações, ...” (negrito no original). Que bom saber! Para tanto se vale da tática milagrosa chamada de unidade/enfrentamento, que limpa o partido de qualquer “pecado” oportunista: “... entre o acordo e o enfrentamento, se chega o momento em que se coloca abertamente essa contradição, nós continuamos denunciando essas direções mesmo que o acordo rompa. ... as denunciamos sempre e, dialética e contraditoriamente, o momento que mais a denunciamos é quando estamos unidos taticamente a elas ...”.

Essa fraseologia combativa e “denuncista” das direções traidoras, “mesmo que o acordo rompa”, nada mais é do que despiste para encobrir a conciliação de classes, porque está em contradição com a lógica desses acordos. A frase condicional “se chega o momento em que se coloca abertamente essa contradição” é uma incoerência. A contradição está colocada desde o primeiro momento, na frente programática em si. Como é possível estabelecer programa comum entre uma direção traidora e uma revolucionária? Entre um programa operário e um programa burguês? Não se trata de uma reivindicação parcial (isto é, acordos práticos para ação de massas), mas de um programa político que aborda as formas de organização da sociedade, a questão do poder.

Moreno tenta despistar essa contradição estabelecendo a condição de que a sua frente única programática somente é permitida com organizações operárias. Isso não resolve a questão. Essa condição de serem operárias as organizações aliadas justificaria a frente única no sentido bolchevique, apenas na luta prática, em torno de questões pontuais. Quando Moreno estabelece essa condição tem em vista principalmente o stalinismo, majoritário na sua época. Esquece que os partidos stalinistas não eram somente operários, mas operários/burgueses: operários pela sua composição, burgueses pelo seu programa. Exatamente por isso é que não se pode fazer frente programática com eles. Isso equivale a uma frente programática com a própria burguesia. É uma traição. Moreno atravessa o Rubicon.

A afirmação de que “nós nunca apoiamos essas direções, apoiamos apenas as lutas”, carece de sentido. Todo acordo programático pressupõe apoio político. Mas, e a tática de unidade/enfrentamento, a “denúncia feroz”? Isso é mais uma piada. Não podemos denunciar o programa voluntariamente acordado. Mas, se a burocracia trair esse programa? Esta, a rigor, não precisa trair o seu programa, ele próprio é a traição. Essa tática/despiste – chamada unidade/enfrentamento – é plenamente consciente, tanto que Moreno estabelece um método que a inviabiliza: “Por exemplo, como nos interessa o não pagamento da dívida, fazemos pacto com quem quer que seja e fazemos a crítica no jornal, e não cada vez que nos reunimos com os nossos aliados ocasionais, já que quase seguramente estragamos essa possibilidade se cada vez que nos encontramos lhes dizemos de tudo, ...”. Assim, os acordos e as frentes são públicos, para a massa, mas as críticas, se houverem, devem ser feitas somente no jornal, para a vanguarda. Isso anula todo a importância da crítica. Para o bolchevismo, frente única é uma tática de desmascaramento, somente tem sentido diante das massas. Dessa forma, vemos como a “crítica feroz e leonina” se transforma num rosnar de gatinho.

A unidade eleitoral morenista
No Conceitos Políticos Básicos fala-se de todo tipo de acordo e organizações de frente única, como se fossem semelhantes e sujeitos aos mesmos princípios. Se estabelece a confusão. Na verdade, essa longa citação de frentes, acordos e compromissos, visa passar como legítimas as frentes programáticas com a burocracia, principalmente, as frentes eleitorais, tipo FREPU – frente eleitoral do MAS com o PC argentino na década de 80 – e, mais tarde, a participação nas frentes populares com o PT nos anos 90, e a Frente de Esquerda, com o PSOL em 2006.

O texto faz referência aos acordos eleitorais dos bolcheviques com os mencheviques, socialistas-revolucionários e, até mesmo, com o partido liberal. No primeiro caso, bolcheviques e mencheviques, por muito tempo, se constituíram em frações públicas de um mesmo partido, cuja separação não estava totalmente consumada. Alternaram-se períodos de maior ou menor proximidade. A relação eleitoral entre os dois é um caso muito específico no interior da chamada social-democracia. Nesse período, não pode ser equiparada com frente única entre partidos antagônicos. Não podemos misturar alhos com bugalhos. Essa relação eleitoral entre bolcheviques e mencheviques nada tem a ver com os acordos com o partido liberal ou mesmo com a frente orgânica do MAS com o PC argentino. Os bolcheviques eventualmente chamavam o voto nos candidatos do partido Kadete, liberal, nos segundos turnos eleitorais. Tratava-se de escolher entre os candidatos dos partidos da reação monárquica e os candidatos liberais de oposição. Isso é radicalmente distinto de fazer frente eleitoral com eles, que implica em programa comum. Isso os bolcheviques nunca fizeram e consideravam uma traição. Chamar o voto num candidato liberal não implica em apoiar o programa do liberalismo. Pelo contrário, os bolcheviques aproveitavam a oportunidade para divulgar o seu próprio programa, coisa que seria impossível no caso de uma frente eleitoral programática.

Esse método bolchevique é o mesmo do trotskismo, em toda a sua história, excetuando o revisionismo dito trotskista: mandelismo, lambertismo, lorismo, altamirismo, morenismo, etc. Nesse sentido, transcrevemos a seguinte citação de Trotsky, para a Alemanha dos anos 30: “Em geral, os acordos eleitorais, os arranjos parlamentares feitos entre o partido revolucionário e a social-democracia, servem os interesses da social-democracia. Acordos práticos para ação de massas, para fins de combate, servem sempre a causa do partido revolucionário. Mas precisamente no domínio da propaganda, a frente única é inadmissível. A propaganda deve apoiar-se em princípios claros, num programa definido. Marchar separadamente, lutar juntos. O bloco é unicamente para ações práticas de massa. Os compromissos pelo alto, sem base de princípios, não trazem outra coisa senão confusão. A idéia de se propor o candidato à presidência pela frente única operária é radicalmente errônea. Só se pode propor um candidato na base de um programa definido. O partido não tem o direito de furtar-se, durante a eleição, a mobilizar os seus aderentes e ao recenseamento de suas forças. A candidatura do Partido, oposta a todas as outras candidaturas, não poderia impedir, em nenhum caso, o acordo com as outras organizações para fins imediatos”. (Revolução e contra-revolução na Alemanha).

Capciosamente, Moreno cita a tática eleitoral bolchevique, insinuando semelhança com a sua tática eleitoral de frente eleitoral programática, ou seja, de frentes populares. Por ironia, faz um resumo do Programa de Transição onde consta: “A IV Internacional não tem lugar em nenhuma Frente Popular”.


Outros acordos e organizações de frente única
Como já dissemos, o texto que criticamos faz referência a dezenas de acordos de todo tipo e de organizações de frente única, como os sindicatos e sovietes. Desses casos, alguns guardam alguma semelhança com a tática de frente única, outros não têm nada, ou muito pouco, a ver.

Já definimos a frente única “como acordos práticos para ação de massas”. Podemos acrescentar: é uma tática entre partidos de massa para a luta dentro do capitalismo em torno de uma reivindicação parcial. Podem existir outros acordos entre partidos antagônicos – não para ação de massas, mas para fins específicos – bem como, entre um governo burguês e um partido operário, ou um governo operário e um governo burguês. Exemplos:

- O acordo entre os bolcheviques e os liberais para o transporte de literatura;
- O acordo entre os bolcheviques e o governo da Alemanha, para a passagem pelo seu território num trem especial;
- Determinados apoios parlamentares pontuais a governos sociais-democratas;
- Acordos entre um Estado operário e um Estado burguês, para a defesa do primeiro em caso de guerra.

Este último caso merece um comentário. Stalin não cometeu erro em manobrar entre os imperialismos e receber o apoio das potências democráticas contra o fascismo. Nem haveria crime se tivesse ocorrido o inverso, ou seja, receber apoio do fascismo na eventualidade de uma invasão da Inglaterra e França. O crime foi lhes ter concedido apoio político. Enquanto durou o acordo com Hitler, esqueceu os crimes do fascismo e acentuou os das democracias. Depois, fez o inverso, defendeu politicamente os regimes democráticos em oposição ao regime fascista, suspendeu a luta de classes e a luta pela libertação colonial. Fez o mesmo que preconiza Moreno.

Paralelamente à tática de frente única operária, a III Internacional propôs a tática de frente única anti-imperialista. Esta última se justificava pela avaliação de que as burguesias coloniais encabeçariam movimentos anti-imperialistas, para traí-los logos em seguida. Seria preciso participar desses movimentos para disputar as massas à burguesia. Tratava-se também de uma unidade prática para a luta anti-imperialista. Essa tática, como política privilegiada, não se coloca mais na atualidade, porque a realidade mudou. No entanto, os acordos práticos com a burguesia ainda são possíveis no caso de uma invasão imperialista, como foram os casos do Afeganistão, Iraque, Argentina/Malvinas, etc. A tática de FUA foi ressuscitada por Lambert e adotada por Guilhermo Lora, com entusiasmo. Desde então, tem se constituído na outra versão da conciliação de classes, por parte dessa vertente do “trotskismo”.

Da mesma forma, as citações sobre organizações de frente única – sindicatos e sovietes – foram feitas fora do contexto. Essas organizações nada têm a ver com a tática de frente única. São organizações de frente única da classe trabalhadora. Não se trata de uma tática entre partidos, mas da necessidade objetiva do conjunto da classe de criar organizações unitárias. O partido deve assumir essa tarefa de criar sindicatos e sovietes nos momentos adequados, mas a tática de frente única é algo completamente distinto.

Um programa etapista
Moreno considera a queda da ditadura argentina, em 1982, – e, em geral, de qualquer ditadura – como uma Revolução Democrática Triunfante. Ao contrário, as quedas das ditaduras, na atual fase do capitalismo, têm sido fruto de acordos mais ou menos pacíficos entre os partidos burgueses e a oligarquia militar. É a mesma grande burguesia que sustenta tanto a ditadura quanto o novo regime democrático que a substitui. Nenhuma tarefa democrática histórica é solucionada: a independência nacional e a reforma agrária. Somente isso caracterizaria uma revolução democrática, coisa que as burguesias semi-coloniais não estão mais em condições históricas de fazer. Uma revolução distingue-se também pela mudança na composição das classes, ou setores de classes, no poder. As revoluções democráticas morenistas não preenchem nenhuma dessas condições. Moreno inventa uma revolução democrática inexistente e, para tanto, rebaixa as suas tarefas ao nível de um regime democrático reacionário dirigido pela grande burguesia. Faz passar as pretensas revoluções de regime – a substituição de uma ditadura por um regime democrático – como o programa revolucionário. Na atual fase do capitalismo as revoluções democráticas não existem mais. As tarefas democráticas históricas continuam atuais, mas atualmente o caráter da revolução é dado pelas tarefas socialistas – a expropriação dos monopólios – que se colocam na ordem do dia desde o primeiro momento.

Para defender essa política reacionária, falsifica o bolchevismo: “... nossa palavra de ordem central era negativa: abaixo a ditadura! Assim como na Rússia, ..., abaixo o Tzar”. Como assim? Da onde tira essa conclusão de que na Rússia a palavra de ordem dos bolcheviques era negativa? Significa que o proletariado não deve apresentar a sua alternativa de poder, mas seguir na sombra da burguesia e atribui essa política de capitulação aos bolcheviques. Vejamos o que diz Lênin: “O proletariado revolucionário, ..., exige a passagem completa do poder à assembléia constituinte, tratando de conseguir, para esse fim, ..., a derrubada imediata do governo Tzarista e a substituição do mesmo por um governo provisório revolucionário. Que a instauração da república democrática na Rússia somente é possível por meio de uma insurreição popular vitoriosa, cujo órgão será o governo provisório revolucionário, .... Um governo provisório revolucionário, do qual o proletariado exigirá a realização de todos as reivindicações políticas e econômicas imediatas do nosso programa (programa mínimo)” (grifos nossos – Lênin – Duas Táticas da Social-democracia na Revolução Democrática). Vemos que as palavras de ordem bolcheviques não eram só negativas –abaixo o Tzar – mas positivas – pela república democrática garantida por um governo provisório revolucionário, saído de uma insurreição popular vitoriosa. Pelo visto, entre o morenismo e o bolchevismo existe um abismo.

Na questão do governo operário e camponês, Moreno, mais uma vez, recorre à fraude. No Programa de Transição, Trotsky diz que governo operário e camponês é sinônimo de ditadura do proletariado. Como exceção improvável admite que possa existir um “governo operário e camponês” dirigido por partidos stalinistas ou pequeno-burgueses, coisa que realmente aconteceu excepcionalmente em Cuba e na China. Moreno transforma essa exceção em regra e, mais ainda, numa etapa histórica necessária. Noutros textos da sua corrente, considera-se como governos operários e camponeses até mesmo governos “operários” burgueses, saídos de uma eleição parlamentar, como seria a proposta de um governo Lula na década de 90, quando levantaram a palavra de ordem: Que Lula governe!

Após a revolução democrática – supostamente representada pela queda de uma ditadura – então se entraria na fase da luta por um Governo Operário e Camponês, quando as palavras de ordem passariam a ser positivas: “Por isso, nesta etapa, nossas palavras de ordem centrais já não são negativas como antes, mas sim positivas. ... Mas colocamos fundamentalmente ‘Por um governo da classe operária apoiado no povo trabalhador’. Essa palavra de ordem central assumirá formas mais concretas possíveis, como foi na Rússia ‘todo poder aos sovietes’, ou na Bolívia, todo poder à COB”. A palavra de ordem de “todo poder aos sovietes” – proposta de que os mencheviques e socialistas revolucionários assumissem o poder – levantada pelos bolcheviques, em 1917, não significava uma etapa necessária da revolução, como interpreta Moreno. Era uma reivindicação “pedagógica”, que visava desmascará-los. Estes tinham maioria nos sovietes e se recusavam a assumir o poder em nome destes para compartilhá-lo com a burguesia liberal. Essa tática somente se justificaria naquelas circunstâncias: uma insurreição popular vitoriosa, mas cujo poder os conciliadores transferiam novamente para a burguesia. Mas o que se trata de uma tática de desmascaramento, Moreno transforma numa etapa necessária pela qual a revolução deve passar. Segundo ele a revolução deveria passar por um “governo operário e camponês”, ou seja, por mais uma etapa democrática diferente da ditadura do proletariado, encabeçada pelos partidos traidores. Em As Revoluções do Século XX, afirma que Lênin e Trotsky chegaram a admitir a necessidade dessa etapa. Outra falsificação. O exemplo da palavra de ordem de “todo poder à COB” na Bolívia demonstra que faz desse tipo de proposta uma regra: “... devemos estar preparados para chamar esses partidos – que hoje não existem – a que tomem o poder e rompam com a burguesia ...”. Fica claro que a revolução deveria passar pelo poder desses partidos ou organizações, cabendo-nos pressionar para que assumam essa tarefa.

Não está descartado que venhamos a propor que assumam o poder um partido ou organização burocrata numa situação semelhante à fevereiro de 1917, quando, estando com o poder à sua disposição, se neguem a assumi-lo para depositá-lo nas mãos da burguesia. Situação similar aconteceu na Bolívia de 1952, quando o poder estava ao alcance da COB que o transferia para o MNR. Numa situação como essa, esta palavra de ordem serve para desmascarar essas direções e retirar as massas do seu controle. Mas fora desse contexto, essa mesma palavra de ordem transforma-se numa consigna etapista e num estorvo à revolução. Por exemplo: essa palavra de ordem – todo poder à COB – se levantada nas insurreições de 2003 e 2005 seria uma reivindicação reacionária.

O etapismo morenista fica cristalino na seguinte citação: “Porque para abrir caminho para a revolução socialista, devíamos, antes de mais nada, destruir o obstáculo do regime burguês contra-revolucionário. Porém, a partir da vitória da revolução democrática, da queda desse regime, as palavras de ordem anti-capitalistas passam a ser centrais. Se antes chamávamos os trabalhadores a concentrar suas mobilizações para derrubar a ditadura, agora os chamamos para que concentrem forças para liquidar o sistema capitalista imperialista”. Estas palavras não deixam margem a nenhuma dúvida sobre o caráter etapista da sua política. Os militantes conscientes devem repudiar essa versão traiçoeira da revolução por etapas.

Esse etapismo se apóia num programa mínimo economicista. Sem nenhum pudor procura deduzir o economicismo do Programa de Transição. Para tanto, faz uma interpretação peculiar da seguinte frase desse programa: “... quando qualquer reivindicação séria do proletariado e até qualquer reivindicação progressiva da pequena burguesia, conduzem inevitavelmente além dos limites da propriedade capitalista e do estado burguês”. Dessa frase, fora do seu contexto, Moreno deduz o seguinte: “... qualquer palavra de ordem pode adquirir um caráter transitório, no sentido de ser ponte para a revolução socialista se se transforma em bandeira da mobilização revolucionária”. Sim, qualquer palavra de ordem pode ser o ponto de partida que desencadeie a revolução. Mas isso não significa que qualquer palavra de ordem seja uma reivindicação transitória. E esse é o sentido que lhe dá o morenismo. Com essa mágica faz do programa mínimo um programa socialista. O Programa de Transição não deixa margem a dúvida quanto à necessidade da agitação e propaganda das palavras de ordem de transição, “cujo sentido é o de atacar cada vez mais aberta e resolutamente as bases do regime burguês”: o controle operário da produção, os comitês de fábrica, abolição do segredo comercial, milícia e armamento do proletariado, nacionalização da terra, a expropriação dos bancos, de certos ramos industriais, etc. É preciso que a vanguarda saiba repudiar esse sofisma reacionário de que “qualquer palavra de ordem seja transitória”, bem como a sua conseqüência, a revolução democrática.

O programa mínimo etapista também é reafirmado pela seguinte citação: “A classe operária tomou o poder na Rússia dirigindo as massas de milhões de camponeses, com três reivindicações super-mínimas ou democráticas: ‘paz, pão e terra’ ...”. Na França da década de 30, os estalinistas se valiam dessa mesma deturpação do programa bolchevique para justificar a sua política de recusa a assumir as tarefas revolucionárias, em nome de um programa economicista e democrático. A esse respeito, Trotsky desfez essa interpretação oportunista da política que levou à vitória da revolução de Outubro: “ ‘Pela Paz’, Em 1917, em condições de guerra, isto significava a luta contra todos os partidos patrióticos, dos monarquistas aos mencheviques, a reivindicação da publicação de todos os tratados secretos, a mobilização revolucionária dos soldados contra o comando e a confraternização na frente de batalha. ‘Pela paz’: isto significava um desafio ao militarismo, da Alemanha e da Áustria, por um lado, e da Entente, por outro. A bandeira dos bolcheviques significava assim a política mais audaciosa e revolucionária já conhecida pela história da humanidade ... ‘Pelo pão’ Para os bolcheviques, em 1917, isto significava a expropriação da terra e das reservas de trigo dos latifundiários e dos especuladores, e o monopólio do comércio de trigo em mão do governo dos operários e camponeses. ... ‘Pela liberdade’. Os bolcheviques mostravam às massas que a liberdade é uma ficção enquanto as escolas, a imprensa, os lugares de reunião permanecerem nas mãos da burguesia. ‘Pela liberdade’ significava a tomada do poder pelos sovietes, a expropriação dos latifundiários, o controle operário da produção” (Aonde Vai a França). Mais uma vez, o revisionismo não demonstra nenhum constrangimento em falsificar o marxismo, os seus métodos e o seu programa. Não bastasse as enormes dificuldades da luta de classes, a criação do partido revolucionário para se tornar realidade precisa ainda desfazer essa teia de falsificações oportunistas.